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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21520.041 

Seção Temática: Ética em Pesquisa e Integridade Acadêmica em Ciências Humanas e Sociais: atualizando o debate

Ética na pesquisa e na produção científica: um diálogo entre a coletânea da ANPEd e autores clássicos

Ethics in research and scientific production: a dialogue between the ANPEd collection and classic authors

Ética en la investigación y producción científica: un diálogo entre la colección de la ANPEd y autores clásicos

*Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: <teleoliv@gmail.com>.


Resumo

Neste artigo, reflete-se sobre o conceito de ética na produção e na publicação científica a partir de quatro textos publicados na coletânea de textos intitulada Ética e pesquisa em educação: subsídios (volume 1-2019, volume 2-2021) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa (ANPEd). Os intelectuais da Educação levaram a travar um diálogo sobre o tema por eles apresentado e a concepção de dois autores na História e na Filosofia, Aristóteles e Tomás de Aquino. Em consonância com essas fontes, buscou-se compreender em que medida o debate sobre a ética considera as ações do intelectual como ser humano e não somente como indivíduo da ciência. O diálogo entre formulações de autores de tempos e espaços distintos acerca do tema é possível porque o caminho teórico-metodológico é a história social, no qual a história é um fundo permanente, conforme ensina Bloch (2002) e como um processo de longa duração, segundo Braudel (2019). Observa-se, ainda, que o estudo é de natureza bibliográfica.

Palavras-chave: Ética; Produção e publicação científica; ANPEd

Abstract

In this article, it is reflected on the concept of ethics in scientific production and publication based on four texts published in the collection of texts entitled Ética e pesquisa em educação: subsídios [Ethics and research in education: subsidies] (volume 1-2019, volume 2-2021) of the National Association of Research and Graduate Studies on Education (ANPEd). Education intellectuals led us to engage in a dialogue on the topic presented by them and the conception of two authors considered classics in History and Philosophy, Aristotle and Thomas Aquinas. In accordance with these sources, we sought to understand to what extent the debate on ethics in research and scientific publication considers the actions of the intellectual person as a human being and not just as an individual of science. The dialogue between formulations by authors from different times and spaces on the subject is possible because our theoretical-methodological path is social history, in which history is a permanent background, as taught by Bloch (2002), and as a long-term process, according to Braudel (2019). We also observe that this study has a bibliographical nature.

Keywords: Ethics; Scientific production and publication; ANPEd

Resumen

En este artículo se reflexiona sobre el concepto de ética en la producción y en la publicación científica a partir de cuatro textos publicados en la colección de textos titulados Ética e pesquisa em educação: subsídios [Ética e investigación en educación: subvenciones] (volumen 1-2019, volumen 2-2021) de la Asociación Nacional de Postgrado e Investigación (ANPEd). Los intelectuales de la educación llevaron a entablar un diálogo sobre el tema por ellos presentado y la concepción de dos autores en Historia y Filosofía, Aristóteles y Tomás de Aquino. En consonancia con estas fuentes, se buscó comprender en qué medida el debate sobre la ética considera las acciones de lo intelectual como ser humano y no solamente como individuo de la ciencia. El diálogo entre formulaciones de autores de tiempos y espacios distintos sobre el tema es posible porque el camino teórico-metodológico es la historia social, en la que la historia es un trasfondo permanente, conforme enseña Bloch (2002) y como un proceso de larga duración, según Braudel (2019). También se observa que el estudio es de carácter bibliográfico.

Palabras clave: Ética; Producción y publicación científica; ANPEd

Estamos em um planeta minúsculo, satélite de um Sol de subúrbio, astro pigmeu perdido entre milhares de estrelas da Via-Láctea, ela mesma galáxia periférica em um cosmo em expansão, privado de centro. Somos filhos marginais do cosmo, formados de partículas, átomos, moléculas do mundo físico. E estamos não apenas marginalizados, como também perdidos no cosmo, quase estrangeiros, justamente porque nosso pensamento e nossa consciência permitem que consideremos isto [...].

(MORIN, 2003, p. 35).

Introdução

O objetivo deste artigo é tecer considerações sobre o conceito de ética na pesquisa e na produção científica como eixo catalisador de resultados positivos e fundamentais à comunidade acadêmica, com particular ênfase à educação, ao público da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), aos alunos da pós-graduação, aos professores da Educação Básica, aos professores do Ensino Superior e à população em geral. Essa destinação do texto deriva do fato de elegermos como uma das fontes centrais deste estudo a coletânea publicada pela ANPEd em dois volumes, em 2019 e 2021.

A ANPEd tem se voltado para questões concernentes à ética há mais de uma década, tendo, inclusive, instituído uma Comissão sobre Ética em Pesquisa composta por experientes pesquisadores da Educação. Com o fito de fomentar pesquisas fundamentadas na ética, essa Comissão entendeu que se tornara premente intensificar o debate sobre esse tema entre estudantes e pesquisadores da Educação, e um dos caminhos para atingir esses objetivos foi a publicação da coletânea Ética e pesquisa em educação: subsídios. Ela foi organizada segundo uma seleção de temas que expressam as demandas da área. A partir deles, a Comissão convidou um conjunto de pesquisadores para compor o primeiro volume; os textos do segundo volume foram publicados em 2022; e o terceiro volume está previsto para ser lançado em julho de 2023. Com os resultados positivos do primeiro volume, os textos do segundo e do terceiro foram selecionados após terem sido avaliados por pares - no modelo duplo-cego.1

Esse conjunto de textos que a coletânea tem tornado público é, a nosso ver, mais um elemento que exemplifica como a questão da ética na pesquisa em Educação constitui um tema fundamental e um debate a ser feito nos diversos espaços e veículos. Outro aspecto que justifica nossa temática está associado à passagem de Morin (2003) que apropriamos como epígrafe em nosso artigo. O autor nos autoriza a apresentar o Ser humano que pesquisa e publica como parte do microcosmo que compõe nosso planeta em uma perspectiva ampla, cujas ações influenciam o todo, ainda que sejam quase que “pequenas moléculas”. No conjunto, a ética é, portanto, parte da “natureza” da pessoa e não um aspecto externo ao pesquisador.

Assim, por essa concepção de humano e em virtude dos acontecimentos históricos do século XX, é imperativo refletir acerca do motivo do termo ética tornar-se bastante comum nas sociedades ocidentais. Isso impulsiona nossas reflexões acerca do objeto deste texto.

Para toda e qualquer ação humana faz-se sempre a indagação: É uma atitude ética? Esse resultado é ético? Parece-nos que, não mais que de repente, todos se voltam e se preocupam em agir de modo ético. Todavia, é preciso considerar que a ética acompanha ou deveria acompanhar as ações dos homens desde o momento que se tem registros de vida coletiva. Na Grécia clássica, essa questão toma corpo substancial, seja nas peças teatrais, a exemplo de Pluto, ou a riqueza, de Aristófanes, seja em escritos filosóficos, como os de Platão, Aristóteles, dentre tantos outros. Assim, o debate sobre ética não é uma especificidade da época contemporânea e da produção científica, mas acompanha sempre as atitudes dos homens e reflete o seu agir.

No século XX, esse debate se intensificou em decorrência das atrocidades e das experiências científicas realizadas no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Elas foram tão atrozes que, em julho de 1945, ocorreu a divulgação, pela Organização das Nações Unidas (ONU), da Carta das Nações Unidas, que apresentou ao mundo um documento no qual se propõe defender o direito de igualdade e de justiça para todos.

NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. (ONU, 1945, p. 1, grifo do autor).

A Carta é explícita quanto aos direitos do indivíduo e em relação aos direitos das nações de modo que se evite, por todos os meios legais e justos, a deflagração de outra guerra, como as duas que ocorreram na primeira metade do século XX. Na verdade, o documento visa proteger os homens, as instituições e, por conseguinte, as nações, por assegurar a vida, a liberdade e o direito de todos. Em decorrência da luta pelas reinvindicações apresentada na Carta, três anos depois, teríamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), em dezembro de 1948, a qual, em seu artigo primeiro, já anuncia: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (ONU, 1948, p. 1). A ideia que prevalece na Declaração é a máxima de que todos os seres humanos devem ter o direito de estar no mundo com dignidade, de terem liberdade e, acima de tudo, de existirem a partir da vida do outro. Logo, tanto a Carta como a Declaração têm como primeiro motor a concepção de que as pessoas, as instituições e as nações só estão no mundo em relação ao outro (MARITAIN, 2001).

Essa imagem que define e qualifica o existir de tudo e de todos, segundo a condição do singular em relação ao universal, é o fio condutor que conceitua os princípios éticos em qualquer tempo histórico, mas que se acentua a partir dos dois graves episódios da primeira metade do século XX. Assim, na perspectiva da nossa escrita, a ética não se restringe a uma palavra ou a um conceito. Antes, é o agir de cada um de nós, materializado em nossos atos que são ao mesmo tempo individuais e coletivos. Na pesquisa e na publicação científica, essa máxima adquire característica exponencial dado o fato de que tudo o que produzimos como ciência se difunde entre os homens e deve resultar em bem público. Com efeito, essa premissa não é uma eleição da nossa mente, mas fruto da própria literatura contemporânea da época, da Segunda Guerra, a exemplo da obra Ética para viver melhor, de C. S. Lewis, composta por um conjunto de ensaios escritos entre 1940 e 1960. O primeiro ensaio, “Porque não sou pacifista”, inicia com uma indagação sobre o que representa servir na guerra civil, se essa ação seria “[...] um ato errado, moralmente neutro ou uma obrigação moral. Para responder a essa pergunta, levantamos uma questão muito mais abrangente: como decidir o que é bem e o que é mal?” (LEWIS, 2017, p. 8). O problema suscitado por Lewis está no âmbito da ética, pois a decisão de participar da guerra pode independer da vontade do indivíduo, já que este nada teria a ver com esse acontecimento. Contudo, como partícipe de uma comunidade, no caso um país, a pessoa é “convocada” pelo Estado a cooperar. Assim, independentemente de vontade deliberada ou “coagida”, a pessoa agirá e o problema é: Como se portará? Nesse sentido, Lewis nos chama atenção para o fato de as pessoas terem ou não consciência de seus atos, já que a consciência não é uma “faculdade autônoma”, e ela está vinculada à forma como cada uma das pessoas organiza a sua vida em relação a outra: “Assim, a consciência implica o homem como um todo participando de um debate específico (LEWIS, 2017, p. 9). Novamente, a ideia mestra se mantém: as ações da pessoa estão amalgamadas ao outro, portanto, ao meio social em que se encontra.

Em conformidade com os documentos e com o entendimento de consciência apresentada por Lewis, desenvolveremos nosso artigo sobre a publicação científica na perspectiva da educação em dois tópicos. O primeiro está pautado em textos dos dois e-books publicados pela ANPEd sobre a temática ética na pesquisa e na produção científica intitulados Ética e pesquisa em educação: subsídios - Volume I, publicado em 2019, e Ética e pesquisa em educação: subsídios - Volume 2, publicado em 2021. O segundo tópico está pautado na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, e em dois escritos de Tomás de Aquino - uma questão contida na Suma Teológica e o texto do Intelecto contra os averroístas - e em reflexões de Roberto Romano.

É preciso considerar que podemos refletir e circular em períodos históricos distintos e construir o diálogo entre os dois tópicos do artigo em virtude da nossa abordagem teórica seguir os caminhos da história social e entender que a história é sempre um “contínuo fundo permanente”, como afirma Bloch (2002) em Apologia da história, ou o ofício do historiador, ou, ainda, a história se constitui na perspectiva da longa duração, em conformidade com a tese de Braudel (2019).

De antemão, alertamos o leitor que, de modo algum, propomos uma comparação entre duas épocas, tampouco estabelecer qualquer juízo de valor sobre os escritos analisados. Ao contrário, pretendemos argumentar no sentido de que as regras sobre pesquisa e produção científica, no âmbito da educação, é parte ou fruto do sujeito como pessoa, antes de ser do pesquisador/professor/intelectual.

Ética em textos da ANPEd

Iniciamos o tópico destacando a importância de a ANPEd trazer para o debate reflexões de intelectuais que se destinam a pôr na ordem do dia problemas concernentes às ações éticas na pesquisa e na publicação científica. Um dos exemplos que podemos aferir é a publicação de dois e-books (ANPED, 2019, 2021)2 com estudos que tratam da ética. O primeiro volume contém 24 capítulos e o segundo 25 capítulos - são, assim, quase meia centena de estudos tratando da ética. Os textos são de excelente nível e trazem questões relevantes para o campo das Ciências Humanas, com especial atenção às pesquisas em educação. Trata-se de relatos de experiências em práticas éticas, em comitês de ética de questões relacionadas ao plágio e antiplágio, dentre muitos outros problemas no universo da ética. Devido à relevância desses estudos, consideramos importante trazer a público um diálogo histórico entre passado e presente em relação à compreensão de ética na produção científica.

Como pessoa que atua no âmbito do ensino e pesquisa em educação, entendemos que essa ação da ANPEd é fundamental para pensarmos a ciência não só no campo da Educação, mas nas Ciências Humanas e Sociais (CHS) como um todo porque, quando um periódico ou uma editora elabora os princípios éticos para publicação, elas os definem, em linhas gerais, para a pesquisa no conjunto.

Assim, por entender a ética como parte intrínseca das ações humanas que, dentre aproximadamente uma centena de textos divulgados na coletânea organizada e publicada pela ANPEd, elegemos quatro textos que, a nosso ver, aproximam-se do nosso entendimento de ética, pois buscaram vincular as práticas éticas de pesquisa às demais ações realizadas pela pessoa que publica um estudo.

As observações de Mainardes (2022) também colaboram com a nossa justificativa para a escolha dos quatro textos. Para o autor, “[...] o desafio colocado aos pesquisadores é integrar a ética, a ontologia e a epistemologia, em termos de conteúdo e forma, em outras palavras, verificar se esses elementos estão coerentes e articulados na pesquisa [...]” (MAINARDES, 2022, p. 4). Assim sendo, é preciso considerar que a pesquisa apresenta a concepção de mundo do autor. Dito de outro modo, ao produzir a ciência com princípios éticos sob uma perspectiva ontológica, deve-se sempre buscar a “verdade” de um dado acontecimento ou experimento. É preciso compreendê-lo em sua essência e no seu aspecto geral. Essa caracterização da produção científica a qual o autor define como “ético-ontoepistemológica” nos auxilia igualmente em relação às nossas reflexões acerca de Aristóteles e Tomás de Aquino.

