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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21740.033 

Seção Temática: Ética em Pesquisa e Integridade Acadêmica em Ciências Humanas e Sociais: atualizando o debate

Ética na pesquisa em educação - A que se destina?

Ethics in educational research - What is it for?

Ética en la investigación en educación - ¿A qué se destina?

Luiz Percival Leme Britto* 
http://orcid.org/0000-0001-6825-7927

Anselmo Alencar Colares** 
http://orcid.org/0000-0002-1767-5640

*Doutor em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). E-mail: <luizpercival@hotmail.com>.

**Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Bolsista Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: <anselmo.colares@gmail.com>.


Resumo

Neste ensaio, examina-se a atual tendência de caráter protocolar que se tem dado à aplicação da ética na pesquisa, argumentando que ela não só escapa propriamente aos fundamentos da questão como não contribui para a qualificação e o desenvolvimento nem da pesquisa em educação nem da formação em nível de pós-graduação. Retoma-se, assim, o questionamento sobre os fundamentos da ética, assumindo que ela, como criação humana, faz-se na história e não se confunde com nenhum tipo de regramento, ainda que possa inspirar normas e leis. Assumindo o princípio de que a ética perpassa todo o processo de pesquisa, destacam-se os desafios que se põe à organização e ao funcionamento dos programas de pós-graduação e indica-se a necessidade de revisão profunda tanto do que se entende por comitê de ética (que deve ser reorganizado como comitê de regulação da pesquisa) como das formas de promoção da própria ética, em seu fundamento epistemológico, nos programas de pós-graduação.

Palavras-chave: Ética; Pesquisa; Educação

Abstract

In this essay, the current protocolary tendency that has been given to the application of ethics in research is examined, arguing that it not only escapes the fundamentals of the issue, but also it does not contribute to the qualification and development of research in education nor graduate training. Thus, the questioning of the foundations of ethics is resumed, assuming that it, as a human creation, is made in history and cannot be confused with any type of regulation, even though it may inspire norms and laws. Assuming the principle that ethics permeates the entire research process, the challenges posed to the organization and functioning of graduate programs are highlighted, and the need for a profound review of both what is understood by committee of ethics (which should be reorganized as a research regulation committee) and ways of promoting ethics itself, in its epistemological foundation, in graduate programs.

Keywords: Ethic; Research; Education

Resumen

En este ensayo, se examina la actual tendencia de carácter protocolar que se le ha dado a la aplicación de la ética en la investigación, argumentando que no solo escapa a los fundamentos de la cuestión, sino que tampoco contribuye a la calificación y el desarrollo de la investigación en Educación ni de la formación del nivel de posgrado. Así, se retoma el cuestionamiento de los fundamentos de la ética, asumiendo que ésta, como creación humana, se hace en la historia y no puede confundirse con ningún tipo de regulación, aunque pueda inspirar normas y leyes. Asumiendo el principio de que la ética permea todo el proceso de investigación, se destacan los desafíos que se le plantean a la organización y al funcionamiento de los programas de posgrado, y se indica la necesidad de una revisión profunda tanto de lo que se entiende por comité de ética (que debe ser reorganizado como comité de regulación de la investigación), como de las formas de promoción de la ética misma, en su fundamento epistemológico, en los programas de posgrado.

Palabras clave: Ética; Investigación; Educación

Introdução - ideias fora de lugar

O filósofo Roberto Romano, em texto em que apresenta tradução do verbete sobre Moral da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, dispara, em seu estilo ácido, que “[...] sofremos uma violenta inflação do termo ‘ética’”; “o fato é sombrio”, assevera o autor, completando que “[...] quando o público e os especialistas falam em demasia sobre um valor ou uma doutrina, tais elementos certamente estão sendo veiculados sem crítica” (ROMANO, 2001, p. 94). Observa ainda que “[...] as palavras ‘ética’ e ‘moral’ amontoam-se nas bocas, nas telas de televisão, no cinema, na internet, nos jornais, nos livros, nos seminários de ‘pesquisa’” e que “[...] quanto mais circulam e recebem novos adjetivos, mais loucas elas ficam” (ROMANO, 2001, p. 95). O uso despropositado de tais termos, continua, “[...] levam à corrosão dos valores e à perda da credibilidade da palavra coletiva”, de modo que “[...] perdemos o significado efetivo dos termos filosóficos, políticos e jurídicos sobre a ética e a moral” (ROMANO, 2001, p. 96). E conclui advertindo que “[...] quem banaliza as doutrinas sobre o bem gera o mal” (ROMANO, 2001, p. 97).

Sempre se pode rejeitar o argumento com a resposta fácil que há exagero, mas o fato é que, no ambiente da pesquisa em educação brasileira, com a institucionalização dos padrões de ética em função das exigências dos comitês, consequente, por sua vez, primeiro da Resolução No 196, de 10 de outubro de 1996 (BRASIL, 1996), e depois da Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS)(BRASIL, 2013), que instituiu a Plataforma Brasil, vive-se a tal “violenta inflação” de que fala o filósofo, muito frequentemente com pouquíssima reflexão e muita submissão. Multiplicam-se as palestras instrucionais de como preencher apropriadamente os formulários, de como elaborar e propor o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e de como agir na coleta de dados com humanos. Periódicos, atentos aos padrões de indexação, passam a exigir a demonstração de que o projeto de pesquisa foi devidamente submetido às e aprovado pelas instâncias formais de regulamentação para aceitar a submissão de artigo. As cobranças intensificam-se e burocratizam-se cada vez mais.

Há frenesi institucional de exigência de que a pesquisa “passe pelo comitê de ética”, assim como se multiplicam os trabalhos e debates em torno de como devem se constituir e atuar esses comitês e a própria Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Isso, todavia, não significa absolutamente que se venha constituindo uma produção efetivamente ética. De fato, para além disso, a ética desaparece da pesquisa e do debate, e todos os problemas e as muitas fragilidades prevalecem, pelo menos naquilo que se costuma chamar de normalidade da vida acadêmica. Parece atualíssima a mordaz observação de Luiz Antônio Cunha, manifestada nos idos de 1991, momento em que o campo da pós-graduação viveria, para o autor, um ponto de inflexão, de que muitas das pesquisas que se faziam na pós-graduação “[...] não podem reivindicar cidadania acadêmica, nem grande parte das dissertações e teses mereceriam sair do esconderijo em que foram, com louvável autocrítica, guardadas por seus próprios autores” (CUNHA, 1991, p. 64).

No campo específico da Educação, o tema levou à organização de um importante grupo de trabalho da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), o qual recentemente publicou dois livros sobre o tema, tratando de vários aspectos atinentes à ética1. No documento introdutório do primeiro livro, cujo objetivo declarado é o de, considerando “[...] os dilemas do atual sistema de revisão ética, [...] sistematizar a discussão que a área de Educação tem acumulado nos últimos anos sobre a ética na pesquisa” (AMORIM et al., 2019, p. 10), reconhece-se que o Sistema CEP2/Conep não atende às expectativas e às especificidades da área de Ciências Humanas e sublinha-se que

[...] a elaboração de um documento de referência sobre ética na pesquisa é importante para atender às especificidades da pesquisa em Educação, tendo em vista a diversidade de perspectivas epistemológicas e metodologias empregadas, bem como fortalecer a autonomia da área no campo da política científica. (AMORIM et al., 2019, p. 21).

