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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.24  Brasília  2018  Epub 15-Ene-2019

https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.21848 

Entrevista

Produção de conhecimento e atitude política: o princípio científico e educativo da pesquisa - Uma entrevista com Pedro Demo

Eunice Andrade de Oliveira Menezes1 
http://orcid.org/10.26512/lc.v24i0.21848

1Pedagoga, com mestrado e doutorado em pela Universidade Estadual do Ceará-UECE. Investiga a relação pesquisa-reflexividade como promotora de mudanças na prática profissional docente. Integra o Programa Observatório da (OBEDUC) na execução do Projeto número 20667, intitulado & quot; Desenvolvimento Profissional Docente e Inovação Pedagógica: estudo exploratório sobre contribuições do PIBID" (CAPES/MEC). Participa do Grupo de Estudos e Pesquisas Autobiográficas-GEPAS, na Universidade Estadual do Ceará-UVA. Tem experiência na área, atuando, sobretudo, na formação de professores. Desenvolve estudos com ênfase nos seguintes temas: formação e desenvolvimento profissional docente, pedagogia universitária, professor reflexivo/professor pesquisador, relação ensino-pesquisa e infantil. Universidade Estadual do Ceará-UECE.


Resumo

Pedro Demo é um eminente educador e autor de referência na pesquisa educacional brasileira. Cursou filosofia na Faculdade dos Franciscanos, em Curitiba (1961-1963), e realizou seu doutoramento em Sociologia na Universidade de Saarbrücken, na Alemanha (1967-1971), recebendo, inclusive, prêmio por sua tese, publicada em alemão, em 1973, pela Editora Anton Hain, Meisenheim. É professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), além de conferencista e autor de inúmeros livros, por exemplo, Pesquisa e Construção do Conhecimento e Metodologia do Conhecimento Científico, lançados pela Editora Tempo Brasileiro, Educar pela Pesquisa e Avaliação Qualitativa, pela Autores Associados, Pesquisa: Princípio Científico e Educativo, pela Cortez, Aprender como autor e Ciência Rebelde, pela Atlas Editora, dentre outros.

Pedro Demo é um eminente educador e autor de referência na pesquisa educacional brasileira. Cursou filosofia na Faculdade dos Franciscanos, em Curitiba (1961-1963), e realizou seu doutoramento em Sociologia na Universidade de Saarbrücken, na Alemanha (1967-1971), recebendo, inclusive, prêmio por sua tese, publicada em alemão, em 1973, pela Editora Anton Hain, Meisenheim. É professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), além de conferencista e autor de inúmeros livros, por exemplo, Pesquisa e Construção do Conhecimento e Metodologia do Conhecimento Científico, lançados pela Editora Tempo Brasileiro, Educar pela Pesquisa e Avaliação Qualitativa, pela Autores Associados, Pesquisa: Princípio Científico e Educativo, pela Cortez, Aprender como autor e Ciência Rebelde, pela Atlas Editora, dentre outros.

É considerado uma referência no campo da metodologia científica e da pesquisa educacional, pois em seu percurso profissional esse autor esteve frequentemente envolvido em questões voltadas à educação básica e superior. Nessa trajetória, trabalhou em várias instâncias da administração pública e assumiu diversas funções no campo educacional, por exemplo, diretor-geral do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira- INEP, entre 1986 e 1987, diretor do Departamento de Macro estratégia da Secretaria de assuntos Estratégicos da Presidência da República, entre 1991 e 1992, Secretário dos Direitos da Cidadania e Justiça, do Ministério da Justiça, entre 1993 e 1994. Também em 1994, passou a trabalhar em tempo integral e em dedicação exclusiva na Universidade de Brasília- UnB, na qual recebeu o título de professor emérito, em 2011.

Em seus escritos e suas exposições, o autor tem criticado fortemente o ensino escolar e o universitário tal como eles têm se sustentado ao longo dos anos, defendendo, por oposição, a pesquisa como princípio científico e educativo, ancoragem teórica que, conforme o autor, instiga à capacidade de autoria e autonomia, desde a Educação Infantil até a formação universitária. Na entrevista que me concedeu, em junho de 2016 em Brasília, o professor Pedro Demo discute conceitos cruciais de sua produção bibliográfica como a capacidade reconstrutiva do conhecimento e da ciência; a vertente política que deve contornar as práticas docentes, tanto na educação básica quanto na superior; as lacunas deixadas na formação acadêmica, em virtude da supremacia do ensino em detrimento da pesquisa, e a formação docente sem deixar de lançar luz sobre as condições atuais de trabalho do professor.

