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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.19  Ponta Grossa  2024  Epub 14-Out-2024

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.19.23731.098 

Dossiê: As dimensões éticas, estéticas e políticas das pesquisas nos/dos/com os cotidianos: um viva à escola pública!

Aprendizagens em educação nas pesquisas com escolas e docentes: o projeto “Criações curriculares ecológicas”*

Learning in education from research with schools and teachers: the “Ecological curricular creations” project

Aprendizajes en educación en investigaciones con escuelas y docentes: el proyecto “Creaciones Curriculares Ecológicas”

Inês Barbosa de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0003-4101-3919

Graça Regina Franco da Silva Reis** 
http://orcid.org/0000-0002-2420-0985

*Doutora em Educação. Professora da Universidade Estácio de Sá. Cientista do Nosso Estado

**Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Jovem Cientista do Nosso Estado


Resumo

Este texto objetiva apresentar o Projeto de Apoio à Escola Pública, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), intitulado “Criações curriculares ecológicas: formação docente e discente em diálogo”, realizado em uma região de serra do estado do Rio de Janeiro, o qual aponta como múltiplos fazeressaberes circulam nas escolas públicas. Como metodologia, foram utilizadas as narrativas, entendendo-as como forma de conhecer e publicizar as criações curriculares dos praticantes da escola onde se dá o Projeto. O texto marca uma atitude ética, estética e política de compromisso com sujeitos e suas criações curriculares, suas possibilidades efetivas de ação, em busca da superação dessas representações demeritórias e desqualificações em geral das quais a escola pública é vítima. Para isso, traz-se tanto a dimensão teórico-metodológica do campo de estudos do cotidiano e da pesquisa narrativa, quanto a dimensão epistemológica do cotidiano em si.

Palavras-chave: Escola pública; Cotidianos; Narrativa.

Abstract

This text aims to present the Public School Support Project, from the Carlos Chagas Filho Foundation for Research Support of the State of Rio de Janeiro (FAPERJ), titled “Ecological curriculum creations: teacher and student training in dialogue,” carried out in a mountainous region of the state of Rio de Janeiro, Brazil, which highlights how multiple fazeressaberes [doings and knowings] circulate in public schools. As a methodology, narratives were used, understanding them as a way to know and publicize the curricular creations of the practitioners at the school where the Project takes place. The text marks an ethical, aesthetic, and political attitude of commitment to individuals and their curricular creations, their effective possibilities for action, in the pursuit of overcoming the demeaning representations and general disqualifications of which public schools are victims. To this end, both the theoretical-methodological dimension of the field of everyday studies and narrative research and the epistemological dimension of everyday life itself are presented

Keywords: Public school; Everyday life; Narrative.

Resumen

Este texto tiene como objetivo presentar el Proyecto de Apoyo a la Escuela Pública, de la Fundación Carlos Chagas Filho de Amparo a la Investigación del Estado de Río de Janeiro (Faperj), titulado “Creaciones curriculares ecológicas: formación docente y discente en diálogo”, realizado en una región montañosa del estado de Río de Janeiro, Brasil, señalando cómo múltiples fazeressaberes [quehaceres y saberes] circulan en las escuelas públicas. Como metodología, fueron utilizadas narrativas, entendiéndolas como forma de conocer y publicitar las creaciones curriculares de los practicantes de la escuela donde se desarrolla el Proyecto. El texto marca una actitud ética, estética y política de compromiso con los sujetos y sus creaciones curriculares, sus posibilidades efectivas de acción, en busca de la superación de estas representaciones denigrantes y descalificaciones en general de las cuales la escuela pública es víctima. Para ello, se trae tanto la dimensión teórico-metodológica del campo de estudios de lo cotidiano y la investigación narrativa, como la dimensión epistemológica de lo cotidiano en sí.

Palabras clave: Escuela pública; Cotidianos; Narrativa.

Introdução

O primeiro grande ensinamento que recebi4 (eu, Inês) de Nilda (Alves), nos idos de 1995, quando ingressei como professora na Universidade, dizia respeito à escola pública. Não me lembro exatamente onde nem quando, mas Nilda questionava as estatísticas - ou mais precisamente o uso que delas faziam os críticos da escola pública - que apontavam como grave problema da escola pública o fato de 50% dos estudantes não aprenderem a ler no 1º ano. Naquela época, ainda não havia ciclos nem a compreensão de que o processo de alfabetização pode durar mais de um ano letivo.

Ao me colocar a par de seu questionamento, Nilda dizia mais ou menos assim: “Não quero pensar por que 50% dos alunos não aprendem a ler, o que me interessa é saber COMO as professoras fazem para que 50% aprendam a ler”. Foi como uma lufada de ar na minha vida profissional e acadêmica. Acabara de deixar a escola pública, onde era professora da 1ª à 4ª série do então 1º grau, e ingressar na Universidade como docente. Começava a perceber certo excesso de rigor nas avaliações do trabalho feito nas escolas públicas, que me causavam a sensação de que “a Universidade odiava a escola”, termo que usava eventualmente, com tristeza e algo estupefata.

Perceber na Universidade uma crítica feroz, e nem sempre justa, ao trabalho realizado nas escolas públicas, depois de ouvir a sábia fala de Nilda, me ajudou a me situar como pesquisadora, já que vinha da docência na escola pública e sabia bastante bem os esforços que desprendíamos para levar nossos pequenos alunos - a maioria absoluta entre seis e onze anos de idade - à aprendizagem dos conteúdos e do coleguismo, do comportamento social e ético que buscávamos ensinar dia após dia. Como conhecedora e praticantepensante (Oliveira, 2012) dessa escola tão maltratada pelo Estado, pela mídia e por boa parte dos meus colegas da Universidade, pela qual nutria enorme apreço, me chateava e perturbava. Era preciso defendê-la! Tinha atuado nela por mais de dez anos, nos quais aprendi muito, o suficiente para reconhecer a qualidade do trabalho de muitas colegas, e a busca coletiva dessa qualidade na instituição. Passei, então, a pesquisar seus cotidianos, em parceria com Nilda e posteriormente por conta própria, mas sempre fundamentada nessa ideia de grande relevância política, pedagógica e social.

