SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24Incluir niños autistas en escuelas regulares. ¿Qué relación entre prácticas, formación e identidad profesional de los profesores de letras?Reaprender en la vida: un existir en un tiempo del después índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.24  Brasília  2018  Epub 15-Nov-2021

https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.18992 

Dossiê: Narrativas, educação e saúde: o sujeito na cidade

Histórias de vida e esclerose múltipla: Trabalho biográfico e formação de paciente expert na França

Historias de vida y esclerosis múltiple: trabajo biográfico y formación de paciente experto en Francia

Life stories and multiple sclerosis: biographical work and training of expert patients in France

Récit de vie et la sclérose en plaques: le travail biographique et la formation de patient expert en France

1Psicóloga e sanitarista. Doutora em saúde da criança e da mulher pelo Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueiras (IFF/Fiocruz). Pós-doutora pela Université Paris 13 Sorbonne Paris Cité/ Laboratoire Experice Axe A. Faculdade de Medicina de Petrópolis. Collège International de Recherche Biographique/ CIRBE.


Resumo

Este artigo apresenta os resultados de um trabalho de acompanhamento de um grupo de seis doentes que sofrem de esclerose múltipla durante uma formação de paciente expert na França e mostra os efeitos do uso da história da vida como uma ferramenta para explorar experiências pessoais e interpessoais dos doentes. A metodologia do trabalho baseou-se na abordagem da pesquisa biográfica. Os resultados mostram que os participantes foram capazes de explorar suas experiências e encontrar um espaço para a liberação de sentimentos através da narrativa, contribuindo para a formação de paciente expert e permitindo que os doentes explorem e valorizem as experiências vividas e os saberes adquiridos.

Palavras-chave Doença crônica; Aprendizado; Experiência; Biografia

Resumen

Este artículo presenta los resultados de un trabajo de seguimiento de un grupo de seis pacientes que sufren de esclerosis múltiple durante una formación de paciente experto en Francia y muestra los efectos del uso de la historia de la vida como una herramienta para explorar experiencias personales y interpersonal de los pacientes. La metodología del trabajo se basó en el enfoque de la investigación biográfica. Los resultados muestran que los participantes fueron capaces de explorar sus experiencias y encontrar un espacio para la liberación de sentimientos a través de la narrativa, contribuyendo a la formación del paciente experto y permitiendo a los pacientes explotar y valorar las experiencias vividas y los saberes adquiridos.

Palabras clave Enfermedad crónica; Aprendizaje; Experiencia; Biografía

Abstract

This paper presents the results of a follow-up study of a group of six patients suffering from multiple sclerosis during an expert patient training in France and shows the effects of using life history as a tool to explore patients' personal and interpersonal experiences. The methodology of the work was based on the biographical research approach. The results show that the participants were able to explore their experiences and find a space for the release of feelings through the narrative, contributing to the formation of expert patient and allowing patients to explore and value the experiences and acquired knowledge.

Keywords Chronic illness; Learning; Experience; Biography

Résumé

Cet article présente les résultats d'une étude d’accompagnement d'un groupe de six patients atteints de sclérose en plaques lors d'une formation de patients experts en France et montre les effets de l'utilisation du biographique comme outil pour explorer les expériences personnelles et interpersonnelles des malades. Le travail s’est basé sur l'approche de la recherche biographique. Les résultats montrent que les participants ont pu explorer leurs expériences et trouver un espace pour la libération des sentiments à travers le récit, ce qui a pu contribuer pour la formation de patient expert en permettant aux patients d'explorer et de valoriser les expériences et les connaissances acquises.

Mots clés Maladie chronique; Apprentissage; Expérience; Biographie

Introdução

A esclerose em placas ou esclerose múltipla é uma doença neurológica, inflamatória que atinge o sistema nervoso e provoca danos na bainha de mielina dos neurônios. A bainha de mielina é uma proteína presente na estrutura do sistema nervoso, cuja função é de proteger o axônio e acelerar a velocidade da condução do impulso nervoso. Uma vez que essa estrutura se encontra danificada, a transmissão do impulso e dos sinais nervosos entre os neurônios não acontece de forma adequada, comprometendo a comunicação entre as células nervosas do cérebro e da medula espinhal, causando prejuízos de diversas ordens: motores, sensoriais e peristálticos (Oliveira & Souza, 1998). Perda de sensibilidade, espasmos, fadiga, dor aguda ou crônica, dificuldades visuais, perda de equilíbrio e coordenação motora, dificuldade na fala e na digestão e etc. figuram entre os sinais e sintomas dessa doença (Oliveira & Souza, 1998; Associação Brasileira de Esclerose Múltipla [ABEM], 2013).

A epidemiologia da doença apresenta uma maior proporção de mulheres do que homens acometidos pela doença, na razão de 2:1, estando presente em todo mundo e atingindo cerca de 2,3 milhões de pessoas. A Europa apresenta uma prevalência de 108 doentes por 100.00 habitantes, sendo a prevalência francesa de 60 a 100 doentes/100.00 habitantes. O Brasil apresenta uma prevalência menor que varia entre 5 a 20 doentes por 100.00 habitantes (ABEM, 2013).

Sendo uma doença que apresenta episódios agudos e/ou progressivos, a esclerose múltipla provoca uma degenerescência progressiva e contínua das funções neurológicas, sendo classificada como uma doença crônica sem cura. Segundo a ABEM (2016), o tratamento consiste em atuar para melhorar as funções fisiológicas comprometidas, prevenir novos episódios e o avanço da degenerescência.