Entrevistadora: Em seu livro, Pesquisa como princípio científico e educativo, o senhor trata da pesquisa como atitude política para além da busca do conhecimento. Eu gostaria que falasse dessa premissa: pesquisa como atitude política.

Pedro Demo: Bem, eu distingo pesquisa entre qualidade formal e qualidade política. No meu livro de metodologia científica, eu desenvolvo isso: os critérios políticos da cientificidade, que são principalmente a intersubjetividade. Quer dizer, o que vale como ciência, no final das contas, é o que os cientistas acham que é, que colocam em critérios mais objetivos, formais, como por exemplo, coerência, consistência, dados empíricos, matematização, formalização, e assim por diante. Vale o que a academia acha que vale. E há o outro lado da importância da ciência, pois ela foi o elemento mais emancipatório para a Europa, embora muito ambíguo, porque ela até hoje está andando sozinha; o resto do mundo está como enfeite, está como ornamento que ficou para trás e destrói os outros conhecimentos. Mas não dá para negar que a Europa se fez completamente de maneira diferente usando ciência e tecnologia. O método científico foi o grande emancipador da Europa. Então o que está aí em jogo é o lado abstrato, formal, analítico do conhecimento, que tem um grande impacto político. Aí eis a questão: Por que pesquisar? Não é só para entender a realidade, é para dominá-la. Por exemplo, se você voltar lá para a questão do Paulo Freire, quando ele fala em ler a realidade, – e você vê isso muito bem no livro Pedagogia da Autonomia – ele coloca duas coisas, como eu faço no meu livro Qualidade formal e qualidade política, mas ele não usa essa terminologia. O lado formal é você analisar a realidade criticamente, vê o que ela oculta, o que está por trás, descobrir que a opressão é montada, é informada, é inventada, historicamente imposta e pode ser mudada. Do outro lado, há a força do conhecimento formal para você se contrapor à opressão. Então para se emancipar você tem que ter um conhecimento que se confronte, conhecimento que derrube. Vamos lembrar Galilei: Como é que Galilei ‘derrubou’ o papa? Foi com Matemática! Não foi com senso comum, com teologia, foi com Matemática. Ou seja, no sistema de mundo copernicano, o Papa trouxe o argumento de autoridade (bíblia, tradição católica, teologia), e Galilei, as ferramentas lógico-experimentais da ciência (argumento de autoridade). Nesse caso, a Matemática aponta para sua emergência como "língua da ciência", que se sustenta por si mesma, sem autoridade de fundo. Nesse sentido, cabe a grande questão que o Paulo Freire nos traz: De que conhecimento um marginalizado precisa para poder se desmarginalizar? Tem de ter o lado político! Há autores que usam outras linguagens, por exemplo, Popkewitz usa pedagogia como efeito de poder. Ele tem na cabeça que muita pedagogia alicia os marginalizados, mas não oferece os instrumentos adequados, porque os entrega ao poder. É preciso, portanto, ter uma metodologia que se contraponha ao poder. A exemplo disso, na teoria crítica de Frankfurt, a necessidade de se destacar o lado político do conhecimento é considerada impreterível. Isto porque o conhecimento é a grande força da emancipação, de mudança de vida, de oportunidades. E o que mais dá oportunidade hoje para as pessoas é saber produzir conhecimento próprio. Porém, isso exige metodologia, exige formalização, Matemática etc. E encerra também todo o ímpeto de se mudar de vida, de “passar para o outro lado”, de ter as mesmas armas para combater. Então tem uma ideia muito mais forte de conhecimento desconstrutivo, confrontador, que é o que Paulo Freire tinha na cabeça: De que é que o pobre precisa? Não é de porcaria, é da melhor coisa que há. Eu acompanhei um pouco dessa discussão quando ele trabalhava com o Darcy Ribeiro, no Rio, no CIEPS, eu fiquei um tempinho lá. Então eles tinham na cabeça, os dois (Que se davam muito bem, por sinal), essa questão: Qual é a escola de que o pobre precisa? É da escola em tempo integral, que eles estavam arrumando. Portanto, o que Paulo Freire queria dizer era o seguinte: É preciso tirar o pobre do atraso em que ele está mergulhado. E, para isso, é necessário dar a ele educação cientificamente de ponta, na linha de pesquisa séria, com capacidade de emancipação, o lado político. É isso.