Ainda hoje esse “clique” causado pela fala de Nilda ressoa em mim, quando converso com estudantes recém-chegados aos cursos nos quais atuo, quando enfrento colegas que desqualificam a escola pública sem dar a ela nenhuma chance de defesa, quando ouço críticas a docentes da Educação Básica baseadas no imaginário social - que a Universidade muitas vezes realimenta - de que a escola pública é lócus de não saber e de incompetência. Alexandra e Allan (Garcia; Rodrigues, 2019) - também pesquisadores nos/dos/com os cotidianos - abordam essa questão apontando as “representações demeritórias” da escola como uma questão que pode e deve ser tratada pela formação docente, evitando, por esse meio, que os licenciandos repitam essa crítica (a eles mesmos) sem questionar seu conteúdo real e sem interrogar a própria escola e suas possibilidades de atuar melhor do que atua ou de obter melhores resultados - o que está longe de ser a mesma coisa.

Foi assim que, atuando como pesquisadora nos/dos/com os cotidianos, por quase 30 anos, vim realizando pesquisas e produzindo textos a partir delas, em defesa da escola pública, daquilo que ela produz, tanto no campo dos conhecimentos formais quanto no da formação humana, apesar de tudo e de todos: das políticas pífias, da falta geral de verbas, dos salários acintosamente baixos, das críticas injustas e generalistas formuladas, com frequência, sem base concreta e sem conhecimento das múltiplas realidades escolares, entre outras questões pontuais. Este texto tem por objetivo mostrar um pouco desses resultados, tanto na dimensão teórico-metodológica do campo de estudos do cotidiano e da pesquisa narrativa, quanto na dimensão epistemológica do cotidiano em si ou na dimensão empírica das aprendizagens proporcionadas por observações e acesso a narrativas docentes a respeito da criação curricular cotidiana nas escolas (Oliveira, 2012).

Recentemente, publiquei um texto que louvava e aplaudia docentes que haviam atuado durante a pandemia, com suas múltiplas “invenções cotidianas” (Certeau, 1994), evitando o apagão na educação em 2020 (ver Oliveira, 2023). Baseei-me em narrativas publicadas em um jornal e as estudei a partir dos referenciais teóricos dos estudos do cotidiano. Antes, durante e depois desse triste e doloroso período, as iniciativas, criações, ações e narrativas feitas por docentes em escolas públicas espalhadas por todo o país já vinham sendo objeto/sujeito do trabalho que faço, sempre na perspectiva de valorização dessas escolas, profissionais e estudantes, que, embora atuem arduamente em prol da qualidade da escola pública, seguem sendo acusados de incapazes ou adjetivações ainda piores em muitos fóruns.

A ideia deste texto, em consonância com o desafio dos organizadores, é mostrar como múltiplos fazeressaberes circulam nas escolas públicas. É dar um “viva à escola pública”, para além do efeito retórico da frase. É uma atitude ética, estética e política de compromisso com sujeitos e suas criações curriculares, suas possibilidades efetivas de ação, em busca da superação dessas representações demeritórias e desqualificações em geral das quais a escola pública é vítima.

As pesquisas nos/dos/com os cotidianos e suas aprendizagens

Aprender com os cotidianos e com as pesquisas neles e com eles realizadas requer compromissos éticos e políticos com as escolas e seus praticantespensantes (Oliveira, 2012). Envolve, também, uma dimensão estética, no sentido amplo de “aesthesis”, que diz respeito a tudo que envolve sensações e sentidos, na medida em que nossas vivências cotidianas, e tudo aquilo que perpassa as aprendizagens que efetivamos, é habitado por nossa sensibilidade, por aquilo que transcende a cognição e o campo ético-político das relações sociais, penetrando nas nossas vidas pelo caminho do sensível - ou da racionalidade estético-expressiva, como preferem alguns.

Por essa razão, quando mergulhamos (Alves, 2008) em um cotidiano escolar - cuidando sempre para não autonomizá-lo em relação à estrutura social que o torna possível -, buscamos observar e sentirpensar (Assman, 1996) a realidade em sua complexidade, recusando a ideia de análise, que, embora amplamente usada em diferentes modos e tipos de pesquisa, pressupõe uma aproximação e abordagem dessas realidades com o intuito de separá-la em partes mais simples - e, portanto, supostamente mais compreensíveis - para posterior (re)junção. Em outras palavras, desfaz-se a complexidade e as imbricadas relações entre as partes para, depois, buscar tratar a realidade como junção das partes, compreendidas uma a uma e separadamente.

Ao abordar os cotidianos, acessamos dimensões da vida dentrofora (Alves, 2010) das escolas para além daquilo que nelas é quantificável, previsível ou pré-definido formalmente. A dinamicidade e a complexidade da vida, com seus imprevistos, incidentes, nuances e possibilidades que transcendem as normas e as oficialidades e, por isso, só podem ser captadas pelas lentes atentas e apropriadas a eventos considerados insignificantes, a enredamentos imprevisíveis entre “partes” de um todo, ao todo presente nas partes (Morin, 2003), à complexidade própria de cada realidade social-escolar, com seus praticantespensantes, criadores de currículos e de conhecimentos, inventores de possibilidades que enriquecem a vida cotidiana e permitem perceber a vida para além da norma, como afirma Certeau (1994).