Diante do exposto, é possível compreender que a esclerose múltipla é uma doença que provoca repercussões na vida dos doentes, podendo levar a uma profunda mudança nas atividades quotidianas em razão do tipo de manifestação dos sintomas e sua progressão. A doença pode impactar na locomoção dos doentes, limitando a autonomia dos mesmos; nas funções mentais através de um déficit cognitivo, repercutindo na continuidade das atividades de trabalho e podendo levar à aposentadoria e invalidez (Morales, et. al., 2007). Tais impactos e repercussões são também sentidos no âmbito psicológico, sendo a depressão e a ansiedade algumas das doenças que podem figurar no curso de vida dos doentes (Maia, Viegas & Amaral, 2008).

Assim, a trajetória de vida dos doentes portadores da esclerose múltipla é repleta de momentos de mudanças e adaptações no gerenciamento das atividades quotidianas e no relacionamento mais íntimo com o corpo, seus limites e potencialidades. Familiares e amigos são igualmente envolvidos nesse percurso de mudanças, podendo assumir o papel de acompanhantes dos doentes. O conjunto dessas mudanças leva os doentes a desenvolverem uma série de conhecimentos e expertises frutos do aprendizado que a doença impõe ao longo da sua evolução. Tais conhecimentos são construídos paulatinamente por meio das relações interpessoais com os profissionais de saúde e com a rede de apoio; e da relação intrapessoal, na qual o doente passa a reconhecer a linguagem emitida pelo seu corpo através do sinais e sintomas. A doença crônica inaugura forçosamente um novo capítulo de mudanças e reconfigurações na história de vida dos doentes.

Partindo do princípio da democracia sanitária, a França considera os conhecimentos e saberes dos doentes como elementos que devem ser valorizados e incluídos nas ações de saúde. Os doentes não são apenas sujeitos a serem cuidados pelo sistema de saúde, mas agentes a contribuir e ensinar aos profissionais de saúde a partir dos saberes e conhecimentos adquiridos (Tourette-Turgis, 2016). Partindo dessa perspectiva, algumas instituições francesas promovem formações para doentes crônicos que queiram atuar no sistema de saúde assumindo o papel de pacientes experts. O termo “paciente expert” refere-se ao doente que se engaja em uma formação de educação terapêutica de pacientes para trabalhar suas experiências pessoais ligadas à doença a fim de ajudar outros doentes a melhor gerir suas vidas e os desafios impostos pela doença crônica. Da mesma maneira, após a formação, o paciente expert pode igualmente atuar no sistema de saúde e em associações de pacientes com a finalidade de trazer para os espaços de cuidado a perspectiva dos doentes, suas reivindicações e contribuições (Tourette-Turgis, 2016).

Vale ressaltar que o termo paciente expert e educação terapêutica de pacientes (ETP) são intimamente ligados. Para Catherine Tourette-Turgis (2016), pioneira na formação de pacientes experts através de programas de ETP e fundadora da Université des Patients (UPMC[1]), trata-se de um trabalho de reunir e valorizar os conhecimentos dos doentes de modo a ajudá-los a adquirir novas competências e contribuir para a construção de um cuidado integral. Segundo Tourette-Turgis e Thievenaz (2014), a ETP refere-se a um processo de valorização e desenvolvimento das capacidades e saberes dos doentes e/ou da sua rede de apoio com o intuito de ajudá-los a construir uma maior autonomia face à doença. Busca-se também apoiá-los na construção do papel de atores sociais junto ao sistema de saúde.

É no contexto da ETP e da formação de paciente expert que o trabalho de construção da história de vida apresentado neste artigo se desenvolveu. Tendo sido convidada para acompanhar a formação de paciente expert na esclerose múltipla, solicitada pela Liga Francesa da Esclerose Múltipla (LFSP[2]) e promovida pela agência de formação “Comment Dire[3]”, pude desenvolver um trabalho de elaboração narrativa das histórias de vida com seis doentes portadores da esclerose múltipla participantes da referida formação. O objetivo deste trabalho foi ajudá-los a revisitar suas trajetórias, explorando as experiências pessoais e interpessoais vividas a partir do momento em que a doença se instala a fim de contribuir para o desenvolvimento do papel de paciente expert na esclerose múltipla. Meu papel nesse trabalho foi de acompanhante, ajudando-os a construir suas histórias de vida, e também de pesquisadora, na medida em que os produtos desse trabalho foram trabalhados segundo a perspectiva hermenêutica da pesquisa biográfica (Delory-Momberger, 2012; 2014).

Este artigo tem, então, como propósito, mostrar os resultados deste trabalho narrativo e autobiográfico para os participantes, bem como dar visibilidade às contribuições que fornece para uma melhor compreensão das experiências dos doentes.

Metodologia

Partindo da abordagem epistemológica e metodológica da pesquisa biográfica (Delory-Momberger, 2014) o trabalho de construção da história de vida dos participantes da formação de paciente expert na esclerose múltipla convidou-os a dar forma às experiências vividas através da narrativa. A pesquisa biográfica se interessa em compreender os “processos de gênese e de devir dos indivíduos no seio do espaço social e de mostrar como eles dão forma à suas experiências, como fazem significar as situações e os acontecimentos de sua existência” (Delory-Momberger, 2012, p.524)

Este trabalho se desenvolveu ao longo dos meses de novembro de 2016 a junho/2017. Seu começo se deu com a apresentação da proposta de trabalho e acordo dos participantes durante o atelier de formação promovido pela UPMC. Um documento explicitando as etapas e o cronograma de trabalho foi enviado aos participantes. Todos os nove participantes da formação aderiram ao trabalho, mas somente seis o concluíram (dois homens e quatro mulheres). Dois entre os três não concluintes alegaram que outras atividades se sobrepuseram à demande de escrita e o terceiro não respondeu mais aos contatos por email. Sendo uma atividade “extra-curricular” à formação e de caráter voluntário, todas as recusas foram prontamente acatadas.