E, em função disso, recomenda-se que,

[...] enquanto a regulamentação e a revisão ética estiverem atreladas à área de Saúde, [...] a tramitação dos processos no Sistema CEP/Conep esteja relacionada ao nível de risco (mínimo, baixo, moderado e elevado) e apoia a ideia de que as pesquisas classificadas como de risco mínimo (ou outa decisão similar) sejam aprovadas e liberadas para realização. (AMORIM et al., 2019, p. 22).

Sônia Siquelli, no livro já referido, ao tratar dos “[...] aspectos normativos da revisão ética de projetos”, destaca que os CEP “[...] trabalham para forjar uma obrigatoriedade dos protocolos dos projetos de pesquisa no interior das universidades, local onde se encontram alocadas a maioria das pesquisas e seus pesquisadores no Brasil” (SIQUELLI, 2019, p. 48), o que seria um avanço na área de normatização dos projetos que envolvam seres humanos. O problema, argumenta, estaria não propriamente na perspectiva regulatória, mas na circunstância de os comitês estarem fortemente atrelados às ciências médicas, como evidencia o fato de a Conep vincular-se ao CNS, do Ministério da Saúde. Ademais, pontua que os pareceristas “[...] nem sempre se restringem às suas competências (revisão ética)”, apontando aspectos que “[...] ultrapassam suas competências, pois discutem concepções metodológicas, amostra, desenho da pesquisa, referenciais teóricos etc.” (SIQUELLI, 2019, p. 49). A autora, referindo outro trabalho seu, adverte ainda que, se o comando da pesquisa não for do próprio pesquisador (eticamente bem formado), os comitês se tornarão “[...] órgãos engessadores da pesquisa e fiscalizadores, que ferem a autonomia do pesquisador e dos caminhos trilhados pela ciência” (SIQUELLI; HAYASHI, 2015, p. 76). O problema, portanto, seria de enfoque e de ênfase, e não de princípio, como, aliás, já o indica o próprio título do artigo.

De la Fare, Carvalho e Pereira (2017, p. 193), que endossam a crítica das Ciências Humanas “[...] à universalidade dos princípios da bioética principialista como doutrina aplicável a todas as ciências”, acabam por capitular à vinculação da ética ao princípio regulatório, destacando que caberia estabelecer “[...] um âmbito governamental mais adequado para regular as relações entre ciência e ética, e defendem o uso de regulações que contemplem possibilidades reflexivas para problematizar os atravessamentos entre ciência e ética” (DE LA FARE; CARVALHO; PEREIRA, 2017, p. 194).

Telma Birchal (2012, p. 165), por sua vez, não obstante apresente fortes críticas ao modo como se vem pondo a regulamentação, assume que “[...] a tendência atual de uma maior regulação da ciência pela sociedade é uma realidade que não pode ser ignorada e que veio para ficar”. Mais recentemente, Yara Guerriero (2023, p. 2) faz um exame agudo da dinâmica atual da Conep, apontando seus vícios e limitações, destacando a necessidade de “[...] identificar e de respeitar as especificidades éticas das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (CHS), apontando a importância da formação ética do pesquisador e de normas adequadas para essas pesquisas”.

Vê-se, assim, que, embora se ponha como tema central a ética na pesquisa, a questão objetiva desse debate é reacional, tendo como núcleo de consideração o estabelecimento de um padrão disciplinar de pesquisa que fosse apropriado às ciências humanas, prevalecendo a admissão do controle por instância específica e reguladora (os comitês de ética ajustados à área). É imperativo reconhecer que, nessa dimensão, o problema está mal colocado, pontuado antes pela parametrização, quase cartorial, do fazer científico e intelectual do que pela efetiva atenção ao núcleo político-filosófico da questão da ética na pesquisa e no mundo contemporâneo, mesmo que se considerem tais aspectos.

Assume-se neste trabalho o posicionamento de que a ética na ciência, para além e independentemente de qualquer regulamentação de condutas, deve ser compreendida numa perspectiva que inclua a percepção da e a crítica ao funcionamento objetivo da ordem social, política e institucional, e não especificamente da qualidade ou da necessidade de seu regramento. Esse, se tiver de ocorrer, deve ser de base distinta da que vêm se delineando e, por essa razão, desvinculado da ética. Como se procura argumentar adiante, qualquer tipo de regramento, apesar de poder guiar-se pela ética, não é, por princípio, um problema da ética. A ideia mesma de uma ética regulatória é uma antinomia.

Assim, toma-se aqui um rumo distinto. Examinando os vários aspectos da questão, pontua-se que o atual direcionamento de tratamento da ética na ciência está posto de forma errada e que os denominados comitês de ética funcionam objetivamente como instância de regulamentação e controle da pesquisa, sem efetivamente ter a ética como seu fundamento central e sem contribuir para a qualificação ético-epistemológica da pesquisa. E, embora entendendo que esse raciocínio se aplica a todos os campos de conhecimento e às atividades humanas, o enfoque que se oferece limita-se a considerar o problema no âmbito das ciências humanas, especificamente no que tange à pesquisa em educação. Para tanto, após pontuarem-se alguns elementos constitutivos da questão da ética e de sua relação com a ciência, apresenta-se o que uma compreensão objetiva de ética na pesquisa em educação e se fazem algumas derivações.

A questão da ética - problemas e implicações

Está mais que repisado apresentar uma definição enciclopédica de ética. Praticamente, todo trabalho sobre o tema inicia com a alusão às origens etimológicas e, de certa forma, histórico-filosóficas, da palavra. Tais definições, não obstante essencialmente ajustadas, pouco contribuem para o entendimento objetivo, seja do termo, seja das questões que ele recobre.

Também na referida publicação da ANPEd, percebe-se esse movimento: o texto que se apresenta na publicação imediatamente após o documento introdutório, de autoria de Nadja Hermann tem por finalidade oferecer um conceito (panorâmico) de ética, dos gregos à contemporaneidade. Logo na abertura do artigo, a autora aponta que a ética diz respeito aos “[...] valores concernentes ao bem e ao mal e uma ordem normativa instituída na sociedade e na cultura, que orienta o agir humano”, na perspectiva do “bem viver ou agir de forma correta” (HERMANN, 2019, p. 28). Seu ponto de partida são “[...] as perguntas que surgem diante das complexas situações da vida: Como devo agir? O que é uma ação correta? Que exigências devo cumprir?” (HERMANN, 2019, p. 28).

Embora tais proposições sejam admitidas como senso comum da conceituação abrangente do que seria a ética, residindo em qualquer manual introdutório do tema, há de destacar-se que, por si sós e descoladas da materialidade objetiva do fazer humano, elas carecem de densidade. De certa forma, a autora reconhece isso quando observa que “[...] a ação considerada correta moralmente dependerá de uma determinada tradição filosófica e de seus critérios e que são várias as correntes que discutem as considerações e a justificação do agir moral” (HERMANN, 2019, p. 31), o que a leva a fazer outra breve apresentação do que seriam as correntes predominantes da ética atual, o que faz na mesma linha de exposição neutra.