É essa a base sobre a qual nossas pesquisas se desenvolvem, seja diretamente, por meio de observações - sempre participantes já que nossa entrada nas escolas modifica seu cotidiano -, seja por meio de narrativas de seus sujeitos, que nos contam histórias de seus fazeressaberes em ação, de suas angústias, alegrias e seus desejos, de suas possibilidades e dificuldades. Trata-se, portanto, de um método de pesquisa que não se fecha em uma metodologia obrigatória (Morin, 2003), mas que opera como o leme de nossa nau que navega entre múltiplas possibilidades de aprender com os cotidianos. Silva (2005) nos ajuda a compreender o porquê de termos de estar atentos aos riscos que trazem as metodologias fechadas, esclarecendo que

[...] as metodologias acabam, não raro, conformando o objeto, substituindo o conteúdo, confirmando o que não foi demonstrado, simulando uma presença completamente ausente. Próteses abstratas podem estabelecer pensamento onde só há especulação; dar substância ao irreal, fomentar a ilusão de verdade, dar segurança em vez da necessária angústia da descoberta (Silva, 2005, p. 159).

Seguindo o raciocínio do autor, nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, estamos sempre em postura de suspeita a respeito de confirmações fáceis, advindas do excessivo engessamento metodológico e teórico - daí a necessidade de subvertermos a ideia de que a teoria escolhida a priori é o único guia necessário à pesquisa, e de “virar de ponta cabeça” (Alves, 2008) essa ideia.

Por vezes, escolhe-se a metodologia que permitirá alcançar o fim determinado previamente. Há nisso algo razoável e algo contraditório. O razoável consiste em buscar os meios que possibilitem alcançar o fim. O contraditório está em fechar a porta ao desconhecido, quando a essência da pesquisa está no imprevisível (Silva, 2005, p. 159).

Aceitar a imprevisibilidade dos resultados da pesquisa é condição para efetivação de uma “boa” pesquisa nos/dos com os cotidianos, já que os próprios cotidianos pesquisados são imprevisíveis, diferentemente daquilo que a modernidade procurou nos impor como ideia de pesquisa. Trata-se, como já dissemos, de espaçotempo de permanente criação e reinvenção, de negociação de sentidos em torno de fazeressaberes, valores e emoções. Ainda como elemento básico das pesquisas nos/dos/com os cotidianos, é “[...] importante ressaltar aqui a necessária vigilância aos preconceitos e às buscas por práticas que espera-se encontrar, em virtude do supostamente já sabido sobre a escola” (Oliveira, 2007, p 59). Entendemos que essas negociações de sentidos e reinvenções permanentes dos fazeressaberes, valores e emoções

[...] acima referidos é possível em virtude dos ‘usos’ que os praticantes fazem dos produtos e regras oferecidos para o seu consumo (Certeau, 1994). Portanto, a ampliação da compreensão sobre este dinamismo das realidades cotidianas exige estranhar o que parece familiar para poder ‘mergulhar’ (Alves, 2001) nessa dinâmica (Oliveira, 2007, p. 59).

As narrativas como forma de adentrar os cotidianos escolares

Conheci a Inês (Barbosa de Oliveira) no ano de 2005, eu era professora da escola básica há pouco mais de 20 anos. Com ela aprendi o que já sabia, mas que era afirmado como impossibilidade pela universidade: as professoras da escola produziam conhecimentos, subvertiam os documentos curriculares e criavam currículos cotidianamente.

Inês me levou a conhecer uma outra universidade, repleta de sujeitos que valorizavam as professoras e que mergulhavam (Alves, 2008) nos cotidianos das escolas. Com ela me (re)descobri uma professora mais orgulhosa daquilo que fazia. Com esse (re)conhecimento, voltei aos bancos da universidade e me dediquei a investigar os conhecimentos e currículos criados nas escolas e na formação de professores. Para isso, mergulhei com todos os meus sentidos na pesquisa narrativa. Ouvir professoras era meu objetivo.

É nessa perspectiva de pensar a produção de conhecimentos a partir de narrativas docentes que tenho buscado exercitar o não desperdício das experiências (Santos, 2000). Desejo apontar que a história das escolas não pode ser contada de uma única forma, pois ela é plural, formada por diferentes maneiras de olharsentirpensar. Segundo Adichie (2019, p. 26), “[...] a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que a história se torne a única história”. Saindo do lugar da história única, busco as narrativas docentes na perspectiva de multiplicar e desinvisibilizar as diferentes experiências singularessociais (Reis, 2022) que acontecem todos os dias nas escolas. Esse parece um caminho para a revalorização dessas experiências que, a partir do seu compartilhamento, podem ser ampliadas e tornadas concretas como projeto de presente. Conforme Reis (2016, p. 1341): “Gallo (2003, p. 71), a partir de seus estudos sobre Negri, afirma que ‘mais importante do que anunciar o futuro, parece ser produzir cotidianamente o presente para possibilitar o futuro’”.

É com saberes docentes não reconhecidos que escolhi trabalhar. A ciência, como hegemonicamente constituída, não admite que as histórias narradas por sujeitos de vida comum sejam concebidas como fontes de pesquisa. Por isso, Bourdieu (2005, p. 74) diz que as pesquisas que envolvem as narrativas de histórias de vida são “[...] uma dessas noções do senso comum que entraram de contrabando no universo da ciência”. Esses contrabandos são como as táticas de Certeau (1994), que adentram o campo do inimigo, se aproveitando das ocasiões e trazendo à tona a importância de pensar a existência de outras formas de produzir conhecimento ao sair da matriz hegemônica moderna.

A pesquisa com narrativas de histórias vividas nos parece carregada de possibilidades emancipatórias. Temos aprendido que ao olharmos para nós mesmas/os e compreendermos que nossas aprendizagens estão relacionadas às nossas redes tecidas na experiência pessoal (singular) e coletiva (social), podemos nos abrir à possibilidade de perceber o quanto as histórias dos outros são também tecidas por meio dos seus vividos, possibilitando um conviver na diferença sem hierarquização (Reis, 2023, p. 7).

Portanto, pensar as escolas por meio das narrativas docentes e discentes nos ajuda a refletir sobre o que Alberti (2004, p. 26) chama de “fascínio do vivido”, que seria uma “[...] recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu”. O que Alberti chama de fascínio é a experiência singular, pois “[...] o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais” (Portelli, 1997, p. 16).