Entrevistadora: Bom, eu entendo, nesse caso, que para promover a pesquisa, encarando-a como atitude política como o senhor defende, é imperativa uma capacidade: a reflexão crítica. Nesse sentido, o conceito de professor pesquisador, que surgiu no Brasil principalmente por meio do trabalho de Stenhouse, tem aparecido na literatura científica junto a outro conceito: professor reflexivo. Então eu gostaria de saber que associação o senhor faz entre esses dois construtos.

Entrevistadora: Em seu livro Educar pela pesquisa, o senhor traz como pressuposto que o cerne do processo de pesquisa é o questionamento reconstrutivo. Em minha compreensão, esse tipo de questionamento guarda grande relação com o exercício do pensamento reflexivo em nível crítico. Então eu peço que o senhor detalhe o que chama de questionamento reconstrutivo.

Pedro Demo: Bem, primeiro eu acho que tem um pano de fundo muito importante na neurociência e, também, um pouco antes, tem a questão do Maturana, com o conceito de autopoiese: Os seres vivos têm uma dinâmica de auto formação, como por exemplo, o tecido humano; se você corta a pele, ela se “costura”, ela se arruma. Diferente de você montar um avião; você pode montar e desmontar e será a mesma coisa. Mas você não tem como desmontar um ser humano, não é? Então esse princípio é básico da aprendizagem, e que a neurociência clarificou mais ainda. A nossa mente é uma “maquininha” reconstrutiva, ela não é passiva, ela não recebe as coisas, ela muda as coisas, ela concorda com as coisas, ela interpreta. Então na verdade, não vemos as coisas como elas são, nós vemos as coisas como somos. Isso pode ser exagerado, mas, na interpretação de Maturana, a realidade que me interessa, com a qual eu trabalho, é aquela que eu interpreto. A aprendizagem se dá, então, dentro da mente, e não na aula. A aula pode ser mediação. Todo mundo fala de mediação, desde Vygotsky, pelo menos. Paulo Freire também. O professor é um mediador necessário, como o pai é um mediador, por exemplo. Então a aprendizagem é assim, a aprendizagem é uma coisa maravilhosa, mas também é limitada, pois uns aprendem mais, outros aprendem menos, porém, quem tem cabeça mais aberta aprende mais. Então basicamente está aí o desafio de como construir conhecimento: Você não pode repassar conhecimento, conhecimento repassado não é mais conhecimento, é mera informação. Conhecimento, ao contrário, é uma dinâmica e, como dinâmica, é disruptivo, rebelde. Quer dizer, o grande “barato” do conhecimento é sua rebeldia. Por exemplo, Galilei, Paulo Freire, gente rebelde, gente que muda, se auto renova, pois a força do conhecimento é autor- renovação. Por isso também o conhecimento foi aprisionado pelo mercado, porque ele quer ganhar sempre, infelizmente. Mas isso não derruba o meu argumento: A grande força do conhecimento é continuar sempre aberto, sempre duvidando, sempre procurando reconstruir.

Entrevistadora: Professor, em vários estudos seus o senhor critica as universidades que apenas ensinam. Da mesma forma, também censura o pesquisador que considera o ensino como atividade menor. Eu lhe pergunto: Em sua concepção, o que falta à universidade para que ela venha a superar o velho “ranço" da separação entre ensino e pesquisa?