O que importa observar é que, não obstante serem, em última instância, individuais, as tais perguntas fundantes da ética têm de, necessariamente, ser percebidas como expressões anteriores e mais amplas do que o indivíduo, não encontrando substância quando tomadas genericamente, como se fossem um princípio absoluto de humanidade. Isso porque, não existindo a humanidade senão como realização histórica concreta das relações entre as pessoas, não cabe falar em valores humanos universais atemporais; a própria universalidade é produto da humanidade, assim como os valores que dela derivem.

Sobre isso escreveu com propriedade Agnes Heller em estudo que considera exatamente a relação entre o indivíduo, em sua particularidade, e a generacidade humana, a um tempo anterior a ele e constitutiva de suas possibilidades de ser. Ao tratar da ética, observa a autora que:

As exigências e normas da ética formam a intimação que a integração específica determinada (e a tradição do desenvolvimento humano) dirige ao indivíduo, a fim de que esse submeta sua particularidade ao genérico e converta essa intimação em motivação interior. A ética como motivação (o que chamamos de moral) é algo individual, mas não uma motivação particular: é individual no sentido de atitude livremente adotada (com liberdade relativa) por nós diante da vida, da sociedade e dos homens. (HELLER, 2000, p. 23).

Nesse sentido, a escolha (qualquer escolha) eticamente determinada implica a “[...] vinculação consciente com a situação escolhida e, sobretudo, com suas consequências” (HELLER, 2000, p. 25). Uma decisão que se fizesse desde fora, consequência da pura submissão à ordem instituída, mesmo tendo resultado positivo - isto é, que causasse o bem ou, pelo menos, que não gerasse o mal - não poderia ser considerada eticamente motivada. Trata-se de um caso típico de alienação.

Existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção. [...].

O moderno desenvolvimento capitalista exacerbou ao extremo essa contradição. Por isso, a estrutura da cotidianidade alienada começou a expandir-se e a penetrar em esferas onde não é necessária, nem constitui uma condição prévia da orientação, mas nas quais aparece até mesmo como obstáculo para essa última. (HELLER, 2000, p. 38-39).

Um dos equívocos mais comuns e mais graves no debate em torno da ética está exatamente em pensá-la fora de sua historicidade, como se fosse um absoluto universal, atemporal e original. Não é assim. Eunice Trein e José Rodrigues, em estudo sobre a mercantilização da atividade científica, observam que não se pode falar em independência do conhecimento científico numa ordem em que toda a produção humana é transformada em mercadoria.

No modo de produção capitalista, há um empuxo irresistível na conversão de todos os objetos e atividades úteis ao homem (sejam úteis ao estômago ou a fantasia, repetimos) em mercadoria. O que, na prática, significa que todos os objetos (ou atividades) tenderão a ser produzidos (ou desempenhadas) para serem mercadejados. Sob o capitalismo, em última instância, o valor de uso de um objeto é precisamente o seu valor de troca. Em outras palavras, em nossa sociedade, as coisas, as pessoas, e o próprio conhecimento científico sofre um empuxo à mercantilização, ou seja, a subsunção de seu valor de uso ao valor de troca. O conhecimento científico, nessa perspectiva, só tem valor se tem valor de troca, se é conversível em outra mercadoria, se pode ser mercantilizado, enfim. (TREIN; RODRIGUES, 2011, p. 776).

Disso decorre que a compreensão e o posicionamento diante das coisas têm de, necessariamente, considerar o modo como elas se realizam, seus fundamentos e razões. Ao se falar em ética na saúde, por exemplo, não se pode desconsiderar (embora assim se venha fazendo) que a própria definição de normalidade (e, por consequência de patologia), resulta de um modo de perceber representar e agir no mundo e que “[...] é ideológico todo sistema de saber e de orientação da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de justificação, como se estivéssemos diante de ‘fatos que falam por si mesmos’” (SAFATLE, 2011, p. 12).

Chega a ser hipocrisia falar em ética na saúde desconsiderando-se a mercantilização dos serviços de atenção à vida e a diferença que atendimento que têm as pessoas em função de sua condição social ou de sua capacidade de comprar a própria saúde (isto é, os insumos e serviços que permitem tornar possível a vida). No mesmo sentido, não há ética educacional possível quando se mantém um apartheid educacional em quase todo o mundo, praticamente excluindo a maioria de conhecer e viver a produção científica, intelectual e artística da humanidade. Tampouco há como eticamente ignorar a diferença na condição de moradia, incluindo serviços urbanos e segurança, desprezando a brutal diferença de recurso privados e públicos que se dispendem favorecendo um pequeno segmento social em detrimento da grande maioria da população que habita espaços degradados e inóspitos. Não há, enfim, como pensar eticamente conformando-se com a desigualdade produzida e reproduzida sistematicamente pelo “mercado financeiro”. Aliás, não há ética de mercado, há regras de autocontrole para sua própria funcionalidade. Não passa de escárnio propor discutir ética como valor universal fora da vida objetiva, especialmente quando se diz que a ética trata exatamente de agir conforme o justo e o bem.

Aguda é a observação de Marilena Chaui ao sublinhar que, quando se despreza a realidade e se propõe uma ética anódina e isolada na vida objetiva, está-se diante de uma falsidade ideológica. Em suas palavras:

A ética como ideologia significa que em vez de a ação reunir os seres humanos em torno de ideias e práticas positivas de liberdade e felicidade, ela os reúne pelo consenso sobre o Mal, e essa ideologia é duplamente perversa: por um lado, procura fixar-se numa imagem do presente como se este não só fosse eterno, mas sobretudo como se fosse destino, como se existisse por si mesmo e não fosse efeito das ações humanas; em suma, reduz o presente ao instante imediato, sem memória e sem porvir. Por outro lado, procura mostrar que qualquer ideia positiva do bem, da felicidade e da liberdade, da justiça e da emancipação humana é o Mal. [...]. A ética como ideologia é perversa porque toma o presente como fatalidade e anula a marca essencial do sujeito ético e da ação ética, isto é, a liberdade como atividade que transcende o presente pela possibilidade do futuro como abertura do tempo humano. (CHAUI, 1999, n.p.).

Não há, portanto, neutralidade possível no que tange à ética (e, portanto, em qualquer posicionamento ou comportamento correspondentes). Não há objetividade quando se ignora a realidade, não resiste à crítica nenhum argumento (pragmático ou funcional) que se sustente com base na ignorância do modo como a vida - em todas as suas dimensões, o que inclui a educação e a ciência - se realiza. Daí a falácia de que o tema da ética na pesquisa seria explicitamente o de regulamentar a investigação científica de modo a proteger a pessoa ou garantir boas práticas. Daí o absurdo contrassenso de admitir códigos de ética. Precisa é a observação de Renato Janine Ribeiro sobre esse ponto:

Códigos de ética, que são uma contradição em termos. Embora seja necessário haver um código de ética, se ele é código, é lei; e, se é lei, o que importa é que seja obedecida, independentemente da razão que me leva a obedecer, se é o medo da punição ou é a convicção de que a disposição é correta. Tudo o que é lei, na sociedade, precisa ser cumprido apenas em função do bom trato com o outro. (RIBEIRO, 2003, p. 151).