No entanto, a memória, para além de sua singularidade, é tecida socialmente, pois nossas experiências são elaboradas a partir das redes e contextos que nos constituem. Nesse sentido, afirmamos que as memórias são experienciadas socialmente de forma singular, ou seja, são singularessociais.

Narrar, etimologicamente, significa “fazer conhecer”, reunindo e organizando os acontecimentos. Ao narrarmos experiências singularessociais, temos a possibilidade de ampliá-las agora, no presente, desafiando a ideia de tempo como algo linear.

Segundo Martins (2021, p. 42), a noção de tempo espiralar é a de “[...] um tempo que não elide as cronologias, mas que as subverte”. Com Bispo dos Santos (2023), aprendemos que o tempo é presente, só existindo o início o meio e o início, confirmando sua circularidade. Ricoeur (1994) nos presenteia com a ideia de tríplice presente: o presente do passado (memória), o presente do futuro (espera) e o presente do presente (percepção/visão). Essa concepção de tempo nos ajuda a compreender o processo narrativo pois, no presente, narramos as memórias já vividas no passado, tecendo possibilidades de futuro mais concretas.

A fim de investir nessas possibilidades de futuro mais concretas a partir desse tempo presente que é circular, temos trabalhado com a ecologia de saberes (Santos, 2019), a qual se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos que podem e devem conviver sem hierarquização apriorística de uns em relação aos outros. A copresença entre esses conhecimentos significa que todas as formas de conhecer e conviver no mundo podem ser válidas. Para isso, é necessário reconhecer a pluralidade de vivências e (com)vivências de cada um a partir de suas singularidades por meio das narrativas.

Entrando juntas na escola para compartilhar saberesfazeres e aprendizagens

A questão da ecologia de saberes e sua necessidade para a justiça social e para a democracia dialogam com o campo da sustentabilidade social, que se constitui como busca de melhoria da qualidade de vida da população e se inclui, ainda, no campo de estudos do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, é importante ressaltar que a ecologização das relações entre diferentes conhecimentos envolve a reflexão sobre a ecologia em sentido amplo e a compreensão do debate em torno da sustentabilidade em uma perspectiva relacionada aos processos educativos e aos currículos.

Compreendendo essas questões e buscando enfrentar os problemas colocados, o projeto Criações curriculares ecológicas: formação docente e discente em diálogo foi formulado buscando desenvolver uma ação educativa voltada a oferecer aos estudantes de uma escola pública da Rede Municipal de Itatiaia, Rio de Janeiro, oportunidades de aprendizagem transdisciplinar que permita, simultaneamente, ampliar a interlocução entre diferentes conhecimentos e promover uma aprendizagem mais sólida em torno das questões ambientais e sociais, sempre a partir da compreensão do potencial das pesquisas nos/dos/com os cotidianos de dialogar com os sujeitos das escolas, suas práticas e seus conhecimentos, no contexto do potencial das narrativas para o desenvolvimento de novos conhecimentos e a consequente “melhoria do ensino nas escolas públicas”5. Entendemos que essa ação pode levar à ampliação das relações ecológicas entre sujeitos e conhecimentos, na qual se reconheçam interdependências e complementariedades entre eles, essenciais para a tessitura da justiça social e da democracia.

O projeto visa, também, a oportunizar aos docentes da escola envolvida e aos estudantes bolsistas, por meio de suas próprias narrativas e diálogos sobre seus fazeres cotidianos, desenvolver processos de autoformação coletiva (Reis; Oliveira, 2018), nos quais o desenvolvimento de ações do projeto - interdisciplinares e voltadas à formação cidadã dos estudantes - se alia àquilo que dialoga com essas narrativas e objetivos nos fazeressaberes cotidianos dos docentes da escola.

Assim, mas não sem dificuldades, esse Projeto vem se desenvolvendo, desde o início de 2023, na Escola Municipal Joaquim Miguel dos Santos. Depois de inúmeros contratempos com as verbas, a adesão dos colegas docentes e discentes e com a gestão interna, iniciamos as atividades contando com a participação de quatro docentes e quatro bolsistas.

O trabalho vem sendo realizado, as ações e narrativas produzidas estão organizadas, registradas e transcritas. Além disso, alguns resultados relevantes vêm sendo observados, tanto na disposição de outros colegas e do pessoal administrativo para participar do Projeto, quanto nos estudantes, docentes e bolsistas envolvidos. Esse trabalho é uma questão de grande relevância, já que deve permitir a formação ampliada da desejada consciência ambiental e social dos participantes e do coletivo da escola, além de gerar maior potencial de ação, considerando a maior participação dos sujeitos da escola nas atividades.

De modo mais específico, algumas ações propostas vêm produzindo resultados relevantes, também do ponto de vista da autoformação coletiva docente e da criação de currículos crescentemente integrados, tanto entre níveis de escolarização distintos como entre disciplinas, favorecendo a criação de um ambiente socialmente saudável, porque solidário e mais democrático. Hierarquias perdem legitimidade quando cada um, na especificidade de seus saberes e de suas possibilidades, é valorizado e se percebe relevante para a comunidade. Isso se torna possível na medida em que conhecimentos formais dos conteúdos escolares são complementados na ação, por outros conhecimentos, atendendo àquilo que preconiza a ecologia de saberes. Conhecimentos da região, das plantas típicas e do clima, processos de plantação e cuidado com as plantas não vieram das salas de aula, mas dos responsáveis, dos funcionários e de membros da comunidade, enquanto os docentes, com as turmas, buscavam relacionar esses saberes com os conteúdos formais.

