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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21762.048 

Seção Temática: Ética em Pesquisa e Integridade Acadêmica em Ciências Humanas e Sociais: atualizando o debate

“Riscos”, “danos” e “benefícios” da participação em um projeto de história oral sobre a Covid-19

“Risks”, “harm” and “benefits” of participating in a COVID-19 oral history project

“Riesgos”, “daños” y “beneficios” de la participación en un proyecto de historia oral sobre el Covid-19

Carla Simone Rodeghero* 
http://orcid.org/0000-0002-2669-726X

*Professora titular do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em História pela UFRGS. E-mail: <carla.simone@ufrgs.br>.


Resumo

Tendo como base empírica um conjunto de entrevistas de história oral do projeto Documentando a experiência da covid-19 no Rio Grande do Sul, este texto apresenta e questiona as noções de “riscos”, “danos” e “benefícios” associadas à participação em pesquisas e tributárias da bioética e da avaliação institucional de projetos da área da Saúde. Ao mesmo tempo, e a partir da literatura da história oral, demonstra como elas podem ser úteis na prática cotidiana da pesquisa. As reflexões desenvolvidas na pesquisa História Oral e História Pública: diálogos, desafios e possibilidades - um olhar comparativo entre Brasil, Itália e Canadá e o envolvimento em Grupos de Trabalho sobre ética na Associação Brasileira de História Oral (ABHO) e no Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes (FCHSSALLA) contribuem para o desenvolvimento do tema. O texto está organizado em quatro partes: na primeira, é feita a apresentação de normas institucionais de avaliação da ética, no que se refere a “riscos”, “danos” e “benefícios” associados à participação em “pesquisas com seres humanos”; na segunda, é explorada a literatura sobre ética, o trabalho colaborativo e as boas práticas na história oral; nas duas últimas, é desenvolvido um diálogo com um conjunto de entrevistas concedidas por estudantes de graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com perfil de baixa renda. Nesse momento, são localizadas nas fontes orais as noções mencionadas e os cuidados adotados pela equipe de pesquisa.

Palavras-chave: Ética; História oral; Covid-19

Abstract

Empirically based on a set of oral history interviews in the project Documenting the COVID-19 experience in Rio Grande do Sul, this text presents and questions the notions of “risks”, “harm” and “benefits” associated with participation in research and tributaries of bioethics and institutional evaluation of projects in the Health area. At the same time, and based on oral history literature, it demonstrates how they can be useful in everyday research practice. The reflections developed in the research project “Oral History and Public History: dialogues, challenges and possibilities - a comparative look between Brazil, Italy and Canada” and the involvement in Working Groups on ethics in the Brazilian Association of Oral History (ABHO) and in the Human, Social, Applied Social Sciences, Linguistics, Language and Arts Forum (FCHSSALLA) contribute to the development of the theme. The text is organized in four parts: in the first, institutional norms for evaluating ethics are presented, with regard to “risks”, “harm” and “benefits” associated with participation in “research with human beings”; in the second, the literature on ethics, collaborative work and good practices in oral history is explored; in the last two parts, a dialogue is developed with a set of interviews given by the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) undergraduate students with a low-income profile. At that moment, the aforementioned notions and the precautions adopted by the research team are located in the oral sources.

Keywords: Ethics; Oral history; Covid-19

Resumen

Tendo como base empírica un conjunto de entrevistas de historia oral del proyecto Documentando la experiencia del Covid-19 en Rio Grande do Sul, este texto presenta y cuestiona las nociones de “riesgos”, “daño” y “beneficios” asociadas a la participación en investigaciones y afluentes de la bioética y de la evaluación institucional de proyectos del área de la Salud. Al mismo tiempo, y a partir de la literatura de historia oral, demuestra cómo pueden ser útiles en la práctica cotidiana de la investigación. Las reflexiones desarrolladas en la investigación Historia Oral e Historia Pública: diálogos, desafíos y posibilidades - una mirada comparativa entre Brasil, Italia y Canadá y el desarrollo en Grupos de Trabajo sobre ética en la Asociación Brasileña de Historia Oral (ABHO) y en el Fórum de Ciencias Humanas, Sociales, Sociales Aplicadas, Lingüística, Letras y Artes (FCHSSALLA), contribuyen al desarrollo del tema. El texto está organizado en cuatro partes: en la primera, se hace una presentación de las normas institucionales de evaluación de la ética, en lo que respecta a los “riesgos”, “daños” y “beneficios” asociados a la participación en “investigación con seres humanos”; en la segunda, es explorada la literatura sobre ética, el trabajo colaborativo y las buenas prácticas en historia oral; en las dos últimas, es desarrollado un diálogo con un conjunto de entrevistas concedidas por estudiantes de grado de la Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) con perfil de bajos recursos. En ese momento, son localizadas en las fuentes orales las nociones antes mencionadas y los cuidados adoptados por el equipo de investigación.

Palabras clave: Ética; Historia oral; Covid-19

Introdução

Desde março de 2020, no Brasil e em diversos lugares do mundo, desenvolveram-se projetos de produção e coleta de registros sobre a covid-19, parte dos quais foi beneficiada pela vocação documental da história oral. Acervos de entrevistas sobre a pandemia construídos nesse contexto podem ser entendidos como patrimônio a ser legado a quem viveu e a quem não viveu a crise sanitária. Neste artigo, trato de um desses projetos, intitulado Documentando a experiência da covid-19 no Rio Grande do Sul, desenvolvido por mais de uma dezena de instituições, sob a coordenação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS)1. Um dos seus resultados é um acervo de cerca de 300 entrevistas de história oral, o qual se tornou possível pelo trabalho das equipes das diferentes instituições e pela disponibilidade de centenas de pessoas no compartilhamento de suas experiências de vida. Trata-se, então, de um projeto cujos “dados empíricos” foram produzidos na relação direta estabelecida com as/os participantes, um processo no qual diferentes subjetividades se encontraram.

Refletindo sobre o acervo de entrevistas como “produto”, como patrimônio documental propositalmente construído, e como “processo”, como interação entre pessoas no contexto da pesquisa, o presente texto se concentra na última dimensão, especificamente na relação entre pesquisadores/as e pessoas que concederam entrevistas, as quais podem ser designadas como “participantes”. Será desenvolvido um diálogo entre: 1) normas institucionais de avaliação da ética na “pesquisa com seres humanos”, considerando “riscos”, “danos” e “benefícios” associados à participação na pesquisa; e 2) discussão sobre ética e boas práticas no campo da história oral. Tal diálogo tornará possível a exploração de um conjunto de entrevistas concedidas por estudantes de graduação da UFRGS com perfil de baixa renda, momento em que procurarei localizar nas fontes orais as noções anteriormente mencionadas e os cuidados adotados pela equipe de pesquisa.2

Registro, ainda, que minha inserção no debate sobre avaliação ética de pesquisas acadêmicas envolvendo seres humanos tem se dado por meio do engajamento na Associação Brasileira de História Oral (2022), no Grupo de Trabalho (GT) de Ética do Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes (FCHSSALLA, 2023) e pelos resultados do projeto História Oral e História Pública: diálogos, desafios e possibilidades - um olhar comparativo entre Brasil, Itália e Canadá (RODEGHERO, 2022), desenvolvido desde 2019. Por esse motivo, achei relevante colocar lado a lado algumas normas de avaliação ética da pesquisa no Brasil e no Canadá, as quais mantém, para a avaliação de pesquisas das humanidades, as noções de risco, dano e benefício, tributárias da bioética e da avaliação de projetos da área da saúde. Quero tensionar e questionar essas noções e, ao mesmo tempo, sugerir de que maneira elas podem ser úteis na prática da história oral e na constituição de acervos de entrevistas legados à posteridade.

