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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.24  Brasília  2018  Epub 09-Nov-2018

https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.18961 

Dossiê: Narrativas, educação e saúde: o sujeito na cidade

Onde estão os outros? mudanças e permanências nas redes sociais de apoio e cuidado de tetraplégicos

Where are the others? changes and permanences in the social networks of support and care of quadriplegics

Donde estan los otros? cambios y permanencias en las redes sociales de apoyo y cuidado de tetraplégicas

Où sont les autres? changements et permanences dans les réseaux sociaux de soutien de tetraplégiques

1Fisioterapeuta. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador

2Doutora em Antropologia e Etnologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris), 2002. Docente e Pesquisadora no Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (Universidade do Estado da Bahia). Docente e pesquisadora no Programa de Pós-graduação Família na Sociedade contemporânea (Universidade Católica do Salvador).


Resumo

A partir de um estudo que visou à análise da composição e recomposição das redes sociais de indivíduos tetraplégicos crônicos, estudamos as tensões e os paradoxos que emergem da situação de completa dependência de um indivíduo do auxílio de outras pessoas para garantir a sua sobrevivência. A pesquisa se inscreve no campo da investigação qualitativa. Analisamos, neste artigo, o caso de um jovem portador de tetraplegia adquirida. Os dados foram obtidos com base em narrativa biográfica e entrevistas guiadas por roteiros semiestruturados. A análise das mudanças e permanências das redes sociais de apoio mostrou ser um instrumento capaz de permitir uma melhor compreensão das dinâmicas de cuidado adotadas em situação de alta dependência. Evidenciou-se que a presença de uma rede social, mesmo que esvaziada e fragilizada, é determinante na adoção de estratégias positivas de enfrentamento da tetraplegia. Observou-se a importância de uma maior presença do Estado no suporte às famílias e também a sensibilização da sociedade a fim de acolher e não repudiar a diversidade resultante da deficiência.

Palavras-chave Rede social; Família; Cuidados em saúde; Tetraplegia

Resumen

A partir de un estudio que apunta al análisis de la composición y recomposición de las redes sociales de individuos tetrapléjicos crónicos, estudiamos las tensiones y las paradojas que emergen de la situación de completa dependencia de un individuo del auxilio de otras personas para garantizar su supervivencia. La investigación se inscribe en el campo de la investigación cualitativa. En este artículo analizamos el caso de un joven portador de tetraplejia adquirida. Los datos fueron obtenidos con base en narrativa biográfica y entrevistas semiestructuradas. El análisis de las redes sociales de apoyo mostró ser un instrumento capaz de permitir una mejor comprensión de las dinámicas de cuidado adoptadas en situación de alta dependencia. Se evidenció que la presencia de una red social, aunque vaciada y fragilizada, es determinante en la adopción de estrategias positivas de enfrentamiento de la tetraplejia. Se observó la importancia de una mayor presencia del Estado en el apoyo a las familias y también la sensibilización de la sociedad a fin de acoger y no repudiar la diversidad resultante de la discapacidad.

Palabras clave Red social; Familia; Cuidado de la salud; tetraplejia

Abstract

From a study that aimed at analyzing the composition and recomposition of social networks of chronic quadriplegic individuals, we studied the tensions and paradoxes that emerge from the situation of complete dependence of an individual on the help of other people to ensure their survival. The research is part of the qualitative research field. We analyzed, in this article, the case of a young patient with acquired tetraplegia. The data were obtained based on biographical narrative and interviews guided by semistructured scripts. The analysis of the changes and permanences of the social networks of support showed to be an instrument capable of allowing a better understanding of the dynamics of care adopted in situations of high dependence. It was evidenced that the presence of a social network, even if it is emptied and weakened, is determinant in the adoption of positive coping strategies of quadriplegia.It was observed the importance of a greater presence of the State in the support of these families and the awareness of the society to accept and not repudiate the diversity resulting from the deficiency.

Keywords Social network; Family; Health care; Quadriplegia

Résumé

A partir d'une étude visant à analyser la composition et la recomposition des réseaux sociaux d'individus tétraplégiques chroniques, nous avons étudié les tensions et les paradoxes qui émergent de la situation de dépendance totale d'un individu sur l'aide d'autrui pour assurer sa survie. La recherche fait partie du domaine de la recherche qualitative. Nous avons analysé, dans cet article, le cas d'un jeune patient atteint de tétraplégie acquise. Les données ont été obtenues à partir de récits biographiques et d'interviews guidées par des scripts semi-structurés. L'analyse des changements et des permanences des réseaux de soutien social s'est révélée être un instrument capable de permettre une meilleure compréhension de la dynamique de prise en charge adoptée dans les situations de forte dépendance. Il a été démontré que la présence d'un réseau social, même s'il est vidé et affaibli, est déterminante dans l'adoption de stratégies d'adaptation positives de la tétraplégie. L'importance d'une plus grande présence de l'État dans le soutien aux familles et la prise de conscience de la société afin d'accueillir et de ne pas répudier la diversité résultant du handicap a été observée.

Mots clés Réseau social; Famille; Santé; Tétraplégie

Introdução

Por ser uma deficiência associada a um dos mais altos graus de dependência de que se tem notícia, a tetraplegia suscita cuidados muito complexos, que envolvem não apenas a ajuda material, mas também o apoio social e emocional. De acordo com a literatura, a maior parte desse cuidado é assumida pela família/rede social desses sujeitos. O apoio institucional é mínimo, o que torna a situação mais grave quando envolve indivíduos de classes sociais menos favorecidas economicamente. Ainda há muito o que se investigar sobre dinâmicas que interferem numa melhor interação entre os cuidados familiares e profissionais, para assim favorecer a criação de políticas públicas voltadas à produção de uma assistência mais humanizada e eficiente, possibilitando, talvez, uma redução da sobrecarga imposta às redes sociais de apoio envolvidas no cuidado de tetraplégicos.

