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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.24  Brasília  2018  Epub 15-Nov-2018

https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.18956 

Dossiê: Narrativas, educação e saúde: o sujeito na cidade

Post-it: Narrativas biográficas e doenças crônicas

POST-IT: biographical narratives and chronic diseases

POST-IT: narrativas biográficas y enfermedades crónicas

POST-IT: récits biographiques et maladies chroniques

Elizeu Clementino de Souza1 
http://orcid.org/0000-0002-4145-1460

1Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista CAPES – Edital Estágio Sênior 2016. Pesquisador 1C do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB). Coordenador do Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, Formação e História Oral (GRAFHO). Membro do Conselho de Administração da Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação e da Pesquisa Biográfica em Educação (ASIHVIF/RBE)). Pesquisador Associado do Laboratório EXPERICE (Universidade Paris 13/França). Diretor Financeiro da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica - BIOgraph (2014-2018). Editor Executivo da Revista Brasileira de Pesquisa (auto) biográfica (RBPAB).


Resumen

El texto analiza narrativas de los colaboradores de la Revista Saber Viver publicadas en la sección 'Cuente su historia', en lo que se refiere al VIH/Aids, al discutir experiencias con la enfermedad, procesos de aprendizajes biográficos y formas de enfrentamiento para vivir con la cronicidad. Las disposiciones teóricas del enfoque (auto)biográfico son movilizadas para las análisis de las narrativas, como fuente de investigación, en lo que concierne a las experiencias de los sujetos con el padecimiento. Se discuten cuestiones sobre procesos de producción, circulación y recepción de la revista, al evidenciar rupturas y refiguraciones identitarias implicadas con la enfermedad crónica, disposiciones construidas por cada sujeto para vivir con el VIH/Aids y representaciones sobre la enfermedad.

Palavras-chave Pesquisa (auto)biográfica; Doenças crônicas; HIV/Aids; Aprendizagens com a doença

Resumo

O texto analisa narrativas de colaboradores da Revista Saber Viver publicadas na seção ‘Conte sua história’, no que se refere ao HIV/Aids, ao discutir experiências com a doença, processos de aprendizagens biográficas e formas de enfrentamento para viverem com a cronicidade. Disposições teóricas da abordagem (auto)biográfica são mobilizadas para as análises das narrativas, como fonte de pesquisa, no que concerne às experiências dos sujeitos com o adoecimento. Discute-se questões sobre processos de produção, circulação e recepção da revista, ao evidenciar rupturas e refigurações identitárias implicadas com a doença crônica, disposições construídas por cada sujeito para viver com o HIV/Aids e representações sobre a doença.

Palavras-chave Pesquisa (auto)biográfica; Doenças crônicas; HIV/Aids; Aprendizagens com a doença

Abstract

The text analyzes the narratives published in the ‘Saber Viver’ Journal, in the ‘Tell your story’ section, which regards HIV/AIDS, by discussing experiences with the disease, the biographical learning processes and the ways of living with chronicity. The theoretical dispositions of the (auto)biographical approach are mobilized for the analysis of the narratives, as a source of research, as far as it concerns the experiences of the subjects with the illness. Furthermore, the reflection aims to discuss questions about the processes of production, circulation and reception of the journal, by evincing the ruptures and reconfigurations which are part of a chronic disease experience, the provisions built by each subject to live with HIV/ AIDS and the representations about the disease.

Keywords Research (auto) biographical; Chronic diseases; HIV/AIDS; Learning with the disease

Résumé

Le texte analyse les récits de collaborateurs de la Revue Saber Viver, publiés dans la section «Racontez votre histoire», concernant le VIH/SIDA, en mettant en avant les expériences avec la maladie, les processus d'apprentissage biographique et les manières de vivre avec la chronicité. Les récits, en tant que source de recherche et champ d'expression des expériences des malades, ont été analysés à partir des ancrages théoriques de la recherche (auto)biographique. Les résultats de ce travail explorent les questions autour du processus de production, circulation et réception de la revue et mettent en évidence les représentations de la maladie décrites par les individus, ainsi que les ruptures identitaires et de reconfigurations par lesquelles ceux-là sont passés afin de vivre avec le VIH/SIDA.

Mots clés Recherche (auto) biographique; Maladies chroniques; VIH/SIDA; Apprentissages dre avec la maladie

Notas introdutórias: cores, cola e processo de adoecimento

Eu queria ver no escuro do mundo; Onde está tudo o que você quer; Pra me transformar no que te agrada; No que me faça ver; Quais são as cores e as coisas; Pra te prender? Eu tive um sonho ruim e acordei chorando [...] (Vianna, 1988 – Quase um segundo[1])

A metáfora utilizada no texto[2] parte da ideia do post-it, como uma imagem que os sujeitos constroem sobre o processo de adoecimento e suas relações com a doença crônica, como algo que se instala, que cola de forma e cores diferentes, deixando marcado, inscrito e escrito no sangue e na própria vida, dimensões diversas de como pessoas que vivem com HIV/Aids se colocam e constroem representações sobre o adoecimento e a própria identidade, em sua relação com a cronicidade.

Cores, coisas, marcas da vida e escuridão do mundo são formas metafóricas em articulação entre a canção e as imagens do post-it, como férteis para possíveis análises construídas sobre narrativas (auto)biográficas, publicadas na Seção ‘Conte sua história’, da Revista Saber Viver. A ideia central que mobiliza as análises apresentadas no texto toma como referência reflexões sobre narrativas (auto)biográficas e processos de aprendizagens com doenças crônicas, notadamente, no que se refere ao HIV/Aids, através das narrativas dos colaboradores da referida Revista e publicadas naquela Seção.