A fim de explorar a narrativa da história de vida como um meio de ajudar os participantes a se desenvolverem enquanto pacientes experts, o trabalho de escrita respeitou o tempo de cada participante e o diálogo com o pesquisador aconteceu por e-mail, o que resolveu os problemas decorrentes da distância geográfica. Tal parceria entre os participantes e o pesquisador foi construída com base na empatia e confiança para que o processo de rememoração de fatos por vezes bastante difíceis da vida de cada um pudesse ser o mais acolhedor possível. Quando demandado pelos participantes, encontros via Skype foram promovidos para discutir sobre os efeitos e repercussões da escrita.

A elaboração do texto escrito seguiu algumas questões-chave, não diretivas, abertas e amplas o suficiente para que cada um explorasse as experiências vividas desde o aparecimento dos primeiros sintomas, a definição do diagnóstico, os aprendizados trazidos pela doença, a rede de apoio estabelecida com profissionais e familiares, as lacunas vividas com relação aos conhecimentos e saberes necessários para melhor entender e gerenciar a doença e, por fim, os saberes, lições e aprendizados que eles gostariam de transmitir aos outros (doentes, familiares e profissionais de saúde).

Terminada a etapa de elaboração da narrativa, a segunda etapa, de interpretação, gerou um novo material que permitiu aos participantes revisitar suas experiências narradas. Essa etapa começou no mês de julho de 2017 e seu objetivo foi compreender como cada participante deu forma e organizou as experiências vividas através da narração. Segundo a abordagem da pesquisa biográfica (Delory-Momberger, 2014), as formas encontradas por cada sujeito para organizar e dar sentido à narrativa da sua história de vida são visíveis segundo o tipo de discurso escolhido (narrativo, explicativo, descritivo e avaliativo), as palavras empregadas, os motivos que são recorrentes ao longo da narrativa e os esquemas da ação estabelecidos para afrontar os desafios e dificuldades da trajetória de vida.

Essa fase começou então com uma primeira leitura do texto finalizado pelos participantes, com o objetivo de retomar o texto construído ao longo do primeiro semestre. Uma segunda leitura permitiu em seguida remarcar os elementos utilizados por cada um para sublinhar, ilustrar, significar as experiências vividas. Além disso, procurou-se compreender o trabalho implementado por cada um para afrontar e combater as provações vividas e encontrar novas maneiras de viver com e apesar da esclerose múltipla. Esse trabalho de interpretação ajudou a compreender como cada participante, a partir do convite de contar sua história de vida após a chegada da esclerose, conseguiu encontrar uma forma de narrativa capaz de expressar as vivências, os sentimentos e os aprendizados.

O resultado desse trabalho gerou um material composto de quatro elementos. O primeiro apresenta uma síntese da história de vida de cada participante utilizando suas próprias palavras de modo a re-apresentar o texto bruto sob a forma de uma narrativa organizada em torno dos elementos e passagens principais. O segundo trata- se de um esquema gráfico sob a forma de uma linha do tempo que mostra as etapas da trajetória de vida de cada um a fim de dar maior visibilidade ao encadeamento dos eventos e fatos no que diz respeito à evolução da doença, do tratamento, incluindo aspectos emocionais e relacionais vividos pelos participantes. O terceiro trata-se do texto de interpretação propriamente dito que se concentrou sobre o trabalho de elaboração narrativa desenvolvido por cada participante para contar o que se passou desde o aparecimento dos primeiros sintomas até os dias atuais. O quarto e último foi consagrado a reunir os conhecimentos adquiridos pelos participantes fruto das experiências vividas para concluir com os conteúdos, conhecimentos e saberes que cada um gostaria de dividir e transmitir a outros doentes, familiares e profissionais de saúde. Cada participante recebeu o conjunto dos quatro elementos individualmente para que pudesse ler, refletir, criticar e novamente entrar em diálogo para propor alterações, inclusões e ajustes. Vale ressaltar que toda história de vida construída se inscreve dentro de um espaço-tempo em permanente mudança, ou seja, a história escrita hoje pode ganhar novas palavras, novos adjetivos, verbos, advérbios etc. se recontada em um outro momento. Assim, o retorno de cada participante não só permitiu fazer certos ajustes, como os levou a olhar para suas próprias histórias de vida a partir de um novo prisma. Narrador e leitor puderam assim se encontrar no momento da interpretação promovido por esse trabalho.

A fim de concluir esse trabalho, foram colocadas aos participantes algumas perguntas finais que buscaram explorar como cada um viveu a experiência de escrita e de devolutiva com os materiais oriundos da interpretação.

Assim, os resultados apresentados a seguir são divididos em partes, sendo a primeira dedicada a apresentar os elementos centrais e comuns presentes nas histórias e que ajudam a entender as experiências vividas enquanto doentes portadores da esclerose múltipla. A segunda, contudo, coloca em relevo o que essa experiência de construção biográfica trouxe de contribuição para os participantes e para a acompanhante- pesquisadora. Ressalta-se que os nomes indicados nas citações são pseudônimos utilizados para preservar a identidade dos participantes.