Este artigo apresenta um “caso”, o de Marcos (nome fictício) – retirado de uma pesquisa mais ampla, realizada na cidade de Salvador, no ano de 2013 –, e que teve por objetivo entender as dinâmicas relacionais (composição e a recomposição) das redes sociais de indivíduos tetraplégicos e a percepção dos seus cuidadores principais[1]. O caso aqui estudado reúne todas as qualidades encontradas nos demais casos analisados durante a pesquisa, tornando-se exemplar para o mapeamento das tensões e dos paradoxos que emergem da situação de completa dependência do indivíduo.

Questões de método e epistemologia

A pesquisa se inscreve no campo da investigação qualitativa e assume caráter exploratório, dada a complexidade do fenômeno que se propõe a analisar (Minayo, 2001). Uma ampla pesquisa bibliográfica foi realizada antes da imersão no campo e contemplou, principalmente, os temas lesão medular, redes sociais de apoio e cuidado. Ampara-se num modelo interdisciplinar de análise, assumindo forte orientação de interpretações baseadas na Teoria da Ação Social, paradigma que marcou as ciências sociais e os estudos de comportamento, estendendo-se a outras áreas de conhecimento, como a área da saúde. Assim, compreendemos que as redes são, para além de suas estruturas particulares, qualitativamente formadas através de interações, permanências, dissociações. Redes sociais, constituídas de pessoas e/ ou instituições, são, portanto, aqui pensadas como ações dirigidas, organizadas (no sentido de orientadas), que supõem uma interação “duradoura”. Não são consideradas parte da rede de apoio ações que não se repetiram, que aconteceram pontualmente e cujo impacto é pouco perceptível. Importante ressaltar que, fazendo parte das redes, estão as pessoas citadas pelo “caso” ou por sua família.

A coleta foi orientada por uma postura etnográfica – observação e contextualização do “caso”. Neste sentido, as entrevistas foram realizadas nos domicílios dos entrevistados, e durante as visitas foram coletados os dados para a construção do caderno de campo. Os dados foram obtidos com base nas narrativas biográficas dos indivíduos selecionados e por meio de entrevistas guiadas. Entende-se que os relatos obtidos através da narrativa biográfica permitem o acesso a uma ordem de informação contextualizada no tempo que assume extrema relevância no momento da análise dos dados (Lozares; Verd, 2008).

Os dados foram analisados em três etapas, de acordo com os passos sugeridos por Minayo (2001), a saber: 1) ordenação; 2) categorização; e 3) análise final. A primeira etapa consistiu na transcrição das entrevistas na íntegra. Em seguida foi realizada uma “reorganização dos relatos elaborando narrativas biográficas com as informações obtidas, ou seja, elaborando narrativas das narrativas” (Castellanos; Nunes; Barros, 2010, p. 1344) – a reconstrução dos relatos foi feita numa perspectiva biográfica, a fim de possibilitar a visualização da interação entre eventos da história de vida do “caso” em questão, com as interações e permanências vivenciadas pela rede social de cada um deles após a instalação da deficiência e, finalmente, com o itinerário terapêutico por eles percorrido (Castellanos; Nunes; Barros, 2010).

A categorização dos dados foi realizada através da leitura repetida do material (entrevistas e “narrativas das narrativas”). Tal procedimento colaborou para a identificação de tendências, padrões e relações, possibilitando a emergência e a determinação de categorias. Durante a análise do “caso” foi possível agregar os dados e compará-los, o que resultou na emergência de categorias êmicas (categorias “nativas”; por assim dizer, as que emergem das experiências dos próprios pesquisados), que se repetiam e ajudaram a configurar os resultados da pesquisa.

Essas categorias foram extraídas das narrativas com base nos pontos de vista da pessoa com deficiência e do cuidador.

Entendendo o comprometimento físico

A lesão medular adquirida atinge com maior frequência indivíduos jovens, do sexo masculino e com menos anos de escolaridade formal (Meyers, 2001). Os traumas representam cerca de 80% dos casos de lesões medulares, geralmente causados por acidentes automobilísticos, projéteis de arma de fogo, quedas e práticas esportivas. A incidência e a prevalência de lesão medular traumática no Brasil são desconhecidas; esses dados não existem porque esta condição não é sujeita a notificação. Assim, no Brasil, estima-se que o coeficiente de incidência de lesão medular é de 71 novos casos por milhão de habitantes/ano (Masini, 2001). Essas lesões podem resultar em disfunções ou perda dos movimentos voluntários e/ou sensibilidade, além de alterações no funcionamento dos sistemas urinário, intestinal, respiratório, circulatório e sexual (Silva; Albertini, 2007; Staas Jr. et al., 1992).

O paciente, via de regra, não vivencia sozinho os eventos que se seguem à lesão; todas as pessoas que fazem parte do seu círculo social são envolvidas, em maior ou menor grau. O ambiente social no qual o indivíduo tetraplégico encontra-se inserido é tão importante que tem sido considerado um forte preditor de um enfrentamento bem- sucedido frente a uma lesão medular. Alguns estudos revelam que um suporte social ineficiente está associado a altas taxas de suicídio entre esses indivíduos (De Vivo et al., 1991), e que, em condições opostas, quando inseridos em redes sociais que os apoiam, têm uma maior probabilidade de se engajarem em atividades ocupacionais (Stambrook et al., 1991) e de lazer (Hutchinson et al., 2003).

