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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.24  Brasília  2018  Epub 15-Nov-2018

https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.18991 

Dossiê: Narrativas, educação e saúde: o sujeito na cidade

Uma vida em “condição crônica de doença”

Una vida en "condición crónica de la enfermedad"

Une vie dans "condition chronique de la maladie"

A life in "chronic condition of disease"

Raquel Alvarenga Sena Venera1 
http://orcid.org/0000-0001-7928-0030

Roberta Fernanda Buriti2 
http://orcid.org/0000-0001-9150-886X

1Doutora em Educação pela Unicamp, professora do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville, UNIVILLE. Líder do Grupo de Pesquisa Subjetividades e (auto)biografias, da mesma instituição e vice-líder do Grupo de Pesquisa Memória e Identidade: ativismos e políticas, da UFBA.

2Eespecialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional, professora da Rede Pública Municipal de São Francisco do Sul, SC. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville, UNIVILLE. Estudante no Grupo de Pesquisa Subjetividades e (auto) biografias.


Resumo

Este artigo é um recorte de pesquisa em andamento que se propõem a investigar as narrativas (auto) biográficas de blogueiros diagnosticados com Esclerose Múltipla e se concentra na análise do discurso de posts de uma ativista midiática que estabelece uma relação educativa com a doença como um caso exemplar de subjetividade em movimento auto formativo. Privilegiaram-se alguns textos contemporâneos à sua formação acadêmica e verificou-se como ela põe em funcionamento os agenciamentos coletivos que perpassam a sua formação em pesquisa amalgamado a sua experiência com a doença. É exemplificada a precariedade da vida como potência que ela nominou em sua tese como “condição crônica de doença”.

Palavras-chave s: Narrativas; Saúde; Auto formação

Resumen

Este artículo es un corte de investigación en curso que propone investigar las narrativas biográficas de blogueros diagnosticados con Esclerosis Múltiple y se centra en analizar el discurso de los posts de un activista mediático que establece una relación La educación con la enfermedad como un caso ejemplar de la subjetividad en el movimiento del uno mismo-entrenamiento. Algunos textos contemporáneos fueron privilegiados a su trayectoria académica y se verificó cómo pone en funcionamiento las agencias colectivas que pasan su formación en la investigación amalgamada a su experiencia con la enfermedad. La precariedad de la vida como un poder que ella ha nominod en su tesis como "condición crónica de la enfermedad".

Palabras clave Narrativas; Salud; Auto-entrenamiento

Résumé

Cet article est un écrêtage de recherche en cours qui propose d'étudier les récits biographiques des blogueurs diagnostiqués avec la Sclérose en Plaques et se concentre sur l'analyse de le discours des postes d'un activiste médiatique qui établit une relation l'éducation avec la maladie comme un cas exemplaire de subjectivité dans le mouvement d'auto-formation. Certains textes contemporains ont été privilégiés de leurs antécédents académiques et il a été vérifié comment il met en opération les agences collectives qui passent leur formation dans la recherche fusionnée à leur expérience avec la maladie. La précarité de la vie comme une puissance qu'elle a nominoie dans sa thèse comme "condition chronique de la maladie".

Mots clés Récits; Santé; Auto-formation

Abstract

This article is an ongoing research cut that proposes to investigate the biographical narratives of bloggers diagnosed with Multiple Sclerosis and focuses on analyzing the speech of posts of a media activist who establishes a relationship Education with the disease as an exemplary case of subjectivity in self-training movement. Some contemporary texts were privileged to their academic background and it was verified how it puts into operation the collective agencies that pass their training in amalgamated research to their experience with the disease. The precariousness of life as a power that she has nominoed in her thesis as "chronic condition of disease".