O capítulo 20, do volume I, da coleção da ANPEd, no texto intitulado Aspectos éticos nos periódicos da área de Educação, do mesmo modo, colabora com o nosso argumento sobre a relevância de pensar a ética sob uma perspectiva para além do ato intrínseco da pesquisa. Antônio Carlos Amorim, autor do capítulo, faz a seguinte indagação: “Ora, o que caberia acrescentar aos aspectos éticos que os periódicos da área da Educação auxiliariam na regulamentação, na discussão e na colaboração para os modos de fazer as pesquisas?” (AMORIM, 2019, p. 181). A pergunta de Amorim evidencia que os veículos de divulgação científica não só têm a missão e promovem a publicação de resultados parciais e finais de pesquisas, mas também interferem e, mesmo, “educam” os estudiosos a terem atitudes éticas em relação à própria pesquisa - a exemplo da exigência do protocolo de ética para pesquisas que envolvam humanos ou animais - como os textos das duas coletâneas publicadas pela ANPEd trazem. A título de reflexão, traremos quatro estudos (sem prejuízo para com os demais) desse conjunto de textos que nos me permitem dialogar, neste momento, com a questão da ética. A escolha desses quatro textos, sendo três do volume 1 e um do volume 2, não foi tarefa fácil, tampouco aleatória, mas deriva do fato de seus autores abordarem a ética como um princípio norteador que nos permite considerá-la antes como uma essência que fundamenta a pessoa do que uma ação prática de pesquisa, conforme observamos anteriormente.

O primeiro texto é o capítulo 2, volume 1, Ética, de Nadja Hermann (2019). Em seu estudo, a pesquisadora analisa o conceito de ética e a sua epistemologia, retomando, em linhas gerais, as origens gregas do termo. É importante ressaltar que esse texto é um dos poucos, senão o único, a recuperar o sentido filosófico do conceito de ética no conjunto dos 49 capítulos que compõem os dois volumes da coleção. Essa observação é importante por apontar os fios que tecem os estudos e a compreensão do conceito nos campos da pesquisa e da publicação em Educação na ANPEd, deslindando, desse modo, uma inquietação com a forma como as pesquisas são realizadas.

O entendimento de ética na pesquisa da professora Hermann é norteado pela preocupação em entendê-la como uma prática humana, diretamente vinculada ao agir consciente da pessoa.

A ética é um campo do conhecimento filosófico que estuda os valores concernentes ao bem e ao mal e uma ordem normativa instituída na sociedade e na cultura, que orienta o agir humano. Ela nasce da reflexão dos costumes promovida pelo espírito grego até chegar à tematização daquilo que chamamos bem viver ou agir de forma correta. Fundamentalmente, a ética tem como ponto de partida as perguntas que surgem diante das complexas situações da vida: Como devo agir? O que é uma ação correta? Que exigências devo cumprir? (HERMANN, 2019, p. 28).

Depreendemos estar a autora em consonância com a tradição ocidental filosófica e histórica de considerar ética como prática consciente das pessoas. Exatamente por isso destaca que a ética está vinculada à indagação constante que se deve fazer ao praticar uma ação, ou seja, ao existir, se o que se está fazendo é o correto, se não prejudica o outro.

A ética estaria na essência da condição humana, posto que é o ethos da própria natureza do homem, o que, para a autora, é “[...] como um habitar a si mesmo, conhecer as possibilidades e também os limites da autodeterminação, em uma tensão entre aquilo que é dado pela natureza e nossa capacidade de tomar consciência do destino” (HERMANN, 2019, p. 18). Logo, ética é a consciência que cada ser humano teria de agir em virtude da sua escolha e de se responsabilizar por suas consequências. Mais adiante, no texto, a autora observa que:

De um modo amplo, pode-se dizer que a ética se estabelece na busca de orientações justificadas para o agir que resultem em um certo equilíbrio entre a pulsão irracional e seu domínio pela razão. Assim, ela se situa nesse espaço de ambiguidade entre a fragilidade humana com suas paixões e o limite imposto por normas de convivência que estão além da particularidade do eu. (HERMANN, 2019, p. 29).

De acordo com a autora, a ética é a linha que coíbe as paixões humanas e torna possível a vida comum, em sociedade. Essa reflexão é importante por evidenciar, mais uma vez, a máxima de que o comportamento do indivíduo, que é passível de ser dominado por seus interesses e suas paixões individuais, poderia inviabilizar a existência da sociedade, na medida em que só é possível a existência da sociedade quando as paixões singulares são contidas e as pessoas têm consciência da necessidade de viver em comum e entendem que o seu agir não deve ser ensimesmado.

O segundo texto da coletânea que trazemos é o capítulo 3, volume I, Ética na pesquisa: princípios gerais, de Jefferson Mainardes e Jamil Cury. Antes de refletirmos sobre as considerações dos autores sobre ética na pesquisa, é preciso considerar que Mainardes tem se voltado para a temática há algum tempo e isso é perceptível em suas publicações científicas. Exemplo disso é o texto publicado na coletânea Caminhos da pós-graduação em educação no Nordeste no Brasil: avaliação, financiamento, redes e produção científica (CARVALHO; CARVALHÊDO; ARAÚJO, 2016), intitulado A ética na pesquisa em educação: desafios atuais (MAINARDES, 2016). Nesse capítulo, Mainardes tece ponderações sobre a Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016)3, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e as suas implicações nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, ressaltando a importância dessa Resolução, mas destacando, ainda, a relevância de se zelar pela formação do pesquisador.

No texto publicado na coletânea da ANPEd, por Mainardes e Cury (2019), a discussão realizada por Mainardes, em 2016, é aprofundada, e a análise sobre as leis que regulamentam a produção e publicação científica no Brasil foi claramente ampliada. Nesse sentido, o capítulo traça uma linha histórica do surgimento de leis que regulam as práticas éticas na pesquisa, mostrando a relação histórica entre as práticas humanas em dadas condições e a história que evidencia a necessidade dessa regulamentação ética da pesquisa. Os autores retomam, inclusive, as experiências realizadas com seres humanos em campos de concentração na Segunda Guerra Mundial e explicitam como se tornou premente o uso de regras de boas práticas para o desenvolvimento de pesquisas com seres humanos e animais (MAINARDES; CURY, 2019).

Os autores apresentam, também, uma síntese de princípios éticos adotados por Associações de Educação em diversos países, a exemplo da Associação Americana de Pesquisa em Educação (AERA); da sociedade escocesa, Associação Escocesa de Pesquisa em Educação (SERA); da sociedade britânica, Associação Britânica de Pesquisa em Educação (BERA); o código de ética da Associação Alemã de Pesquisa em Educação (Deutsche Gesellschaft für Erziehungswissenschaft - DGfE). Ao trazerem uma sinopse delas, permitem ao leitor compreender como se tornou emergencial, em nível mundial, a adoção de práticas explicitas de “boa conduta” nas pesquisas e publicações em CHS, como é o caso da área de Educação.

Outro aspecto trazido por Mainardes e Cury (2019) que nos alerta para a questão da ética é o fato de que o estabelecimento de regras e princípios éticos no âmbito das humanidades, no sentido de regulamentação/legislação, tem pouca tradição no país. De acordo com os autores, eles se tornaram objeto de regulamentos há menos de três décadas.