Evidentemente, essa análise, se recusa o conformismo, não implica o imobilismo. Há sempre que se reconhecer que, tanto do ponto de vista das pessoas individualmente como de sua ação coletiva em instâncias sociais, há a possibilidade da escolha, isto é, de agir, consciente e no limite da liberdade fática, contrariamente àquilo que produz a injustiça, a desigualdade e a submissão ao status quo. Isso porque:

Quanto maior é a importância da moralidade, do compromisso pessoal, da individualidade e do risco (que vão sempre juntos) na decisão acerca de uma alternativa dada, tanto mais facilmente essa decisão eleva-se acima da cotidianidade e tanto menos se pode falar de uma decisão cotidiana. Quanto mais intensa é a motivação do homem pela moral, isto é, pelo humano-genérico, tanto mais facilmente sua particularidade se elevará (através da moral) à esfera da genericidade. Nesse ponto, termina a muda coexistência de particularidade e genericidade. (HELLER, 2000, p. 24).

Será, portanto, na dialética entre a singularidade e a generacidade, na assunção consciente dos indivíduos e dos grupos de suas decisões nos processos sociais em que se engajam que constitui tanto o sujeito ético como a ética que se põe historicamente para ele.

Assim posto, o sujeito ético é aquele que preenche (tendencialmente) as seguintes condições:

  • ➢ ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;

  • ➢ ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;

  • ➢ ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas;

  • ➢ ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta. (CHAUI, 1994, p. 337-338, grifos nossos).

Dessas condições, a liberdade é a que mais se destaca, porque determinante de todas as outras e cuja compreensão muitas vezes fica obnubilada pela compreensão frouxa, própria do senso comum que a confunde com ausência de limite, com a possibilidade de agir conforme o discernimento individual, motivado por predileções pouco esclarecidas. Liberdade, contudo, é um atributo exclusivamente humano (um pássaro não é livre porque não está numa gaiola, a não ser como metáfora), produzido em sua história e cujos limites se ampliam em função da ampliação mesma da condição da existência e de sua consciência.

Mais ainda, não há liberdade como valor absoluto ou transcendente, posto que também ela é condição humana, produzida dialeticamente na história concreta das sociedades e na história específica de cada pessoa. Sartre, ao tratar do gesto criador da literatura e de sua recepção, faz uma importante reflexão sobre a condição de liberdade.

Entre esses homens mergulhados na mesma história e que contribuem do mesmo modo para fazê-la, um contrato histórico se estabelece por intermédio do livro. Escritura e leitura são as duas faces de um mesmo fato histórico, e a liberdade à qual o escritor nos incita não é uma pura consciência abstrata de ser livre. A liberdade não é, propriamente falando; ela se conquista numa situação histórica; cada livro propõe uma libertação concreta a partir de uma alienação particular. (SARTRE, 2004, p. 57, grifo nosso).

Esse raciocínio se aplica às demais produções humanas, de modo que se pode dizer que cada ideia, cada fundamento ou cada regra produz uma possibilidade concreta de liberdade em função das disponibilidades e finalidades da circunstância histórica que a faz.

Vê-se, portanto, que a ideia de liberdade que se produz pelo movimento consciente diante de sua situação contrapõe-se exatamente àquele que sustenta o mito de senso comum (mito esse que circula livremente em textos acadêmicos e os mais variados discursos da política às artes, passando pelas ciências) que propala que a liberdade seria uma condição absoluta pré-definida ou um direito per se da particularidade diante da coletividade, quando, objetivamente, ela “[...] não é o poder de escolher entre vários possíveis, mas o poder de autodeterminação, dando a si mesmo as regras de conduta” (CHAUI, 1994, p. 338).

O fundamento da ética (decisão e ação deliberadas e conscientes de suas consequências) a que alude Marilena Chaui, fundamento que se realiza em toda e qualquer dimensão da vida, coincide com o que Agnes Heller, tomando emprestada uma ideia de Goethe, chama de “condução da vida”, princípio que pressupõe que cada pessoa, em sua particularidade e nos limites da existência concreta, “[...] deverá apropria-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua realidade” (HELLER, 2000, p. 40).

Novamente, vinculando a possibilidade humana à sua história, a filósofa húngara enfatiza seu caráter tendencial. Contudo, acrescenta, que

[...] não é impossível empenhar-se na condução da vida mesmo enquanto as condições gerais econômico-sociais ainda favorecem a alienação. Nesse caso, a condução da vida torna-se representativa, significa um desafio à desumanização, como ocorreu no estoicismo ou no epicurismo. Nesse caso, a “ordenação” da cotidianidade é um fenômeno nada cotidiano: o caráter representativo, “provocador”, excepcional, transforma a própria ordenação da cotidianidade numa ação moral e política. (HELLER, 2000, p. 40).

Do que se vem expondo, depreende-se a indissociável articulação da ética com a educação, enquanto processo de formação humana que objetive a inserção na cultura historicamente produzida e acumulada a qual constitui direito e condição para que o indivíduo seja emancipado e, concomitantemente, socializado, humanizado. Antônio Joaquim Severino sintetiza nos seguintes termos:

[...] a educação é uma modalidade de ação intrinsecamente relacionada à existência do outro. E uma prática que, por sua natureza, pressupõe uma intervenção sistemática na condição ou outro! [...]. Sendo uma prática interventiva, traz em seu próprio processo um risco muito grande de atingir a identidade e a dignidade do outro. (SEVERINO, 2011, p. 130-131).

Como corolário, tem-se que a ética não se confunde com nenhum regramento explícito de procedimento, embora possa inspirá-lo, e nunca de uma vez por todas. Mais que isso, como postula Anna Stetsenko em sua contribuição ao segundo livro organizado pelo grupo de trabalho da ANPEd - Ética e pesquisa em educação: subsídios, volume 2:

[...] o mundo [i.e., a humanidade] é um terreno mutável e em contínua evolução de práticas sociais constantemente encenadas e reencenadas (enacted and reenacted) por pessoas agindo juntas na realização de seus atos individualmente únicos e autenticamente autorais, ou responsivos, apesar de sempre serem ações profundas e demasiadamente sociais”, [razão pela qual] as “dimensões éticas e propósitos são inerentes ao modo como fazemos as coisas; ou melhor, elas são essenciais para agir e perceber o mundo em práticas transformadoras colaborativas e, portanto, para também conhecer e ser. (STETSENKO, 2021, p. 26).

Postas essas premissas, resultam necessárias algumas considerações sobre o que se tem chamado de ética aplicada, tema que tem recebido redobrada atenção e vultoso investimento político e negocial. Embora com frequência se afirme que a questão ética não se subsome ao comitê de ética, o fato é que, em sua essência, essa tem sido a orientação. Objetivamente, a atenção e o tempo das universidades têm se centrado no ajustamento das condutas acadêmicas e dos projetos de pesquisa às normas e condutas conforme estabelecem os comitês de ética. Em termos claros, o que se destaca são os códigos de ética, tal qual o das corporações profissionais. Por isso mesmo, para além de um princípio geral de ética, o debate entorno da ética na pesquisa migra para um subtema específico - o da assim chamada “ética aplicada”.