Isso vem ocorrendo, sobretudo, em algumas turmas dos anos finais do Ensino Fundamental com o professor de Ciências Naturais (Eduardo)6, sendo o protagonista daquela que é, até o momento, a principal ação do Projeto: a criação e gestão da horta escolar. As contribuições associadas, tanto em ações voltadas à consciência ambiental e ecológica e à sustentabilidade, como a articulação com conteúdos das disciplinas de História (Igor) e Língua Portuguesa (Selene) e o envolvimento de uma turma dos anos iniciais do Ensino Fundamental (Debora), são, segundo o grupo docente, o carro chefe do Projeto. Algumas narrativas, apresentadas a seguir, contribuem para perceber o que vem sendo feito e a contribuição dessas ações à educação de qualidade associada aos princípios da sustentabilidade e da emancipação sociais, por meio de práticas que promovem a ecologia de saberes (Santos, 2019).

Junto a esses docentes, temos as narrativas dos bolsistas de Iniciação Científica que acompanharam bem diretamente o cotidiano da escola, narrando semanalmente suas experiências com as turmas. Nessa perspectiva, compreendemos que todos aprendem com todos, em um processo coletivo de criação de conhecimento e de currículos. Tudo isso são formas, mesmo que bastante locais e de pouco alcance, de promover a educação de qualidade social, conscientizadora e dialógica (Freire, 2017).

O que dizem os cotidianos da Escola Municipal Joaquim Miguel dos Santos

Aprender alguma coisa mesmo na prática, e depois refletir essa prática, que é a questão do nosso projeto, na nossa área, a questão da terra, da mata, dos rios e do alimento saudável. Eu acho que essa prática pode trazer uma grandeza ao entender a natureza das coisas, observar o ciclo da questão dos orgânicos, né ?! Tudo isso para aproveitar e transformar esse alimento e ver eles fazendo a tarefas de campo (Professor Eduardo).

Trazemos, aqui, como experiência vivida, várias histórias narradas pelos professores e bolsistas do projeto desenvolvido. Cada uma delas nos conta uma experiência que é singular, mas que conta do que é vivido coletivamente no contexto da Escola Municipal Joaquim Miguel dos Santos durante o percurso que atravessamos juntos.

A Professora Selene, de Língua Portuguesa, escreve uma narrativa contando uma de suas atividades realizada a partir da proposta do Projeto:

Os estudantes de 7º e 8º ano têm participado do cuidado com a sala verde e a horta plantando flores, ervas medicinais e hortaliças, entretanto muitos não as conheciam. Buscando motivar o consumo e o conhecimento dessas hortaliças, separei algumas dessas “verduras” entre grupos de alunos, que desenvolveram um seminário contendo: imagem da planta, receitas comuns com a hortaliça em estudo e propriedades/benefícios. Cada grupo preparou uma degustação da hortaliça sorteada, para que as turmas envolvidas tivessem uma experiência real. Também foram confeccionadas placas motivacionais pelos grupos, para enfeitar nossa sala verde.

Essa narrativa nos faz refletir sobre a forma que a professora encontra para trazer o tema principal do Projeto para a disciplina que ministra. Selene continua:

A degustação foi oferecida ao final de cada apresentação. Foram servidas saladinhas de azedinha no palito, pastel de queijo com cebolinha, omelete de peixinho, empadão de salsinha, chá de erva cidreira, pastinha de rúcula com torradinhas, queijo com orégano e suco de abacaxi com hortelã-pimenta. As pesquisas realizadas pelos alunos serão pouco a pouco incorporadas no nosso Jornal-mural, tornando as hortaliças cada vez mais próximas dos alunos e funcionários da nossa escola e o trabalho de pesquisa beneficiará a todos. Essa proposta, além de desvendar propriedades e benefícios dessas plantas, também estimulou o consumo das hortaliças e a quebra de expectativas, envolvendo avós, pais, tios, irmãos no processo de execução dos trabalhos. E ainda rompendo a barreira da “má fama” de algumas verduras, visto que alguns alunos, que não gostavam de rúcula e azedinha, acabaram gostando de consumi-las com a “roupagem” de pastinha e salada no palito. Provar uma nova verdura foi uma aventura enriquecedora e divertida para todos nós e mesmo que alguns trabalhos tenham tido problemas ortográficos ou foram pouco elaborados, todos os grupos entregaram as atividades e se esforçaram para realizar as etapas solicitadas mostrando empenho e dedicação raros.

Sua preocupação com a ortografia ou a pouca elaboração de alguns trabalhos aparece como uma questão importante, mas a professora também indica o quanto a atividade envolveu as famílias e trouxe um envolvimento que mobilizou todas os estudantes. Desse modo, Selene olha para a atividade buscando compreender o que nela mobilizou e afetou os estudantes.

A Professora Débora, que trabalha com as séries iniciais, narra diferentes atividades realizadas e do quanto o Coronavírus traz para os estudantes a ideia de que todos os microrganismos são prejudiciais. Ela aproveita o tema, surgido do desejo das crianças, e desenvolve o conteúdo que está presente no currículo escolar:

No mês de março estudamos no conteúdo de ciências sobre os microrganismos, fizemos debate/roda de conversa sobre o que eles já sabiam sobre o tema. O principal assunto que está no imaginário e vivência deles é o Coronavírus, cada um quis recontar e relembrar a pandemia e como foi para cada um. Fizemos uma leitura sobre os vírus, que são estudados junto, mas não são realmente considerados microrganismos. A ideia deles é de os microrganismos são sempre prejudiciais. Então parte desse estudo foi direcionada para a importância desses seres microscópicos. fizemos uma ligação da importância dos microrganismos para o solo, no processo de decomposição da matéria orgânica. Também assistimos um vídeo sobre o assunto (Professora Débora).

Em um segundo momento, ela aproveita a sala verde que já existe na escola para o reconhecimento dos temperos que já faziam parte do espaço da escola e aproveita para que discutam sobre a presença dos microrganismos que fazem parte e são fundamentais para esse ambiente.