Como coordenadora da pesquisa Documentando a experiência da covid-19 no Rio Grande do Sul na UFRGS, coube-me a tarefa de submeter o projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), via Plataforma Brasil, em meados de 2020.3 No formulário disponibilizado, foi necessário registrar os potenciais riscos, danos e benefícios que a pesquisa poderia acarretar às/aos participantes. Essa foi uma oportunidade para refletir sobre as razões das escolhas feitas pela equipe que elaborou o projeto e sobre os cuidados que tomaríamos no andar da pesquisa. Com essa intenção e para dar conta dos tópicos solicitados no formulário, foi explicada a decisão de realizar entrevistas por meio de plataformas de videoconferência para evitar danos às/aos participantes, considerando o risco de propagação do novo coronavírus em entrevistas presenciais. Foi acrescido que tínhamos consciência de que as entrevistas a distância podiam trazer dificuldades para a construção dos laços e empatia entre as pessoas envolvidas, assim como possíveis problemas no uso das tecnologias digitais, as quais poderiam ser fator excludente para a participação. Registramos também que poderiam aparecer situações de tristeza, cansaço e constrangimento no tratamento de temas dolorosos, como perdas, morte e luto. Inserimos, ainda, informações sobre cuidados que tomaríamos, entre os quais a possibilidade de interromper a entrevista, de evitar certos temas, de manter o anonimato, de definir um tempo para a divulgação da entrevista.

Aprovado o projeto pelo CEP, iniciamos a pesquisa e a realização das entrevistas na UFRGS entre agosto de 2020 e meados de 2022, chegando a um total de 764. A significativa adesão de estudantes com perfil de baixa renda (público-alvo da pesquisa na instituição) indicou um desejo compartilhado de registro daquele tempo excepcional que vivíamos e uma compreensão comum sobre os benefícios que a pesquisa traria para cada participante e para a sociedade. Nas páginas que seguem, analiso um conjunto de entrevistas à luz da legislação sobre avaliação ética da pesquisa no Brasil e no Canadá e em diálogo com a literatura sobre o tema no campo da história oral. Pretendo contribuir para problematizar as noções de “riscos”, “danos” e “benefícios” e participar do debate sobre ética e pesquisa e, mais especificamente, ética e história oral.

Riscos, danos e benefícios na pesquisa envolvendo seres humanos e na História Oral

As noções de risco, dano e benefício, tributárias da bioética, são pilares dos sistemas de avaliação institucional de pesquisa no Brasil, no Canadá, nos Estados Unidos e em outros países ocidentais. No Brasil, a Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS),

[...] dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. (BRASIL, 2016, p. 44, grifo nosso).

A redação desse documento contou com a pressão e a colaboração de associações representativas das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas brasileiras (DUARTE, 2017). Representantes das entidades procuraram adequar o sistema brasileiro - fundado na bioética e desenhado para dar conta de projetos das ciências da saúde - para as particularidades das suas/nossas áreas. Ainda assim, a Resolução Nº 510/2016 voltada às Ciências Humanas e Sociais - e englobando então a história oral - manteve parte do vocabulário que já constava em documentos anteriores, como a Resolução CNS Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, segundo a qual a “[...] eticidade da pesquisa implica”, entre outras coisas, na “b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos; c) garantia de que danos previsíveis serão evitados” (BRASIL, 2013, p. 60, grifos nossos).

Elementos semelhantes podem ser encontrados na Declaração de condutas éticas na condução de pesquisa envolvendo seres humanos, conhecida como TCPS 2 (CANADÁ, 2022), definida conjuntamente pelas agências canadenses de fomento para pesquisa em Saúde, em Ciências Naturais e Engenharia e em Ciências Sociais e Humanidades. O tema dos riscos e dos benefícios aparece ao longo de todo o documento. A palavra “risk” (risco), por exemplo, aparece 344 vezes nas 280 páginas da Declaração, enquanto “harm”, que tem sido traduzida para o português como “dano”, aparece 95 vezes. A preocupação com riscos e danos é assim justificada: “[...] porque a pesquisa é um passo rumo ao desconhecido, seu desenvolvimento pode implicar em danos para os participantes e para outros [indivíduos]” (CANADÁ, 2022, p. 24, tradução nossa, grifo nosso). O dano, caracterizado como algo que “tem efeito negativo no bem-estar dos participantes”, pode ser de diferentes naturezas: social, comportamental, psicológico, físico ou econômico. O risco, por sua vez, tem a ver com seriedade e com a probabilidade de que o dano venha a ocorrer. E essa probabilidade tende a ser maior se as pessoas já enfrentam altos riscos no seu cotidiano. Fazer um estudo sobre estratégias de sobrevivência de famílias em uma cidade em guerra ou realizar testes de um novo fármaco contra o câncer em pacientes que estão recebendo alta dose de quimioterapia são dois exemplos usados para reforçar que a escolha de participantes que vivem circunstâncias de alto risco na sua vida cotidiana deve ser cuidadosamente decidida e justificada. Na normativa brasileira (BRASIL, 2016), os possíveis danos decorrentes da participação na pesquisa são classificados como materiais e imateriais. O primeiro tipo é exemplificado com lesão ao patrimônio e despesas financeiras. O segundo refere-se à lesão a direitos ou a bens da personalidade, “[...] como integridades física e psíquica, saúde, honra, imagem, privacidade” (BRASIL, 2016, p. 44). Os riscos, nos dois casos, são possibilidades de ocorrência dos danos.

Em um sentido inverso, o documento canadense reconhece que a pesquisa envolvendo seres humanos pode afetar positivamente a sociedade como um todo, cada participante ou outras pessoas, ainda que haja pesquisas que ofereçam pouco benefício direto aos participantes. Sua contribuição seria para a sociedade como um todo e para o avanço do conhecimento. Na normativa brasileira (BRASIL, 2016), os benefícios são definidos como: “[...] contribuições atuais ou potenciais da pesquisa para o ser humano, para a comunidade na qual está inserido e para a sociedade [...]”, as quais favorecem uma vida digna “[...] a partir do respeito aos direitos civis, sociais, culturais e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado” (BRASIL, 2016, p. 44).

Além do uso comum no documento brasileiro e canadense das noções de risco, dano e benefício, destaco a concepção que embasa ambas as normativas de que há níveis diferentes de risco e que eles podem ser calculados com base em situações enfrentadas pelos/as participantes no próprio cotidiano. Os/as participantes que, no dia a dia, já estão expostos/as a riscos elevados se encontram em uma condição de vulnerabilidade que não deve ser exacerbada pela pesquisa.

Praticantes de história oral no Brasil e no Canadá, para usar apenas dois exemplos da “história oral ocidental” (FRANCIS et al., 2021; MAHUIKA, 2019), têm criticado sistemas institucionais de avaliação baseados na bioética e chamado a atenção para os limites do uso de expressões como “riscos”, “danos” e “benefícios”. Ao mesmo tempo, têm sido fecunda a reflexão sobre cuidados, direitos e obrigações nas relações estabelecidas quando da prática da história oral. Particularmente, considero que refletir sobre tais temas é tarefa educativa, até mesmo quando se trata de responder a demandas institucionais que podem parecer estéreis em um primeiro momento, mas que acabam criando oportunidade para reconhecer que aquilo que consideramos positivo e benéfico em nossos projetos pode ser encarado de outra maneira pelos/as participantes/as e pode gerar situações de mal-estar, de desconforto, de angústia e, muitas vezes, de frustração. Acredito que tendemos a agir de forma mais cautelosa quando reconhecemos que nosso trabalho pode ser experimentado e avaliado por outras pessoas de maneiras diversas e lhes ser prejudicial.

Como já foi dito, quando da submissão do projeto Documentando a experiência da covid-19 no Rio Grande do Sul ao CEP, foi preciso prever quais seriam os possíveis riscos e danos a que os/as participantes estariam submetidos/as e quais seriam os benefícios de sua participação na pesquisa. O mesmo aconteceu no primeiro contato com as pessoas que se voluntariaram para as entrevistas. Foi-lhes explicado qual era o objetivo do projeto, o que era uma entrevista de história oral, a intenção de produzir registros para disponibilizar na internet, a opção de revelar ou não a identidade e, também, a previsão de que a entrevista poderia gerar desconforto e tristeza. Ao mesmo tempo, foi reforçada a importância da participação de cada um e a contribuição para o registro de uma experiência coletiva. No início de cada gravação, foram registradas as respostas quanto à autorização para a revelação da identidade, ao uso da imagem e da voz e à publicação da entrevista na internet (no site ou no canal do Repositório de Entrevistas de História Oral - REPHO).