Em seu artigo já referido, Nadja Hermann, ao dedicar uma seção específica à temática da ética na pesquisa, introduz o conceito de ética aplicada, a qual teria por objeto “problemas práticos relacionados à vida”, considerando “[...] a aplicação das normas éticas e sua relação com os valores em diferentes situações da existência humana”, abrangendo “[...] aspectos éticos de uma determinada questão social ou individual e não deve ser confundido com uma mera aplicação de normas éticas” (HERMANN, 2019, p. 22). Fica claro pelos exemplos de “ética aplicada” oferecidos pela autora (ética ambiental, bioética, ética dos animais, ética profissional, ética dos negócios, ética na pesquisa) que é nesse campo específico que se definem os regramentos (aí incluindo-se as permissões e impedimentos na forma de formulários), determinando como se deve agir e, principalmente, estabelecendo-se o que não se pode fazer.

Então, é disso que se trata - não da questão ética propriamente, mas, na melhor das hipóteses, da aplicação de certos princípios gerais inspirado numa ética atual de forma a conformar a pesquisa, especialmente aquela que envolve humanos, a padrões desejados numa certa lógica da funcionalidade do mundo contemporâneo.

A ideia mesma de “ética aplicada” é já um contrassenso, ainda que bastante difundida e com muitos estudos e bastante referida na área da Saúde. Invariavelmente tem por único foco determinar, num campo de atividade, o que é legítimo e o que é inaceitável (sempre desde uma perspectiva, predominando o modelo funcionalista da vida parametrizada) e supõe a existência de instâncias formais reguladoras. Supostamente, partiria de um princípio maior de justiça e respeito à vida, examinando, em casos concretos, o que se faz e os riscos do que se faz.

Essa visão instrumental de ética transparece claramente na proposição de Luis Paulo Mercado e Ana Paula Monteiro Rêgo sobre como considerar a ética e a integridade na pesquisa na formação do professor-pesquisador. Para esses autores:

Os componentes curriculares dos PPGEs [Programas de Pós-Graduação em Educação] devem apresentar de forma explícita questões envolvendo pesquisa na Pós-graduação: orientação de práticas relacionadas a métodos de coleta e de preservação de dados de pesquisa e ao uso de ferramentas estatísticas para interpretá-las; boas práticas obedecendo às recomendações feitas pelo CEP da instituição; disponibilização de ferramentas online para prevenção do plágio; gerenciamento dos dados da pesquisa (curadoria); protocolos de ética em pesquisa; direitos autorais e patrimoniais. (MERCADO; RÊGO, 2023, p. 12).

Percebe-se nessas recomendações o caráter aplicado de uma certa ideia de ética normalizada e da necessidade de sua implementação nos currículos acadêmicos. Certamente, é legítima a preocupação de educar e instruir o pesquisador, de pontuar os padrões e limites de sua atividade, especialmente os cuidados que deve ter ao avançar a investigação de determinado assunto, sempre com base numa concepção relativamente consensual do bem e do justo. Mais ainda, pode-se argumentar que, em razão da complexidade social, fica necessária a marcação institucional desses limites e cuidados, o que justificaria tanto o regramento como a existência de uma instância de controle formal que cuide para que sejam cumpridos. Contudo, nesse caso, há de reconhecer-se que não se está a falar propriamente de ética, mas de legislação, a qual pode ser resultado de princípios éticos, bem ou mal aplicados, ou de outro tipo de interesse.

Observa Renato Janine Ribeiro, quando indagado se haveria uma ética exclusiva de um determinado setor e se se poderia falar em várias “éticas”, que:

O mais importante não é dizer se ela muda ou se há diversas éticas, mas, sim, que o sujeito é sempre responsável pelas decisões. Se dissermos que há éticas setoriais ou corporativas, caímos no pior risco para a ética, isto é, de que as pessoas abram mão da responsabilidade por suas escolhas. Isso é tão negativo quanto elas se refugiarem atrás de mandamentos ou regras universais. Em outras palavras, o decisivo para a ética não é o que se faz, mas por que essa determinada pessoa faz algo ou deixa de fazê-lo. Se eu respeito as leis por medo das consequências, não sou ético. Paradoxalmente, se desrespeito as leis por convicções morais e arco com as consequências de meus atos, sou ético. (RIBEIRO, 2008, p. 162-163).

Em outro momento, o mesmo filósofo observa que a tendência perniciosa de a dúvida ética, e não só no trato cotidiano, limitar-se a uma pergunta fechada, do tipo sim ou não, como se houvesse um gabarito, uma régua de avaliação definitiva e legítima. Todavia, sublinha, para “[...] um sujeito ético, o fundamental é saber se ele está inclusive disposto a violar a lei se preciso for. Porque as leis, por melhores que sejam, são sempre aproximações um tanto toscas da melhor conduta” (RIBEIRO, 2003, p. 151).

Assim, para além de qualquer consenso, há de indagar-se sobre que valores e interesses se definem os parâmetros e princípios da ação humana, de um modo geral, e da atividade científica e educacional em particular e, além disso, como se estabelecem as normas e o funcionamento da instância que cuida de seu cumprimento. É ilusão, ou ideologia, para ser exato, supor uma ordem universal independente da história e dos interesses políticos e econômicos objetivamente estabelecidos no mundo contemporâneo. E isso se aplica até mesmo quando se trata de estabelecer a “normalidade da vida”. Vladimir Safatle, ao examinar a ideia mesma de normalidade na saúde, com base no pensamento de George Canguilhen, chama a atenção para a necessidade de o pensamento científico “[...] esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade e as condições de exercício que se encarnam em técnicas e proposições, assim como se encarnam nas outras formações discursivas que compõem o tecido social” (SAFATLE, 2011, p. 16).

São bastante conhecidas (e questionadas) as normas básicas do “ethos científico” estabelecidas por Robert Merton (universalismo, comunitarismo, desinteresse e ceticismo organizado), as quais garantiriam as devidas imparcialidade e objetividade da ciência e dos cientistas. Tal perspectiva, observa Alberto Cupani, permanece válida “[...] em seu aspecto técnico e como condição de um saber efetivo”, e não cabe ver “[...] nesse ethos (e até na metodologia convencional) apenas justificações ideológicas para uma ciência que de fato se desenvolveria de acordo com outros procedimentos e critérios” e o abuso ideológico do ethos “[...] não invalida o seu valor técnico dentro do modelo epistêmico vigente” (CUPANI, 1998, p. 35).

Para esse filósofo, porém,

[...] o que as críticas ao ethos da ciência sugerem é a necessidade de uma revisão daquele modelo epistêmico básico. Se o saber científico (ou, mais amplamente, o conhecimento) passasse a ser entendido como algo diferente de uma relação entre os seres humanos (definidos pela racionalidade) e objetos concebidos como mecanismos externos aos homens e independentes deles, então o ethos apropriado à ciência seria também, e sempre desde um ponto de vista técnico, provavelmente diferente. Extremando a conjectura, pode-se até suspeitar que a própria noção de “um ponto de vista técnico” venha a perder sentido num outro modelo do conhecimento. (CUPANI, 1998, p. 35).