Fomos na parte da entrada da escola, que chamamos de sala verde. Lá temos vários temperos e ervas plantadas, que estamos começando a estudar. Fizemos o levantamento das ervas que já temos plantadas, quais delas cada um já conhece ou tem em casa. Lá observamos o solo e refletimos sobre a presença dos microrganismos naquele local. Plantamos juntos naquela área algumas mudinhas de couve para observação. Fomos algumas vezes aguar e observar. Nessas saídas da sala de aula também conversamos sobre o ambiente ao redor da escola, do nosso privilégio de morar nesse lugar. Ainda pudemos nessas saídas observar insetos e pássaros e comer amoras e pitangas direto do pé. Cada um pode contar um pouco sobre as plantas e árvores que tem em casa ou próximo e como vivenciam essa ligação com a natureza. Vimos uma lagarta cachorrinho, um tipo bem peculiar, e fomos pesquisar sobre ela. Nesses meses, aqui na nossa região, é época do pinhão, fruto da Araucária. Pudemos catar alguns pinhões no entorno da escola e conversar sobre o valor desse fruto e como ele tem gerado renda para as pessoas. Também aproveitamos e fizemos uma receita de beijinho de pinhão. Os alunos gostaram bastante da vivência e levaram a receita para casa (Professora Débora).

Em seguida narra também sobre a elaboração do jornal mural que confecciona coletivamente com os estudantes e com a professora Selene:

Paralelo [sic] a isso, eu e a professora Selene começamos a desenvolver um jornal mural no saguão da escola, onde colocamos notícias dos acontecimentos na escola, textos criados por alunos ou turmas. Está sendo uma experiência bem rica de contato com os gêneros textuais e divulgação. Observamos que os alunos das turmas trabalhadas e alunos das outras turmas se interessaram pelos textos e imagens expostos. Nesse meio tempo, em parceria com os guardas-parques do Parque Estadual da Pedra Selada, pudemos revitalizar o espaço da horta e começar o processo da compostagem dos resíduos orgânicos (Professora Débora).

Ao narrar as atividades realizadas, a docente vai contando sobre os diferentes conteúdos estudados e a parceria que realizou com a professora de Língua Portuguesa. Essa nos parece uma integração bastante importante, pois sabemos que, ao trabalhar em parceria, temos muito mais possibilidades de modificar aquilo que pensamos inicialmente. Uma sugere e outra complementa, criando juntas formas de trabalhar que ampliam o repertório dos estudantes, o reconhecimento entre eles e a possibilidade de turmas de diferentes idades se integrarem, compreendendo que, mesmo com idades diferentes, todos possuem saberes que podem ser compartilhados entre eles.

No mês de maio então, tivemos um foco mais específico sobre o estudo dos resíduos, no ambiente escolar, em casa e no planeta como um todo. Assistimos o filme Wall-e e lemos textos e livros sobre os resíduos e pudemos refletir e discutir um pouco mais sobre esse tema. Conversamos um pouco sobre consumo e os 5 Rs7. Estudamos em geografia sobre os principais problemas ambientais do Brasil. Para entender um pouco mais sobre o assunto estudamos sobre as diferenças entre lixão, aterro controlado e aterro sanitário. E fizemos junto com a professora Selene e 8º ano uma experiência da decomposição dos resíduos. Pegamos dois vidros grandes com terra e colocamos nas bordas diferentes tipos de resíduos: cascas de legumes, pedaços de frutas, papel, papelão, plástico e etc. E estamos observando semana a semana as mudanças ocorridas. Os alunos se interessam e contam bastante sobre suas vivências, como moramos em área rural, a maioria das famílias separam os resíduos orgânicos, mas dessa turma nenhuma faz a separação para a reciclagem. Isso se deve um pouco pelo fato de não termos a coleta seletiva instituída nos bairros de Maringá, Maromba e vales próximos. O que também prejudica a separação na nossa escola. Alguns moradores conseguiram organizar algumas coletas por conta própria e temos destinado uma parte dos recicláveis da escola nesse caminhão. Focamos então em organizar a separação dos resíduos orgânicos da escola e como dar vazão para fazer a compostagem. Para entender mais sobre o assunto estudamos alguns modelos de composteiras com um material disponível na biblioteca da escola (Professora Débora).

O Professor Eduardo, ao realizar uma atividade fora da sala de aula, conta:

Eu sempre curti sair de sala de aula, claro, com um pouco do conhecimento científico, né? Que é, como trabalhar a terra de maneira saudável? Orgânica? Para que não seja contaminada, né? É através do conhecimento científico associado ao local que já existe, né? Eu sempre quis sair de sala de aula, essa questão da mania freiriana, que a gente ensina e aprende o tempo todo. Eu escuto deles, a gente filosofa. Assim a gente vai além do que, do preto e o branco, do preto, branco. Tem vários tons de cinza nesse meio aí que a gente trabalha. Mas pedagogicamente, a gente tem o preto e branco sim, sabe? A gente é feito de caixinhas.

Sobre os recursos do Projeto, ele complementa:

Dos recursos que a gente teve com o projeto, também tivemos recurso material que é extremamente importante, vocês já viram alguns materiais de ciências que a gente usou hoje, um microscópio, ele traz um ganho e eles gostam, é uma novidade e eles estão vendo de fato que existe um ser vivo em uma gotinha d’água (Professor Eduardo).

O Professor Igor, em uma das conversas que teve com um dos bolsistas de iniciação científica, reflete sobre o que acontece na região hoje:

O bolsista comenta: Muito interessante, tipo a ideia que você teve de fundir os conteúdos. A história da alimentação, para poder fazer esse concatenamento, certo? Essa interdisciplinaridade com a horta, né?

O professor segue:

‘Uhum’.

A composteira. E poder ensinar os alunos o significado de uma coisa que realmente tem significado, né? Que é comida!

Eu mesmo não tive isso na infância, embora a gente more em uma zona rural, aqui a produção já não é mais voltada à agricultura, né? É uma produção voltada ao turismo.