As redes sociais com alternativa metodológica

Diferentes áreas do saber têm dedicado atenção ao tema das redes sociais. Pensada como “cadeia de serviços”, “interconexão de agentes visando um atendimento eficaz”, e alcançando, muito recentemente, a noção de “espaço produtor de significados”, as redes, em particular as redes familiares, são objeto de importante produção nas ciências sociais e aplicadas. Para as Ciências Sociais, discutir o tema das redes sociais implica um olhar atento para o ângulo das relações de reciprocidade aí implicadas. Além desse aspecto, é preciso observar a própria dinâmica da rede, as interações, as permanências, as descontinuidades. Uma larga produção acadêmica, partindo de variadas perspectivas e pressupostos, tem dado conta das diversas dimensões das redes, e o conceito de redes é um dos mais amplos no âmbito das ciências sociais e aplicadas (Portugal, 2007; Molina, 2005; Martins, 2004). Neste sentido, para especificar de qual dimensão se está falando quando o tema é redes, costumou-se associar um adjetivo (redes sociais, redes familiares, redes de apoio).

Em Sociologia, o termo redes sociais ganha força como conceito utilizado para dar conta dos movimentos de mudanças sociais na contemporaneidade, estando aliado à noção de globalização e novas tecnologias de comunicação (Radomsky; Schneider, 2007). Classicamente, para as Ciências Sociais, em particular para a Antropologia, discutir o tema das redes sociais implica um olhar atento para o ângulo das relações de reciprocidade aí implicadas. A antropóloga inglesa Elizabeth Both publica, em 1957, uma obra que virá a ser uma referência para o tema. Trata-se do livro Família e Rede Social, resultado de um estudo com 20 famílias britânicas de classe média (BOTH, 1976). A noção de rede social aparece aí bem delineada e articulada à noção de classe. A proposta da autora é tentar “compreender a organização psicológica e social de algumas famílias urbanas” (BOTH, 1976, p. 27), articulando suas particularidades a um estudo da rede familiar extensa, recurso metodológico capaz de fornecer importantes pistas para a análise das diferentes estratégias de fortalecimento das resistências e de minimização das desigualdades sociais. A caracterização e as distinções entre os vários tipos de malhas da rede de relacionamentos propostos por Both (1976) tornam-se referência metodológica para os estudos de família e papéis conjugais. Em seu estudo, as redes são vistas como recurso ou como espaço coletivo de fabricação de estratégias de sobrevivência e mobilização de classe.

Um aspecto relevante na perspectiva da Antropologia, no que diz respeito às redes sociais, é o seu caráter, ou seja, o que mobiliza as pessoas no ato da interação social e no sentido da permanência. Este longo debate mobilizou várias correntes de estudos na etnologia, em particular na França, representadas pelo funcionalismo, o funcional- estruturalismo e o estruturalismo. A discussão assenta-se sobre a reciprocidade, característica do trabalho das redes. Embora sem se reportar exatamente ao termo redes, estudos clássicos, como os de Marcel Mauss (1974), marcam a discussão fundando um debate sobre a solidariedade social e os sentimentos coletivos. O Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss (1974), é o primeiro estudo sistemático e comparativo de um costume – a troca como dom – e a explicação de sua função num sistema social. As análises sociológicas e etnológicas de Mauss (1974) lançam uma luz sobre o caráter da dádiva. O autor sustenta a ideia segundo a qual a troca não se constitui numa operação mecânica: ela é, antes, uma operação moral que mantém relações humanas entre grupos e indivíduos. O paradigma do dom em Mauss é tomado recentemente por Allain Caillé (2002) para reafirmar o caráter antiutilitarista do dom, contrapondo-se às apreensões de Lévi-Strauss (1974) – teoria das trocas. O dom é, para ele, gratuito e a dádiva, uma ação sem expectativa.

Carlos Sluzki (2003, p. 15) define rede social como “[...] conjunto de seres com quem interagimos de maneira regular, com quem conversamos, com quem trocamos sinais que nos corporizam, que nos tornam reais”. Para Gutierrez e Minayo (2008), o conceito de rede social é útil para uma melhor compreensão das dinâmicas de cuidados com a saúde produzidas no âmbito das famílias. Assim, o referencial de observação na perspectiva das redes sociais tem-se mostrado um bom meio para melhor compreender a complexidade das dinâmicas relacionais. Onde uma vasta discussão em torno desse tema traz à tona o fato de que “já não basta um olhar unidirecional, mas sim uma diversidade de visões e posicionamentos que contribuem para a configuração das redes sociais em uma aproximação, cada vez maior, à realidade” (Meneses; Sarriera, 2005, p. 54).

A rede social é utilizada pelas Ciências Sociais como instrumento de análise que permite a reconstrução dos processos interativos dos indivíduos e suas afiliações a grupos, a partir das conexões interpessoais por elas construídas cotidianamente (Barnes, 1987). Sua análise possibilita aproximar-se do comportamento individual, sem perder de vista a sua inserção nas estruturas sociais (Wasserman; Galaskiewicz, 1994).

[...] as fronteiras do Indivíduo não estão limitadas por sua pele, mas incluem tudo aquilo com que o sujeito interage – família, meio físico, etc., podemos acrescentar que as fronteiras do sistema significativo do indivíduo não se limitam à família nuclear ou extensa, mas incluem todo o conjunto de vínculos interpessoais do sujeito. (Sluzki, 2003, p. 37).

A importância das redes sociais de apoio baseia-se no fato de que, numa situação de enfermidade, a família não cuida sozinha, ela é auxiliada por uma rede de relações sociais que mobiliza recursos em momentos de crise (Gutierrez; Minayo, 2010).