As discussões apresentadas no texto partem de teorizações sobre processos de aprendizagem com a doença conforme sistematizações construídas por Delory- Momberger (2016, 2013), Delory-Momberger e Tourette-Turgis (2013), Souza (2016, 2014a, 2014b); a noção de Educação Terapêutica do Paciente (ETP) desenvolvida por Tourette-Turgis (2015, 2013), Tourette-Turgis e Pereira-Paulo (2016), Tourette-Turgis e Thievenaz (2014), e aspectos relacionados às aprendizagens e experiências com doenças crônicas por parte dos próprios sujeitos como campo de pesquisa na área da saúde, como propostas abordadas teoricamente por Pereira-Paulo e Tourette-Turgis (2016).

As teorizações sobre aprendizagens biográficas com a doença, narrativas biográficas e questões relacionadas à crise identitária e refiguração da identidade, inscritas nas experiências com a cronicidades, serão férteis e potentes para as análises sobre as narrativas dos colaboradores da Revista Saber Viver, por meio das experiências narradas pelos sujeitos sobre o processo de adoecimento e práticas de resistências vinculadas ao ato de narrar a vida, a doença e os desafios que se colocam nas cores da vida, na escuridão do e/com o adoecimento, marcados pela cronicidade, como um post-it que cola e impregna a identidade pessoal, a identidade narrativa e social de pessoas que vivem com HIV/Aids.

A análise aqui realizada desdobra-se como ação de uma rede de colaboração empreendida entre a Université Paris 13 - Sorbonne Paris Cité, no âmbito do Laboratório - Centre Interuniversitaire de Recherche EXPERICE, Eixo A “Le sujet dans la Cité: éducation, individuation, biographisation”, à Université des Patients, notadamente no que se refere aos estudos desenvolvidos sobre aprendizagens com a doença e educação terapêutica do paciente, bem como ações iniciadas no ano de 2014 pelo Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/ PPGEduC/UNEB-CNPq), nas interfaces entre narrativas, experiências e aprendizagens biográficas com a doença. As ações e experiências prévias de colaboração acadêmico- científica com a Universidade de Paris 13 - Sorbonne Paris Cité consideram, sobremaneira, o trabalho que temos desenvolvido por meio do projeto de pesquisa colaborativa E-Form-Innov, financiado pela Fundação de Doenças Raras sobre doenças autoimunes raras, mediante parcerias entre pesquisadores do campo das Ciências Humanas e Sociais, por intermédio de cooperação acadêmica-científica entre o Laboratório EXPERICE (UP 13 e UP 8 – França), o Centro de Pesquisa e Formação do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (CNAM-Paris), a Universidade dos Pacientes, vinculada à Université Pierre et Marie Curie (UPMC) -Sorbonne Universités e uma equipe biomédica AP-HP do Serviço de Medicina Interna e de Patologia Vascular do Hospital Saint-Louis de Paris, possibilitando-me analisar narrativas dos colaboradores da Revista Saber Viver.

O texto organiza-se a partir de uma discussão abreviada sobre processos de produção, circulação e recepção da Revista Saber Viver e dimensões relacionadas `as narrativas e experiências no contexto das aprendizagens biográficas com doenças crônicas, especialmente o HIV/Aids, ao tomar como corpus de análise narrativas biográficas publicadas na seção “Conte sua história”. Para tanto, utilizarei na análise três eixos temáticos, organizados a partir do agrupamento das narrativas, os quais explicitam e articulam questões identitárias e de refiguração de si com a cronicidade, marcadas pelo HIV/Aids, pelos processos de aprendizagens com a doença e representações sobre a doença.

Aprender a viver com a doença, nas suas mais diversas formas, suas matizes e cores, como uma intervenção que se inscreve na vida, implica apreender a doença, especialmente a cronicidade, como uma manifestação da vida, como uma disposição objetiva e subjetiva que demarca rupturas e refigurações identitárias, face aos modos como os sujeitos forjam, enfrentam, reorganizam a vida e suas identidades para conviver com o adoecimento.

‘Saber Viver’: produção, circulação e recepção

Souza (2014a, 2014b), ao realizar uma primeira análise do processo de produção, circulação e recepção da Revista Saber Viver, especialmente no que se refere à arqueologia do impresso, afirma que a revista teve o seu primeiro número publicado em 1999 e o último, correspondendo ao número 50 (cinquenta), no ano de 2013.

No que se refere à produção, a Revista Saber viver foi concebida e é organizada pela Saber Viver Comunicação[3], por meio da coordenação e edição de Silvia Chalub, tendo como assistente de edição Ester Machado e reportagens de Bruno Amorim, Ester Machado, Graça Portela, Luiza Toschi e Silvia Chalub, arte desenvolvida pela A4 Mãos Comunicação e Design e impressão financiada pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde[4].

Ao discutir questões sobre a produção e circulação da revista, conforme informações publicadas no site da revista, afirma Souza, que:

A Revista Saber Viver nasce como iniciativa da ONG e Editora Saber Viver Comunicação, ao contribuir para a qualidade de vida, autoestima, formas de enfrentamento e de resistência a preconceitos sociais sobre as pessoas soropositivas. A Revista foi criada por Sílvia Chalub, tendo seu primeiro número lançado em 1999 (Ano 1, n. 1, Out./Nov. 1999), com a tiragem de 6.000 exemplares e financiada por laboratórios de medicamentos antirretrovirais nos seus primeiros quatro anos. Após esse período e com a criação no quinto ano da Revista Saber Viver Profissionais da Saúde, a Revista passa a contar com apoio financeiro para impressão do Departamento de DST/Aids, do Ministério da Saúde, bem como de secretarias de saúde e de laboratórios de medicamentos, com investimentos específicos dos laboratórios para a Revista destinada para os profissionais de saúde. (Souza, 2014a, p. 119-120)

Evidencia-se que a Revista Saber Viver objetiva, através do seu processo de produção e circulação, contribuir com socialização de informações sobre as relações postas entre saúde e doenças crônicas, questões voltadas para a cidadania e orientações para pessoas que vivem e convivem com o HIV/Aids.