Voltando à possibilidade de fazer previsões sobre “riscos”, “danos” e “benefícios”, creio que ela está baseada em três premissas: 1) pesquisadores/as e pesquisados/as estão em polos opostos e o desenho do projeto e de seus desdobramentos está completamente sob controle e responsabilidade dos/as primeiros/as; 2) riscos e danos se referem ao indivíduo e não a coletividades, de modo que cada indivíduo/participante que assina o termo de consentimento deve registrar que tem noção dos riscos, danos e benefícios; 3) em projetos que tocam em temas sensíveis, as entrevistas podem reforçar traumas sem que os/as pesquisadores/as tenham preparo profissional para ajudar na sua superação. As duas primeiras premissas estão associadas mais diretamente aos sistemas institucionais de avaliação ética da pesquisa, enquanto a última repercute reflexões sobre ética no próprio campo da história oral.

Identificar esses pressupostos e reconhecer como eles se fazem presentes na prática é um desafio importante que, para ser enfrentado, precisa de apoio na literatura disponível. Refiro-me ao debate sobre o compartilhamento de autoridade entre pesquisadores/as e participantes da pesquisa (FRISCH, 1990; SHOPES, 2003), que se contrapõe à primeira premissa; ao reconhecimento de coletivos como sujeitos participantes de pesquisa e não apenas de indivíduos (FRANCIS et al., 2021), como resposta à segunda premissa; ao perigo da utilização rápida do conceito de trauma (ENDO, 2013; FRANCIS et al., 2021); ao cuidado para não subestimar a capacidade dos/as narradores/as ou participantes de lidarem com situações dolorosas (RICKARD, 2000); ao alerta sobre as diferenças entre terapia e entrevista de história oral e à reflexão sobre as particularidades de conduzir entrevistas no contexto da pandemia da covid- 19 (CRAMER, 2020), como contrapontos à terceira premissa.

De acordo com Linda Shopes (2003, p. 103, tradução nossa), a expressão/noção “autoridade compartilhada” (no original shared authority) tornou-se um mantra para os/as praticantes de história oral. Segundo a autora, ao propor a noção, Michael Frisch (1990) estava preocupado com o processo de construção de saberes possibilitado pela interação entre entrevistador/a e narrador/a, no contexto mesmo da entrevista. A expressão, no entanto, passou a ser apropriada para se referir a esforços mais duradouros e permanentes, em todas as “fases” da história oral, no sentido de compartilhar o trabalho de construção do conhecimento histórico. Ela ajuda a entender que se trata de trabalho demorado, complexo, que demanda habilidades pessoais e profissionais para lidar com pessoas, com incertezas e riscos. Conforme Shopes (2003), o propósito do compartilhamento de autoridade está geralmente associado a projetos que dialogam com objetivos sociais mais amplos. Trata-se, ainda, de um trabalho que gera tensões especialmente na produção de artigos acadêmicos, onde se coloca o desafio de descentrar a autoridade da análise do material construído por meio das entrevistas. Nessa perspectiva, a separação radical entre pesquisador/a e participante não se sustenta. Da mesma forma, é questionada a possibilidade de previsão das intercorrências que acontecerão no desenvolvimento do projeto. Assim, prever riscos, danos e prejuízos, para voltar à preocupação do presente artigo, pode ser uma tarefa mais complicada do que parece à primeira vista.

A ideia de uma história oral colaborativa também é explorada em artigo que traz um diálogo entre um grupo de pesquisadoras inglesas e equatorianas envolvidas no projeto transnacional sobre a experiência de mulheres afrodescendentes na província de Esmeraldas, no Equador (FRANCIS et al., 2021). Essa colaboração para as pesquisadoras equatorianas - ativistas do Coletivo Mujeres de Asfalto e professoras universitárias - tem como base os estudos de Silvia Rivera Cusicanqui, a partir dos quais foi proposto o compartilhamento de todas as etapas da pesquisa, como seleção de temas, desenho das entrevistas, formato de devolução, uso e propriedade dos materiais produzidos na pesquisa. No artigo escrito como um mosaico de pequenas contribuições, Juana Francis Bone (FRANCIS et al., 2021), do coletivo Mujeres de Asfalto, chama a atenção para a forma como a sua comunidade vem sendo tratada pela academia e propõe uma prática diferente.

Em um determinado território, você extrai a informação e deixa o lugar sem devolver o que foi explorado. É o que acontece muito aqui em Esmeraldas. Por isso, creio que é importante deixar as ferramentas na comunidade, como se pode fazer, o que se pode fazer. Ou seja, é fundamental porque se permite que outras gerações tenham algo que lhes permita sustentar a memória coletiva. (FRANCIS et al., 2021, p. 7, tradução nossa).

A pesquisadora e ativista registra a sua crença em uma prática de investigação responsável, em um processo diferente que só pode acontecer se as mulheres envolvidas (comunidade e academia, equatorianas e inglesas) se colocarem como iguais. No mesmo texto, as contribuições da acadêmica britânica Inge Boudewijn (FRANCIS et al., 2021) se referem a dificuldades que os sistemas de avaliação da ética na pesquisa apresentam para empreendimentos colaborativos e decoloniais em história oral. Boudewinj ressalta que, “[...] ainda que o processo de autorização ética nas universidades cumpra uma função importante, as estruturas existentes não aprovam o trabalho decolonial” (FRANCIS et al., 2021, p. 10, tradução nossa).

Ao contrapor um “trabalho decolonial” e a “avaliação ética institucional”, a pesquisadora estava se referindo a um conjunto de compromissos assumidos pela equipe formada por pesquisadoras equatorianas e inglesas e que diferem dos protocolos já estabelecidos em sua universidade: reconhecer os conhecimentos comunitários e não apenas os individuais; priorizar desejos, visões e práticas das histórias orais das comunidades afrodescendentes; registrar o consentimento no formato oral e não no escrito; dar às participantes a opção de serem nomeadas ou de manterem o anonimato nas entrevistas, e não a manutenção geral do anonimato, como pedem os Comitês de Ética para garantir a proteção dos participantes; manter as gravações das entrevistas com propriedade permanente do coletivo Mujeres de Asfalto e não nos arquivos da universidade inglesa líder do projeto; dar às mulheres a serem entrevistadas a opção de decidir se suas entrevistas serão ou não utilizadas para fins acadêmicos; publicar podcasts de entrevistas selecionadas para acesso mais fácil da comunidade; e, ao mesmo tempo, disponibilizar entrevistas da forma como foram realizadas, em vez de interpretadas. O último ponto está associado ao entendimento que não existe uma dicotomia entre relatos teóricos e relatos de experiência.

Na continuidade dos questionamentos às premissas acima listadas, destaco o perigo da utilização rápida do conceito de trauma, tema que também aparece no artigo das pesquisadoras britânicas e equatorianas. Em sua contribuição, a professora Hilary Francis lembra que as colegas do Equador associam a noção de trauma a um relato externo que enfatiza o sofrimento e a vitimização das mulheres negras. Ao contrário, as equatorianas defendem a necessidade de “[...] criar um espaço para a alegria e a felicidade, vendo a alegria como um componente crucial da resistência” (FRANCIS et al., 2021, p. 4, tradução nossa). Outros autores têm chamado a atenção para a necessidade de cautela ao se falar em trauma. O psicanalista Paulo Endo (2013), com ampla experiência no trato de temas como violência urbana e institucional, memória e testemunho, reflete sobre os usos do conceito de trauma nas lutas pela memória. “Trauma”, na avaliação do autor, tornou-se uma palavra de uso corriqueiro e impreciso, tendo sido transformada em uma “panaceia explicativa”. Em vez de confiar que “trauma” explica tudo, melhor seria segundo o autor, “[...] indicar os matizes dessa dor” (ENDO, 2013, p. 45) e o seu caráter singular; explorar o dano singular e os danos sociais e políticos.