A esclerose múltipla pelo olhar dos participantes: pontos de convergência

Ao final da fase de escrita, eu tinha em mãos seis histórias de vida que me contavam como seis pessoas de idade diferentes, de histórias familiares e individuais únicas viveram a experiência de tornarem-se doentes crônicos portadores da esclerose múltipla e como cada um foi reestruturando a vida em função da evolução da doença. No momento da releitura das histórias, pude conhecer um pouco melhor como cada participante conseguiu dar forma e conteúdo escrito ao que tinha sido vivido. Esse foi o olhar focado na singularidade da figura traçada por cada um. Contudo, ao procurar ver o conjunto das histórias de vida escritas pelos participantes, pude ampliar meu foco e encontrar elementos comuns que criam pontos de convergência e interseção entre as diferentes trajetórias. Foi o momento então de conseguir ver o fundo da obra produzida pelas narrativas.

Focando nesse fundo da figura, apresento os elementos centrais e comuns das narrativas dos participantes a fim de dar visibilidade ao que se pode aprender com estas histórias e que ajudam também a refletir sobre suas trajetórias de vida.

Para o conjunto de participantes, os primeiros sintomas da esclerose foram sentidos sem um aviso prévio; eles chegaram e, apesar de difusos (dor de cabeça, fadiga, cansaço, desequilíbrio motor), foram bastante intensos, chegando a impedir as atividades que estavam sendo realizadas.

“A doença surgiu de maneira brutal... eu estava de férias nos Pirineus e caminhava sobre a neve quando de repente senti uma dormência nos membros inferiores... eu me lembro de ficar ansiosa pois nunca tinha vivido um evento fisiológico dessa intensidade”. (Lucia)

“Julho de 2007, era verão e eu tinha 14 anos, estava viajando com a minha família no sul da França e uma fadiga anormal tomou conta de mim, meu lado direito ficou lento, sobretudo minhas pernas, Achei que era apenas um cansaço excessivo, mas rapidamente minhas férias se transformaram em um pesadelo”. (Carolina)

“Janeiro de 1998, eu acordo e me levanto sem poder enxergar do olho direito. Ao final de alguns dias fui até um serviço de oftalmologia e escutei pela primeira vez o nome nevrite óptica”. (Cristina)

Apesar de intensos, os primeiros sintomas não foram seguidos do diagnóstico para a quase totalidade dos participantes. Somente para uma das participantes o diagnóstico foi dado seguido às primeiras manifestações, sobretudo porque, por ser enfermeira de profissão, já desconfiava do veredicto em função dos sintomas sentidos. Para os demais, o diagnóstico foi fechado no mínimo um ano após os primeiros sintomas, chegando até a quatro anos. Nesse espaço de tempo, cada um buscou retomar a vida tal como ela era antes dos primeiros indícios da doença. Vida de família, de trabalho, de estudos foram retomadas dentro de uma certa normalidade para todos.

Contudo, no curso do tempo os sintomas voltaram a se repetir e o quadro de saúde de todos se agravou, o que os conduziu a novos exames, internações e a chegada do diagnóstico.

“[...] Eu desmoronei, pois eu passei a ter consciência que não seria insignificante, que a doença não se curava e que eu deveria aprender a viver com ela”. (Cristina)

Apesar de vivido como um momento que indicava o início de uma vida em pleno curso de mudança, para alguns, o diagnóstico trouxe alívio e respostas a tudo que se passou e que não tinha ainda nem nome e nem identidade.

“Que alivio psíquico! Eu não conhecia quase nada da doença, mas eu tinha uma crença: ela não é mortal!”. (Lucia)

“Após as explicações médicas, que eu não me lembro muito bem, eu senti um grande alívio pois disse para mim mesmo que minha fadiga, meu cansaço eu não os inventava, eu não sou um preguiçoso”. (João)

Gradativamente a vida de todos foi tomando novos contornos, exigindo adaptações e mudanças no quotidiano das atividades desenvolvidas. O início dos tratamentos específicos foi também o início do aprendizado sobre os medicamentos, sobre os efeitos colaterais, sobre o tempo de resposta, sobre as reações do corpo. Uma nova temporalidade e prioridade se impuseram. O tempo dos ajustes entre as rotinas de antes do diagnóstico com as novas começou. Para Carolina, foi necessário recuperar as lições da escola com ajuda da mãe e dos amigos. Para os demais, já adultos em vida ativa, as funções no trabalho foram sendo adequadas com novas jornadas e turnos mais curtos. Contudo, essa mudança não foi facilmente aceita por todos. Algumas resistências e tentativas de negação da doença foram narradas pelos participantes.

“Eu retomei o curso da minha vida como se não tivesse acontecido nada [...] de toda forma eu era mais forte que a doença e eu não queria construir minha vida em função DELA”. (Cristina)

Cristina, em especial, conta que, em razão do seu posicionamento de negação da doença, tentou criar soluções paliativas o máximo que pôde para continuar a vida como se nada tivesse acontecido. Sua família, amigos e sua neurologista não cansaram de pedir que ela diminuísse o ritmo, sem, contudo, produzir grandes efeitos sobre o modo como buscava enfrentar a doença. A situação chegou ao limite quando ela precisou ser internada de urgência em decorrência da falta de repouso e cuidado à sua saúde, tendo passado três semanas no hospital sob o efeito de corticóides. Nesse momento, a identidade de uma pessoa doente portadora da esclerose múltipla apareceu para os colegas do trabalho e suas atividades foram mudadas.