Entende-se que essa dinâmica de relações é mantida pela ciência de seus integrantes de que as redes são alimentadas pela reciprocidade. Assim, para Gutierrez e Minayo (2010, p. 1504), “as redes constituem o contexto social em que o apoio fornecido é mútuo em situações em que os necessitados alternam favores e ajudas”.

Para Martins (2004), a teoria das redes sociais consegue explicar com maior complexidade a realidade social, facilitando assim a construção de um pensamento que seja capaz de “responder aos novos desafios impostos pelas transformações simbólicas e materiais dos bens circulantes e pelos processos de reorganização espacial e temporal da sociedade contemporânea” (Martins, 2004, p. 09).

Mais especificamente no campo da saúde, a análise das redes sociais permite uma maior aproximação dos aspectos socioculturais que permeiam os processos de cuidado tanto dos sujeitos e suas redes sociais, quanto dos profissionais de saúde. Uma vez que “o estado de ‘enfermidade/doença’ é determinado pela experiência subjetiva dos indivíduos e dos membros da comunidade, mais do que pelos aspectos clínicos e físicos” (Meirelles; Erdmann, 2006, p. 68, grifo do autor), estudos limitados à checagem biomédica mostram-se insuficientes para uma ampla compreensão dos problemas relacionados à saúde. Dessa forma, entende-se como importante a utilização de meios de pesquisa que considerem, além dos aspectos físicos (pessoais), os comunitários, culturais, sociais e econômicos, a fim de evidenciar de que forma e em que medida as redes sociais influenciam nos cuidados com a saúde.

Longe de ser privilégio das ciências biomédicas e dos eruditos, os tratamentos das doenças são construções individuais e sociais que fazem parte da vida cotidiana em qualquer sociedade. Sendo o cotidiano um lugar privilegiado para o estudo da sociedade e suas transformações. (Leite; Vasconcellos, 2006, p. 114).

Existe uma ambiguidade que envolve o entendimento da natureza sociológica das redes. De um lado, entende-se a rede com uma visão sociocêntrica (estruturalista), que se preocupa em desenhar as estruturas dos sistemas sociais, deixando de lado a liberdade e a participação relativas dos atores na organização dos sistemas sociais – a estrutura da rede impõe a escolha (Molina, 2005; Scott, 1997 apud Martins, 2004). De outro, uma perspectiva egocêntrica (individualista), que enfatiza as estratégias individuais dos atores na construção de laços; neste caso, os determinismos estrutural e coletivo ficam em segundo plano. Dessa forma, a rede serviria como um meio para que uma pessoa ou um grupo de pessoas elaborasse ações de sobrevivência, principalmente observadas em situações sociais adversas como adoecimento, desemprego (Granovetter, 1983; Molina, 2005).

Para Barreto e colaboradores (2009), tanto a visão estruturalista como a individualista não conseguem dar conta da complexidade da rede social na constituição da ação social. O mais coerente é focar a análise não nos atributos individuais ou na estrutura social, mas nas interações (Barreto et al., 2009). Dessa forma, “observa-se o comportamento individual, porém, sem perder de vista a sua inserção nas estruturas sociais” (Portugal, 2007, p. 12). Assim, no contexto da perspectiva analítica de rede, é possível pensar indivíduo e estrutura não simplesmente como opostos, e sim como interdependentes; essa visão possibilitará analisar a estrutura social de um ponto de vista prioritariamente relacional (Portugal, 2007).

Diante da possibilidade de analisar as redes numa perspectiva mais relacional, Lozares e Verd (2008) defendem a utilização da entrevista biográfico-narrativa como ferramenta capaz de proporcionar um estudo mais complexo das redes, pois através desse tipo de relato tanto é possível desenhar a estrutura, como estabelecer o entorno social que a envolve, e, ainda mais, observar o comportamento (mudanças e permanências) das relações ao longo do tempo ou diante de eventos marcantes. Nesse tipo de narrativa é comum que sejam relatados detalhes acerca do tempo, dos espaços, das motivações, dos planos, da capacidade e da habilidade de lidar com acontecimentos inesperados. Além disso, é comum que o narrador dê maior destaque aos eventos mais importantes, e essa forma de apresentação facilita a compreensão de como esses acontecimentos influenciam tomadas de decisão. Em suma, o relato biográfico “possibilita obter uma globalidade e coerência informativa dificilmente alcançada em outro modo” (Lozares; Verd, 2008, p. 97).

Relato de caso: a narrativa das narrativas

Em 2013, Marcos tinha completado 25 anos de idade. Ele conta que foi uma criança muito ativa e praticante de esportes. Pelo fato de morar na casa do avô materno, junto com outros primos e tios, tinha uma rotina extremamente agitada com brincadeiras e boa convivência. Mesmo partilhando a vida com uma família extensa, ele foi o único filho do casal até os 8 anos de idade, quando os pais resolveram ter o segundo filho. Como havia uma grande diferença de idade entre eles, Marcos conta que não tem recordação de brincadeiras com o irmão durante a sua infância, a aproximação veio na adolescência. Em relação aos estudos, nunca foi um aluno exemplar. Frequentava as aulas por pressão familiar, principalmente da mãe, e não nutria nenhum tipo de interesse ou motivação para empenhar-se nos estudos, situação que se estende para sua vida adulta. Chegou a cursar alguns semestres na universidade, mas não concluiu o curso.

A mãe-cuidadora lembra que na adolescência e juventude três coisas mobilizavam Marcos: viagens, festas (dança) e a namorada. Conta que tanto ele quanto a namorada tinham uma intensa rotina entre festas e viagens, dentro do limite das suas capacidades financeiras. Ela relata que o filho era um exímio dançarino, além de muito bem- humorado e divertido, o que lhe garantia ter uma rede extensa de amigos, colegas, vizinhos. Sempre chamava atenção para si em rodas de amigos, e era garantia de diversão para todos, por isso sua presença era muito requisitada em eventos sociais.