Em uma direção parecida, porém mais de uma década antes, Wendy Rickard (2000) tratou especificamente do potencial traumatizante de entrevistas de história oral sobre temas dolorosos. Na oportunidade, a autora alertou que não se deve subestimar a capacidade dos narradores de lidarem com determinadas situações. Em artigo a respeito de “tabu, trauma e luto” na história oral, construído com base em relatos de pessoas que participaram de projetos sobre AIDS e prostituição, a pesquisadora britânica reconheceu, entre outras coisas, que o fato da entrevista ser dolorosa e acompanhada de choro não implicava um desejo de desistir de falar; que a possibilidade de escutar as próprias palavras a partir da gravação da entrevista trazia benefícios aos/às participantes; que tais pessoas valorizavam a liberdade proporcionada pela história oral quanto ao tempo disponibilizado para a escuta, aos temas tratados e aos enfoques do diálogo; que o ato de desafiar os temas tabus por meio da gravação de histórias orais era visto como positivo. Com base no retorno de seus/suas entrevistados/as sobre a experiência de participar das entrevistas, Rickard (2000, p. 125, tradução nossa) sugeriu aos praticantes de história oral “[...] evitar uma excessiva prudência ao avaliar a solidez emocional das pessoas entrevistadas e correr com isso o risco de atuar como ‘vigilante’ das suas experiências”. A autora, no entanto, não deixou de chamar a atenção para os cuidados/cautelas no que se refere à exposição pública de relatos sobre temas sensíveis. Sem utilizar as noções de risco, dano e benefício, Rickard (2000) chamou a atenção para questões próximas daquelas que estamos discutindo neste texto.

O tema do trauma também é explorado no artigo de Jennifer Cramer (2020), publicado na Oral History Review, com a objetivo de oferecer orientação para projetos de história oral sobre a covid-19 desenvolvidos no contexto mesmo da pandemia. Ainda que a autora não questione o uso do conceito de trauma, ela alerta para as diferenças entre história oral e terapia. Cramer reconhece a existência de sobreposições entre diferentes terapias e a história oral, mas lembra que as primeiras são privadas e protegidas, e a última é pública. Ainda conforme a autora, terapeutas têm diferentes especializações, as quais são associadas a treinamento acadêmico e a práticas clínicas. Seu campo de ação é regulamentado e acompanhado por entidades profissionais, o que não acontece com oralistas, que não fazem estágio clínico e podem ou não embasar seu trabalho em treinamento especializado. O principal objetivo de profissionais de história oral é, segundo a autora, “[...] criar e disseminar fontes primárias em nome de uma história pública compartilhada” (CRAMER, 2020, p. 208, tradução nossa). Terapeutas - considerando diferentes tipos de terapia - têm como objetivo maior “[...] entender o problema de um cliente e desenvolver um plano de tratamento colaborativo”. O papel de quem pratica história oral não é curar, mas documentar.

A autora também traz sugestões de cuidados para a realização de entrevistas no contexto da pandemia e sobre a pandemia (CRAMER, 2020): buscar a colaboração de profissionais da saúde mental ou das ciências sociais; construir uma “moldura longitudinal” para situar as narrativas sobre os eventos traumáticos no quadro mais amplo da história de vida; retomar o contato com os colaboradores para novas entrevistas; oferecer sugestões de suporte terapêutico profissional apropriado para os casos em que os narradores indiquem dificuldades em processar suas experiências. Com o apelo a profissionais e instituições que prestam apoio psicológico, evita-se cair em armadilhas que burlam as linhas divisórias entre o que é narrativa privada (e que deve ser protegida) e a narrativa pública (conscientemente reconhecida como história a ser compartilhada). Cramer (2020) recomenda, ainda, atenção para as exigências institucionais que dão garantias para o andamento da pesquisa - como a submissão a um CEP, o registro do consentimento informado, as definições quanto à privacidade e ao acesso ao material, a disponibilidade de espaço de armazenamento seguro e às estratégias para integrar as pessoas entrevistadas nos passos seguintes da pesquisa de modo a honrar a colaboração oferecida.

Finalmente, sobre as particularidades de contexto da covid-19, Cramer (2020) explica que a pandemia é um processo que se distingue de outras crises e catástrofes - como enchentes, incêndios, tornados, atentados -, cujas experiências costumam ser avaliadas e registradas em projetos de história oral tão logo os eventos tenham passado. No contexto da covid-19, as entrevistas foram/são conduzidas concomitantemente à crise, e isso traz implicações na capacidade de as pessoas integrarem tal experiência nas narrativas sobre si mesmas, gerando, por exemplo, relatos fragmentados. Ao mesmo tempo, a autora lembra que a covid-19 não é um fenômeno geograficamente restrito, é um evento global e que se arrasta no tempo. Além disso, ela argumenta que “[...] nem os nossos corpos, nem as nossas mentes encontram algo parecido na memória coletiva global” (CRAMER, 2020, p. 204, tradução nossa).5 De qualquer forma, as orientações e as reflexões contidas no artigo de Cramer visavam contribuir para que os/as praticantes de história oral, no afã de documentar a crise sanitária em curso, antes de mais nada, não provocassem danos aos/às participantes, como está registrado no próprio título do artigo. Feita essa incursão pela literatura, passo a dialogar com as/os participantes da pesquisa.

Riscos potenciais e cuidados no trabalho de campo

Em minha universidade, a UFRGS, a meta inicial foi entrevistar 50 estudantes de Graduação com perfil de baixa renda e/ou seus familiares. Cento e duas pessoas se inscreveram para participar do projeto, dentre as quais foram selecionadas 50. As entrevistas começaram a ser realizadas em agosto de 2020, por meio de plataformas de videoconferência. Foram conduzidas por uma equipe de trabalho comprometida e cuidadosa que contou com cerca de 20 pessoas entre docentes, técnicas administrativas, estudantes e egressos/as da Graduação e da Pós-Graduação em História. Mais de 40 entrevistas foram conduzidas em 2020. Em março de 2021, considerando o prolongamento da pandemia, decidimos convidar as pessoas entrevistadas em agosto, setembro e outubro do ano anterior para uma segunda conversa. Movia-nos uma preocupação com o que poderia ter acontecido com elas e com suas famílias frente ao dramático aumento de contágios e mortes no Brasil.

Ao mesmo tempo, a equipe de pesquisa passou a ler e a discutir textos sobre trauma e luto, na expectativa de se preparar melhor para as situações e narrativas que poderiam surgir nas segundas entrevistas, para desenhar um novo roteiro de questões e para avaliar as entrevistas e a performance dos/as entrevistadores/as na medida em que o trabalho fosse sendo feito. Buscamos informações sobre serviços de apoio psicológico gratuito ou a baixo custo que pudéssemos indicar para os/as participantes caso sentíssemos que a participação no projeto poderia potencializar o sofrimento vivido. A estratégia de realizar segundas entrevistas e de disponibilizar contatos de serviços de apoio psicológico também foram sugeridas por Cramer (2020) no texto apresentado anteriormente.

Aos cuidados originalmente registrados no projeto de pesquisa e à exploração da literatura especializada, somou-se a prática marcada pela sensibilidade, pela intuição e pela empatia. Tanto nas primeiras quanto nas segundas entrevistas, procuramos ser cuidadosos/as quanto à elaboração das perguntas do roteiro, nos contatos prévios à entrevista para explicar os objetivos da pesquisa, funcionamento da entrevista, possíveis desconfortos, e possibilidade de desistência ou de retomada em outro momento, na escolha da tecnologia a ser utilizada, na prática de ter duas pessoas da equipe em cada entrevista, na edição rápida dos vídeos ou áudios para posterior compartilhamento com o/a participante, no registro do consentimento no formato oral etc. As reuniões do projeto foram oportunidades para avaliar esses procedimentos e, também, para compartilhamento de notícias sobre contágios entre membros da equipe, perda de amigos e familiares, condições de isolamento na vizinhança, dificuldades no andamento dos estudos e atividades profissionais. Aquilo que era “objeto” de nossa pesquisa, de maneiras diversas, também era a experiência que cada um/a vivia.