A Revista apresenta-se em suporte impresso e digital, sendo distribuída gratuitamente para todos os serviços públicos de saúde voltados para o atendimento e acompanhamento de pessoas que vivem com HIV/Aids.

A análise desenvolvida, ao tomar o impresso como objeto de investigação, por intermédio de diálogos teóricos e princípios da história cultural, da nova história e da biografização, possibilitou-me apreender práticas e usos, modos culturais e sociais de circulação de certas ideias contidas neste, mediante as diferentes formas de representação sobre o adoecimento e a cronicidade, partilhadas pelos colaboradores da Revista, publicadas na Sessão ‘Conte sua História’, face aos processos de aprendizagem e de refiguração identitária de pessoas que vivem com HIV/Aids.

Sua circulação tem contribuído, através da materialidade do impresso, para a promoção de saúde, informação e cidadania para pessoas que vivem com o HIV/Aids. Quanto à produção e circulação, cabe observar que diversos editoriais explicitam aspectos vinculados a sua origem, seus objetivos, situando de forma muita clara ações de cuidado e atenção para pessoas que vivem com HIV/Aids, implicando em férteis e potentes contribuições para o desenvolvimento da autoestima e qualidade de vida, mediante processos de aprendizagens com a doença de pessoas soropositivas. A afirmação da missão e das intenções da revista são destacadas em diferentes editoriais, explicitando seus objetivos no número 1 (1999), depois no editorial do número 30 (2004), quando do quinto ano de publicação da Revista e no número 45 (2009), quando a Saber Viver completou dez anos e também no editorial do número 50, através de balanço apresentado sobre os trinta anos da Aids. Nos diferentes editoriais são demarcados a função e o alcance para o público a que se destina, assim como desafios e importância da circulação e diferentes modos de apropriação, a despeito de todas as dificuldades de financiamento, da sustentabilidade e continuidade da publicação para pessoas que vivem com HIV/Aids, conforme explicitado em diferentes editoriais e no site da revista,

A revista, que tem como público alvo as pessoas que vivem e convivem com o HIV/ aids, exerce um papel fundamental para a qualidade de vida e a autoestima das pessoas soropositivas. Com matérias sobre tratamento, cuidados com a saúde, alimentação, comportamento, direitos e uma seção de cartas que estimula a interação entre os leitores, a publicação difunde conhecimento, quebra tabus e promove mudanças saudáveis em todos os envolvidos com o tema aids. Lançada em 1999, com uma tiragem de seis mil exemplares, distribuídos em apenas três serviços de saúde do Rio de Janeiro, em pouco tempo a revista ampliou seu alcance. Atualmente, a cada edição, 120 mil exemplares são distribuídos gratuitamente em mais de 1.000 unidades de saúde e instituições que atuam na área de aids, em todos os estados brasileiros[5]. (Revista Saber Viver, 2012, s/p).

São inegáveis a importância e o papel assumidos pela Revista, inicialmente para os profissionais de saúde e, posteriormente para pessoas que vivem com HIV/Aids, pela função social e processo de acompanhamento, escuta e publicação de narrativas de diferentes profissionais de saúde - médicos, psicólogos, enfermeiros, farmacêuticos e assistentes sociais – e, também na Seção Depoimentos e Conte sua História, narrativas biográficas de pessoas que vivem com HIV/Aids, demarcando, sobremaneira, modos de produção, circulação e recepção da revista, através das contribuições que apresenta para os leitores, no que se refere aos diagnóstico, aprendizagem com a doença, questões sobre cronicidade, adesão aos medicamentos, preconceitos, disposições jurídicas trabalhistas e acompanhamento médico como fundamentais para as pessoas que vivem com HIV.

Cabe destacar que os diferentes números publicados da Revista Saber Viver passaram por mudanças e renovações tipográficas, ampliações de suas seções, às quais incorporaram discussões e teorizações sobre a epidemia da Aids, passo a passo com orientações sobre medicamentos, alimentação, atividades físicas, bem estar, grupos de convivências, depoimentos, bem como seções voltadas para a socialização de narrativas e experiências com o HIV/Aids, através das publicações de excertos (auto) biográficos publicados na sessão ‘Conte sua história’ e na seção correspondências.

Outro aspecto relevante vinculado à revista refere-se às ações mútuas de ajuda por meio da publicação de histórias e narrativas sobre a cronicidade da doença, impactos da soropositividade, mas também de modos diversos como as pessoas vivem, enfrentam, resistem, refiguram e prefiguram suas identidades, no decurso do processo de adoecimento e das aprendizagens biográficas e cotidianas construídas na/sobre a doença.

Análises realizadas por Souza (2014a, 2014b, 2016) buscaram evidenciar aspectos concernentes à materialidade do impresso, suas formas de produção, circulação e recepção, tendo em vista o modo como a Revista é organizada, explicitando estreitas relações entre os títulos dos números e as matérias socializadas na seção Comportamento e ‘Conte sua história’, com manifestações de questões políticas, sociais, culturais e de saúde pública sobre a doença, bem como as representações sobre o HIV/Aids, demarcando sua função sócio-política para pessoas que com-vivem com a cronicidade implicada com o HIV.

Após situar modos de produção, circulação e recepção da revista, discuto implicações possíveis entre narrativas e aprendizagens biográficas com doenças crônicas, ao tomar como referência sistematizações construídas por Souza (2016, 2014, 2014a) através da análise de narrativas de colaboradores publicadas na sessão ‘Conte sua história’, da Revista Saber Viver. O enfoque aqui adotado incide sobre fragmentos narrativos dos colaboradores da Revista, no que se refere à descoberta e ao diagnóstico do vírus, modos de vida, relações afetivas e familiares, HIV e mulheres, gestação e HIV, maternidade e infância com HIV, questões jurídicas, preconceito e discriminação, que são manifestos nas narrativas publicadas na referida.