Para os demais, a construção dessa identidade se deu gradativamente. Tanto familiares e amigos, quanto os colegas de trabalho foram sendo informados, o que não significou o fim do preconceito e da confrontação com situações difíceis. Carolina enfrentou na escola a crença de alguns colegas de classe de que sua doença seria contagiosa e Adriana precisou encarar uma separação de seu ex-companheiro que disse não querer mais viver com alguém doente.

Um aspecto extremamente significativo ao longo das histórias de vida é a passagem da condição de trabalhador ativo à invalidez. Com exceção de Carolina, que cursa a faculdade, os demais foram paulatinamente mudando a natureza das atividades realizadas, do ritmo de trabalho até chegarem à aposentadoria por invalidez. A chegada a esse momento foi extremamente difícil para todos, sobretudo por estarem ainda na idade ativa. Contudo, foi possível notar que, para aqueles que foram buscando adaptações gradativas no ritmo de vida, essa passagem foi atravessada com menos dor, com uma maior flexibilidade psíquica, maior compreensão dos efeitos da doença e mais respeito aos próprios limites do corpo.

No conjunto dos elementos que contribuíram para que essa passagem fosse feita de forma menos brusca, destacam-se inicialmente a proposição pelos locais de trabalho de novas atividades mais adaptadas dentro de um ritmo tolerável aos participantes. No aspecto físico, atividades de fisioterapia e de reeducação motora contribuíram para melhor conhecer e explorar os limites do corpo.

“Eu luto contra a doença [...] Eu luto através da fisioterapia e da reeducação funcional: três seções semanais de alongamento, relaxamento, reforço muscular, banhoterapia de água fria e caminhadas regulares”. (Lucia)

“Eu descobri novas atividades físicas: equitação, tiro e tiro ao arco”. (Adriana)

No plano emocional, trabalhos de psicoterapia e meditação favoreceram uma melhor elaboração psíquica das experiências vividas.

“Logo após o diagnóstico, busquei mais informações sobre a doença e um apoio psicológico para poder “integrar” esta nova realidade na minha vida. O apoio psicológico me ajudou a liberar meus sentimentos e pensamentos, sobretudo minhas inquietudes em relação ao futuro”. (Adriana)

“Eu considero que meus progressos são também decorrentes da meditação plena consciência que eu descobri no hospital de Marseille [...] Se eu não fosse doente eu não teria a oportunidade de conhecer esse trabalho realizado durante o horário comercial! Sim, obrigada esclerose!”. (Lucia)

“Eu aceitei os conselhos do meu neurologista e eu consultei uma psicóloga que me ajudou a aceitar a situação [...] Então, eu comecei a sentir menos cansaço emocional”. (Cristina)

No contexto das redes de apoio, a ajuda de familiares e amigos, o ingresso na vida associativa de pacientes crônicos portadores da esclerose múltipla foram elementos fundamentais para que os participantes pudessem reconfigurar suas vidas, encontrar novos objetivos e significados

“Depois que parei com as minhas atividades de trabalho, eu pude me engajar melhor na educação dos meus filhos, acompanhá-los nos estudos, aos cursos de piano, de basquete”. (Vicente)

“Aposentar precocemente é muito difícil [...] então eu disse para mim mesmo: vou fazer um trabalho voluntário. O mundo associativo estava presente na minha vida antes da doença, na minha juventude. Então retornar a esse mundo foi natural, foi como retornar aos meus primeiros amores”. (João)

Por fim, a chegada da formação de paciente expert marca a parte final de todas histórias narradas. O engajamento nesta formação que parte da valorização da trajetória de vida, das experiências vividas e dos saberes adquiridos contribui para fomentar certos propósitos de inserção profissional no sistema de saúde, assim como contribui para a autoestima e o reconhecimento de cada um enquanto pessoas que têm o que ensinar, aprender e ajudar outros doentes, seus familiares e profissionais de saúde.

“Um colega me falou desta formação de paciente expert, que eu não conhecia, mas eu disse para mim mesma: é uma atividade para mim [...] eu achei a idéia genial! Eu achei que seria um trampolim para me ajudar a passar por essa etapa difícil da invalidez, pois eu ficaria em um ambiente que eu conheço, que me agrada e eu poderia ajudar com a minha experiência”. (Cristina)

“Me parece que eu reforço minhas capacidades altruístas diante da necessidade de ajudar de forma ainda mais ativa com a função de paciente expert”. (Lucia)

Essa ajuda, atuação e esse engajamento são possíveis, pois, como já exposto, a perspectiva da formação de paciente expert é de valorizar os conhecimentos adquiridos ao longo da travessia de vida com a doença crônica. O doente crônico não é apenas um sujeito que se encontra em posição passiva de receber um tratamento, integrá-lo ao seu quotidiano e se adaptar a uma nova realidade. Ele faz tudo isso em processo permanente de aprendizado. Existe uma série de tarefas que vão sendo incorporadas à vida dos doentes que vão ajudando-o a se modular e se construir.