Das 27 pessoas convidadas para a segunda entrevista, 19 responderam positivamente. As narrativas então produzidas, entre maio e dezembro de 2021, servem de material empírico para o exame de riscos, danos e benefícios da participação no projeto. Nas páginas que seguem, procuro reunir indícios dos cuidados tomados pela equipe e pelos/as participantes frente a riscos trazidos pela participação no projeto e que poderiam provocar diferentes danos. As pessoas envolvidas em cada uma das entrevistas, tendo autorizado a divulgação de sua identidade no momento da gravação, serão nomeadas e apresentadas na medida em que aparecerem no texto. As idades mencionadas são as do momento da entrevista e as declarações étnico-raciais foram coletadas naquele momento ou no processo de revisão deste texto, quando participantes e componentes da equipe de pesquisa foram novamente consultados/as.

Inicio com alguns relatos que registram cuidados que as entrevistadoras tiveram frente a situações delicadas e dolorosas. O estudante de Ciências Sociais, 28 anos, branco, que preferiu não divulgar sua identidade, foi entrevistado por Cláudia Mauch, 55 anos, branca, e por Cássia Silveira, 41 anos, branca, ambas professoras do Departamento de História, em junho de 2021.6 Quando ele relatou se sentir culpado por não conseguir dar conta das tarefas acadêmicas, Cláudia demonstrou solidariedade e empatia em relação ao seu sofrimento. Nas palavras da professora:

Não é pra aliviar tua culpa, não sou psicóloga, mas muita gente está enfrentando, não só alunos. Professores também, servidores e tudo né. Então a gente imagina também que, em muitas outras áreas de trabalho, as pessoas estão enfrentando isso [...]. A gente vê nos nossos alunos, chega no final [do semestre] e algumas pessoas não conseguem, não por incapacidade de fazer, mas exatamente por isso que tu tá descrevendo. Essa...Todos os cansaços se acumulam ali, e a pessoa não consegue seguir.

A bibliotecária e mestre em Memória Social, Evelin Stahlhoefer Cotta, 49 anos, branca, expôs ao estudante Lucas da Silva Bueno, do curso de Engenharia Mecânica, 24 anos, branco, seu entendimento sobre a experiência de busca de apoio psicológico entre a primeira e a segunda entrevistas concedidas. Ela conduzia a entrevista ao lado da então estudante de História, Marina Widhozler da Silva, em julho de 2021:

Sabe, se eu pudesse destacar duas coisas que tu falou, do teu atendimento psicológico, a questão da aceitação. Acho bem importante. A gente está nessa situação, não tem muito o que brigar com a situação, ela está posta. É uma questão de aceitação mesmo. Tem que “tocar pra frente [...]. Outra coisa que eu iria comentar, que como tu falou, a gente está no mesmo barco. Tu não estás passando por isso sozinho. Tem muita gente enfrentando barras pesadas. Isso mesmo, estamos todos no mesmo barco.

A professora Regina Xavier, 57 anos, branca, conduziu a segunda entrevista com Ana Paula Fernandes de Lima, mãe de um estudante da UFRGS e psicóloga, 48 anos, parda, na companhia da estudante de História Letícia Wickert Fernandes, 25 anos, branca, em outubro de 2021. Depois de ouvir a narrativa de Ana Paula sobre a experiência do contágio do marido pelo coronavírus, Regina comentou:

Mas assim Ana, é tão bom para as pessoas verem a tua entrevista, porque, apesar de tudo que vocês passaram, tem um dado de aprendizado que é muito positivo. Eu acho que a gente... Nessa troca de experiências, as pessoas se fortalecem. A gente quer te agradecer por essa disponibilidade de falar [...]. Eu quero te agradecer, gostei muito de te rever, de te ver bem, ouvir do Gabriel [seu filho], saber que seu marido está reestabelecido. Eu fico muito contente, lamento tudo por que vocês passaram, mas, por outro lado, acho que vocês saíram engrandecidos.

Além de uma postura de escuta e acolhida, as falas das colegas indicam características de uma história oral da crise, realizada durante a crise, quando as experiências narradas pelos/as participantes ecoam na experiência das pesquisadoras já que todos/as estão “no mesmo barco”. O vínculo com a universidade é elemento a ser destacado nos dois primeiros exemplos. São servidoras e estudantes que enfrentam a pandemia e os cansaços que se acumulam. São pessoas que, como disse Cláudia, “não conseguem seguir”, mas que, como ressaltou Evelin, “tem que tocar pra frente”. No terceiro exemplo, a entrevistada é mãe de estudante de baixa renda. Na fala da entrevistadora Regina, destaquei a valorização da disponibilidade de Ana Paula em conceder uma segunda entrevista: “gostei muito de te rever, de te ver bem”. Lembro, aqui, da sugestão de Cramer (2020) para que se construa uma abordagem longitudinal a qual pode ser favorecida por novas entrevistas com a mesma pessoa. O diálogo entre Regina, Letícia e Ana Paula permitiu colocar os acontecimentos em perspectiva temporal, avaliar as transformações do cotidiano entre a primeira e a segunda entrevistas, nas diferentes fases da pandemia, antes e depois da angustiante situação do contágio e da internação hospitalar do marido da entrevistada. É relevante comentar ainda que tendo em vista várias perdas de pessoas próximas, a participação da colega Regina no projeto, em alguns momentos, precisou ser evitada para não potencializar o seu sofrimento. Assim como ela, outros/as componentes da equipe compartilharam as experiências pessoais ou familiares relacionados à pandemia durante as reuniões de trabalho ou nas trocas cotidianas de mensagens, o que representou importante movimento de apoio mútuo.

Dois outros cuidados tomados disseram respeito a como lidar com relatos de morte e a reconhecer outras perdas trazidas pela pandemia. Na segunda entrevista que eu, Carla Simone Rodeghero, 53 anos, branca, conduzi ao lado de Manuela Perondi Pavoni, 25 anos, branca, então estudante de Graduação em História, com Marcos Kaingang, 28 anos, recém-formado no curso de Direito, ficamos sabendo da morte de muitas pessoas próximas a ele. Naquele encontro, em maio de 2021, Marcos foi listando os casos, contando quem eram as pessoas e como se deu o contágio e os falecimentos. Em meio a esse relato, ele registrou uma sensação desconfortável: “chega um momento que morre tanta gente que a gente chega a nem sentir mais [...], chega a anestesiar de tanta vida que tu tá vendo [se] perder”. Depois de ouvir essas histórias dolorosas, procurei manifestar minha solidariedade:

Muito triste né, Marcos. Não sei se você conhece um projeto que se chama Memorial Inumeráveis, ele é um projeto pelo qual as pessoas mandam os nomes e as histórias das pessoas que faleceram por covid e aí isso é transformado num texto, colocado num site, e é uma forma de homenagear essas pessoas que faleceram. Então também é uma forma de a gente dar conta da nossa dor em relação a essa perda e processar o nosso luto.

No roteiro das segundas entrevistas, foi inserida uma pergunta referente a outras perdas que a pessoa teve no período entre os dois encontros com a equipe da pesquisa. Frente a tal questão, Clarisse da Silva Duarte, estudante de Administração Pública e Social, 35 anos, branca, que trabalha em um hospital de Porto Alegre, depois de um silêncio e com voz emocionada, narrou: “perdas, milhares de perdas. Não conheço a maioria dessas pessoas [que morreu], mas a gente sente, a gente fica mexido. Apesar de particularmente a minha vida estar muito boa, como nunca esteve, eu não tô feliz, não tô bem e tô sentindo muito mais do que eu sentia em outras épocas da minha vida”. Ela se sentia “definhando”. Alanna de Jesus Teixeira, doutoranda em História, 32 anos, branca, que conduziu a entrevista ao lado de Lucas Machado Ramos, estudante de História, 19 anos, branco, em agosto de 2021, compartilhou com Clarisse seu entendimento sobre o contexto vivido ressaltando que “se fala, inclusive, de um luto da vida como era antes”. Alanna também retomou questões e informações que haviam aparecido na primeira entrevista, demonstrando uma preparação prévia para conduzir a segunda e buscando recuperar os laços que ela já havia construído com Clarisse.