No período das festividades do São João do ano de 2012, Marcos jogava vôlei com amigos à beira de uma piscina na casa de praia dos pais da namorada, quando escorregou na borda e caiu. Ao cair, a sua coluna cervical chocou-se contra a alça de apoio da escada, provocando uma fratura na quinta vértebra cervical e, por consequência, a compressão da medula espinhal, caindo na água já sem controle dos seus movimentos. Marcos não tem lembranças desses acontecimentos, e o que sabe fruto dos relatos dos amigos e da então namorada, que o acompanharam a uma unidade de saúde no dia do acidente. Depois de muitas andanças e alguns atendimentos, Marcos foi removido para um hospital privado de Salvador, onde mais tarde sua família receberia a notícia de que se tratava de uma grave lesão medular. Havia uma fratura na coluna que precisava ser operada assim que ele alcançasse estabilidade clínica. A mãe- cuidadora relata que, naquele momento, o médico transmitiu notícias que mudaram o curso da vida dela e de sua família para sempre, e diz: “E aí, parece que o mundo caiu sobre mim.” Sentiu-se fraca, desesperada, e considera que não recebeu o acolhimento esperado por parte do profissional. Foram 45 dias de internamento hospitalar, repletos de muita dor e incertezas. Marcos passou por infecções, cirurgia e um acidente vascular cerebral (AVC) que agravou ainda mais o seu quadro. A dúvida a respeito do impacto desse AVC no prognóstico de Marcos é um fantasma que acompanha a família até hoje. Com exceção desse incidente, tanto ele quanto a mãe referem-se à equipe de profissionais de saúde em geral como grandes ajudadores no processo de recuperação.

Nos primeiros dias de internamento hospitalar, muitos amigos e familiares disputavam entre si um horário para visitá-lo. Conforme o tempo foi passando, o fluxo de visitas diminuiu consideravelmente, e restaram apenas os familiares mais próximos. Nos anos seguintes, a rede foi se esvaziando ainda mais. Dentre todos os afastamentos, o mais doloroso para Marcos foi o da namorada, que inicialmente era assídua e interessada, mas com o passar tempo começou a dar sinais de distanciamento. O primeiro deles foi a decisão de manter uma viagem, que inclusive havia sido planejada para ser realizada com Marcos. E pouco tempo depois da alta hospitalar, o seu distanciamento e ausência constantes provocaram o rompimento da relação. O retorno de Marcos para casa foi mais um momento de desafio para a família; adaptações estruturais no apartamento e na rotina da família seriam necessárias. A ausência dos amigos e de parte da família extensa é lembrada com mágoa. Marcos possuía convênio de saúde e isso lhe proporcionou o acesso a um hospital privado de qualidade, e, após a alta, passou a ser acompanhado por um serviço de internamento domiciliar.

Marcos e a família conseguiram construir uma rotina de cuidados, que inclusive é bem conciliada com as suas atividades laborais dos pais e do irmão. Nota-se claramente no relato da cuidadora a aceitação de que a deficiência física, no caso de Marcos, tem caráter irreversível, e que o melhor caminho a ser trilhado é o de buscar adequar-se a essa nova condição, a fim de proporcionar tanto a ele como a sua família inteireza nas suas existências. Em contrapartida, Marcos ainda tem dificuldade em tratar do assunto; durante toda a entrevista limitou-se a respostas curtas e evasivas, indicando uma dificuldade em entrar em contato com essa nova realidade.

Narrativas de Marcos

E o que mudou na sua vida?

Tudo. Tudo, minha rotina, tudo! Perdi amigos, perdi namorada, perdi minha vida, né? [...] Perdi os amigos. Quase todos, só ficou um só. Que eu considero amigo, amigo-irmão, só ficou um [...] Ele vem aqui todo... a cada quinze dias. Não tá vindo agora porque ele tá em prova na faculdade. A maior parte das pessoas se afastou.

E teve gente que se aproximou?

É... poucas pessoas, pessoas que se sensibilizaram com a causa, que ouviram histórias minhas, de como foi o acidente, de onde foi... e aí acaba se solidarizando, né? É... são pessoas que eu encontro aí pelo meio do caminho na minha vida. É... tipo uma moça e que ficou muito amiga minha, e um cara também, que ficou muito amigo meu. Falo, eu tenho eles no WhatsApp. Falo, eu falo com ela direto.

E em que que essas pessoas que se aproximaram te ajudam?

Tem dia que não tem ninguém pra conversar, e aí eu converso com eles e acabo melhorando meu dia, né? As melhores possíveis [silêncio] são pessoas que ajudam, me ajudam. Só. Não... só sinto um pouco de ressentimento porque o meu relacionamento já tinha... o que?, quatro anos já, e aí a pessoa me largou, assim, do nada, de uma hora pra outra. E foi logo depois do acidente, logo depois, dois meses depois. Não, dois meses depois que eu voltei pra casa. Eu fiquei 45 dias no hospital...

dois meses depois ela me largou [...] Essa perda. Do namoro de quatro anos. Porque eu não esperava. Tenho, eu falo com ela. Até porque minha mãe e meu pai são muito amigos dos parentes dela.

O que você gosta de fazer?

Gosto muito de filme. Pra assistir junto comigo? Às vezes tem meu pai e minha mãe, que fica aqui olhando a televisão junto comigo... Só. Algum amigo que venha... e assista junto com você?

Raramente E cinema?