Então, tem poucos núcleos que plantam alguma coisa aqui. Mas os meus avós viviam essencialmente do que plantavam. Então eu tenho lembrança da infância, de ir lá ajudar a colher milho. Lembranças espaçadas assim... de ter algum contato com isso. E já na adolescência, eu conheci um agricultor e comecei a ajudar ele um pouco, sabe? Participar de vez em quando com ele de um plantio, de uma colheita. E durante a pandemia me veio essa questão. Você saber plantar algo pode te livrar de uma coisa mais terrível que é a fome, né? Que o sistema econômico, tudo, pode declinar, sabe? A gente não sabe quando, mas pode entrar em colapso de forma muito mais grave do que foi por exemplo durante a pandemia. Então, embora esse não seja o motor econômico daqui. Tem que ter alguns questionamentos. “Não, isso aqui não dá dinheiro”, mas não é pra dar dinheiro, é para a pessoa ter um conhecimento. Se algo lhe acontecer, se ele tiver um pedaço de terra, saber plantar alguma coisa (Professor Eduardo).

Temos ainda muitas narrativas dos bolsistas8 que participaram dessa jornada com os professores. Para isso, criaram uma página do Instagram9 onde postavam algumas atividades que foram muito marcantes para eles. Trazemos aqui algumas postagens que nos mostram que, na relação estudantes da Educação Básica, estudantes de licenciatura e docentes, todos podem aprender. Ou como diz o Professor Eduardo em sua narrativa que lemos acima: “mania freiriana, que a gente ensina e aprende o tempo todo”.

A primeira postagem que trazemos está relacionada ao que a Professora Selene conta acima, mas agora pela voz da bolsista Gabriela:

Juntamente com a professora Selene Guimarães nossa pesquisadora Gabriela Lima (estudante de Licenciatura em Ciências Biológicas), conduziu os alunos do oitavo ano para identificar algumas plantas da Sala Verde, escrevendo em placas os nomes das plantas da forma como conheciam. Além disso, plantaram mudas de onze horas, como uma forma de acrescentar mais vida ao espaço. Observaram o local e debateram sobre a Sala Verde e suas possibilidades de revitalização. Com isso, a professora propôs que a turma, em grupos, escolhesse alguma planta presente na escola para pesquisar, estudar e compartilhar as informações encontradas com o quinto ano em formato de seminário.

Fonte: Extraída do Instagram10. Arquivo das autoras.

Figura 1 Sala verde 

Gabriela narra:

No dia 20 de outubro, juntamente com a professora Selene Guimarães, a nossa pesquisadora Gabriela Lima realizou atividades na horta da escola com os alunos das turmas do 8° e 9° anos. Ela conta: De forma a aproximar ainda mais os alunos da horta, trabalhamos dois textos sobre ‘as três irmãs’: milho, feijão e abóbora. Um deles aborda sobre como essas três plantas juntas são cooperativas na plantação, uma apoiando o crescimento da outra, cada uma com suas características e necessidades e todas se ajudando. Além da relação biológica de suas funcionalidades cooperativas e produtivas na horta, o texto também traz como essa cultura (milho, feijão e abóbora), de origem indígena, foi tão importante no desenvolvimento da humanidade, transcendendo para o campo das relações humanas na forma de mitos e lendas. O segundo texto é um mito indígena do povo Iroquoi. Em roda, fizemos a leitura coletiva dos textos e, em seguida, fomos para a horta reconhecer e conversar sobre essas três irmãs que, porventura, estão sendo cultivadas por lá.

De repente, entre uma postagem e outra, encontramos o Salada de Frutas:

Alguém sabe quem é esse carinha aqui?? Esse é o Salada de Frutas!! Nosso espantalho feito com todo amor e carinho pela turma do 7º ano da nossa Escola Municipal Joaquim Miguel dos Santos. Nas fotos vemos um pouquinho da montagem do boneco e a instalação pelos queridos pesquisadores Igor, Eduardo e Leonardo que juntos estão fortalecendo nossas hortas e o aprendizado verde com os alunos!!

Fonte: Extraída do Instagram. Arquivo das autoras.

Figura 2 Salada de Frutas 

E temos, ainda, as saídas com os estudantes:

Neste semestre, visitamos a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis da região, onde os alunos tiveram a oportunidade de ver de perto como funciona a separação dos materiais recicláveis que chegam até a cooperativa. No retorno à escola, atividades importantes ocorreram em sequência: a identificação dos tipos de resíduos no refeitório, a colocação de adesivos em locais de descartes de resíduos; e o estudo dos alimentos e seus nutrientes, assim como o entendimento dos que são naturais e os que são processados.

Fonte: Extraída do Instagram. Arquivo das autoras.

Figura 3 Visita à Associação de Catadores de Materiais Recicláveis 

No dia 31 de outubro, encorajados pelos professores Débora, Selene e Eduardo, conduzimos as turmas do 4° e 8° ano a uma visita em uma produção local, a Fazenda São José em Mauá, onde mora a Patrícia, uma senhora muito sábia e simpática, que recebeu a todos muito bem. Inicialmente, em roda, conversamos um pouco, fizemos perguntas e fomos nos conhecendo. Descobrimos que assim como a Patrícia, há algumas avós de alunos e alunas que também cultivam ervas medicinais, buscando seus poderes curativos. Em seguida, conhecemos a sua oficina de ervas, onde elas são tratadas para serem utilizadas, beneficiadas através da extração de óleos, chás, tinturas... Andamos pelo entorno, conhecemos diversas plantas no ambiente e suas propriedades, como Cavalinha, Artemísia, Lavanda, Alecrim, Erva doce, Melissa, assim como pequenos insetos de diferentes formas e cores. Além disso, conhecemos a horta [Figura 4] e uma plantação incrível de amoras [Figura 5], que colhemos e fizemos um suco maravilhoso. Aprender assim é transformador!