Depois de dar alguns exemplos sobre os cuidados que a equipe de pesquisa tomou na condução das segundas entrevistas, quero registrar que a pessoas entrevistadas também tomaram cuidados para evitar riscos em sua fala. Houve estudantes que optaram por não divulgar sua identidade, que solicitaram um tempo para a publicação das entrevistas e que elas não fossem postadas em seguida no canal do YouTube do projeto. No seio de relatos sobre as dificuldades causadas pelo ensino remoto adotado pela universidade, por exemplo, foi comum a omissão a nomes de professores, apesar das críticas gerais à forma como a universidade respondeu à crise. Nas respostas a questões sobre a atuação de governos municipais, estadual e federal no gerenciamento da pandemia, foi quase unânime a crítica ao último, ainda que a pronúncia do nome do governante tenha sido evitada em muitas ocasiões. Houve casos em que as instituições nas quais os/as estudantes trabalhavam não tiveram seu nome mencionado. Houve, ainda, falas cortadas em momentos em que familiares ou outras pessoas adentravam o espaço no qual a entrevista estava sendo conduzida.

Parece-me que cuidados como estes serviram para que os/as participantes mantivessem controle sobre o nível de exposição a que estariam submetidos/as, sem correr o risco de afetar relações familiares, de trabalho, de estudo, de amizade. As decisões tomadas no momento mesmo da entrevista contribuíram para que o resultado da performance se aproximasse da expectativa dos/as participantes, da forma como queriam se mostrar e ser vistos/as. Paralelamente aos cuidados mencionados, penso que as noções de risco e de dano apareceram nos relatos de maneiras diferentes do que preveem os manuais e normativas sobre ética na pesquisa. Elas se fizeram muito presentes em falas sobre os riscos enfrentados no cotidiano.

As entrevistas aqui analisadas trouxeram relatos sobre o risco de contágio em ambientes como supermercados, posto de saúde, transporte público, trabalho doméstico, em um hospital e em uma entidade de assistência social; sobre o comportamento de risco de pessoas que não respeitavam regras de distanciamento, não usavam máscara ou a usavam de forma incorreta e, ainda, que se deixavam guiar por informações que minimizam ou negavam os perigos da doença. A isso se somaram falas que indicavam a percepção dos danos causados pelas políticas negacionistas do Governo Federal e pela precarização dos serviços de saúde em um contexto de explosão de novos contágios, no qual remédios sem eficácia comprovada continuavam sendo prescritos. Os relatos ainda se referiram aos riscos e às consequências do desemprego e do aumento do custo de vida, além de casos de contágio e morte. O longo período de isolamento social - para um grupo de pessoas que conseguiu colocá-lo em prática - ao mesmo tempo em que contribuiu para salvar vidas, foi acompanhado por danos como o desespero, a exaustão e a sensação de impotência.

Benefícios da participação na pesquisa

Tendo tratado dos riscos e danos, passo a apresentar algumas avaliações sobre o significado da participação no projeto Documentando a experiência da covid-19 no Rio Grande do Sul, na expectativa de visualizar os benefícios diretamente relacionados à experiência da entrevista. Exploro, nos parágrafos que seguem, algumas narrativas em torno de duas questões que fizeram parte do roteiro da pesquisa: O que você sentiu ao assistir a sua primeira entrevista? Por quais razões você concordou em conceder a segunda? É sobre isso que Aline Tavares Bastos, estudante de Ciências Contábeis, 39 anos, parda, fala no trecho que segue: “Da primeira vez que eu assisti [à entrevista], eu assisti logo que saiu. Na hora que eu choro, eu chorei de novo! [...]. Eu me emocionei porque realmente era um momento que eu estava, digamos assim, meio que asfixiada, asfixiada pela situação toda”. Na entrevista que concedeu a Anne Alves da Silveira, 33 anos, parda, doutoranda em História na UFRGS, e a Manuela Perondi Pavoni, em maio de 2021, Aline contou que costumava ficar atenta às notícias, pesquisas, previsões sobre o número de mortes. Relatou um segundo momento em que teve “novamente outras crises de choro” - a estudante se referia a “toda aquela função lá no Amazonas” - e se sentiu “bastante abalada”. Aos poucos, porém,

[...] isso foi mudando, foi melhorando [...]. Como eu já tinha falado, de não ver tanta notícia a respeito, de me manter informada sim, mas não ficar tão em função disso... E enfiar a cara nos conteúdos da faculdade assim que começou o semestre. Fazer todos os trabalhos, não deixar de fazer nada pra mim, desocupar a minha cabeça, pelo menos metade do período.

Para a estudante, assistir à primeira entrevista e conceder a segunda foram ações que permitiram revisitar sentimentos do início da pandemia e avaliar as transformações ao longo das diferentes fases da crise sanitária, bem como as estratégias criadas para enfrentar a situação. Sobre ter se inscrito para participar do projeto, ela recordou que “[...] na época, eu tava respondendo um monte de pesquisa porque eu acredito que quando a gente tem tempo livre e a gente tá nesse meio acadêmico a gente tem que se ajudar né?!”.

Almiro Sagás Evaristo, estudante de Medicina, 22 anos, branco, ao conceder sua segunda entrevista para Felipe Neitzke Nunes, estudante de História, 22 anos, branco, e para mim, em junho de 2021, disse que se sentiu “um pouco incomodado” ao assistir à primeira entrevista: “Eu estava diferente. Eu me senti um pouco emocionado também”. Ele também sentiu que a pesquisa proporcionou “um espaço pra poder compartilhar uma experiência que é de muitas pessoas”, considerando que muitas vezes essas pessoas “não têm a oportunidade”. Almiro comparou as perspectivas que tinha na época com a sua visão mais recente sobre a vacina: “Nossa, naquela época, eu ainda estava duvidando e, hoje, eu acho que não tem mais espaço. Não tem mais por que duvidar de que a vacina é a solução”. Almiro relatou ter participado de uma pesquisa para o desenvolvimento da vacina contra a covid-19. Ele assim manifestou a alegria de ter podido colaborar:

Eu acho que isso foi uma coisa importante na pandemia. Ter buscado se envolver em bastantes projetos, que pudessem contribuir de alguma forma, com a documentação da pandemia. O que foi o caso desse projeto. Mas também o desenvolvimento de uma saída para a pandemia. Muito importante e eu fiquei muito feliz de ter tido a oportunidade de participar das duas coisas.

Dyones Natan Bock, estudante de Engenharia de Materiais, 22 anos, branco, entrevistado por Eduarda Borges da Silva, 32 anos, branca, doutoranda em História, e por mim em dezembro de 2021, contou que assistiu a sua primeira entrevista (outubro de 2020), “buscando ver o que eu poderia melhorar num segundo momento”. Ele se referiu à capacidade de se expressar. Além do aprendizado no sentido de melhor se comunicar, é possível perceber o cuidado para evitar que suas palavras fossem alvo de interpretações que as desvirtuassem. Sobre o sentimento suscitado ao revisitar sua entrevista, Dyones registrou ter ficado contente com sua própria “proatividade de participar do projeto, de poder estar ajudando”.

Rever a gravação da entrevista também lhe permitiu entender “algumas coisas, como, por exemplo, de que é muito diferente o nível [da] capital e de uma cidadezinha do interior [onde seus pais moram]”. Ele também disse ter conseguido avaliar o avanço da vacina entre a primeira entrevista e a segunda. Dyones destacou, ainda, a possibilidade de contribuir com pesquisas científicas, em um relato próximo daquele de Aline e de Almiro: “O investimento que posso fazer [na pesquisa] é concedendo meu tempo, contribuir com meu tempo. Penso também em ser um pesquisador algum dia, futuramente. Penso que a contribuição de outras pessoas é fundamental para o desenvolvimento de pesquisas e a difusão do conhecimento”.