As narrativas publicadas na Revista demarcam estruturas discursivas e sociais de pessoas que vivem com a doença, mas também formas como os sujeitos, por intermédio de suas narrativas, criam disposições e modos diversos de aprendizagens com a cronicidade, construindo formas de enfrentamento e refigurações identitárias na interface entre narrativas, biografias e discursos produzidos com e sobre o adoecimento.

Conte sua história: narrativas e aprendizagens biográficas

O ato de contar histórias e o de narrar experiências sobre acontecimentos cotidianossãofundamentaisparareelaboraçõesdaprópriavidae,consequentemente, para aprendizagens que se constroem sobre situações que nos colocam em desafios, demarcando modos de assujeitamento ou de enfrentamento, face às circunstâncias das experiências.

As relações que se colocam entre narrativas e aprendizagens biográficas implicam formas discursivas e ações dos sujeitos sobre a própria vida e suas identidades, especialmente no que se refere às histórias de adoecimento, possibilitando deslocamentos, enfrentamentos e reconstruções identitárias.

Viver e aprender com a doença, notadamente com a cronicidade, é um desafio que se coloca face à ruptura que se inscreve nas condições de saúde e de vida das pessoas. Viver e aprender com a doença é uma disposição, um processo de aprendizagem que, obrigatoriamente demarca outras experiências sobre a vida e para com a vida. Isso implica desenvolver atitudes de aceitação, resignação, enfretamentos do processo de adoecimento como uma experiência vital, especialmente quando se trata da com- vivência com a cronicidade do HIV/Aids. Ademais, cabe ressaltar que as representações sobre o HIV/Aids se vinculam aos preconceitos e diferentes formas de discriminação e/ou marginalização, criando ou instalando sofrimentos psíquicos, físicos, sociais e culturais sobre a própria doença, mas igualmente, possibilidades e deslocamentos identitários e enfretamentos sobre a doença e sua cronicidade.

O trabalho que temos desenvolvido na rede de pesquisa sobre doenças crônicas e aprendizagens com a doença tem revelado que os processos de biografização, conforme descritos por Delory-Momberger (2013), ao destacar as interfaces entre saúde-doença, às aprendizagens com a doença face às dimensões subjetivas e objetivas que se instalam de forma existencial com o adoecimento e sua cronicidade.

Princípios da pesquisa (auto)biográfica têm possibilitado aprofundamentos sobre aprendizagens com a doença através de narrativas sobre o próprio adoecimento. Dimensões epistemológicas, metodológicas e questões de análise sistematizadas por Delory-Momberger (2012) e Souza (2014c) evidenciam que a pesquisa biográfica nasce das interfaces entre o individuo e o social, ao tomar a singularidade, suas implicações socioculturais, linguísticas, históricas, econômicas e políticas como ato constitutivo da narrativa, que se manifestam nos modos como os indivíduos representam-se a si mesmos e aos outros, face às disposições de temporalidade, às experiências e reflexividades biográficas contidas no ato de narrar.

As noções de temporalidade, experiências e reflexividade são princípios estruturantes da pesquisa biográfica e (auto)biográfica na medida em que se inserem em circunstâncias e situações sociais e individuais, numa dialética entre o singular e o social, como territórios e marcas temporais das narrativas, de encontro aos sentidos e significados atribuídos pelos próprios sujeitos quando narram sobre suas histórias de vida, suas identidades e suas aprendizagens com o adoecimento.

Aprender com a doença, segundo Delory-Momberger (2013), configura-se como uma experiência vital, através dos movimentos de aceitação, de enfrentamento, de refiguração identitária que a própria doença remete para os sujeitos, especialmente quando narram, numa perspectiva de biografização, sobre as condições existenciais e experiências com a própria doença.

Viver com a doença é uma experiência que exige deslocamentos da própria vida e aprendizagens cotidianas, às quais implicam formas de enfrentamento de questões sociais, de representações sobre a doença, de ações de acompanhamento, tratamento, de relações pessoais, familiares, profissionais que exigem dos sujeitos formas diversas de viver e narrar a própria vida e suas relações com a cronicidade.

Ancorado em princípios da pesquisa (auto)biográfica, analiso narrativas dos colaboradores da Revista Saber Viver ao adotar três eixos temáticos – identidade e refiguração identitária; aprendizagem com a doença; representações sociais sobre a doença –, conforme já anunciado anteriormente, por intermédio da análise interpretativa-compreensiva (Souza, 2014c), das narrativas publicadas na seção ‘Conte sua história’ da referida revista. Em análise anterior, Souza (2016) descreveu os eixos de análise e categorias vinculadas a estes ao afirmar que:

O primeiro eixo caracteriza-se pelas questões sobre identidade e reconfiguração identitária, na medida em que, na quase totalidade, os fragmentos narrativos são mobilizados por aspectos relativos à publicitação ou não de ser soropositivo, como forma de preservação e de reconstrução da identidade através do silêncio e/ou do segredo que são construídos pelos sujeitos, como uma das aprendizagens com a doença, face aos preconceitos, discriminações e valores morais a que estão submetidos na relação com a doença. O segundo eixo diz respeito a aprendizagem biográfica com a doença, que aparece com frequência nas narrativas de experiências concernentes à relação médico-paciente e aos profissionais da saúde e saúde pública, adesão ao tratamento e medicamentos, assim como relações de trabalho e justiça, relações afetivas, religiosidade, fé e autoajuda, grupos de convivências, gênero, sexualidade e HIV, questões familiares, gravidez, papel das ONGs. O terceiro eixo de análise vincula- se às representações sociais da doença contidas nas manifestações de preconceitos, discriminação e segregação social, mas também implicando em modos de enfrentamento da doença, resistências e práticas de empoderamento conforme explicitam as narrativas dos colaboradores. (Souza, 2016, p. 67)

Tais eixos temáticos possibilitaram demarcar, através da análise da seção ‘Conte sua história’, face à análise interpretativa-compreensiva, questões relacionadas à identidade, na medida em que as narrativas implicam formas de preservação ou não da soropositividade por meio da utilização de pseudônimos, e em outros momentos revelam as identidades dos colaboradores, o que evidencia disposições de enfrentamento com o adoecimento e a cronicidade, bem como processo de aprendizagens biográficas com a doença como ação referente da narrativa.