Pedro Demo: Bem, nós sabemos que a universidade reservou a pesquisa para sua elite, que são mestres e doutores. A queixa contra isso, aliás, é universal. Nos Estados Unidos, por exemplo, escutei até uma crítica de um presidente de uma universidade. Ele reclamava de um prêmio Nobel concedido a um determinado pesquisador porque ele é um enorme autor, mas quando vai para a sala de aula, só sabe dar aula e não permite que ninguém pergunte. Então existe um disparate na universidade que eu acho um absurdo: A maioria dos estudantes termina a graduação e não sabe produzir conhecimento; engenheiro não sabe produzir conhecimento, sociólogo não sabe produzir conhecimento. Acho que isso é um assalto, porque a grande habilidade hoje é saber produzir conhecimento, e com isso você vira um profissional que sempre se renova, porque ser profissional hoje é renovar-se constantemente. Em algumas áreas, se descobre isso. Por exemplo, na medicina tem se realizado aulas baseadas em PBL: Problem-Based Learning, ou seja, Medicina baseada em problema. A Universidade Distrital daqui, do Distrito Federal, é assim. No Brasil deve ter talvez umas dez universidades trabalhando nessa perspectiva. Isto porque os professores da escola de Medicina descobriram tranquilamente que um bom médico é necessariamente um bom pesquisador. Bom médico não é, em absoluto, aquele formado em aula, porque aquele copia, segue os outros, não tem autonomia, não sabe propor, não sabe se renovar. E a Medicina tem uma coisa assim, de morte, se a Medicina não se renova, ela morre! Por isso nos lugares mais clarividentes estão abandonando o conceito de ensino. Ensino não é mais função de professor; ensino é função da internet. Esse negócio de repassar conteúdo é da internet, pois está tudo lá! A função do professor é mediação, socrática, maiêutica. Isto é grandioso. Essa é a velha história da boa aprendizagem. Mas a universidade não aceita isso porque a maioria dos professores também não produz. Eu sei que há uma queixa enorme contra o produtivismo, com a qual eu concordo muito, mas a maioria não produz nada. Então eu penso que o professor tem que produzir conhecimento, porque se ele não produzir conhecimento, ele vai dar aula de quê? Professor que não produz não tem como dar aula. Você só pode dar aula do que você produz. Isso eu aprendi na Alemanha, quando eu estudei lá. Sociólogo lá é quem sabe fazer Sociologia; você faz graduação para “fazer” Sociologia, não para ter diploma, não para escutar aula, não para fazer prova. Tem que ser um sociólogo autor.

Entrevistadora: Professor Pedro, historicamente, o professor da Educação Básica tem sido considerado como um sujeito passivo, que tem de aplicar teorias formuladas pelos pesquisadores. A relação desse docente com a universidade, assim como com os organismos que ditam as políticas educacionais, tem sido geralmente uma relação de subserviência. O senhor fala de elaboração própria como exigência do processo de pesquisa. Também defende que a educação pela pesquisa é aquela tipicamente escolar. Nesse sentido, como é que o professor da Educação Básica, retraído, desvalorizado, subserviente e que tem reprimida sua capacidade criativa e intelectual pode educar pela pesquisa?