Keywords Narratives; Health; Self-training

“Na verdade, nada é uma palavra esperando tradução

Toda vez que falta luz

Toda vez que algo nos falta

O invisível nos salta aos olhos

Um salto no escuro da piscina

O fogo ilumina muito, por muito pouco tempo”

(Engenheiros do Hawai, Pianos Bar)

Que relampejo é esse cantado pela banda Engenheiros do Hawai? A escuridão pela ausência de luz, o “nada” frente aos olhos, um vazio esperando significado. Um invisível surpreende os olhos quando um relampejo como um fogo ilumina por pouco tempo. A cena que essa canção sugere é acolhida neste artigo como uma metáfora a resiliência identificada nas narrativas de vida de uma blogueira com Esclerose Múltipla que se mostra no ciberespaço como uma ativista da saúde ou uma paciente 2.0. Ela foi diagnosticada com a doença aos quatorze anos e em pouco tempo depois viveu a experiência de se recuperar de uma paraplegia provocada por um surto da doença. Adolescente, estudante do Ensino Médio experimentou a incerteza da perda e em seguida a alegria de ter de volta os movimentos das pernas. Dois anos depois resolveu criar o blog – Esclerose Múltipla e eu – contanto sobre a vida cotidiana com a doença.

Vale lembrar que a Esclerose Múltipla é uma doença do sistema nervoso central, crônica, degenerativa e autoimune, ainda sem marcador biológico e cura, que atinge cerca de 2,3 milhões de pessoas no mundo, conforme divulgado pela Federação Internacional de Esclerose Múltipla, no Atlas da Esclerose Múltipla de 2013. São pequenas inflamações na bainha da mielina provocada por ataques dos próprios anticorpos da pessoa doente. As pesquisas da medicina ainda não descobriram uma causa definitiva desse autoataque ao certo, é que, com a mielina deteriorada os impulsos nervosos ficam prejudicados. Dessa forma, os sintomas da doença variam dependendo da área do cérebro e medula espinhal onde se instala a lesão que pode ser percebida a partir da perda de visão ou visão dupla, de sensibilidade e força nos membros da audição, da linguagem, do controle dos esfíncteres entre outros. Todos esses possíveis sintomas, somados a uma fadiga extrema, são sentidos pelo sujeito, na maioria das vezes jovem – em média 30 anos – como signos indecifráveis antes do diagnóstico que tornam o próprio corpo um ser estranho. As atividades normais do cotidiano passam a serem difíceis de executar, os ritmos mudam, a autonomia se esvai e, na maioria dos casos, o humor se altera constantemente. Pela ausência de um marcador biológico, trata-se de um diagnóstico difícil, por vezes demorado. Enquanto isso, aqui vale a metáfora da música citada, “falta luz”, falta segurança na potencialidade biológica do sujeito, os “nãos” ou as limitações são imperativas.

Bruna viveu esses momentos na adolescência, ela conta em seu blog que já tratava de uma enxaqueca desde os 8 anos e já tinha acompanhamento de um neurologista. Assim que ele foi consultado o diagnóstico se fechou. Porém, algum tempo depois um surto – como são chamadas as inflamações rigorosas da Esclerose Múltipla – deixou-a paraplégica. Sem forças para erguer o braço para comer ou andar ela passou a depender dos pais, que eram fisioterapeutas, não só para o restabelecimento, mas para os cuidados básicos da vida.

Essa experiência de falta quase completa, de limitações e depois adaptações em todos os aspectos da vida, passaram a fazer parte da identidade de Bruna, como será ponderado mais adiante nesse artigo. Esse caso demonstra um sujeito subjetivado a partir da doença e que se apresenta socialmente a partir das significações daqueles signos que aos poucos foram sendo significados e compondo sentidos na vida com a doença. Os sentidos sociais da doença são postos ao mesmo tempo em que são experimentadas as privações e adaptações do sujeito. Quando eles são narrados se fazem como construções subjetivas que se mostram em atos de escrita. Esse artigo se interessa por essas narrativas do blog “Esclerose Múltipla e eu” e no quanto elas revelam sobre o “invisível que salta aos olhos”, como diz a música dos Engenheiros do Hawai, mas articulando de outra forma, evidenciando como quanto a vida com uma doença crônica pode se revelar como propulsora de uma variável educativa. Como os textos da blogueira Bruna revelam-se autoeducativos? É uma subjetividade que se faz, em todas as facetas de uma vida comum: família, religião, opções políticas, mídia, leituras e outros tantos consumos; mas especialmente, a partir da doença e de forma múltipla, imbricada em sua formação convencional acadêmica.