No Brasil, a revisão ética dá-se pelo sistema Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CEP/Conep (Plataforma Brasil). A Conep, com sede em Brasília, é uma das Comissões do Conselho Nacional de Saúde, ligada ao Ministério da Saúde. A Conep foi criada pela Resolução CNS Nº 196/1996 e tem a função de elaborar e implementar normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, tanto para as pesquisas biomédicas quanto para as pesquisas de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (CHSSA). (MAINARDES; CURY, 2019, p. 39).

Como informado nessa passagem, a criação da Conep data do ano de 1996 - mesmo ano de promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) - Lei No 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996a) -, fruto da Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 1988) - desse modo, ainda nos faltam três anos para comemorar três décadas de sua existência. Se considerarmos esses três acontecimentos, podemos afirmar que a preocupação com a regulamentação de práticas éticas nas pesquisas científicas e nas respectivas publicações decorre do movimento de redemocratização do Brasil, iniciado a partir do início da década de 1980. Logo, é possível traçar um vínculo entre a regulamentação de práticas éticas na pesquisa com a liberdade e a preservação dos direitos da pessoa, instituídos a partir do processo de democratização. Não é aleatório, portanto, que um esteja alinhado ao outro, do mesmo modo que a Declaração dos direitos universais é o resultado da luta pela preservação da vida, com igualdade e liberdade.

É preciso, ainda, recuperar do debate apresentado por Mainardes e Cury (2019) o fato de chamarem atenção que, desde 2011, ocorreram debates nos âmbitos das CHS sobre a necessidade de revisão da Resolução CNS Nº 196, de 10 de outubro de 1996 (BRASIL, 1996b), uma vez que esta estaria voltada à área da Saúde. Essa questão foi, em parte, resolvida pela Resolução Nº 510/2016, direcionada às humanidades. Evidentemente, esses debates já são conhecidos dos estudiosos da área, mas consideramos muito positiva a recuperação apresentada pelos autores nesse capítulo da coletânea.

O terceiro texto é o capítulo 18, do volume I, Ética na pesquisa: falsificações de dados, de Joaquim Antonio Severino (2019). Nele, o autor traz à luz a importância de os dados/resultados de um estudo serem verdadeiros, pois, se não forem, o pesquisador, agindo de má fé, prejudicará toda a sociedade. Do ponto de vista do autor, essa falsificação deve ser caracterizada como crime e ser passível de punição porque atinge a comunidade em geral e, nessa condição, a falsificação de dados é, antes de tudo, uma atitude antiética4. “O que caracteriza a não eticidade de uma conduta é a ofensa que ela causa a outras pessoas, ferindo e violando sua dignidade. Quando esse valor é vivenciado coletivamente, ele assume uma dimensão social, tornando-se um valor ético-político” (SEVERINO, 2019, p. 107).

Da perspectiva de Severino (2019), não seria possível pensar uma pesquisa e a publicação de seus resultados de modo isolado pelo fato de que todo e qualquer resultado falsificado atinge a comunidade. Em virtude disso, é que o autor destaca que, além da consistência epistemológica e metodológica, é preciso considerar como os resultados do estudo são apresentados.

A fabricação ou invenção de dados consiste pois na utilização e na apresentação de dados não fiéis à realidade do objeto em estudo ou resultados construídos falsamente de maneira a alterar os seus significados, induzindo interpretações equivocadas, iludindo, assim, o destinatário do conhecimento. Esse tipo de manipulação pode dar-se ainda pela fragmentação dos resultados de um estudo único complexo, pela atribuição a si de ideias alheias (como ocorre no plágio), eliminação de discrepâncias, inclusão de coautorias fantasmas, sonegação de coautorias efetivas, manejo arbitrário de procedimentos estatísticos, sonegação do crédito. (SEVERINO, 2019, p. 168-169).

A nosso ver, a questão a ser considerada nessas atitudes, definidas como fraudulentas, evidenciam muito mais a personalidade do pesquisador e a sua ética do que propriamente uma falha científica. A pessoa que adultera um resultado de pesquisa para conseguir uma publicação rápida, ou pratica plágio, autoplágio, forja um resultado para obter financiamento ou simplesmente para concluir um estudo é, antes de tudo, um ser antiético. Ela tem consciência que está praticando uma atitude que provocará malefícios para o outro e, mesmo assim, efetiva sua ação. Não se “incomoda”, portanto, não faz a indagação suscitada em Lewis (2017) e em Arendt (1999, 2008), nas obras Eichmann em Jerusalém e Homens em tempos sombrios, por exemplo, pois encara como “natural” atitudes como essas. Embora sejam pessoas, detentoras de razão, em ato, não se sentem constrangidas em falsear resultados, ou seja, em mentir.

A questão trazida por Severino ocorre, em certa medida, no meio científico porque, caso não se verifica, não teríamos a necessidade de tantas regras e princípios com o objetivo de normatizar condutas éticas na pesquisa, a exemplo das regras mencionadas no texto de Mainardes e Cury (2019), as normativas da ANPEd, da Conep, dentre muitas outras. Além disso, não teríamos a vulgarização de expressões como “produção salame”, que é a multiplicação ou fatiamento, nos moldes do corte de salame, de resultados de uma mesma pesquisa, ou, ainda, a necessidade de os periódicos científicos usarem softwares como o Crossref ou similares, que são programas cuja finalidade é medir a quantidade de plágio ou autoplágio existente em artigos, relatórios de pesquisas, dissertações e teses. Logo, a falsificação de resultados na pesquisa seria um sintoma da “banalização do mal”.

Essa prática de má conduta resulta no que Severino define como “transtorno ético”: “O transtorno ético nessa conduta é a indução a erro do destinatário da conclusão, que está igualmente falseada. O público, o leitor do relatório, a comunidade científica e a sociedade como um todo são enganados ao assumirem como verdadeiro um resultado que é falso” (SEVERINO, 2019, p. 169).

O quarto texto é o capítulo 8, do volume 2, intitulado Periódicos e editoras predatórias, de autoria de Ângelo Ricardo de Souza (2021). Nessa análise, o pesquisador destaca o fato de as empresas/editoras predatórias prejudicarem imensamente a ciência de um país, pois divulgam resultados de pesquisas sem o devido zelo, por exemplo, sem as avaliações pelos consultores ad hoc. Na definição do autor:

Periódicos e editoras predatórias são instituições de comunicação e difusão científica que se organizam de forma a oferecer serviços de publicação de artigos científicos, livros e outros produtos acadêmicos, mediante o pagamento de taxas de publicação pelos autores, mas sem os devidos cuidados que envolvem a qualidade e os procedimentos de avaliação e de arbitragem aceitos na produção científica. O resultado são publicações disponibilizadas em prazo exíguo, sem a garantia da legitimidade científica à comunidade acadêmica e ao público em geral. (SOUZA, 2021, p. 72).

Como os veículos, denominados predatórios, de divulgação científica, promovem a popularização de resultados sem a devida cautela e de forma muito aligeirada, eles tendem a ser danosos à sociedade, pois fornecem à comunidade pesquisas que, ainda que possam não ser fraudadas, não passaram pelo crivo e selo da avaliação. Quando não há essa validação pelos pares, a possibilidade de pesquisas com erros ou má fé chegarem ao público é muito maior.