Pedro Demo: Bem, primeiro, você está tocando em um aspecto que nós não conseguimos resolver nunca no Brasil, que é a condição do professor. Eu lhe trouxe um livrinho que eu publiquei ano passado: Professor: eterno aprendiz. Nele eu tento desenhar a miséria do professor: salário, formação e outras lacunas. Nós não temos um professor de “mão cheia”, um professor bem formado e pesquisador profissional, que produz conhecimento próprio, um sujeito que pode discutir a sua proposta. Isto porque a universidade está completamente longe de formar esse profissional. Vamos tomar o exemplo do licenciando de Matemática para discutir isso. Ele é o que mais me preocupa, pois, além de geralmente não saber Matemática, ele não sabe aprender. Como é, então, que esse futuro professor vai dar aula? Como é que ele vai garantir que o estudante aprenda Matemática, se ele mesmo não a aprende? Mas, eu não posso fazer, evidentemente, uma prolação linear, já que o desempenho do professor não é linearmente ligado ao desempenho do estudante. Os Estados Unidos fazem isso, mas é injusto, porque a aprendizagem é uma coisa da mente do estudante, não depende só do professor. Por isso eu não condeno o professor, já que ele foi vítima da universidade. Ele faz na escola o que fizeram com ele na universidade. Então eu acho que aí há um problema gravíssimo de formação, que eu ainda considero mais grave se se levar em conta o que eu descrevi antes: a universidade sabe o que é aprender bem, sabe que para isso é preciso pesquisa, mas não envolve a pesquisa na formação do licenciado, pelo menos à medida que deveria. Falando do Distrito Federal, porque eu moro aqui, o aprendizado em Matemática, por exemplo, em 1995 foi de 31%, uma cifra pequena também, mas, para hoje seria uma glória, pois hoje esse percentual caiu para 17%. Então para superar essa calamidade, eu proponho cursos e os mantenho, lá em Campo Grande. Eles são baseados na profissão docente e monitoram a profissão, cuidam dela. E sem aula! E isso eu trouxe para aquelas escolas em tempo integral, lá de Campo Grande. As duas que não têm aula estão baseadas na produção do estudante. Então eu acho que nós deveríamos rever isso completamente! Trazendo aqui o exemplo da Finlândia, que não tem nada a ver conosco, naturalmente, mas, o que que eles propõem? Eles exigem que o professor da educação básica tenha o mestrado, quer dizer, o menor nível lá aceito é mestrado, por quê? Porque no mestrado as pessoas passam a pesquisar. Eu estive lá e vi que eles usam muito ensaio; um professor produz, às vezes 10, 15, 20 páginas, cientificamente boas. E com isso eles se preparam para a vida e para o mercado de trabalho. Agora, o que é que está por trás disso? Um bom professor. E mais: A Finlândia terminou com a supervisão escolar porque acha que um professor bem formado tem que ter autonomia, assunto que é uma das teses mais fortes do José Pacheco: professor autônomo. Quando ele é obrigado a seguir teoria, a fazer coisas daqui e dali, não tem liberdade de propor, de inventar suas coisas, claro. Ele se torna um copiador, entendeu? Mas as causas do que estamos discutindo é uma universidade extremamente inerte, parada no tempo. A universidade brasileira se acomodou. Eu penso que ela está na contramão. Mas não vou culpá-la sozinha, até porque culpar não é boa coisa, não se deve culpar ninguém. Porém, eu acho que ela tem que rever sua maneira de formar completamente.

Entrevistadora: Então quando é que o senhor acredita que a prática docente pode ser um campo frutífero à pesquisa?

Pedro Demo: Como eu venho defendendo, o papel do professor não é de mero ensino, o papel do professor é aprender junto, é mediar. Eu sugeriria isto: teorizar a prática é fundamental! Então eu acho que se um bom curso de Pedagogia começar com o estágio logo no segundo semestre e, simultaneamente, teorizando a prática, há uma grande chance de o pedagogo não chegar à escola como vindo do “mundo da lua”, como acontece geralmente, sobretudo, nas universidades privadas. Os Estados Unidos, por exemplo, têm uma história de educação científica soberba. E isso também nos falta nos programas de formação docente: nós não fazemos educação científica na universidade. Lá fora o xodó da universidade é a educação científica, desde o pré-escolar. Quer dizer, trazer ciência para a mão das pessoas, colocar ciência na mão do povo; todo mundo tem que saber fazer ciência. Claro que a ciência que nós fazemos na escola não vai ser do PhD, mas é a ciência possível na escola. Veja o grande recado da Wikipédia, que eu já tratei aqui: lá todos podem ser autores, todos podem editar, é um ambiente bonito em que se pode participar. Eles não lhe perguntam se você tem PhD, se você produz dentro dos padrões de cientificidade que colocam. Então automotivação é fundamental.

Entrevistadora: Bem, em muitas de suas obras o senhor censura o conceito de extensão. Eu gostaria que respondesse por que considera a extensão uma muleta?

Pedro Demo: Porque, em primeiro lugar, a forma como a universidade trata a extensão coloca a cidadania fora do currículo. Do jeito como está organizada, a extensão não é curricular, é optativa, eventual, faz quem quer. Eu acredito que se se trata a pesquisa como princípio científico e educativo, traz-se a cidadania para dentro da universidade, para dentro da pesquisa. Por isso eu considero a extensão uma muleta. Acho que a universidade tem duas obrigações: produzir conhecimento próprio e formar estudantes. Se ela fizer isso, não precisará de extensão, pois ela estará, consequentemente, dentro. Então eu sempre digo assim: Extensão é a má consciência da universidade, pois ela sabe que colocou no lugar errado a cidadania. O que mexe com a sociedade é uma coisa só: conhecimento. Por exemplo, na Alemanha eu nunca vi extensão! Na Alemanha é só pesquisar e formar estudante. Por quê? Porque eles acreditam que a universidade tem esse papel, ou seja, fazer o melhor conhecimento possível a serviço do desenvolvimento do país. Aqui no Brasil, não. Aí fazem extensão porque entendem que ela ajuda a movimentar o ambiente, anima as pessoas, mas isso não tem qualquer impacto na cidadania e na produção do conhecimento.