Ah, Cinema eu tava indo logo que fiquei acidentado, mas parei porque meu corpo ainda dói, e pra assistir ao filme eu tenho que ficar muito tempo sentado em uma única posição lá no cinema. Ainda mais que o lugar pra cadeirante é horrível!

Então no cinema não tem conforto... então normalmente você assiste ao filme aqui na sua casa, na cama?

Isso, na cama.

Que é o lugar que você se sente mais confortável?

Quando voltei do hospital, a casa estava inadequada. Meio bagunçado ainda, mas minha mãe já botou no eixo.

Como era esse “meio bagunçado”?

Quando chegou aqui não tinha colchão, não tinha nada. Teve que botar um colchão casca de ovo, que não suportava nem meu peso. Aí minha mãe foi, mandou comprar o colchão pneumático, que nem eu tinha lá no hospital... aí, durante esse tempo, foi se adequando, entrando nos eixos.

Minha mãe é quem cuida de mim. A parte de banho... de... Quem dá é minha mãe. Sempre minha mãe. Não, minha mãe e meu pai. Quem dá meu banho é minha mãe e meu pai.

De manhã?

De manhã cedo. No início era horrível porque era aquele banho de asseio, e vira de um lado, vira do outro, ensaboa de um lado, ensaboa do outro... enxágua do outro. Me doía bastante. E agora não, eu tomo banho de chuveiro. Na cadeira no chuveiro?

De banho.

Então melhorou bastante?

Melhorou muito!

Narrativas da mãe-cuidadora

A parte mais difícil foi olhar pro meu filho e saber que a partir daquele momento ele ia ter que depender de alguém. Eu acho que esse foi o maior desafio, olhar pra ele e imaginar que uma pessoa que era independente, de repente se torna totalmente dependente pra tudo, né? Me preparar pra isso foi o mais complicado.

Hoje é... eu digo que muito mais, é... eu sou muito mais fundamental na vida de Marcos do que quando ele era bebê. Porque quando a gente cuida de um filho, a gente sabe que ele vai crescer, e vai ser mais independente a cada dia. E hoje eu vejo que Marcos depende muito de mim. E isso às vezes me assusta, porque eu não esperava isso da vida [choro]... me assusta muito, e eu já me desesperei muito por conta disso! Porque quando você pensa que você criou um filho, e ensinou ele a ser independente... educou, conduziu, é... profissionalmente, ele estava iniciando, a vida dele, concluindo os estudos, e de repente acontece dele ter que parar... parar. E hoje eu me vejo como um guia.

Esse foi o segundo pior momento de Marcos, quando ela [a namorada] decidiu ir. Esse menino sofreu demais! Ele chorava como uma criança, ele urrava dentro do hospital. E você via aquele choro de sofrimento. Ele sofreu muito! [...] Por que eu tentava ser forte, eu não chorava, e brigando dentro de mim com os meus sentimentos... eu e minha irmã estávamos presentes nessa hora. [...] Sabe o bebê, eu não digo o bebê porque ele não tem noção, mas a criança abandonada?

Aí eu voltei pro quarto e nesse momento eu tive que ser muito realista com ele, e eu disse pra ele, me lembro claramente com essas palavras: ‘Meu filho, tenha a certeza, e coloque na sua cabeça, que a partir desse momento só vai ficar do seu lado quem realmente te ama!’ E até hoje eu repito essas palavras pra ele: ‘Só está ao teu lado até hoje quem realmente lhe ama! Seu pai... em primeiro lugar, seu pai, sua mãe, seu irmão, seus tios mais próximos, e talvez sobre um amigo ou dois.’ E não sobrou nenhum! Aliás, o único que veio, vinha com muita frequência, mas hoje tem vindo menos, porque você sabe que cada um vai cuidar de sua vida. E eu sabia que isso ia acontecer. Então eu já tava preparando ele, porque quando você tá no hospital, o hospital enche você de telefonema a todo momento, você recebe visita toda hora, você recebe apoio a toda hora, mas o tempo vai passando e as pessoas vão cuidando de suas vidas.

Análise do caso: redes e relações em construção

Com base na análise das narrativas dos portadores de tetraplegia, buscamos pistas para apreender a compreensão deles acerca da subjetividade das redes sociais de cuidado a partir não apenas da posição dos atores sociais, mas no desenvolvimento dos sentimentos de confiança, amizade, abandono, indiferença. O caso de Marcos suscita muitas análises. Fizemos a escolha de centrar nas narrativas das “redes de apoio”, vez que este é um aspecto que perpassa a experiência de todos os tetraplégicos entrevistados durante a pesquisa. As redes sociais dos indivíduos tetraplégicos são pequenas (tornam-se reduzidas) e com laços fortes, as suas funções estão mais relacionadas com os cuidados com a saúde e o apoio emocional. Notadamente, há um acúmulo de funções por parte das pessoas que compõem essas redes, o que produz sobrecarga e sofrimento não só para o doente, mas também para quem cuida.

A ausência/perda de uma rede ampliada (comparada ao “antes” da tetraplegia) resulta no seguinte paradoxo: de um lado, uma solidão de vínculo resultante do distanciamento de grande parte das relações anteriores; de outro, a necessidade extrema do “Outro”, que induz à criação de novos vínculos. Do ponto de vista do cuidador, o sofrimento do “Outro” traduz-se como seu próprio sofrimento, e o aprendizado do cuidado torna-se a razão da convivência. Pode-se inferir que uma análise com base na perspectiva das redes sociais possibilita uma discussão mais abrangente acerca das tensões produzidas pelas novas demandas de cuidado que foram geradas pelo advento da deficiência.