Embora aponte solução distinta, tem razão o autor quanto ressalta que o cerne da questão está na revisão do modelo básico epistêmico. Talvez não exatamente abandonando o ethos científico em sua totalidade, mas reconhecendo que não há atividade científica à revelia da história. A ciência - tanto em suas formulações como em sua realização concreta, tanto na prática especulativa, de indagar a matéria, a vida, como em sua aplicação, com a produção de artefatos e técnicas que permite a intervenção na matéria e a mudança das condições de vida - tem sistematicamente sido usada para o bem e para o mal, conceitos que, aliás, mais que subjetivos estão impregnados de interesses e submetidos às instâncias de poder. E quando se pensa a ciência moderna, não há como ignorar que, em grande medida, seu desenvolvimento não se separa do desenvolvimento do capital. Aliás, a questão do regramento à atividade científica inclui não apenas o controle de procedimentos de pesquisa com vista à garantia da vida e da privacidade de pessoas, mas também, e de modo muito contundente, os interesses privados e a defesa da propriedade.

Essa tendência perniciosa de controle com base numa visão funcionalista de ciência e de sociedade, em que prevalecem os vieses paramétricos próprios do controle produtivista, é bem percebida por Yara Guerriero no seu já referido artigo. Após examinar a atual dinâmica da Conep e identificar a prevalência da perspectiva positivista de ciência (e, insiste-se, de sociedade), a pesquisadora, refletindo sobre o tópico específico da proteção à pessoa em pesquisa que envolvam seres humanos, de que predomina no cenário projetado pela Conep

[...] uma determinada concepção do que é ética e do que é ciência, sem em nenhum momento alertar que o poder de definir o que é ciência é próprio do campo científico, marcado por questões políticas e epistemológicas. Sem esse alerta, o ouvinte desavisado encanta-se pelo discurso da proteção do participante, como se fosse um canto de sereia. No mito da Iara, a sereia cantava tão lindamente que atraia os marinheiros para o mar, e eles nunca mais eram vistos. Será que corremos o risco de que isso aconteça com qualquer concepção de ciência que não se baseie no positivismo? Será que, após o encantamento inicial, perceberemos que, em nome da proteção do participante, se subordina toda pesquisa que não cabe na concepção positivista? (GUERRIERO, 2023, p. 13).

Clodoaldo Cardoso, recuperando a crítica à razão instrumental que faz a escola de Frankfurt, chama a atenção para o fato de que:

A razão instrumental distancia a ciência da ética, uma vez que seu objetivo é estabelecer os fins e adequar os meios aos fins. Não há espaço nela para a reflexão sobre os fins da ação em termos de valores e sim em termos de eficiência. Assim o conhecimento científico, ao invés de estar a serviço da emancipação do homem, suprindo suas necessidades efetivas, voltou-se cada vez mais para os fins de mercado da sociedade capitalista. (CARDOSO, 1998, p. 4).

Por isso, o controle da prática científica e de seus resultados não se garantirá por, repetindo as palavras de Janine Ribeiro, toscas aproximações de uma hipotética melhor conduta (isso quando não se fala de leis que são a afirmação de privilégio e de poder), mas pelo compromisso ético-político com o comum. Nesse sentido, Herbert Marcuse, em texto de 1996 em que reflete sobre a responsabilidade da ciência (e dos cientistas), demonstra a falácia da objetividade neutra que se lhe atribui, sustentando que “[...] telos interno [da ciência] não é nada mais que a proteção e o melhoramento da existência humana”, de tal forma que, se desprezado, haveria “[...] a ruptura entre a ciência e a razão” (MARCUSE, 2009, p. 164).

A ciência como um esforço humano continua a ser a mais poderosa arma e o instrumento mais eficaz na luta por uma existência livre e racional. Esse esforço estende-se para além do estudo, além do laboratório, além da sala de aula, e visa à criação de um ambiente, tanto social quanto natural, no qual a existência pode ser libertada de sua união com a morte e a destruição. Tal libertação não será um objetivo externo ou subproduto da ciência, mas antes a realização da própria ciência. (MARCUSE, 2009, p. 164).

O respeito à norma, mesmo quando essa se justifica, só será ético se houver, por parte daquele que a respeita, a aguda consciência do que faz e por que o faz. Do contrário, embora respeitando e submetendo-se à regra, o sujeito estará inevitavelmente preso nos meandros do obscurantismo, cumprindo judiciosamente os protocolos e preenchendo com cuidado os formulários, de maneira a atender as, assim ditas, normativas éticas. Daí a força da observação de Theodor Adorno quando observa que:

A ciência como ritual dispensa o pensamento e a liberdade. [...]. Na incapacidade do pensamento em se impor, já se encontra à espreita o potencial de enquadramento e subordinação a uma autoridade qualquer, do mesmo modo como hoje, concreta e voluntariamente, a gente se curva ao existente. [...]. Uma das características da consciência coisificada é manter-se restrita a si mesma, junto a sua própria fraqueza, procurando justificar-se a qualquer custo. É sempre admirável a esperteza de que até os mais obtusos conseguem lançar mão quando se trata de defender malefícios. (ADORNO, 1995, p. 70-71).

Nesse sentido, a simples aceitação e os cumprimentos dos procedimentos que se estabelecem e se impõem como formalismo a ser seguido não é uma atitude ética. É, como destacam Agnes Heller e Theodor Adorno, pura alienação. Tomando a sério a observação de Janine Ribeiro anteriormente citada, a atitude ética pode ser, inclusive, contrapor-se a esses padrões normativos e às instâncias que os aplicam.

A linha de argumentação aqui adotada obriga abandonar o terreno ambíguo da regulamentação da pesquisa como parte (principal ou assessória) da ética, assumindo que se pode (e, em certa medida, se deva) tratar da regulamentação e do controle da atividade científica com base no direito individual e coletivo, na segurança social e ambiental, bem como nos interesses comuns, inclusive aqueles relativos à privacidade e à saúde de pessoas de algum modo afetadas por investigação experimental. Sem dúvida, tais questões têm evidente relevância e merecem atenção e, em alguns casos, rigoroso controle, mas não são atinentes propriamente à ética (repita-se: mesmo que por ela motivados) nem devem ocupar o núcleo dessa discussão.

A ética na pesquisa em educação

Jefferson Mainardes e Jamil Cury, em texto em que se propõem a “[...] apresentar os princípios gerais que têm fundamentado os códigos de ética e os documentos de diretrizes éticas na pesquisa, produzidos por associações de pesquisa em educação”, de modo “[...] a subsidiar as discussões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)”, consideram que “[...] o processo de revisão ética como algo que deve extrapolar a mera submissão a um Comitê de Ética em Pesquisa. A preocupação com as questões éticas deve permear todo o processo de pesquisa, da elaboração do projeto à disseminação de seus resultados” (MAINARDES; CURY, 2019, p. 43).

Compartilha dessa visão Isabel Carvalho, quando sustenta que cabe conceber a pesquisa como um percurso de modo que “[...] a responsabilidade ética do pesquisador não cessa com a aprovação da sua pesquisa por um CEP e/ou por outras instâncias reguladoras” (CARVALHO, 2018, p. 160). Na mesma direção, em artigo sobre ética e reflexividade na pesquisa em educação, Maria Cecília Minayo e Iara Guerriero pontuam que ética

[...] não é “algo” que se injeta num projeto nem se reduz a procedimentos. Faz parte da sua elaboração e está contida na tessitura do texto - desde a definição do objeto até a publicação dos resultados. O compromisso do pesquisador vai além da conformação técnica: contempla o sentido social do estudo, as relações institucionais com os financiadores, a forma de tratar sua equipe. (MINAYO; GUERRIERO, 2014, p. 1103-1112).