De acordo com Souza (2021), a existência de editoras e periódicos que praticam atos predatórios decorre de uma realidade na qual se caracterizam como empresas com fins lucrativos. Todavia, é preciso considerar, a partir dessa assertiva do autor, para o fato de que, por estarmos em uma sociedade burguesa, a existência e a proliferação dessas editoras e periódicos que se configuram como empresas com fins lucrativos podem ser explicadas por haver interesse [consumo] de parte dos pesquisadores em buscar esses veículos para divulgar os resultados parciais ou finais de estudos. Logo, a existência desses serviços se justifica porque há “consumidores”, por isso não se pode criticar somente um lado do problema.

Essa questão precisa ser ressaltada pelo fato de o próprio autor destacar que há, no Brasil, poucos periódicos com características predatórias.

Há poucos periódicos nacionais que podem ser efetivamente classificados como predatórios, pois, em território nacional, há uma forte relação entre essa categorização e a instituição mantenedora ou proprietária do periódico, sendo, como vimos, uma enorme proporção dos periódicos nacionais mantida por IES. (SOUZA, 2021, p. 73).

A imensa quantidade de periódicos nacionais mantidos por IES ou por Sociedades Científicas assegura a possibilidade de as pesquisas serem divulgadas em periódicos e editoras não predatórias, viabilizando, assim, outros caminhos que não o dolo.

Outra questão relevante a ser retomada, a partir das reflexões de Souza (2021), decorre do argumento de que, atualmente, as regras de avaliação do pesquisador, seja no âmbito profissional para ingresso na carreira, seja para concorrer a editais, as avaliações na pós-graduação ou progressão na carreira impelem os estudiosos a buscarem periódicos e editoras predatórias.

O autor é pressionado por esses aspectos para publicar cada vez mais produtos, e os livros são uma boa saída. As editoras perceberam que os autores seriam a fonte de seus recursos e de seu lucro e não mais os leitores. Assim, transferir ao autor o custo da produção de um livro foi algo quase imediato, na busca pelo aumento dos lucros, em especial nas editoras privadas e/ou não universitárias. Já os pesquisadores, autores de livros, passaram a reservar parte de seus recursos de pesquisa para financiar a ‘difusão do conhecimento’, gerando mais e mais livros com os resultados de pesquisa. (SOUZA, 2021, p. 75).

As palavras de Souza (2021) explicam os motivos pelos quais o pesquisador busca e aceita publicar os resultados de seus estudos em veículos predatórios. Segundo o autor, a principal razão dessa escolha deriva da circunstância de que, cada vez mais, os intelectuais são instados a publicar. Essa necessidade estimularia, por seu turno, a existência de editoras e periódicos predatórios que, em virtude dessa demanda, alterariam o público-alvo de seus produtos. Se antes o “consumidor” de livros e revistas seria o leitor (estudantes, professores, pesquisadores), no novo cenário de propagação do produtivismo acadêmico, o “consumidor” passa a ser o autor.

Um aspecto bastante importante dessa realidade pode ser observado a partir do Relatório Capes-Clarivate How does Brazilian research compare internationally? (CROSS; THOMSON; SINCLAIR, 2018), disponível no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Indica-se nele que os pesquisadores brasileiros publicaram 250.680 papers entre os anos de 2011 e 2016 (DUDZIAK, 2018), mas o fator de impacto dessa produção foi de apenas 0.74. Comparando-se com os índices da África do Sul, por exemplo, que produziu 73.633 e atingiu um índice de citação de 1.11, depreendemos que os produtos científicos deste último circularam e atingiram um número muito maior de pessoas, apesar de publicarem pelo menos três vezes menos.

Ainda com base nesse Relatório, observa-se que o Brasil ocupava, mundialmente, entre os anos de 2011 e 2016, o 13º lugar em publicações de pesquisa; contudo, se considerarmos a posição que o Brasil está nas avaliações mundiais do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), conforme o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep (2018), exige-se de nós, no mínimo, uma análise. Tomemos como exemplo só o conhecimento em Matemática: o Brasil ocupa a 70ª posição no ranking geral e o 7º lugar entre os países da América Latina (INEP, 2018). Nesse cenário, é preciso refletir se a forma como pensamos a pesquisa, a publicação, portanto, a produção científica não teria vinculações com os resultados da educação escolar.

A nosso ver, as transformações indicadas por Souza (2021) em relação ao mercado editorial é um ponto a ser considerado já que traz consequências para o coletivo, pois, cada vez mais, temos livros e artigos sendo publicados, mas não necessariamente mais leitores. A consequência de uma sociedade na qual as pessoas não são leitoras, não se dedicam ao conhecimento, é que ela tende a ser presa fácil de governos totalitários, como já anunciara La Boétie (1530-1563) no Discurso da servidão voluntária, no século XVI (LA BOÉTIE, 2017).

Assim, a questão da ética na pesquisa abordada pelos autores/pesquisadores, sob a coordenação da ANPEd, nos textos aqui analisados, evidencia que a ética é, ou deveria ser, mais do que regra ou princípio norteador, mas o resultado de uma consciência clara de que a produção científica afeta e compromete a sociedade.

Ainda é importante destacar, em consonância com os intelectuais abordados, o fato de que há um consenso de que, nas duas últimas décadas, no Brasil, se registra, de modo positivo, a crescente atualização e profissionalização de periódicos científicos no campo da Educação que adotam políticas claras de ética na submissão, avaliação e publicação das propostas de artigos. Na atualidade, a maioria dos periódicos indica regras de ética internacionais, como o Committee on Publication Ethics (COPE), bem como a Resolução Nº 510/2016, da Conep, que normatizam as práticas de conduta em produção e publicação científica.

Após nossas reflexões sobre plágio, sobre periódicos e editoras predatórias, dentre outros aspectos, para dar sequência aos nossos argumentos, passaremos a analisar os conceitos de ética e de pessoa em Aristóteles e Tomás de Aquino. Lembramos, mais uma vez, que, ao retomarmos esses dois pensadores para pensarmos a ética na pesquisa, no século XXI, incidimos no fato de que, para nós, a ética deve ser inerente à pessoa e não um comportamento específico para o momento da pesquisa. Como Aristóteles e Tomás de Aquino apresentam o ser humano sob uma perspectiva ontológica, isso robustece nossos argumentos sobre a nossa compreensão de ética na pesquisa.

Ética da pessoa em Aristóteles e Tomás de Aquino

Como já afirmado, nossas reflexões sobre ética precisam ultrapassar o universo das práticas científicas, pois a ética é um princípio que mapeia a essência dos homens, por conseguinte, norteia a sua vida. Não se trata, por conseguinte, de uma ação externa ou uma regra burocrática, mas de uma prática de vida. Nesse sentido, retomamos o sentido de ética apresentado por Aristóteles e Tomás de Aquino pelo fato de que o caminho teórico que seguimos nos permite considerar uma tradição de cultura histórico-filosófica que remonta à antiguidade clássica e à Idade Média e que compreende a pessoa como ser responsável por suas ações na sociedade.

Seguindo as formulações de Aristóteles, em Ética a Nicômaco, que é, sem dúvida, o primeiro e principal tratado sobre a ética no Ocidente, esta é a forma de ser do homem. Exatamente por isso que o filósofo observa:

[...] no domínio das ciências práticas [como a política e, portanto, a ética], o fim não é alcançar um conhecimento teórico dos vários assuntos, mas antes levar nossas teorias à ação. E se assim é, saber o que é a virtude não basta. É forçoso que nos empenhemos em possuí-la e praticá-la ou, de alguma outra forma, nos tornarmos nós mesmos bons. Ora, se discursos em torno da ética fossem suficientes em si mesmos para tornar os seres humanos virtuosos, eles teriam, com absoluta certeza, como diz Teógnis “conquistado grandes pagamentos” e produzir tais discursos seria tudo que se desejaria. (ARISTÓTELES, 1985, p. 206)5.