Entrevistadora: Em seu livro Pesquisa como princípio científico e educativo, o senhor diz mais ou menos assim: “A aula não prepara”. E antes da entrevista, o senhor falou: ‘A gente vai reformulando nosso pensamento sobre coisas em que se acreditava, mas não acredita mais’. Então eu lhe pergunto: o senhor acha que a aula tem de acabar?

Pedro Demo: Não! Há manifestações de aula que devem continuar, por exemplo, uma conferência, uma aula magna. Eu não vejo nenhum problema que um bom pesquisador dê aula; já que ele está comunicando a sua pesquisa, vale escutar. Eu estou “tirando do mapa” é o repasse de conteúdo, essa aula que eu chamo de instrucionista. Na verdade, eu não tenho nada contra o fato de um professor, em um momento de processo de pesquisa, parar para explicar um conceito; só que isso não deve sufocar o tempo de trabalho e produção dos alunos. Eu notei essa diferença na Alemanha quando eu vi que havia umas aulas que não eram obrigatórias. Então o professor tinha que fazer um esforço sobre-humano para ter a presença dos estudantes. Eu cansei de ver professor que começava uma disciplina com 300 alunos e acabava sem ninguém. Eu achava aquilo um corretivo extraordinário, porque o professor tinha que cair em si: a aula dele não valia a pena, pois os alunos aprendem escrevendo, elaborando, fazendo coisas. A missão histórica do pai não é ensinar, é ser parceiro, é ser pai, estar junto, é provocar autonomia. Tudo o que a gente quer do filho é que ele se torne autônomo. Então isso é uma proposta evolucionária, quer dizer, a evolução dos seres vivos foi montada assim; lá com os animais também, a mãe ursa, por exemplo, cuida dos nenéns ursos até os dois meses, depois eles vão embora; ela mesma dá um “pontapé” neles. E quem não se torna autônomo, morre. Quer dizer, a natureza tem um lado inclemente: se você não sabe “se virar”, não tem como viver. Mas a gente montou uma escola pretensamente para aperfeiçoar isso, para ser uma grande chance para todo mundo se tornar autônomo, autor, ter oportunidade na vida, mas ela é o contrário: é um buraco sem fundo.

Referências

Demo, Pedro. (1994). Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. [ Links ]

Demo, Pedro. (1996). Educar pela pesquisa. São Paulo: Autores Associados. [ Links ]

Demo, Pedro. (2000). Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas. [ Links ]

Demo, Pedro. (2011). Pesquisa: princípio científico e educativo. 14. ed. São Paulo: Cortez. [ Links ]

Demo, Pedro. (2012). Ciência rebelde: para continuar aprendendo cumpre desestruturar-se. São Paulo: Atlas. [ Links ]

Demo, Pedro. (2015). Aprender como autor. São Paulo: Atlas. [ Links ]

Freire, P. (2011). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. [ Links ]

Stenhouse, L. (2007). La investigación como base de la enseñanza. 6. ed. Madri: Morata. [ Links ]

[1]O positivismo postula uma realidade reduzida a suas dimensões lógico-experimentais, quantificáveis, mensuráveis, com acesso direto da mente, enquanto a neurociência atual, ainda que não endossando o "construcionismo" (construção da realidade), admite sua "reconstrução", porque a mente e os sentidos não captam a realidade como tal, mas, o que é possível evolucionária e socioculturalmente. Lidamos assim com uma realidade mentalmente interpretada, sob risco. Qualquer captação da realidade é reducionista, porque não cobrimos a realidade toda (sequer sabemos o que é a realidade), mas as dimensões manejáveis pelo método. O positivismo pratica um reducionismo exacerbado, uma das razões da emergência dos ditos "métodos qualitativos".

Recebido: 01 de Outubro de 2017; Aceito: 01 de Fevereiro de 2018