“A doença me ensinou a ousar, a ter confiança em mim [...] Eu aprendi também a desenvolver competências técnicas para o uso de bengalas, muletas, cadeiras de roda e sondas urinárias”. (Cristina)

“A doença me ensinou a reorganizar minha vida tranquilamente, a me adaptar e a

conciliar vida profissional, pessoal e o tempo do cuidado”. (Lucia)

“Aprendi sobre o lado médico, por exemplo sobre o funcionamento do sistema nervoso central e aprendi também a escutar meu corpo”. (Carolina)

“A doença me ensinou a pedir ajuda na rua, à minha família, aos serviços de saúde. Ela me ensinou também a aceitar a ajuda dos mesmos”. (Vicente)

Para Tourette-Turgis (2016), trata-se de uma construção do sujeito desencadeada pela doença e por todas as novas tarefas, habilidades, competências que ele precisa desenvolver para se cuidar. O doente acaba por estar em uma situação de experimentar-se a partir de novas perspectivas físicas, corporais, mentais e espirituais.

Assim, o trabalho com a construção da história de vida permitiu que os participantes pudessem revisitar suas trajetórias para dar forma, através das palavras, a todo um enredo que se iniciou com os primeiros sinais e sintomas até chegar ao momento da formação. Para melhor compreender o trabalho realizado pelos participantes e poder encontrar os pontos de convergência entre as diferentes histórias, foram evidenciados nessa parte do trabalho as operações e atitudes estabelecidas pelos participantes, a fim de integrar a doença em suas vidas. Delory-Momberger (2014) chama de “biographicité” o trabalho de ajustar e integrar a mudança vivida à biografia de cada um a fim de dar forma ao que foi vivido no espaço histórico-social fracionado e interpelado pela chegada da doença. Localizando a doença como um fluxo de acontecimentos que leva os doentes a progredir por caminhos e trajetórias não esperados, pode-se não somente compreender a particularidade de cada percurso, como também encontrar os pontos que reúnem os doentes portadores da mesma patologia.

Segundo Fischer (2008), a doença inaugura a experiência de uma vida ameaçada que faz emergir recursos até então desconhecidos, forças invisíveis que ajudam os doentes a lutar e prosseguir. Ainda que as provações impostas pela doença sejam vividas de forma singular, o olhar transversal do momento interpretativo permitiu produzir um encontro entre todos no que diz respeito aos seus recursos pessoais para viver e se reinventar face às manifestações da doença, à chegada do diagnóstico, aos tratamentos e às mudanças impostas.

A história de vida como elemento de formação

Segundo Delory-Momberger (2014), o homem existe e se constrói através da relação com o mundo que o rodeia e no qual ele pode evoluir e se transformar. O homem se forma em interação e diálogo permanentes com o mundo, sendo as disposições e forças de cada indivíduo os recursos que permitem que ele possa se desenvolver e florescer. Quando essa dinâmica toma forma através da história de vida, desencadeia-se um processo de inscrição da experiência humana em esquemas temporais resultantes de projetos biográficos que organizam os comportamentos e ações dentro de uma certa temporalidade. Ou seja, a história de vida possui uma temporalidade, sendo uma produção em permanente processo de construção e reconstrução. A história que se conta hoje será recontada amanhã pelo mesmo narrador que já é outro no espaço-tempo e por isso, ele será capaz de olhar para sua própria trajetória a partir de um outro ponto de vista. Por isso, construir uma história de vida não é buscar uma verdade do sujeito, mas convidá-lo a pesquisar, buscar e encontrar em si mesmo os elementos mobilizadores de suas ações e os princípios de suas orientações, o que permite encontrar os sentidos da sua existência.

Sendo assim, o convite para desenvolver esse trabalho de escrita da história de vida permitiu aos participantes uma série de encontros com eles mesmos e suas trajetórias, com os sentidos de seus atos passados e suas intenções para o futuro. A fim de captar essa dimensão, todos responderam algumas perguntas ao final, a saber: Como se passou para você a etapa de construção da história de vida? Quais foram suas impressões e sentimentos no retorno da etapa de interpretação? Quais contribuições esse trabalho traz para você e sua trajetória de vida enquanto paciente expert?

Primeiramente, o início da construção narrativa foi vivido com dificuldade por exigir a rememoração de fatos e passagens difíceis, levando a uma confrontação com aspectos que se preferia esquecer ou não lembrar.

“Por anos eu evitei falar da minha doença e eu tentei esquecer todas as dificuldades que eu tinha atravessado... assim, ter que revistar todos esses elementos não me agradava”. (Cristina)

“O mais difícil foram os primeiros passos... buscar na minha memória os momentos-chave acabou por fazer ressurgir na minha memória as emoções (em geral desagradáveis) que eu tinha “arrumado” na minha memória e que eu não lembrava mais”. (Adriana)

Contudo, a progressão do trabalho, respeitando o ritmo de cada um, o vínculo construído baseado na confiança e na confidencialidade permitiram que essas dificuldades iniciais fossem superadas.

“O que facilitou a construção da história de vida foram as questões colocadas, o que me ajudou a refletir sobre certos pontos e avançar”. (Carolina)

“O que me ajudou foi a progressão dos questionamentos feitos. Como uma máquina fotográfica, certos detalhes importantes da minha trajetória foram sendo focados, o que me ajudou a mergulhar nela com doçura”. (Adriana)

Nesse sentido, o fato de ter evocado no início deste artigo que meu papel foi de uma acompanhante-pesquisadora deve-se ao meu posicionamento ao lado dos participantes como uma guia que acendia algumas luzes para que eles olhassem com mais clareza certos aspectos de suas próprias histórias. A relação estabelecida foi horizontal para que pudéssemos compartilhar nossas experiências. Considero que essa é uma das condições primordiais para a realização desse trabalho na perspectiva da educação terapêutica do paciente. Se nessa perspectiva o paciente é um sujeito de direitos, protagonista de sua história e portador de conhecimentos e saberes a transmitir e compartilhar, acompanhá-los em um trabalho biográfico pressupõe ajudá- lo no encontro consigo mesmo.