Jefferson Mainardes é ainda mais enfático ao dizer que “[...] a ética é um dos elementos estruturantes da pesquisa” (MAINARDES, 2022, p. 5, grifo do autor), não cabendo, em nenhuma hipótese, tomá-la como “[...] um mero apêndice no processo de pesquisa e na redação de relatórios de pesquisa” (MAINARDES, 2022, p. 5). Para esse pesquisador, na percepção comum (ele chama de “visão tradicional”), a ética em pesquisa limita-se a certos cuidados formais que deve ter o pesquisador e a submissão do projeto a um CEP seguindo o protocolo. Assim diz, o cuidado com a ética não pode ser percebido “[...] como algo burocrático, de atendimento de uma norma preestabelecida” (MAINARDES, 2022, p. 5). Desde a perspectiva ético-ontoepistemológica de Anna Stetsenko, à qual o autor adere e apresenta nesse texto, a ética não só está necessariamente presente em toda e qualquer pesquisa (inclusive aquelas de caráter teórico ou bibliográfico) como também “[...] orienta todo o processo de pesquisa”, [incluindo] as decisões ontoepistemetodológicas, o tipo de abordagem, as análises e as conclusões, bem como o possível ativismo transformador que possa emergir na/da pesquisa” (MAINARDES, 2022, p. 5). Assim sendo, sustenta que é mister reconhecer que, mesmo que sem a consciência exata por parte dos pesquisadores, todas as ações de pesquisa (da definição do tema e elaboração do projeto à sua aplicação, divulgação e devolutiva) são perpassadas por um “[...] conjunto de princípios éticos” e que, diante dessa centralidade, é “[...] imprescindível que as questões éticas sejam contempladas no processo de formação de pesquisadores” (MAINARDES, 2022, p. 6).

Desde esse entendimento de ética, que coincide com o argumento central que se vem apontando neste estudo, deriva-se que, independentemente de considerar que tipo de controle caberia estabelecer e de que modo ele se realizaria, o problema da ética na pesquisa em educação apresenta-se de modo contundente na atividade mesma de pesquisa, em sua dinâmica e organização, bem como nas decisões teórico-metodológicas que se fazem antes mesmo de iniciar.

A Pós-Graduação em Educação, desde sua origem, sofreu com a imprecisão de que lhe caberia investigar, funcionando como uma espécie de coringa, em que o campo mesmo sofreria uma “colonização” por outros campos do conhecimento (Sociologia, Psicologia, Antropologia, Economia, Linguística) (CUNHA, 1991; ORLANDI, 1969; SAVIANI, 1990; SILVA, 2011), permitindo praticamente o estudo de qualquer assunto como se fosse um problema de Educação.

Ao examinar a situação da pós-graduação no final da década 1980, Luiz Antônio Cunha (1991) observava que ela (então, em nível de mestrado) surgira sob “o signo da improvisação”, admitindo-se docentes de quase qualquer área de conhecimento, “[...] já que sempre é possível justificar como ‘educacionais’ quaisquer temas teóricos e/ou práticos, em sentido lato: do teatro à medicina, da administração ao sacerdócio, do treinamento profissional à militância sindical” (CUNHA, 1991, p. 64). Já que a tudo se atribuía uma dimensão educacional, nada restava como educação propriamente dita. O fato é que, embora essa situação tenha se transformado parcialmente (especialmente, nas universidades de referência, prevalecendo nas instituições periféricas), a ideia de que é praticamente qualquer tema teórico ou prático é “educacional” não apenas continua admitida como tem tornado ainda mais ampla a concepção de Educação.

É impressionantemente atual a observação de Mirian Warde sobre essa questão, feita ainda em 1990, momento em que se produzia uma densa produção sobre a identidade e os fundamentos da pesquisa em educação (correspondente ao que se faz agora com a questão da Ética).

Estamos ampliando tanto o conceito de pesquisa que nele tudo cabe. Parecem-me duvidosos os argumentos que confundem razões políticas, epistemológicas e psicológicas para justificarem a abertura do conceito a ponto de permitir que nele caibam os folclores, os sensos-comuns, os relatos de experiência (de preferência a própria), para não computar os desabafos emocionais e os cabotinismos. (WARDE, 1990, p. 70).

O esgarçamento conceitual, temático e teórico-metodológico, embora generalizado, tende a ser mais agudo em função do relativismo teórico e do pragmatismo de ajustamento formal ao modelo de pós-graduação, de modo que, “[...] ao invés do problema guiar a pesquisa, é o ponto de vista que o faz. É uma espécie de fetichismo que faz o caminho prevalecer sobre o destino” (CUNHA, 1991, p. 66).

A consequência direta é a prevalência de um conjunto de problemas que vão se tornando estruturais e levam ao descompromisso ético-ontológico-epistemológico, com os quais se convive pragmaticamente. A observação de Mainardes (2022, p. 5) de que o cuidado com a ética “[...] é algo burocrático, de atendimento de uma norma preestabelecida” se aplica, assim, não apenas à subordinação aos CEPs, mas, e fundamentalmente, a todo o processo, incluindo a criação dos programas, a forma de credenciamento de docentes, a seleção de candidatos, a definição de linhas de pesquisa e a admissão de temas e procedimentos de investigação, além da produção e publicação de trabalhos.

Assim, os programas de pós-graduação convivem, já há bastante tempo e, aparentemente sem enfrentá-los ou sem lograr sua superação, com várias questões sensíveis do ponto de vista epistemológico e ético. Destacam-se as mais significativas:

  • ➢ Ignorância ou a rejeição de teorias constituídas, de modo que a sustentação dos trabalhos se faz frequentemente pelo senso comum, sem análise consistente dos referenciais teóricos, tendo como consequência problemas mal postulados e consequências teóricas e práticas nulas (ALVES-MAZZOTTI, 2001).

  • ➢ Desatenção aos procedimentos metodológicos ou incompatibilidade entre procedimentos e referencial teórico (ALVES-MAZZOTTI, 2001); assim, por exemplo, qualquer trabalho que tenha objetivo empírico circunscrito passa a ser compreendido por “pesquisa qualitativa” e qualquer que use ou produza algum dado com percentagem se torna “pesquisa quantitativa”.

  • ➢ Valorização do modismo (flutuações epistemológicas), em que prevalece a adesão acrítica às teorias em evidência (ALVES-MAZZOTTI, 2001; CUNHA, 1991; ORLANDI, 1969), com realização de pastiches ou bricolages, que não passam de apanhado de ideias sem articulação: “[...] pasticheiro não tem voz própria, mas dissimula as vozes de suas influências para fazê-las parecer suas” (DINIZ; MUNHOZ, 2011, p. 21) e citação imotivada por que autor é relevante (CASTIEL; SANZ-VALERO, 2007).

  • ➢ Pouca atenção ao conhecimento acumulado, com desprezo por revisões bibliográficas consistentes (ALVES-MAZZOTTI, 2001) e produção de uma revisão bibliográfica sem síntese ou motivação (CASTIEL; SANZ-VALERO, 2007).

  • ➢ Supervalorização de problema de cunho pessoal e de impressões subjetivas, com pouca ou nenhuma articulação com outras pesquisas (narcisismo investigativo), gerando estudos restritos a uma situação específica, autocentrados e voltados ao entendimento da própria situação, com pouca ou nenhuma teorização (ALVES-MAZOTTI, 2001; CUNHA, 1991; WARDE, 1990).