Os depoimentos publicados desvelam também relações familiares, afetivas, de gravidez, preconceito e discriminação, relações trabalhistas e jurídicas, tratamento e adesão aos medicamentos, relação médico-paciente, religiosidade, autoajuda e grupos de convivência, questões de gênero, sexualidade e HIV como marcas contidas nas narrativas e férteis para os processos de aprendizagens vinculados à cronicidade e empoderamento das pessoas que vivem com HIV/Aids.

Ainda assim, para a análise das narrativas, cabe destacar que, conforme já sistematizado por Souza (2016), a revista configura-se como

[...] uma publicação de domínio público e por constarem em diversas narrativas da Seção “Conte sua história” dados (nome, cidade, endereço, e-mail e/ ou telefone) dos narradores e, em poucos casos, pseudônimos e ausência de indicação da cidade do colaborador, como destacado em alguns poucos excertos, optei por manter a referência do colaborador como publicada na revista, tendo em vista que a mesma se encontra disponibilizada tanto na versão impressa quanto online. (Souza, 2016, p. 67).

A análise das narrativas, ao adotar os três eixos temáticos, buscará verticalizar reflexões sobre diagnóstico e aprendizagens com o adoecimento, formas de viver com a doença e suas implicações com a vida e a identidades dos sujeitos, relações afetivas e familiares, aspectos relacionados às questões de gênero, com ênfase nas relações entre HIV e mulheres, gravidez e maternidade, infância e HIV e, por fim, implicações concernentes ao preconceito e à discriminação, questões jurídicas que são socializadas nas narrativas publicadas na seção ‘Conte sua história’.

No que se refere ao diagnóstico, descoberta da soropositividade, formas de enfrentamento e relações afetivas, a narrativa de Simone, publicada no número 8, revela como identificou seu processo de adoecimento, ao contar sua história com o noivo, a morte deste, o silenciamento em relação a sua soropositividade, a crise que se instalou com a descoberta, a sublimação com o trabalho, seus problemas de saúde, a solicitação do exame por uma médica, o diagnóstico e a crise que se instalou em sua vida. A história de Simone demarca aprendizagens que foram construídas com o adoecimento, as fugas iniciais, a busca da igreja como espaço de ajuda e o reencontro com o seu primeiro namorado, a informação sobre seu estado de saúde, a aceitação, o casamento e a esperança da cura da Aids, quando afirma que:

Dando a volta por cima

Olá pessoal, espero que a minha história possa ajudar alguém. Há cinco anos, eu estava noiva e gostava fielmente do meu companheiro, mas ele sempre fugia muito do nosso compromisso, adiando o casamento. Um dia, ele voltou de viagem dizendo que queria se casar em um mês. Não entendi aquela mudança e lhe pedi um tempo. Ele viajou novamente a trabalho e nunca mais voltou. Depois de muito tempo de espera, criei coragem e liguei para a família dele (eles não gostavam de mim por eu ser pobre). Então, eu recebi a notícia mais triste da minha vida: ele havia morrido. Foram quatro anos de muita tristeza e solidão. Em nenhum momento eu soube a causa da morte dele. Procurei, então, me ocupar unicamente com o trabalho e muitas vezes esquecia que tinha apenas 21 anos. Os rapazes procuravam se aproximar de mim, mas eu me afastava. Quando eu tinha 25 anos (de 1998 para 1999), comecei a ter problemas de saúde. Depois de me decepcionar com uma amiga, apareceu uma irritação na minha pele: era herpes. Uma médica me pediu o exame anti-HIV. Eu estava certa de que daria negativo, afinal tive poucos namorados. Em fevereiro de 1999, recebi o resultado positivo. Minha vida mudou totalmente. Fiquei perdida, mas a minha fé em Deus me deu forças para iniciar o tratamento. Somente depois disso, eu compreendi porque o meu noivo queria se casar às pressas. Ele soube que era soropositivo e que, provavelmente, havia me contaminado. Ele achava que, se casando comigo, poderia me deixar amparada no futuro. Pensei em entrar para um convento. Achei que nunca mais me envolveria com ninguém. Até que, num domingo, eu estava na igreja quando me disseram que um rapaz queria falar comigo. Foi uma surpresa! Encontrei com o meu primeiro namorado. Não nos víamos há 10 anos. Choramos juntos de emoção e resolvemos retomar o nosso relacionamento. Reuni todas as minhas forças e contei a ele sobre a minha soropositividade. Ele sumiu por um dia. No dia seguinte, disse que estava disposto a enfrentar tudo comigo. Nos casamos dois meses depois e estamos vivendo muito felizes. Sei que muitas pessoas que estão na mesma situação têm dificuldades de encontrar a pessoa ideal. Mas não desistam. Na hora certa esta pessoa aparecerá. Confiem em Deus. Tenho certeza de que em breve teremos a cura da Aids. Um abraço da amiga de vocês, Simone” (Dando..., 2001, p. 11)

A história e narrativa de Jair sobre o diagnóstico e as diversas cirurgias que foi submetido por causa de uma tuberculose, além do apoio, cuidado e acompanhamento por parte da família, foram fundamentais para os modos como construiu formas de enfrentamento de viver com o adoecimento e a cronicidade da doença. Sua narrativa evidencia enfrentamentos que construiu para superar a crise instalada pela doença, sua relação com o médico, com os medicamentos e com a alimentação, bem como sua atuação na Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, Núcleo Recife, como estratégia para o enfrentamento do adoecimento e a disposição de ajudar a outras pessoas que vivem com HIV/Aids.