“A partir do momento que eu entrei definitivamente no processo, tudo ficou mais simples, mesmo se teve choro, mas foi bom afinal de contas; me fez bem ter reescrito todo meu percurso e com certeza isso me ajudará no meu trabalho de aceitação”. (Cristina)

Os efeitos positivos do trabalho não foram somente sentidos na construção da história de vida, mas também no momento de retorno das interpretações, o que desencadeou um outro tipo de troca e reflexão permitidas por um segundo convite, o de olhar em perspectiva e com certo distanciamento para o produto da escrita e se ver através de ângulos absolutamente novos aos participantes.

“Eu fiquei emocionada e tocada pelo olhar que a interpretação me trouxe sobre mim mesma, sobre o meu trabalho diante da esclerose. Eu acredito que eu consultarei esses textos cada vez que eu viver algo que me baqueie”. (Adriana)

“Eu fiquei impressionada de ver a que ponto através da minha história foi possível reconhecer minha personalidade e meus sentimentos [...] é exatamente o que eu quero mostrar e o que eu sou: uma combatente”. (Cristina)

“A leitura da interpretação me mostrou que no curso da doença teve coisas muito bonitas e é isso que eu quero reter (os encontros, meus estudos, o apoio da minha mãe, dos meus amigos, [...]. Eu aprendi a crescer com a doença e graça a ela”. (Carolina)

O retorno dos participantes mostrou que o trabalho em torno da construção da história de vida produziu efeitos positivos não somente durante o processo de escrita, como também no momento da interpretação. A história ganha assim a dimensão de material, suporte e campo de exploração de si. Ela é tanto suporte de construção pessoal, objeto de elaboração da experiência singular, quanto lugar de conformação das ações de resistência, de luta, de aprendizado e de aliança na dinâmica entre a dimensão pessoal e social da vida dos indivíduos (Delory-Momberger, 2014).

Quanto à relação entre esse trabalho e a construção da postura e do papel de paciente expert, os participantes evocaram que ter vivido essa experiência permitiu um olhar mais ampliado e aprofundado para si mesmo, o que ajudará no encontro com o outro. Foi um trabalho que valorizou as experiências vividas e os saberes adquiridos, o que contribui para aumentar o poder de ação dos participantes.

“Eu não havia dimensionado o lugar da minha história de vida, mas ter feito esse trabalho me permitiu reencontrar um “eu” que tem talentos, meu eu preferido, o que é estruturante”. (Lucia)

“Mesmo se no início eu não via muito interesse no trabalho, eu acho hoje que ele é primordial para ser um paciente expert, pois ele vai me ajudar na escuta de outros doentes e tendo consciência de tudo que devemos atravessar enquanto doentes eu posso ser mais empática e estar à escuta do outro”. (Cristina)

Pode-se compreender que as etapas do trabalho permitiram explorar o que Delory- Momberger (2014) nomeia do alemão “Erlebnis” – as possibilidades de aprendizado na vida – e “Erfahrung” - aquilo que aprendo da experiência vivida e integro na minha trajetória. Confrontar-se com ambos os movimentos (com as experiências vividas e o que eu tirei das mesmas e integrei em mim enquanto conhecimento, saber e astúcia) contribui para reafirmar a decisão de tornar-se paciente expert e continuar o percurso de formação e inserção que os participantes decidiram traçar. A formação para Honoré (2013, p.15) não é um fenômeno que se explique, mas que “se compreende a partir de uma disposição de entender suas ressonâncias através da nossa existência”.

“Esse trabalho me prova e me mostra mais uma vez que eu percorri um caminho depois do diagnóstico e sobretudo graça à doença eu aprendi tantas coisas”. (Carolina)

Ao dar visibilidade à gestão que os participantes fizeram ao longo do caminho para lidar com a doença e suas repercussões, não só a trajetória foi revisitada e recontada, como também a subjetividade ganhou amplitude e legitimidade, tornando mais claro como cada um evoluiu diante da doença (Dominicé, 2007).

A história de vida ajuda a evidenciar e legitimar o aprendizado que se faz ao longo do caminho, através das experiências vividas sem estabelecer uma hierarquia de conhecimentos. Segundo Dominicé (2007), a história de vida permite colocar em relevo a relação que se constrói entre as dimensões formais e informais do aprendizado.

A dimensão formativa não se restringiu apenas aos participantes, pois a cada encontro, leitura e discussão sobre a história de vida em curso de construção, melhor eu buscava me posicionar para acolher e compreender os participantes. Enquanto acompanhante- pesquisadora nesse processo, foi possível compreender os diferentes cenários de

vida dos participantes e melhor observar a relação entre a experiência vivida e o aprendizado realizado, assim como os recursos físicos, psíquicos, emocionais e terapêuticos mobilizados. Trata-se de compreender o doente e não a doença, colocando em relevo o sujeito que se constrói progressivamente e em constante interação social. Baseado na abordagem da pesquisa biográfica (Delory-Momberger, 2012; 2014), ao colocar o doente em relevo, pude compreender os processos da gênese de se tornarem indivíduos portadores de uma doença crônica dentro do espaço social e como cada um dá forma às suas experiências e significado ao que foi vivido.