Sobre a sensação de assistir à primeira entrevista, Marcos Kaingang disse: “Eu olhei o meu vídeo ali... e não vi diferença nenhuma! [risos]”. O estudante avaliou, durante a segunda entrevista, que a realidade “não se alterou muito... Estamos ainda num contexto de pandemia”, apesar de reconhecer que havia um novo fator: “tá, a gente tá imunizado”. Ainda assim, “de lá pra cá, não se mudou muita coisa mesmo”. E acrescentou que “o Brasil continua um caos, tá tudo difícil. O enfrentamento é o mesmo ainda, a cobrança por direitos continua a mesma, as reivindicações são as mesmas”. Se houve mudanças, elas foram negativas, conforme o relato do profissional recém-formado em Direito:

Algumas coisas se intensificaram muito, que é ataques a direitos indígenas e a retirada de direitos. As pautas ultraconservadoras de negação de direitos tão avançando cada vez mais - mesmo diante da pandemia e do caos e genocídio que se caracterizou no Brasil diante de tantas vidas indígenas perdidas. [...]. A mesma coisa que eu falei lá atrás das dificuldades de pandemia, da educação no Brasil, de ensino remoto. Elas estão aqui e acredito que elas vão continuar ainda, seja voltando no modo presencial, elas vão continuar.

Além de mencionar diferentes políticas que continuam a impactar as comunidades indígenas, Marcos comentou aquelas que dizem respeito aos estudantes indígenas:

O Estado brasileiro [está] cortando todo e qualquer benefício na Universidade pública que historicamente são destinados diretamente à vulnerabilidade social de estudantes cotistas por exemplo. O Ministério da Educação não abriu mais recentemente nenhum programa de assistência a estudantes indígenas no Brasil e nem quilombolas, que era uma das vertentes específicas pra esses grupos no Ministério da Saúde. Ou seja, a pauta conservadora avançou muito.

A percepção das continuidades não se refere apenas àquilo que o estudante falou em agosto de 2020 e em maio de 2021, quando conversamos novamente. Marcos usou a entrevista para mandar uma mensagem aos não-indígenas: “se me perguntassem lá em 2000 qual seria a dificuldade, provavelmente não seria diferente da de agora. A gente avança em uma coisa, retroage em outra, que no final avançou um passo e retroagiu três passos, sabe?”. O entrevistado reconheceu que isso “é um negócio cansativo”, mas que ainda assim,

[...] os indígenas não se cansam de algo que parece que tantas vezes não dá resultado né. Mas que a gente mantém as mobilizações e acho que é um papel nosso, da juventude. Porque se os mais velhos da minha comunidade ainda tão com gás, quem sou eu pra falar, sabe? Então acho que é uma lógica de estar também buscando nos mais velhos, no pessoal que teve muito mais dificuldade. O que que é ser investigado e criminalizado perto de quem sofreu agressões e violência na ditadura, como tem na minha comunidade, por exemplo. Foi preso. Então, quem sou eu pra reclamar?

Colocar a experiência da pandemia em perspectiva temporal, no relato de Marcos, não foi um exercício de retomar como ele - como indivíduo - estava se sentindo e vivendo quando da primeira entrevista, ou antes da pandemia. O entrevistado situou as lutas indígenas em um tempo mais longo, reconheceu o papel dos “mais velhos” e, ao questionar “quem sou eu para falar?”, “quem sou eu para reclamar?”, se expressou em nome de um coletivo.

Cristine Nunes Pujol Coitinho, 36 anos, negra, estudante de Nutrição, ao rever sua primeira entrevista, achou a experiência “bem legal”, mas também “bem estranho me ver [risos] [...], me deparar comigo mesma! [risos]”. Em outubro de 2021, ela confessou para a professora Cláudia Mauch e para o estudante de História, Carlos Eduardo Barzotto, 25 anos, branco, que “é tão mais fácil a gente ouvir outra pessoa falando”. A entrevistada contou que se via como “o tipo de pessoa que até passava meio rápido na frente do espelho. Eu nem me via muito, sabe?”. Assistir à gravação da entrevista lhe permitiu se sentar e dizer: “aí, eu sou assim. Olha Cristine Nunes Pujol Coitinho, como eu tava me sentindo, que interessante me ver assim”. A entrevistada avaliou a experiência como sendo “muito boa”. Disse, ainda, que

[...] todo mundo deveria ter uma sensação assim, de se encontrar e se ver um pouco. Eu acho que mudei um pouco sim, não tem como não [ter mudado]. Eu já não sou mais a mesma. Mas... eu acho que eu estou um pouco melhor em algumas coisas, em outros ainda tem umas coisas a melhorar. Mas eu acho que foi muito bom, uma experiência muito legal... de verdade.

Clarisse da Silva Duarte contou que havia assistido à primeira entrevista, já “naquela época, mas o som ficou horrível, horrível. Então eu não assisti até o final. Mas eu mais ou menos lembro como é que foi a entrevista”. Temos, aqui, a concretização de um dos riscos previstos para as entrevistas a distância, mencionados no início deste texto, como a necessidade de equipamento, de rede Wi-Fi, espaço silencioso e iluminado etc. Questionada sobre “como é que tu vê, de lá para cá, o que tu falou, e agora como estão as coisas...”, Clarisse mencionou os cuidados que teve para a segunda conversa:

Eu, vendo a entrevista, me preocupei em ter um áudio melhor, né, fazer no computador. Agora tenho um espaço melhor também, né. Agora eu tenho um quarto onde eu posso estudar, enfim, e é só para isso [...]. Eu também me preocupei em estar num enquadramento melhor, me preocupei em estar com um microfone, para o áudio sair melhor.

A avaliação de Clarisse dialoga com a preocupação de Dyones quanto à performance durante a entrevista. Algo próximo foi registrado na narrativa de Graciela Santos Dornelles Correa, do curso de Pedagogia, 33 anos, parda, entrevistada por Cláudia Mauch e Evelin Stahlhoefer Cotta, em julho de 2021. Perguntada sobre o que pensava sobre a primeira entrevista, respondeu que havia assistido à gravação “logo quando saiu, então faz uns bons meses, eu não olhei ontem de novo por exemplo. Uma coisa que eu notei é que eu falei muito rápido, nesta entrevista estou falando mais devagar, estou me policiando nisso”. A preocupação com o seu desempenho estava relacionada à possibilidade de expressar o essencial de sua experiência: “talvez [a entrevista] não ficou tão clara porque eu falei rápido demais, mas deu pra entender a essência [...] das perguntas e das respostas”.

Considerações finais

Se um dos parâmetros para dimensionar os potenciais riscos e danos que a participação na pesquisa poderia trazer aos/às colaboradores/as é o dos riscos enfrentados no cotidiano, a partir dos exemplos apresentados, podemos concluir que as pessoas entrevistadas pela equipe da UFRGS para o projeto Documentando a experiência da covid-19 no Rio Grande do Sul estavam dando conta de riscos, danos e desafios bastante exigentes no contexto da segunda onda da pandemia no Brasil. O alerta registrado no Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) registrado na Plataforma Brasil e apresentado aos/às participantes de que poderiam “sentir-se triste[s], cansado[s] ou confuso[s]” durante a entrevista parece não ter soado como novidade, pois as pessoas já estavam tristes, cansadas, confusas, exaustas, enfim.