A ideia de que a ética constitui uma ciência prática é fundamental para pensarmos a produção científica nas CHS, especialmente no campo da Educação, já que, em geral, os resultados das pesquisas são, em tese, teóricos. Na verdade, há uma dificuldade em perceber que as questões investigadas interferem nas ações dos homens. Essa pode ser uma das razões pela dissintonia entre o volume de artigos produzidos, como o “Relatório Capes-Clarivate” evidencia, e o lugar que ocupamos no conhecimento de Matemática, no ensino básico, no exame do PISA de 2018. O distanciamento entre um dado e outro pode suscitar uma questão ética: Afinal, quais alterações a nossa pesquisa tem produzido na sociedade? Ora, se a ética é prática, porque nós não fazemos essa pergunta? De acordo com a nossa perspectiva, talvez a resposta esteja no fato de que entendemos a ética como um procedimento metodológico e não como uma ação. Com efeito, Aristóteles chama atenção para isso ao observar que, se o discurso fosse suficiente para a ética ser praticada, ou seja, para que todos fossem virtuosos, o problema da sociedade já estaria resolvido. Essa também é uma questão da nossa época, pois discorremos, incansavelmente, sobre a ética, e a maioria das publicações, como observa Souza (2021), adota práticas de boa conduta, porém ainda continuamos a ter revistas e editoras predatórias, por exemplo. Assim, podemos reforçar, enfaticamente, que devemos agir com vistas a respeitar as regras éticas da pesquisa por meio de nossos discursos, mas isso não trará resultados significativos se o pesquisador não alterar a sua conduta de vida.

[...] há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte, a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução; quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado, com uma ligeira variação, da palavra “hábito”. É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito. (ARISTÓTELES, 1985, p. 35)6.

Sob a perspectiva aristotélica, somos exatamente o que aprendemos a ser, seja no âmbito intelectual, seja no moral. Assim, uma discussão sobre ética na pesquisa e na publicação científica pressupõe que, primeiro, ajamos em conformidade com a nossa essência moral e intelectual. Portanto, para se praticar a pesquisa e a publicação científica de forma ética, seria necessário que tivéssemos o hábito de agir em consonância com as regras “retas” da sociedade.

Logo, se é necessário estabelecer regras e estudos investigativos acerca de práticas éticas no universo da ciência, isso se deve, de algum modo, ao nosso agir como humanos. Estamos, na verdade, nos distanciando do que deveríamos aprender a ser. Aristóteles, mais uma vez, nos alerta para essa questão ao observar que, “[...] na prática de atos em que temos de engajar-nos dentro de nossas relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos; na prática de atos em situações perigosas, e adquirindo o hábito de sentir receio ou confiança, tornamo-nos corajosos ou covardes” (ARISTÓTELES, 1985, p. 36)7. Na verdade, nossa prática científica evidencia os hábitos que estão consolidados em nós, desde que aprendemos a ser pessoa no meio social em que estamos integrados.

Nesse sentido, o debate acerca de práticas éticas exige uma reflexão mais profunda sobre o Ser que pesquisa, que publica, que editora. Podemos indagar se estaria ocorrendo um abandono, muito mais amplo, dos princípios éticos e morais. Mais uma vez, retomamos Aristóteles, ainda na Ética a Nicômaco, que assinala que “[...] nossas disposições morais resultam das atividades correspondentes às mesmas. É por isso que devemos desenvolver nossas atividades de uma maneira pré-determinada, pois nossas disposições morais correspondem às diferenças entre nossas atividades” (ARISTÓTELES, 1985, p. 36)8.

Nesse sentido, se precisamos ensinar e debater sobre boas práticas de pesquisas, certamente, é pelo fato de que não a estamos praticando como seres sociais de um dado tempo histórico. Essa percepção fica evidente na discussão feita, por exemplo, por Severino (2019). Quando se torna necessário refletir e escrever sobre a falsificação de resultados de pesquisa, é porque isso está ocorrendo, de fato, e é por isso que o autor precisa enfaticamente definir como crime, passível de punição. Ora, se somos o que aprendemos e nos habituamos a ser, essa prática de falsificação evidencia que há, por parte de pesquisadores, uma naturalização de atitudes como essa.

Ainda dialogando com os textos que inicialmente destaquei, o texto de Mainardes e Cury (2019) revela que o surgimento de leis que regulamentam um comportamento ético na pesquisa está no bojo de práticas inadequadas de ciência como as que ocorreram na Segunda Guerra Mundial. Elas surgem para coibir ações científicas que resultaram em prejuízo aos homens, aos animais e à natureza em geral. Assim, elas vêm para coibir ações indevidas que os cientistas estão praticando. Retomando a máxima de Aristóteles, os homens estão habituados a fazer estudos que afetam o outro de modo negativo; portanto, é preciso que uma ação externa à moral controle a sua natureza social.

Evidentemente, essa preocupação em cercear práticas antiéticas de pesquisa precisa ser contextualizada com as condições sociais do momento histórico. Somente porque os homens ampliaram o nível de entendimento de homem, de ciência e dos usos de seres vivos e da natureza é que puderem pensar e coibir esses hábitos. Chamamos atenção para isso porque se relembrarmos a história e mencionarmos o surgimento da primeira vacina, resultado de uma experiência científica, foi a da varíola, em 1796, pelo médico Edward Jenner, que inoculou em uma criança um experimento que estava investigando em bezerros. Por isso, inclusive, se chamou vacina (FEIJÓ; SÁDAFI, 2006). De modo algum podemos condenar essa prática. Afinal, se nesse momento que vivemos de pandemia temos a descoberta e o uso de vacinas devemos as suas raízes a esse experimento do século XVIII. Para nós, hoje, essa pesquisa seria inadequada e antiética, mas só podemos ter essa percepção em virtude do avanço das condições sociais e materiais como um todo.

Outro aspecto que trazemos para nossas reflexões sobre a ética na pesquisa e na publicação refere-se às características do sujeito que pesquisa e de suas responsabilidades. É preciso considerar que esse sujeito é um SER adulto que deve tomar para si as consequências do seu agir. Para ponderarmos sobre o sentido de ser pessoa, traremos, para o nosso diálogo, nesse momento, reflexões de Tomás de Aquino (1224/25-1274), um dos maiores teólogo-filósofos do no século XIII. Indubitavelmente, foi um dos autores da filosofia escolástica que mais recuperou Aristóteles. Nos escritos tomasianos sobre o homem e o ser homem, encontramos fortes influências dos princípios de ética, de homem, de intelecto, de natureza, dentre outros temas, do filósofo grego.