Tenho o HIV, porém feliz

Meu nome é Jair. Tenho 28 anos. Sei que sou portador do vírus HIV há 10 anos. Fiz 6 cirurgias devido a uma tuberculose ganglional que tive. Fiquei de cama, mas graças a Deus e à minha família, especialmente à minha mãe, eu não precisei ser internado. Foi a fase mais difícil da minha vida. Pensei que não iria conseguir vencer. Perdi 20 quilos. Meu peso normal é 72 quilos. Tenho 1,81m de altura. Eu parecia um esqueleto! Foi horrível. Fiz tratamento espiritual. Comecei a pensar positivo e esqueci que poderia morrer. Coloquei na cabeça que estava com tuberculose e que tinha cura! Tive anemia por causa do AZT. Meu médico trocou a medicação. Eu não comia nada, só frutas e líquidos. Graças a Deus, minha mãe foi minha enfermeira, cozinheira, acompanhante e tudo que eu precisava. Tive sorte porque minha família (mãe, irmã, pai e tias) me deu muita força para vencer essa batalha. Numa certa noite, depois de uns 45 dias de cama, tive um sonho no qual eu comia de tudo: arroz, feijão, macarrão, carne etc. Quando acordei pedi para minha mãe fazer feijão e arroz para eu comer com farinha. Depois desse dia não parei de comer mais! E ainda passei do meu peso normal. Hoje, estou com 84 quilos. O médico pediu para eu fazer dieta. Eu não obedeço porque adoro comer e, o melhor, como de tudo! Hoje sou um dos coordenadores da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids – Núcleo Recife – PE (que luta pelos direitos dos portadores de HIV). Faço o curso de patologia clínica, sou de uma ONG/Aids – ASAS (Associação de Ação Solidária), também dou palestras sobre HIV/Aids e DST alertando e informando as pessoas de como se prevenirem. Isso tudo faço voluntariamente, sem ganhar nada, e com carinho, satisfação e muito orgulho de ajudar ao próximo. Sou feliz. Estou namorando uma pessoa de 22 anos que é portador do HIV. Estamos juntos há 1 ano. Nos amamos muito. O melhor remédio para o HIV é você colocar na cabeça que ele é só um detalhe e é muito insignificante para nós. Esqueçamos dele e vamos pensar mais na gente. Vamos nos amar mais! Um fortíssimo abraço super, hiper, ultra, mega positivo para todos. Lembrem- se de se olhar no espelho todos os dias e dizer: eu me amo! Vou me cuidar! (Tenho..., 2001, p. 12)

No que se refere às relações afetivas e à busca por um novo e grande amor, aparecem com frequência histórias e narrativas socializadas por colaboradores da Revista sobre tal questão. As narrativas de Valéria e Murilo revelam modos como a informação para os companheiros, como ação inicial da relação, são importantes e éticas para que se possa desenvolver um vínculo sem reservas, mas que na maioria das vezes, conforme explicita Murilo na sua narrativa, quase sempre não encontram acolhimento e entendimento por parte da outra pessoa em relação à soropositividade. De fato, revelar para o companheiro ou companheira é fundamental, pois omitir ou negar a condição de soropositivo pode acarretar situações adversas na relação. Diferente de Murilo, Valéria optou por abrir o jogo com o companheiro logo no primeiro encontro, o que possibilitou, pela maturidade e esclarecimento do companheiro, não abrir mão da relação que se iniciava. Após a experiência vivenciada, Murilo aprendeu e ressignificou sua postura, buscando informar em outras novas relações sua condição de saúde. A escrita como função de aprendizagem também demarcou modos de refiguração identitária para Valéria quando publicou o livro ‘Depois daquela viagem’, em que relata o choque da descoberta do HIV e também as consequências em sua vida, como aconteceu em várias situações com Murilo sobre preconceitos e discriminações vividas com outras pessoas.

Encontrar a pessoa ideal não é fácil para ninguém

Quando se tem o vírus da Aids, tudo se torna ainda mais difícil, mas não impossível. Valéria Piassa Polizzi, de 29 anos, está namorando há dois anos Markus, um rapaz austríaco. Ela o encontrou durante uma viagem à Nova Zelândia. Antes de o romance esquentar, a primeira providência de Valéria foi abrir o jogo com Markus e contar que era soropositiva. “Foi muito importante para a nossa relação ele saber desde o início. Várias pessoas soropositivas não contam aos seus parceiros que têm o vírus da Aids. A relação se transforma naquela coisa pesada e falsa”, diz Valéria. Murilo Vale, de 23 anos, passou por esta experiência. Com 19 anos e três de casamento, descobriu que era portador do HIV. Não teve coragem de contar ao seu parceiro. “Pensei em sumir. Queria terminar tudo.” Quando Márcio, de 44 anos, descobriu que o companheiro havia escondido um assunto tão sério, o amor deu lugar a uma grande revolta e um sentimento de traição. “Eu fiquei superchateado”. Márcio assume que a raiva só não foi maior porque ele não se contaminou. “Depois superamos esta fase. Comecei a ajudá-lo no tratamento.” Entretanto, a relação já não era a mesma. O principal problema era a falta de sexo. Márcio não se adapta ao uso do preservativo. Murilo, insatisfeito, sentiu-se sem saída e preferiu abrir mão do casamento. Mas a relação de companheirismo e amizade permanece entre os dois. Com a voz mansa, o jeito suave e solidário, Murilo atualmente vem se empenhando em conquistar novas amizades e em ajudar pessoas soropositivas. “Não me arrependo de ter me separado. Agora eu me sinto melhor fazendo coisas que eu não fazia antes, como viajar, conhecer novos amigos e ajudar outras pessoas que vivem com o vírus HIV como eu. Agora eu sei que não preciso de um relacionamento para me sentir inteiro. O importante é eu estar bem.” Depois do que passou com Márcio, Murilo diz que aprendeu a lição e prefere contar de cara para as pessoas que é soropositivo antes de começar um relacionamento “Já fui deixado em cinema, teatro e shopping. Muitas pessoas não aceitam se relacionar com portadores do HIV. Alguns me ligaram depois pedindo desculpas, mas só queriam ser amigos. Namorados, não. Mesmo assim, eu prefiro contar logo no primeiro encontro.” Valéria escreveu um livro em 1993, sob o título ‘Depois daquela viagem’ (Ed. Ática). Na história, ela relata como foi o impacto de se descobrir portadora do vírus HIV com apenas 16 anos de idade, infectada na primeira relação sexual. “Somente depois de me expor através do livro, comecei a contar às outras pessoas que eu era soropositiva.” Daí, então, surgiram situações semelhantes às de Murilo: “Vários garotos me deixaram falando sozinha. Outros chegavam a dizer: Você é muito bonitinha, mas com Aids não dá!”. Valéria reconhece que não é nada fácil assumir a Aids para o outro. Antes de encontrar o Markus, ela ficou mais de cinco anos sem namorar ninguém. “Preferia ficar só, que mal acompanhada.” (Na busca..., 2000, p. 8)