Segundo Helman (1994), a primeira fonte de identificação e tratamento das doenças é a família. Para esse mesmo autor, 70 a 90% dos cuidados em saúde acontecem nesse âmbito. Menéndez (1992), no mesmo sentido, relata que a família ou o grupo doméstico é a primeira instância de cuidados de saúde. Para Leite e Vasconcellos (2006, p. 118), “a família ‘ampliada’, ou a rede de relações sociais mediada por ela [...], tem sido tomada por diversos autores como objeto de estudo mais apropriado para a compreensão das formas de lidar com a doença e as escolhas terapêuticas”. Diante da doença, do envelhecimento e da ausência de autonomia, surgem diferentes formas de cuidar e de interpretar a doença. Estes eventos, longe da discussão da técnica e do profissionalismo, combinam atos e intervenções e revelam formas particulares de gerir o corpo doente, que podem ser decisivos para o sucesso ou fracasso da reabilitação (Freitas; Costa, 2013).

Somada ao fato de que as decisões relacionadas aos cuidados com a saúde parecem estar mais centralizadas nas redes sociais do sujeito, a questão do gênero tem destaque garantido quando o assunto é cuidado. Em consonância com o que diz grande parte da literatura, Marcos recebe os cuidados da mãe, que passa a ser sua cuidadora principal. Menéndez (1992) afirma que, apesar de se tratar de uma unidade importante, a família geralmente é representada em sua cultura, hábitos e modo de vida pela condução da mulher-mãe, categoria decisiva para as ações de saúde no lar. Em um estudo realizado na cidade de São Paulo por Karsch (1998), com 102 cuidadores de indivíduos que sofreram acidente vascular cerebral (AVC), os resultados revelaram que em 98% dos casos o cuidador era um familiar, e desses, 92,9% eram do sexo feminino, entre as quais 44,1% esposas e 31,3% filhas. O mesmo autor conceitua que “o cuidador trata-se da pessoa que chama a si a incumbência de realizar as tarefas para as quais o doente lesado pelo episódio mórbido não tem mais possibilidade de fazê-lo; tarefas que vão desde a higiene pessoal até a administração financeira da família” (Karsch, 2003, p. 863).

Assumir o cuidado de uma pessoa com tetraplegia significa muito mais do que apenas “ser” os seus braços e pernas durante os afazeres cotidianos, tal como relataram alguns interlocutores dessa pesquisa. É também chamar para si a responsabilidade de vigiar continuamente uma série de outras funções do corpo do outro que já não podem mais ser controladas nem sentidas por ele. Além de auxiliar no gerenciamento dos tratamentos que normalmente fazem parte da rotina da reabilitação (fisioterapia, psicologia, terapia ocupacional, médicos, exames). No cotidiano, as principais atribuições relacionam-se à mobilidade (rolar na cama, sentar-se na cama, transferir- se da cama para a cadeira e da cadeira para qualquer outra superfície, condução da cadeira de rodas quando não pode ser controlada pela pessoa com tetraplegia); autocuidados (higiene, vestuário, alimentação e excreções); constante vigilância da pele, do esvaziamento da bexiga e do intestino, da respiração, do posicionamento correto do corpo para evitar deformidades articulares; e alimentação/hidratação adequadas para evitar constipação e infecções urinárias. Também cabe ao cuidador atentar-se aos possíveis sinais de distúrbios psicoafetivos que podem surgir como parte do processo de enfrentamento da situação de deficiência.

Fardo, obrigação, amor, renúncia, raiva, prisão, dependência, cuidado, zelo, preocupação, medo, ânsia, desespero: a diversidade das palavras ouvidas durante os relatos da mãe-cuidadora ao explicar o vendaval de acontecimentos que tomou conta de sua vida e de sua família em razão do acidente que levou seu filho a uma situação de tetraplegia revela a complexidade da situação em que essas pessoas se encontram mergulhadas. Os sentimentos em relação a esse outro que é objeto de um cuidado tão extremo variam em natureza e intensidade com muita frequência. A renovação do sofrimento e a certeza, mesmo que velada, de que aquela situação é permanente parecem ser a maior fonte de sofrimento para a cuidadora. Segundo Guimarães, Hirata e Sugita (2012, p. 82, grifos do autor),

[...] a palavra cuidado é usada para designar uma atitude; mas é o verbo cuidar, designando uma ação, que parece traduzir melhor a palavra care[2] [...] ‘cuidar’ ou ‘tomar conta de’, têm vários significados [...]. Elas designam, no Brasil, um espectro de ações plenas de significado nativo [...] o ‘cuidar do marido’ ou ‘dos pais’ têm sido tarefas exercidas por agentes subalternos e femininos, os quais no léxico brasileiro têm estado associados com a submissão, seja dos escravos (inicialmente), seja das mulheres, brancas ou negras (posteriormente).

Cuidar envolve, assim, a oferta de uma atenção cotidiana individual e personalizada, tanto numa dimensão objetiva, para atender as demandas naturais e sociais (alimentação, higiene, mobilidade, curativos, medicamentos, cateterismos, acompanhar em consultas e compras, propiciar momentos de lazer), quanto subjetiva, relacionada a afeto e emoções. Cuidar implica “estar à disposição de”, e quando essa relação envolve uma situação de alta dependência, isso pode significar uma dedicação integral do tempo, que irá envolver não apenas as ações concretas de cuidado, como também o tempo dispendido tanto com a vigilância do enfermo, quanto com a realização dos demais afazeres domésticos, que na maioria das vezes são acumulados pelo cuidador (García-Calvente; Mateo; Eguiguren, 2004; García-Calvente; Mateo; Gutiérrez, 1999; Marcondes; Yannoulas, 2012).