O século de Tomás de Aquino foi a época em que os homens, cada vez mais, passaram a ter uma vida comum, no ambiente citadino e, por conseguinte, tornara-se imprescindível refletir sobre o que seria homem e isso talvez seja a razão pela qual o mestre dominicano retomou o filósofo porque este tratou da política, da vida comum e, especialmente, da ética. É preciso lembrar ainda que, ao recuperarmos esse autor, estamos trazendo à cena um dos maiores professores da Universidade de Paris e que nos deixou um legado imenso de obras para a posteridade. Por conseguinte, alguém que produziu e divulgou “ciência”. Traremos para o nosso diálogo uma questão da Suma Teológica e o escrito Unidade do intelecto contra os averroístas. À época de Tomás de Aquino, havia um grande debate acerca do homem. Dentre as muitas discussões travadas, duas foram essenciais para o desenvolvimento da ciência moderna: a) O homem possui livre-arbítrio para definir suas ações?; b) O homem pode ensinar ou só Deus ensina? As reflexões do mestre dominicano passam também por essas questões9.

Ao refletir sobre o que é o homem, o mestre dominicano preocupou-se em evidenciar que a característica primária da pessoa é o fato de ela pensar: “[...] ora, a operação própria do homem, enquanto é homem, consiste em pensar, pois é nisto que o difere dos animais e, por isso, é que Aristóteles deposita a última felicidade nessa operação. O princípio pelo qual pensamos é o intelecto, tal como Aristóteles diz” (TOMÁS DE AQUINO, 1999, p. 119)10. Ainda que a pessoa possua características específicas como animal homem, esses aspectos não indicam propriamente o humano, mas é o pensar que o torna especificamente ser humano.

Das ações realizadas pelo homem, são ditas propriamente humanas as que pertencem ao homem enquanto homem. O homem diferencia-se das criaturas irracionais porque tem o domínio de seus atos [...]. Ora, o homem tem domínio de suas ações pela razão e pela vontade. Donde será chamado de livre-arbítrio, a “faculdade da vontade e da razão”. [...]. são propriamente ditas humanas as ações que precedem da vontade deliberada. Se outras ações, porém são próprias do homem, poderão ser chamadas de ações do “homem”, mas não são propriamente ações humanas, pois não são do homem enquanto homem. (TOMÁS DE AQUINO, 2003, p. 32, grifo do autor)11.

O aspecto que nos interessa nessa passagem reside no fato de que Tomás de Aquino explicita que o homem se caracteriza como tal por ter o domínio de seus atos por meio da razão e da vontade. Se é próprio do homem o pensar e ele materializa os seus atos pelas faculdades que possui como homem, logo, o agir na pesquisa deriva da sua vontade deliberada. Desse modo, o pesquisador/autor é responsável, por completo, por seus atos, já que é um ser que pensa. A partir dos argumentos de Tomás de Aquino, podemos inferir que as ações instintivas dos “homens” podem ser consideradas práticas pertencentes a eles enquanto tais, contudo, só podem ser definidas como humanas se derivadas da razão deliberada, portanto, consciente.

A reflexão de Tomás de Aquino nos põe diante de uma encruzilhada em relação ao pesquisador/autor que produz ciência de modo antiético: se ele possui razão e consciência, age, por conseguinte, de acordo com sua vontade deliberada e os seus atos derivam de seus hábitos. Estes derivam dos homens como seres humanos ou derivam de sua qualidade animal homem? Essa indagação pode ser respondida pelos argumentos do próprio Tomás de Aquino ao afirmar que o homem em si pensa: “É de facto evidente que este homem em concreto pensa, pois nunca chegaríamos a procurar saber o que é o intelecto se não pensássemos; nem quando procuramos saber o que o intelecto é de nenhum princípio mais procuramos saber senão daquele pelo qual pensamos” (TOMÁS DE AQUINO, 1999, p. 103)12.

O fato de ser homem confirma, necessariamente, o fato de que possui intelecto e, por possuir intelecto, pensa. Desse modo, todo pesquisador/autor é alguém que dispõe da capacidade de discernir o certo do errado e, portanto, definir seus atos de modo objetivo. Na verdade, podemos retomar a ideia aristotélica de hábito, mais uma vez, ao afirmar que, se acostumamos a ser justos, nossos atos serão “naturalmente” justos; o contrário procede: se nos habituarmos a ser injustos, também faremos atos injustos. No caso do pesquisador/autor, ele possui intelecto, pensa, tem consciência e dispõe do hábito adquirido com a prática no campo em que atua.

Sob a perspectiva de que o homem é um ser que pensa, responsável por seus atos, ponderamos sobre as contribuições de Roberto Romano acerca do conceito de ética. Nelas, temos argumentos importantes sobre a sociedade brasileira e, em especial, a universidade, espaço do qual brota a maioria das pesquisas e publicações do país. Traremos aqui dois pontos que julgamos relevantes.

O primeiro é o excesso que o termo “ética” ocupa na sociedade, ao que Romano (2001) chama de inflação, porque, em todos os lugares, se fala e se pede comportamento ético. Tampouco a universidade livrou-se desse discurso. Ao banalizar e vulgarizar o conceito de ética ocorreu, segundo o autor, um esvaziamento do sentido de ética.

Sofremos uma violenta inflação do termo “ética”. O fato é sombrio. Quando o público e os especialistas falam em demasia sobre um valor ou uma doutrina, tais elementos certamente estão sendo veiculados sem crítica. No Brasil e no mundo, as teses mais contraditórias entre si sobre ética e moral, as propostas menos claras, ocupam a imprensa e setores políticos. A universidade não escapa dessa maré montante de palavras vazias que encobrem práticas perfeitamente imorais e opostas à ética. De um lado, notamos o uso sem peias de uma forma complexa de pensamento, uma das mais difíceis dentre as produzidas pelo saber filosófico. De outro, presenciamos, nos discursos dirigidos ao público, a negação da moral como fundamento da sociedade e da vida. (ROMANO, 2001, p. 94).

Ainda que o tempo todo e em todos os lugares os discursos indiquem a necessidade da ética, o que se verifica em todos os lugares e ações é sua ausência. Os discursos são antíteses das ações praticadas pelas pessoas na sociedade. Como observa o autor, há uma “negação da moral”.

O segundo ponto que julgamos pertinente trazer para o nosso diálogo é o retrato que o autor apresenta da sociedade brasileira. Na verdade, entendemos que ele traça um perfil do brasileiro pautado na relação de “compadrio”, muito usual no país, desde o período imperial.

Tomemos as relações de favor. Elas imperam nas políticas municipais e nacionais, na vida aquisitiva e mesmo na captação de recursos para a pesquisa. No Brasil o costume é esse: você tem um projeto objetivamente bom - do ponto de vista científico, acadêmico, metodológico - e, no entanto, sempre precisa ter alguém que dê a “mãozinha”, interceda, esteja presente nos Conselhos, para que o seu projeto saia do anonimato. Mas o preceito democrático é justamente o anonimato, o valor da coisa e não da pessoa. As fórmulas conhecidas, como o “sabe com quem está falando” e o QI (quem indica?), infelizmente modelam boa parte das relações científicas, acadêmicas. Esse ponto ético da cultura brasileira merece ser reformulado, para que não exista mais a guerra de todos contra todos, a formação de pequenos grupos de influências para troca de favores... Só quem desconhece a realidade social brasileira e a realidade social das universidades e das próprias Fundações de Pesquisa ousa dizer que nelas não existem esses nexos de influência pessoal. (ROMANO, 2002, p. 99).