Encarar e viver o preconceito, bem como as representações sobre a doença, são manifestações corriqueiras que se manifestam em diferentes espaços sociais, clínicos e na convivência cotidiana. As histórias de Jussara e Carla são exemplares de situações de discriminação e preconceito vividas no dia-a-dia, seja no ônibus, no consultório do dentista, com amigos, mas que também revelam estratégias construídas e opções por partilharem informações com amigos que possam, a despeito do adoecimento, desenvolver postura de acolhimento, de respeito e de cumplicidade com as pessoas que elegem falar sobre suas experiências e modos como vivem com a cronicidade do HIV/Aids.

O pavor da discriminação

O medo de ser discriminada pelos amigos causa pânico em Jussara, 47 anos. “Não aguentaria ver meus amigos separando copos ou se afastando de mim pelo fato de eu ser soropositiva”. Em função disso, ela escolhe a dedo para quem contar que tem o vírus HIV. Mesmo assim, Jussara passa por algumas situações delicadas. A entrada pela frente do ônibus com o passe livre é uma delas. Ela conta que sempre é discriminada pelos motoristas: “Eles me veem sem nenhum problema físico aparente, então ficam com má vontade. Alguns me perguntaram o que eu tinha, mas eu nunca disse”. O espaço que Jussara se sente fortalecida é no Hospital dos Servidores (RJ), onde é voluntária do grupo de autoajuda Viva a Vida. “Comecei a me sentir bem quando eu comecei a ajudar outras pessoas, passando informações e dando uma palavra de carinho”. Carla, 29 anos, descobriu que é soropositiva há três anos. Moradora da cidade de Macaé (RJ), ela já passou por algumas situações constrangedoras envolvendo discriminação. “Uma vez abordaram uma amiga minha para contar que eu tinha Aids. Ela disse que não deixaria de ser minha amiga por causa disso”, lembra. Outro problema encarado por Carla foi na ida ao dentista que propôs atendê-la num dia especial, longe dos outros pacientes. “O argumento dele é que a clientela poderia se assustar e procurar outro dentista quando soubesse que ele tratava de soropositivos”, explica. Indignada, Carla nunca mais colocou os pés lá e procurou outro consultório. (O pavor..., 2000, p. 8-9)

A Revista Saber Viver exerce também um papel importante no que se refere às relações de gênero e orientações para as mulheres que vivem com o HIV. Conflitos familiares, separações, novas relações e projetos de vida abrem possibilidades para reconstruir a vida, almejando novos filhos e construindo estratégias para enfrentamento do adoecimento, das aprendizagens com a doença, especialmente através da refiguração familiar e da participação num grupo de convivência, onde podem socializar suas experiências e também aprender com as histórias das outras pessoas.

Vontade de viver

Meu nome é Marisia, tenho 33 anos, cinco filhos e um marido maravilhoso. Gostaria de contar minha vida para vocês. Conheci um rapaz com 15 anos. Apaixonei- me. Como sempre, no início tudo era uma beleza, mas, com o passar do tempo, descobri que ele era viciado em maconha e cocaína. Aos 18 anos, eu já tinha 2 filhos. Quando fiz 20, tive uma nova gravidez, que foi bem difícil, porque eu apanhava diariamente do meu marido. Finalmente, tive coragem de me separar e fui morar com minha mãe, que me recebeu de braços abertos, mesmo eu estando grávida e com 2 filhos pequenos. Um dia, soube pela minha ex-sogra que seu filho estava muito doente e que eu e as crianças tínhamos que fazer um exame anti-HIV. Os 20 dias que precederam a entrega do resultado foram os mais difíceis de minha vida. Quando fui pegá-los, para minha surpresa, descobri que os meus 3 filhos não eram sororreagentes para o HIV. Mas eu estava infectada. O mundo desabou sobre minha cabeça, mas juntei forças para viver. O pai das crianças faleceu em 1992. Resolvi me dar uma nova chance e, depois de algum tempo e muito sofrimento, apaixonei-me por um rapaz que, quando soube que eu era soropositiva, me aceitou com muito carinho. Hoje, vivemos juntos. Tive mais dois filhos deste relacionamento (soronegativos) e o meu marido continua soronegativo. Ou seja, tenho 5 filhos e um maridão. Participo do grupo Renascer, formado por mulheres vivendo com HIV/Aids, onde recebo muito apoio moral e força para continuar vivendo. Convivo com o vírus há 13 anos e até hoje não precisei fazer o tratamento contra a Aids. Não falto às minhas consultas e me alimento muito bem. Vou cumprir a promessa que fiz a minha família de viver muito bem. Leio sempre a Saber Viver e, para mim, é uma honra poder dividir um pouco da minha vida com outros leitores da revista. Um grande abraço a todos.” (Vontade..., 2006, p. 11)