Fonte: Extraídas do Instagram. Arquivo das autoras.

Figura 4 Visita à horta 

Fonte: Extraídas do Instagram. Arquivo das autoras.

Figura 5 Amoras 

Considerações finais: um viva à escola pública

Desfazer preconceitos contra a escola pública e aquilo que nela se faz e se cria é um processo de desobediência que exige a desaprendizagem do preconceito, porque fomos todos formados nele. Afirmar que não se tem preconceito é uma doce ilusão de quem não os enfrenta. Todos temos, inclusive as vítimas. Há mulheres que são machistas, que têm preconceitos contra si próprias. É preciso desaprender, este e muitos outros preconceitos. A pessoa que aprendeu que porque é negra, porque é pobre, porque é homossexual, porque é isso, aquilo ou aquilo outro, que a escola não é para ela, ela só vai ser feliz na escola no dia que ela desaprender e entrar lá no seu lugar que lhe é de direito. Escola é direito e ir à escola para ser mal tratado é cassação do direito. Então tudo isso são coisas que caminham de modo relativamente enredado, mas que precisamos ir mostrando os fios para que possamos entender melhor como chegamos aqui. Boaventura de Sousa Santos (1995) afirma que a função da reflexão sobre o presente é compreender os erros que foram cometidos no passado e que nos trouxeram a essa situação, para não cometer os mesmos erros agora, para o futuro poder ser outro, o que nos exige começar agora a trabalhar para essa melhoria. Para isso, precisamos entender o que foram as decisões para sabermos o que fazer com o resultado delas agora. Trata-se de um movimento de vai e vem que jamais prescindirá da teoria, mas que jamais se esgotará na teoria.

E aqui se inscreve a necessária valorização e reconhecimento do que já se faz e do que se pode fazer na escola pública! A dedicatória do último livro de uma de nós (Oliveira, 2023) diz: “Dedico este livro às professoras do ensino fundamental que tanto fazem para promover a aprendizagens e tanto são desrespeitadas nesse país. Sem elas, nem a educação pública nem esta obra seriam possíveis”. Tratamos de professoras no feminino porque nós somos maioria, sobretudo no Ensino Fundamental.

E aqui a aprendizagem que Nilda me proporcionou (eu, Inês) sobre “como elas fazem para que os alunos aprendam” foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisadora que sou. Como criamos currículo de modo a permitir que uma criança que vive mal, que tem os seus direitos humanos mais básicos negados: sem moradia decente, ou o mínimo de segurança para saber que a polícia não vai atirar nele, comida no prato de manhã, de tarde e de noite, três refeições, uma roupinha para ir à escola, nem que seja um uniforme doado pela Prefeitura, um sapato naturalmente, lápis, borracha, caderno, apontador… Quem acha que isso é óbvio, não sabe nada sobre a escola pública. Os alunos não são assim, muitas vezes eles não chegam uniformizados, eles não vêm alimentados, eles não têm material…

Então, é preciso valorizar a contribuição das professoras e dos professores, das escolas públicas, para a construção da dignidade dessas pessoas. E não só as crianças. Adultos que aprendem a escrever o nome, ensinando a reconhecer uma manchete de jornal, a se sentir melhor. Para aprender a fazer a conta quando vai ao supermercado e não ter de ficar jogando fora mercadoria porque não soube ver a ordem de grandeza do que estava pegando. Cada vez que ajudamos uma pessoa a se sentir melhor consigo mesma, porque mais apta a exercer o seu próprio direito e estar nesse mundo que lhe diz não, que ela não sabe fazer a conta, escrever o nome, etc. e etc., colocamos um grãozinho de areia na possibilidade de melhoria da justiça na nossa sociedade.

Assim, a homenagem que fazemos às professoras e à educação pública é uma homenagem real, de quem vê nesses atos os grãos de areia que podem permitir que a gente não cometa os mesmos erros cometidos anteriormente para poder pensar em um futuro um pouco melhor. Não para nós docentes, não necessariamente para nós docentes, eu acho que na média a gente está muito bem e obrigado, mas para aquelas pessoas a quem o mundo nega direitos, a sociedade nega direitos e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nega direitos.

Daí a necessidade de termos textos, publicações e dossiês como este, que reconheçam e valorizem o que se faz nas escolas públicas, e festejando, com um imenso e denso “VIVA”, todo esse trabalho.

*Projeto financiado pelo edital “Apoio à melhoria das escolas da rede pública sediadas no Estado do Rio de Janeiro - 2021” da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). O Projeto é parte de duas pesquisas registradas na Plataforma Brasil e nos Comitês de Ética de suas respectivas universidades: “Políticaspráticas educacionais no cotidiano e o direito humano à educação: o potencial emancipatório dos currículos praticadospensados” e “Materiais narrativos: artesanias na/da formação docente”.

4Embora este texto tenha sido escrito a quatro mãos, ele se encontra, às vezes, em primeira pessoa do singular, e outras, em primeira pessoa do plural.

5Edital nº 45/2021 da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) - apoio à melhoria das escolas da rede pública sediadas no estado do Rio de Janeiro, 2021.

6Temos autorização dos docentes e dos bolsistas de iniciação científica envolvidos no projeto para usar os seus nomes reais.

7Trata-se das cinco palavras necessárias para a sustentabilidade: repensar, reduzir, recusar, reutilizar e reciclar.

8Luana, Fernanda, Thiago, Gabriela, Tatiana e Leonardo

9Criações Curriculares Ecológicas, disponível em: https://www.instagram.com/educacao.ecologica/?img_index=1. Acesso em: 30 set. 2024.

10As imagens das figuras estão disponíveis em: https://www.instagram.com/educacao.ecologica/. Acesso em: 30 set. 2024.

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Recebido: 30 de Julho de 2024; Revisado: 18 de Setembro de 2024; Aceito: 19 de Setembro de 2024; Publicado: 02 de Outubro de 2024

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