Os argumentos de Romano (2002) são duros em relação à realidade das práticas cotidianas da sociedade brasileira, em todos os níveis, inclusive na universidade. O que está consolidada é a relação de pessoalidade, de coleguismo e a ausência, na maioria das vezes, do respeito à isonomia e ao mérito. Segundo o autor, ainda que todos discursem sobre a ética, como uma prática necessária à vida social, ocorre o inverso. Na maioria das vezes, o mérito é abandonado, o anonimato nas avaliações de pesquisas e nos pareceres de artigos é quebrado, prevalecendo o espírito ora de dar “uma mão” ou de perseguir aqueles que divergem das ideias, das metodologias, das teorias. Esse comportamento evidencia o hábito de agir de modo que prevaleçam os interesses particulares em detrimento dos coletivos.

As formulações de Romano (2002) sobre a sociedade corroboram com as reflexões tratadas nos textos da ANPEd. Nessa sociedade, em que as relações são pautadas pela pessoalidade, é preciso que as regras e os princípios éticos estejam postos e sejam cobrados pelas editoras e pelos periódicos, porque a prática de atitudes éticas não está incutida nas pessoas, em geral, por conseguinte, não estão habituadas a serem éticas.

Considerações finais

Nossas reflexões sobre a ética na pesquisa e publicação científica a partir dos debates instigados pela coletânea da ANPEd trouxeram para o diálogo vários autores e diferentes ângulos de percepção da questão. Todavia, é válido considerar que, nesse “banquete”, se depreendeu que os dois grupos de autores argumentam sobre a importância da ética, mas o fio que os conduz são distintos.

O primeiro grupo de autores composto por intelectuais brasileiros afiliados à ANPEd volta-se para a ética com o intuito de regular padrões de comportamentos sobre aspectos que afetam a produção como o plágio, o autoplágio, a falsificação de dados, as revistas e as editoras predatórias, bem como um histórico sobre o surgimento de leis que promovam e regulamentem as pesquisas. No segundo grupo, trouxemos Aristóteles, Tomás de Aquino e Roberto Romano para evidenciar como as reflexões sobre ética estão vinculadas à formação da pessoa e, por conseguinte, às atitudes das pessoas.

Seguindo os princípios apresentados por Tomás de Aquino, as ações do pesquisador/autor/editor dependem de vontade deliberativa ou, dito de outro modo, do livre arbítrio do sujeito singular. Sob esse aspecto, se retomarmos as ponderações do capítulo de Souza (2021) sobre “Editoras e periódicos predatórios”, os autores/pesquisadores que divulgam suas pesquisas nesses veículos são responsáveis por as escolherem como lócus de disseminação dos resultados dos seus estudos. Esse pesquisador poderia até não ter identificado que se tratava de uma editora ou periódico predatório, mas, como sujeito que possui a capacidade intelectiva de discernir - porque essa é a única qualidade humana -, torna-o responsável por essa prática científica não ética.

Assim, se considerarmos que os debates sobre a ética na pesquisa implicam promover atitudes retas e “honestas” em relação ao ambiente científico no país, é preciso pensar antes as práticas éticas do próprio sujeito, pois, antes de ser um cientista, a pessoa é um membro da sociedade, que convive com o outro e que, de acordo com Aristóteles, age de acordo com os hábitos adquiridos na prática da vida. Com efeito, pensar a ética na pesquisa e na produção científica é, antes de tudo, pensar a forma como os atores do campo agem na vida. Logo, as práticas éticas precedem ou antecedem a vida desse personagem na vida coletiva, anterior a sua condição de cientista. É, pois, em virtude desse entendimento, que trouxemos Roberto Romano como o último autor do nosso diálogo por ele apresentar uma imagem fiel da realidade brasileira.

É preciso considerar que, ao concebermos a ética fora das nossas ações e a deixarmos circunscrita ao discurso, não compreendemos que a pessoa e os interesses particulares impedem o entendimento do que seja ser humano, pois só existimos em relação ao outro, às instituições e à própria natureza. Caso agirmos sem espírito coletivo, prevalecerá o que Tomás de Aquino define como ações do animal homem, mas não do ser intelectual denominado humano. É, pois, nessa condição, que não nos importamos em falsear resultados, em abandonar princípios que assegurem os direitos humanos, bem como não nos indagamos ou não nos sentimos responsáveis pelos níveis de aprendizagens das crianças e dos adolescentes no Brasil. Em suma, corroboramos a ausência da liberdade, da igualdade e da possibilidade de desenvolvimento de todos, no Brasil. Logo, tratar da ética é, em última instância, zelar pelo bem comum da pessoa, da sociedade e das instituições.

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1Informações obtidas junto à Comissão de Ética da ANPEd. Ver notícias sobre ética na pesquisa da ANPEd em: https://anped.org.br/site/etica-na-pesquisa/news. Acesso em: 9 maio 2023.

2Previsão de publicação do terceiro volume da coletânea em julho de 2023.

3Acerca da Resolução Nº 510/2016, é preciso considerar que ela pede reflexões e reformulações dado o fato de que ainda não privilegia as especificidades das pesquisas em CHS, como bem observam Savi Neto, De la Fare e Silva (2020), ao ponderarem sobre o fato de que as associações de pesquisas dessas duas áreas estão revendo as regras “impostas” por essa Resolução. “A análise hermenêutica jurídica da resolução CNS nº 510/2016 parece-nos fazer especial sentido no momento de uma possível ruptura das associações que representam as CHS com o sistema CEP/CONEP” (SAVI NETO; DE LA FARE; SILVA, 2020, p. 5).

4Mencionaremos dois exemplos que evidenciam os prejuízos sociais de resultados equivocados ou de má fé. O primeiro, trata-se da divulgação, na Revista Lancelot, da pesquisa do médico Andrew Wakefield, em 1998, que anunciou possíveis vinculações entre vacinação e autismo. Essa pesquisa provocou a redução na taxa de vacina tríplice viral. Na década seguinte, a Revista Lancelot se retratou em relação ao equívoco dessa pesquisa (ABDULLATIF; MONTEIRO, 2021). O segundo exemplo é a queda de vacinação infantil, no Brasil, em virtude de fake news sobre vacinas. Segundo dados do Instituto Fiocruz, “[...] a taxa caiu de 93,1% para 71,49%. De acordo com a pesquisa, realizada em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), esse número coloca o Brasil entre os dez países com menor cobertura vacinal do mundo” (LA PORTA; LIMA, 2022).

5Alertamos o leitor de que, a partir daqui, as citações de Aristóteles e de Tomás de Aquino serão mencionadas no corpo do texto de acordo com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e indicadas em nota de rodapé de acordo com as normas internacionais de obras clássicas (autor, título da obra, capítulo e parágrafo). ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, X, 9, 1179b1.

6ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, §, 1103b.

7ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, §, 1103b2.

8ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, §, 1103b2.

9Não entraremos nessa questão porque não é o objeto deste artigo. Contudo, recomendamos a leitura de dois artigos sobre esse debate, pois ambos tratam sobre o ensino e o debate na Universidade do século XIII (OLIVEIRA, 2019a, 2019b).

10TOMÁS DE AQUINO, Unidade do intelecto, c. III, § 77.

11TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Q. 1, a. 1. resp. Iª-IIae.

12TOMÁS DE AQUINO, Unidade do intelecto, c. III, § 61.

Recebido: 13 de Janeiro de 2023; Revisado: 05 de Maio de 2023; Aceito: 07 de Maio de 2023; Publicado: 28 de Maio de 2023

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