A participação na pesquisa pode ter potencializado o sofrimento pelo qual os/as participantes passavam? Os relatos de satisfação em participar da pesquisa e de conseguir tratar de temas dolorosos, apesar da sensação de estar “definhando”, fazem crer que não. Entre os benefícios de participar da pesquisa e de se rever ao assistir à primeira entrevista, conforme os exemplos apresentados, estão a oportunidade para contribuir com a pesquisa, o espaço para falar em nome de um coletivo ou para se rever e a possibilidade de avaliar a sua performance e capacidade de comunicação. A satisfação em ter participado, foi expressa em palavras carinhosas como as de Clarisse: “É muito legal isso, isso vai ser muito importante, isso vai ser muito usado no futuro para outros trabalhos. Essa base de dados que vocês estão formando é muito importante, vai ajudar muito. E só isso, obrigada!”. Na mesma direção, destaco o relato de uma estudante da área das Ciências Humanas que preferiu não se identificar já que estava se sentindo muito fragilizada após a morte da mãe por covid-19. Sua fala na entrevista conduzida pelos estudantes de História Felipe Neitzke Nunes e Ricardo Faria Corrêa e Scarpini, branco, 24 anos, em junho de 2021, parece condensar o conjunto dos cuidados que a equipe teve na condução da pesquisa.

Sim, eu assisti, achei bem bacana. Até queria parabenizar o trabalho de vocês. Porque eu fui recebendo ao longo do tempo atualizações, tipo “disponibilizaram no YouTube se tu quiser ver”, tiveram esse cuidado de avisar. Todas as vezes que meu relato entrou em algum vídeo junto com outros relatos, me avisaram “óh, botaram a tua fala aqui nesse vídeo”, me mandaram o link. Até a Evelin [...] me mandou uma mensagem de Feliz Natal, Feliz Ano Novo. Então achei muito carinhoso o cuidado que vocês tiveram com os entrevistados, até quero parabenizar, agradecer vocês por terem todo esse carinho, todo esse cuidado. Eu achei que foi bem bacana, foi bem preservada a essência de tudo, foi na íntegra né, não houve corte, nenhum tipo de edição [...]. Estou bem feliz de ter participado, fico bem satisfeita.

Aqui, retomo as noções de “trabalho colaborativo” apresentada pelas pesquisadoras equatorianas e inglesas e de “autoridade compartilhada”, cunhada por Frisch. Ao destacar que, nas gravações publicadas, “foi bem preservada a essência de tudo, foi na íntegra, não houve corte”, a estudante reconheceu o valor da narrativa como um todo e não apenas de recortes editados. Os recortes são sempre um exercício de interpretação, como aquela que procurei fazer neste artigo. Entretanto, o acesso simultâneo do público aos exercícios de interpretação feitos por pesquisadores/as e por participantes - no momento mesmo da entrevista - amplia as possibilidades de análise e de compreensão das realidades que são objeto de estudo.

Finalmente, no que se refere ao debate sobre “riscos”, “danos” e “benefícios” associados à participação em um projeto de história oral sobre a experiência da covid-19, entendo que ele tem um potencial educativo na medida em que ajuda a desnaturalizar o cotidiano da investigação e a reconhecer a necessidade de atenção e cuidado em relação ao conjunto de participantes. A literatura do campo da história oral, mais do que as prescrições que informam as ciências da saúde, foi/é guia fundamental nesse caminho.

Fontes:

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2 Almiro Sagás Evaristo, entrevistado por Carla Simone Rodeghero e Felipe Neitzke Nunes, em 24/06/2021. Disponível em: https://www.ufrgs.br/repho/almiro-sagas-evaristo-2/. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

3 Ana Paula Fernandes de Lima, entrevistada por Regina Célia Lima Xavier e Letícia Wickert Fernandes, em 22/10/2021. Disponível em: https://www.ufrgs.br/repho/ana-paula-fernandes-de-lima/. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

4 Clarisse da Silva Duarte, entrevistada por Alanna de Jesus Teixeira e por Lucas Machado Ramos, em 26/08/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M8byZMC5TYI. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

5 Cristine Nunes Pujol Coitinho, entrevistada por Cláudia Mauch e Carlos Eduardo Barzotto em 22/10/2021. Disponível em: https://www.ufrgs.br/repho/cristine-nunes-pujol-coitinho-2/. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

6 Dyones Natan Bock, entrevistado por Carla Simone Rodeghero e Eduarda Borges da Silva, em 14/12/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Th8l9AmXLVI. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

7 Graciela Santos Dorneles, entrevistada por Evelin Stahlhoefer Cotta e Marina da Silva Widholzer, em 21/10/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GGlq2wKTLDc. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

8 Lucas da Silva Bueno, entrevistado por Evelin Stahlhoefer Cotta e Marina da Silva Widholzer, em 19/07/2021. Disponível em: https://www.ufrgs.br/repho/lucas-da-silva-bueno-2/. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

9 Marcos Kaingang, entrevistado por Manuela Perondi Pavoni e por Carla Simone Rodeghero, em 25/05/2021. Disponível em: https://www.ufrgs.br/repho/marcos-kaingang-2/. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

10 Estudante de Ciências Sociais, entrevistado por Cláudia Mauch e Cássia Silveira, em 23/07/2021. Disponível em: https://www.ufrgs.br/repho/estudante-de-ciencias-sociais-da-ufrgs-2/. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

11 Estudante da área das Ciências Humanas, entrevistada por Felipe Neitzke Nunes e Ricardo Faria Corrêa e Scarpini, em 28/06/2021. Disponível em: https://www.ufrgs.br/repho/estudante-de-cienciashumanas-da-ufrgs/. Acesso em: 17 abr. 2023. [ Links ]

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1Compartilho a coordenação do projeto interinstitucional com Clarissa Sommer Alves (APERS) e Rodrigo de Azevedo Weimer (APERS e UFRGS). No site do projeto - https://www.apers.rs.gov.br/documentando-covid19-rs -, estão disponíveis entrevistas feitas em diversas instituições.

2A exploração inicial das fontes contou com a colaboração de bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Iniciação Científica/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PIBIC/CNPq), Natália Velho Noronha e Henrique Ribeiro Lemos (BIC Ações Afirmativas UFRGS), a quem deixo o meu agradecimento. A equipe de pesquisa do projeto Documentando a experiência da covid-19 no Rio Grande do Sul na UFRGS foi composta por mais de duas dezenas de pessoas entre agosto de 2020 e o presente momento. A todos/as cujos nomes serão mencionados neste texto e aos\às demais participantes (como componentes da equipe ou como pessoas entrevistadas), o reconhecimento do valor do trabalho colaborativo realizado. Agradeço também pelas leituras prévias e comentários críticos a este texto feitas por Cláudia Mauch, Leda Bertamoni, Manuela Perondi Pavoni, Regina Célia Lima Xavier e Rodrigo de Azevedo Weimer.

3O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre sob o número 32862720.6.0000.5335.

4Para acesso às entrevistas mencionadas neste artigo e às demais que fazem parte do projeto, consultar o site do Repositório de Entrevistas de História Oral (REPHO/UFRGS) - www.ufrgs.br/repho, ou o seu canal no YouTube - https://www.youtube.com/@historiaoralcovid19-rephou51. O registro de autorização para a publicação e o uso das entrevistas consta no início e no final de cada gravação.

5Não posso deixar de registrar que a noção de “evento global” merece questionamento, considerando que a catástrofe assumiu/tem assumido dimensões variadas no planeta (MBEMBE; SHREAD, 2021). Recente reportagem no jornal sul21 (VELLEDA, 2023), por sua vez, mostrou que a mortalidade por covid-19 foi maior entre pessoas não brancas. No Rio Grande do Sul, a taxa de mortalidade (a cada 100 mil habitantes) foi de 138 mortes para indígenas, 137,9 óbitos para pretos/as e 81,2 para brancos/as - cerca de 40% menor para o último grupo do que para os demais.

6Para componentes da equipe de pesquisa e pessoas entrevistadas, na primeira vez em que seus nomes são mencionados, foram acrescidos dados de ocupação, idade no momento da entrevista, autodeclaração racial, data da entrevista. Os links para acesso a cada entrevista podem ser encontrados ao final do texto, quando são listadas as fontes.

Recebido: 06 de Abril de 2023; Revisado: 28 de Abril de 2023; Aceito: 01 de Maio de 2023; Publicado: 06 de Junho de 2023

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