Em todas as etapas do trabalho e durante todo o processo de construção, a dimensão ética exigiu a construção de uma relação de informação, negociação, empatia, reconhecimento e valorização do outro em sua singularidade. Cada parte da história que avançava e cada email que chegava permitiam que nós, enquanto binômio, participante e acompanhante-pesquisadora, evoluíssemos junto. O esforço de se construir um trabalho com tal horizontalidade permitiu incluir os participantes como co-autores e agentes ativos nas etapas desenvolvidas. Ao mesmo tempo, esse trabalho produziu ressonâncias em mim que me ajudaram a interrogar minha postura de pesquisadora e a buscar meios e formas de comunicação que respeitassem suas histórias de vida. Esse aspecto se tornou ainda mais premente se considerarmos que as partes do binômio não fazem parte da mesma cultura. Ao longo desse trabalho, Brasil e França, língua portuguesa e francesa, com seus sentidos e significados, se encontravam e buscavam se entender.

Se os participantes evocaram os efeitos positivos desse trabalho como oriundos da nossa interação e da maneira como foi desenvolvido, o mesmo pode ser dito partindo da minha perspectiva, pois os encontros também produziam ressonâncias em mim. A dimensão do engajamento social inscrito nesse trabalho foi explorada na medida em que ele pôde contribuir para um projeto de formação que visa transformar o papel e a inserção de doentes no sistema de saúde, mas também a partir do que mobilizou em mim enquanto profissional de saúde e professora. Se melhor eu compreendo os sujeitos nas suas interações com o mundo, nos seus processos formativos, nas suas potencialidades, assim como as barreiras e dificuldades presentes na construção de um cuidado mais integral e articulado, melhor eu posso agir a partir de meu raio de ação.

A dimensão formativa inscrita nesse trabalho não se restringe, por isso, aos participantes a fim de ajudá-los em suas trajetórias pessoais e profissionais. Ela atinge e repercute no modo como me aproprio do meu trabalho e me interroga quanto à relação que estabeleço com os sujeitos que acompanho. Ela questiona igualmente os valores que sustentam o trabalho, fazendo valorizar aqueles que consideram a vida como potência de agir. Corroborando com Honoré (2013), a história de cada um encontra a história do outro no contexto social. Neste sentido, estamos sempre em estado de inter-formação de nossas práticas.

Considerações finais

Diante do exposto, pode-se entender que o trabalho proposto e desenvolvido contribuiu para a formação dos participantes na medida em que os mesmos foram acompanhados de forma co-construtiva em um processo de exploração de suas experiências de vida e da trajetória percorrida desde o princípio da doença. Eles puderam igualmente encontrar um espaço para a liberação de sentimentos e reflexões através da narrativa, valorizando os conhecimentos e saberes adquiridos.

Da mesma forma, o trabalho produziu em mim efeitos formativos enquanto acompanhante-pesquisadora, auxiliando-me a melhor compreender as histórias de vida dos participantes segundo uma perspectiva ética, acolhedora e respeitosa da singularidade e do ritmo de cada um. Tais contribuições também alimentam a minha formação enquanto profissional de saúde.

Por fim, o trabalho permite mostrar que a dimensão formativa não se restringe somente às práticas pedagógicas formais, mas ele se encontra também no modo como integramos os conhecimentos e saberes às nossas trajetórias de vida. Como aspectos a serem explorados a partir desse trabalho, considera-se que a perspectiva biográfica precisa ter uma maior entrada nas formações e práticas em saúde a fim de abrir novas perspectivas de relação e de construção do conhecimento entre profissionais e doentes.

Referências

Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (Ed.). (2013). Atlas da Esclerose Múltipla. São Paulo. [ Links ]

Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (2016). Esclerose múltipla em detalhes. Recuperado em 18 janeiro, 2018 de: http://abem.org.br/esclerose/esclerose-multipla-em-detalhes/#tratamentoLinks ]

Delory-Momberger, C. (2012) Abordagens metodológicas na pesquisa biográfica. Revista Brasileira de Educação, 17(51), 523-536. [ Links ]

Delory-Momberger, C. (2014) De la recherche biographique en éducation. Fondements Méthodes Pratiques, Paris: Téraèdre, coll. «Autobiographie et éducation ». [ Links ]

Dominicé, P. (2007) La formation biographique. Paris: L’Harmattan. [ Links ]

Fischer, G-N. (2008) L’expérience du malade: l’épreuve intime. Paris: DUNOD. [ Links ]

Honoré, B. (2013). Produire sa vie et son histoire – résonances philosophiques. Lyon: Chronique sociale. [ Links ]

Maia L.A.C.R., Viegas, J., Amaral, M. (2008) Esclerose múltipla: conhecer para desmistificar. Recuperado em 18 janeiro, 2018 de: www.psicologia.com.pt [ Links ]

Morales, R.R., Morales, N.M.O., Rocha, F.C.G., Fenelon, S.B., Pinto, R.M.C., Silva, C.H.M. (2007). Qualidade de vida em portadores de esclerose múltipla. Arq. Neuropsiquiatria; 65 (2-B): 454-460. [ Links ]

Oliveira, E.M.L., Souza, N.A. (1998) Esclerose Múltipla. Rev. Neurociências 6(3): 114-118. [ Links ]

Tourette-Turgis, C. (2016) L’éducation thérapeutique du patient: la maladie comme occasion d’appretissage. Belgique: De Boeck Superieur. [ Links ]

Tourette-Turgis, C., Thievenaz, J. (2014) L’éducation thérapeutique du patient: champ de pratique et champ de recherche. Savoirs, revue internationnalle en éducation et formation des adultes, 35, 11-50. [ Links ]

Recebido: 01 de Junho de 2018; Aceito: 01 de Julho de 2018