Conclusões

Neste trabalho pensamos redes no seu aspecto formal, ou seja, como o conjunto das pessoas e atores sociais (instituições) que transitam dando apoio e colaborando na superação/enfrentamento da doença, particularmente na tetraplegia, situação que coloca em questão a autonomia do indivíduo. Todavia, olhamos com mais atenção para a rede como pensamento, ação, visando à organização do quotidiano das pessoas em seus processos de doença/cuidado.

A análise das narrativas escutadas e reeditadas no decorrer dessa pesquisa revela que do ponto de vista do deficiente, nota-se um importante enfraquecimento ou até desaparecimento de laços, e ao mesmo tempo o reforço dos laços familiares (pai, mãe, irmão). Dessa forma, a rede torna-se densa e pequena, e por isso mesmo frágil, vulnerável e essencialmente constituída por membros da família de Marcos, o que concorda com outros estudos que também se ocuparam em analisar as redes sociais de pessoas com tetraplegia (Guilcher et al., 2012; Isaksson; Ska; Lexell, 2005).

Os serviços de saúde não aparecem nas narrativas como lugares relevantes para o enriquecimento das redes de sociabilidade. Os membros da família partilham entre eles os cuidados diários (higiene, deslocamento), em particular o pai e a mãe. No tocante à rede como pensamento e ação, foi possível notar nas narrativas a valorização das ações de “preocupar-se com” (ligações telefônicas para saber como ele está, visitas, proporcionar momentos de lazer), o que nos leva a crer que a saúde e o bem-estar estão intimamente ligados às interações humanas. Não é à toa que, a partir dos anos 1980, começam a aparecer nos trabalhos, nas práticas e na formação de profissionais de saúde uma valorização da família ou dos aspectos simbólicos e afetivos nos processos de cuidados na saúde (García-Calvente et al., 2010; Bastos, 2006). Nessa pesquisa, pela ótica da pessoa com deficiência, a ausência de uma rede ampliada como a que possuía antes da tetraplegia, resulta de um lado numa solidão de vínculo pela sua quase total impossibilidade de troca. Que fica evidente na fala de Marcos: “Perdi amigos, perdi namorada [silêncio], perdi minha vida, né?”

Para além das questões das relações com os outros, perder os movimentos e as sensações do corpo também é perder uma parte da sua relação consigo mesmo. O sujeito que vivencia uma situação de tetraplegia passa a ter uma apreensão diferente de si, em comparação ao que ele estava acostumado a experimentar. Por exemplo, passa a ter que lidar de forma diferente com as “substâncias” que circulam no seu corpo (esperma, urina, fezes). A deficiência não é simplesmente um limite anatômico, ela coloca em pauta uma relação conflituosa entre dois mundos: o dos “válidos” e o dos “inválidos”. Diniz (2007) chama atenção para o fato de que a deficiência não é resultado apenas de uma lesão anatômica ou distúrbio biológico. Na perspectiva social, ela é uma constatação da diversidade do ser humano. No entanto, é nítido que a sociedade ainda persiste no modelo da exclusão e se mostra pouco disponível em adequar pensamentos e ambientes para melhor acolher as diferenças.

A análise das mudanças e permanências das redes sociais de apoio de tetraplégicos, realizada nesse estudo, mostrou ser um instrumento capaz de permitir uma melhor compreensão das dinâmicas de cuidado adotadas em situação de alta dependência, possibilitando, também, a contextualização dos eventos mais marcantes no decorrer da história de vida do caso analisado. Da mesma forma, evidenciou que a presença de uma rede social, mesmo que esvaziada e fragilizada, é determinante na adoção de estratégias positivas de enfrentamento do problema. Torna-se importante uma maior presença do Estado no suporte a essas famílias, e também a sensibilização da sociedade a fim de acolher e não de repudiar a diversidade resultante da deficiência.

A pesquisa revela, a partir das narrativas biográficas, a experiência da instantaneidade e da irreversibilidade da deficiência adquirida e seus efeitos na vida pessoal e familiar: situação que divide a trajetória de vida entre o antes e o depois. Pode-se dizer que toda transformação (a partir de um evento de doença) é processual: tanto o indivíduo quanto a família vão acompanhando a evolução e o diagnóstico e, desse modo, elaborando suas buscas, suas dores, suas formas de enfrentamento. No caso da tetraplegia – embora possamos considerar que o quadro clínico também se transforma e que os pacientes passam por evoluções, involuções, estabilidade –, a impossibilidade de cura torna-se um paradigma que separa a vida anterior, com autonomia, da nova vida, com mais dependência. Esta pesquisa conclui, dentre tantos aspectos, que a tetraplegia exige outras formas de gerenciar o cotidiano, baseadas em muitas adaptações: ao espaço físico da casa, ao desenvolvimento de atividades laborativas compatíveis com a condição física do tetraplégico e aos novos afetos.

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[1]Os participantes da pesquisa foram quatro pessoas com tetraplegia atendidas em uma Clínica Escola de Fisioterapia na cidade de Salvador, estado da Bahia, e o cuidador principal de cada uma delas, totalizando oito entrevistados. Foram incluídos no estudo portadores de tetraplegia secundária a traumatismo raquimedular e classificada como ASIA A (lesão completa); que tivessem pelo menos um ano de lesão; com idade superior a 18 anos; do sexo masculino.

[2]Hirata e Guimarães (2012, p. 01) relatam que “o care é dificilmente traduzido porque é polissêmico. Cuidar do outro, preocupar-se, estar atento às necessidades, todos esses diferentes significados, relacionados tanto à atitude quanto à ação, estão presentes na definição de care”.

Recebido: 01 de Junho de 2018; Aceito: 01 de Julho de 2018