  • ➢ Pouco controle e ausência de avaliação das dissertações e teses, com aprovação quase automática de qualquer trabalho, mesmo sem nenhuma condição de publicidade. Esse dilema já se percebia há 30 anos, como se pode constatar com as considerações que seguem: “Não é de se admirar, assim, que grande número de teses e dissertações demorem tanto para serem apresentadas. E, quando o fazem, encontram bancas que acabam por ser uma ação entre amigos, mais do que examinadoras propriamente ditas” (CUNHA, 1991, p. 66); “A atual obrigação da dissertação não representa nenhuma garantia de formação efetiva do pesquisador. Pode até mesmo representar prejuízos nesse sentido, quando o mestrando acaba, sob pressão de prazos, improvisando no trabalho que, mesmo com as restrições formais de praxe, acaba sendo aprovado” (AZANHA, 1995, p. 84).

Certamente, essas questões são de amplo conhecimento da comunidade acadêmica e vêm sendo objeto de debate deste a instituição da pós-graduação no Brasil, tendo recebido especial evidência nas décadas de 1980 e 1990, quando houve especial atenção à compreensão de como se constituía e como deveria se organizar a pesquisa em educação no Brasil. Punham-se, é verdade, como um problema teórico-metodológico e não como uma questão ética, provavelmente pelo entendimento restrito do que vem a ser ética na pesquisa. Correspondem, contudo, a essência da questão ética, em conformidade com o que postula Mainardes (2022), e assim, deveriam ser o núcleo desse debate.

Considerações finais

A análise que se apresenta neste ensaio leva a um posicionamento concreto e objeto sobre o que fazer e como agir diante das atuais exigências e desafios à pesquisa, reconhecendo que “[...] o que está em jogo nessas lutas é o poder de definir, através da via legal, o que é ética e o que é ciência” (DE LA FARE; CARVALHO; PEREIRA, 2017, p. 194).

A primeira decorrência é a de que, sendo regras fechadas de conduta, os códigos de ética são uma contradição em termos (RIBEIRO, 2003, 2008) e, portanto, cabe insistir que o tema da regulação e o controle da atividade de pesquisa, quando e se necessários, deve ser posto em instância específica, que, mesmo movida por princípios éticos, não são os comitês de ética. Há de destacar-se que, no âmbito geral, já existem regulações suficientes de garantia do direito individual e orientações suficientes de como o pesquisador deve proceder. A exigência de submissão e aprovação de projetos de pesquisa a uma instância reguladora e avalizadora não só não aumenta a garantia de respeito à dignidade humana, como reforça o cartorialismo e o formalismo como condutas naturais, quando deveriam ser vistos com impedimentos à capacidade criativa e investigativa e contrário à ética objetiva.

Há de considerar-se que o modelo de controle da atividade de pesquisa que vem se instituindo não só tem muito pouco de ética em seu conteúdo, como institui uma forma ideológica de pesquisa e de sociedade. E, destaca Luiz Fernando Duarte que:

Como a colocação em prática da regulamentação corrente da Conep começa a se generalizar - com a adesão crescente das agências de fomento, das revistas científicas e das universidades e centros de pesquisa -, será difícil continuar a agir de maneira independente do sistema, como temos majoritariamente feito nos últimos anos. (DUARTE, 2015, p. 50).

A segunda derivação está na assunção radical que a ética perpassa em toda pesquisa todo seu processo (MAINARDES, 2022) e, portanto, pesquisas mal feitas e de resultados ruins, por qualquer motivo, estão em conflito com a própria ética. O descompromisso com a eleição e formulação consistente de problemas, a fragilidade teórico-metodológica, o desprezo pelo já conhecido e a produção de dados inconsistentes, tudo isso não é um problema apenas epistemológico, mas, como postula Stetsenko (2021), um problema ético-ontoepistemológico. Ora, o enfrentamento desse problema está na forma como a comunidade de pesquisa (no caso, a área de Educação) - os grupos de pesquisa, os programas e os pesquisadores - dispõe-se a contrapor-se e a buscar soluções em sua prática, rompendo com o cartorialismo, o protocolarismo e a acomodação pragmática. Esse desafio, como evidencia o exame da bibliografia da área, está evidente deste a própria constituição da Pós-Graduação em Educação no Brasil, sem, contudo, que se tenha encontrado solução (em que pese, certamente, o esforço de muitos pesquisadores, individualmente e organizados em grupos e instituições). O próprio sistema de avaliação da pós-graduação parece padecer dessa dificuldade, com mais e mais jogos cartoriais para cumprir as exigências.

De todo modo, caberá assumir que é atribuição dos próprios pesquisadores, organizadores em programas, grupos de pesquisa, promover e garantir que as pesquisas, em sua totalidade, sejam eticamente conduzidas, de modo que os assim chamados comitês de ética têm pouca ou nenhuma condição de impor um padrão positivo de ambiência de pesquisa.

Com razão destaca Isabel Cristina Carvalho (2018, p. 158) que se faz necessária “[...] a formação de uma postura ética como qualidade intrínseca do fazer da pesquisa e, portanto, do pesquisador”. Contudo, não será a inclusão nos currículos dos cursos de graduação e de pós-graduação de disciplinas sobre ética que se encontrará solução; ao contrário, corre-se o sério risco de criar-se mais uma especialidade - a de instrução das regras de ética e de como proceder para respeitá-las. “A formação de uma capacidade reflexiva de caráter ético como parte fundamental da formação científica” implica, por um lado, uma política que rompa definitivamente com a acomodação e formalismo interesseiro, o faz-de-conta de pesquisar, definitivamente abandonando a ação entre amigos (por exemplo, na avaliação de projetos e de dissertações e teses, no conluio para publicação) e, por outro, na luta incessante por condições de estudo e pesquisa, como, aliás, já indicavam Luiz Antônio Cunha (1991) e José Maria Azanha (1995) há mais de três décadas.

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AUTODECLARAÇÃO Os autores declaram que realizaram o estudo e a redação do texto em coautoria e que cuidaram de propor e elaborar todo o trabalho com base nos princípios éticos próprios da produção intelectual, exatamente como considerados no artigo.

1Foi a partir de 2013 que a ANPEd intensificou as ações sobre essa questão, por meio das seguintes atividades: a) participação no grupo de trabalho (GT) de Ciências Humanas e Sociais (CHS) da Conep, encarregado de elaborar resolução complementar sobre a ética na pesquisa em CHS; b) a ANPEd, a partir de 2013, passou a integrar o Fórum de Associações de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (FCHSSA), o qual tem desenvolvido diversas ações sobre a ética na pesquisa, que objetivam a criação de um sistema de revisão ética próprio, fora da área da Saúde; e c) criação de uma Comissão encarregada de fomentar as discussões sobre ética em pesquisa (2015) e de um espaço no Portal da ANPEd para informações sobre ética na pesquisa (ANPEd, 2019).

2Comitê de Ética em Pesquisa.

Recebido: 10 de Março de 2023; Revisado: 16 de Abril de 2023; Aceito: 24 de Abril de 2023; Publicado: 11 de Maio de 2023

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