As narrativas de Gilsa e Carla demarcam experiências com o preconceito, formas de enfrentamento do isolamento e modos como cuidam dos filhos que vivem com HIV/Aids ou a descoberta do HIV no processo da gestação. Assim como Carla, outras tantas mulheres descobrem quando estão grávidas que têm o vírus da Aids. O cuidado e acompanhamento médico são fundamentais para a gravidez e também para que a mulher possa superar dualidades que se colocam entre a gestação, o adoecimento, a pulsão e os sentidos da maternidade para sua vida. Aprender a viver com a doença, mesmo que diagnosticada no momento da gravidez é uma ação de força e encorajamento que precisa ser vivido pela mulher, para que possa, de certa forma, por meio da adesão ao tratamento e das práticas de acompanhamento médico, garantir sua qualidade de vida e de uma nova vida que pulsa.

Além das ações de cuidado, de acompanhamento médico, de participação em grupos de convivência, o apoio familiar é indispensável para que se possa superar dualidades e conflitos emocionais e sociais, principalmente no processo da gravidez e depois com o nascimento do filho ou filha, no que se refere aos cuidados da vida da criança, inscrita ou não cronicidade da doença.

“Estou me preparando para contar para minha filha que ela tem o vírus da Aids”.

Meu marido foi o primeiro a saber que tinha o vírus da Aids e não me disse nada. Mas eu fiquei desconfiada e acabei descobrindo. Em 94, fiz o exame e constatei que tinha o vírus. Logo depois, a pior notícia: minha filha caçula, na época com 4 anos, também era portadora. Apenas a mais velha estava livre da doença. Cheguei ao hospital Gafrée Guinle meio descontrolada. Eu não podia aceitar que minha filha estivesse com Aids. Estava arrasada, não sabia o que fazer. Então a Dra. Norma me aconselhou a procurar as psicólogas que atendem na imunologia do hospital. Isto me fez muito bem. Eu consegui superar muitos medos, agora estou tranquila. Estou me preparando para contar para minha filha, hoje com 9 anos, que ela tem o vírus. Ela já está começando a fazer certas perguntas, mas eu fujo, não falo. Tenho medo da reação dela. Mas eu sei que é melhor que minha filha saiba por mim. Outro dia, no hospital, um menino disse: ‘todo mundo aqui tem Aids’. Ela ficou revoltada, disse que era mentira, que ela não tinha. Às vezes é uma chateação danada. Como não quero que as pessoas saibam, não posso deixar minha filha na casa de coleguinhas por causa dos medicamentos. Às vezes vou para o banheiro dar o remédio escondido. Todos estes problemas eu divido com o grupo de mães do hospital. A gente sai mais leve. A minha família sabe, mas não liga. Fora do grupo as pessoas não entendem, então não adianta falar. Aqui, se uma pessoa tá pra baixo, a outra dá força. (Estou..., 2000, p. 9).

Grávida e soropositiva

Cláudia, 25 anos, descobriu que tinha o vírus da Aids aos dois meses de gestação. Chorou muito, mas acha que a melhor coisa que lhe aconteceu foi receber este diagnóstico durante a gravidez: “Se não fosse a minha filha dentro da minha barriga, eu, com certeza não estaria tão bem quanto estou. Ela veio na hora certa”, diz ela. Assim como Cláudia, outras mulheres revelam à Saber Viver um pouco de suas histórias e nos fazem crer que um filho é sempre uma dádiva, seja a mãe HIV positiva ou não. (Grávida..., 2000, p. 8).

Ao narrarem suas histórias com o adoecimento, os colaboradores da Revista evidenciam formas diversas como aprendem a viver com a doença, com a cronicidade, ao mesmo tempo em que desvelam modos como superam as adversidades da vida, dos preconceitos e discriminações que são acometidos em diferentes espaços sociais e como constroem dispositivos para viverem com a soropositividade.

As rupturas identitárias e os processos de refiguração são bastantes singulares na medida em que cada sujeito forja ações e atitudes de subserviência, entrega, enfrentamento e aprendizagens biográficas vinculadas ao ato de narrar sobre suas experiências com a doença.

A doença crônica se inscreve e instala-se como uma cola na vida, metaforicamente como um post-it que deixa sempre avisos sobre a cronicidade, manifestando-se de formas e cores diferentes, através da temporalidade, do processo de subjetivação e das aprendizagens necessárias para que a vida tenha e ganhe outros sentidos e significados, mediante o adoecimento. Viver com a doença crônica é uma disposição e um contínuo que remete o sujeito a superar rupturas identitárias e prefigurar sua própria identidade, como modo de viver e aprender com sua própria experiência e suas relações com o adoecimento.

Referências

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[1]Música de Herbert Vianna, ‘Quase um segundo’ – Os Paralamas do Sucesso, gravada no disco Bora-Bora, lançado em 1988, Gravadora EMI, produção Carlos Savalla e Paralamas.

[2]O texto resulta da pesquisa de Pós-doutoramento realizada na Universidade de Paris 13, Processo No 88881.120884/2016.1, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Edital nº 16/2016, Programa de Estágio Sênior no Exterior.

[3]Para maiores informações sobre a Revista, consultar www.saberviver.org.br. (Error 7: El enlace externo www.saberviver.org.br debe ser una URL) (Error 8: La URL www.saberviver.org.br no esta bien escrita)

[4]Cabe aqui destacar que até o número 30 a revista contou com financiamento dos laboratórios de medicamentos retrovirais, passando a partir do número 31 a ser financiada pelo Departamento de DST/Aids do Ministério da Saúde.

[5]Disponível em http://saberviver.org.br/?cat=12, acessado em 20/08/2017.

Recebido: 01 de Junho de 2018; Aceito: 01 de Julho de 2018