Este artigo é parte de uma pesquisa em andamento intitulada “Valores patrimoniais nas narrativas (auto)biográficas constituídas nos lócus educativos do ciberespaço”. Seu objetivo é analisar as narrativas (auto)biográficas constituídas nos fluxos interativos do ciberespaço a partir do diagnóstico da Esclerose Múltipla. Entende-se que essas narrativas se configuram como instrumento educativo, autoformativo e se aposta na evidência de valores patrimoniais no processo de reelaboração de identidades e de autoformação. Especialmente, o foco está no processo de reelaboração de identidades percebidas nessas narrativas (auto)biográficas, que foram elaboradas após o diagnóstico da doença.

As narrativas (auto)biográficas que serão estudadas na pesquisa, e que foram previamente selecionadas, estão disponibilizadas em dois blogs: esclerosemultiplaeeu.blogspot.com.br, já anunciado para esse artigo, e amigosmultiplos.org.br/blog/blog-jota. Os autores desses blogs, ainda muito jovens, passaram por uma ruptura na trajetória de suas histórias de vidas, provocada pelo diagnóstico de Esclerose Múltipla. Suas biografias apresentam processos de ressignificações, de mudanças de perspectivas e de construção de novas concepções ativistas provocadas por esta nova realidade. Nesta nova realidade, cada obstáculo vencido com a doença, cada experiência vivenciada, configura uma conquista individual, ao mesmo tempo em que ganha uma proporção coletiva no ciberespaço, uma vez que é testemunhada em rede, constituindo assim, parte de uma comunidade narrativa.

A escolha da análise das narrativas (auto)biográficas de Bruna e de Jaime (conhecido na rede como Jota), deve-se ao fato deles configurarem exemplares ativistas no uso dessa rede que é o ciberespaço para registrarem suas narrativas a partir do diagnóstico da Esclerose Múltipla e, de forma muito consciente, fazem o uso dela com a intencionalidade educativa, para si e para os outros. Através deste processo, acionam suas memórias afetivas de vulnerabilidade e de potência, e neste processo de reelaboração de suas identidades, põem em visibilidade o processo educativo e de autoformação. Deve-se ressaltar também o fator de alcance social que eles representam, principalmente no que se refere as narrativas que nos levam a refletir sobre as políticas de inclusão social de pessoas com deficiência, através das chamadas narrativas de crítica social. Bruna e Jota são um casal, o primeiro casal formado de pessoas esclerosadas que temos notícia, são pais de Francisco, a primeira criança de pais esclerosados que se tem registro e esse fato faz deles, ao mesmo tempo, únicos, mas também, condensam grande parte das questões e dúvidas cotidianas das pessoas diagnosticadas e seus familiares. Eles escrevem sobre temas banais da vida, de pessoas doentes ou não doentes, mas que, uma vez doentes, precisam de adaptações possíveis, como relações afetivas com familiares não doentes: namoro, sexo, baladas, gravidez, inseguranças com a maternidade/paternidade, estudo e trabalho. Aprenderam uma nova vida e compartilham essas suas aprendizagens no ciberespaço. Em 11 de março de 2014, Bruna faz referência ao fator de impacto do seu blog e em cinco anos naquela ocasião foram “727 textos, 5969 comentários, 10 e-mails por dia, 781 seguidores, 1.193 curtidores no face e 500 acessos diários”. Considerando que o tema em questão é uma doença rara e de pouco interesse de massa, esses números não são poucos na globosfera.

Como parte dessa pesquisa, este artigo recorta apenas algumas análises do blog “Esclerose Múltipla e eu” assumindo os limites e a potência de um “recorte” em um rizoma como é o ciberespaço. Entendendo por rizoma a partir de Deleuze & Guattari (1980) que mobilizaram o conceito fora do campo da botânica. Trata-se de um desafio à ciência se pensar deslocada da lógica arbórea em que todos os pensamentos se desdobram de uma raiz epistemológica filosófica ou linguística. Os princípios básicos de um rizoma seriam então (i) a conexão: entendendo que todos os pontos do rizoma se conectam a outros pontos e são capazes de produzir novos pensamentos; (ii) a heterogeneidade: considerando que cada ponto pode ser o início de um novo bulbo, uma potência sem hierarquias; (iii) a multiplicidade que caracteriza-se pelas alianças entre os seus múltiplos pontos; (vi) a ruptura assignificante: por ser múltiplo, o rizoma não se coloca preso em esquemas de significação, mas é uma leitura aberta a significações várias; (v) a cartografia reconhecendo sua instabilidade, é possível o rizoma ser mapeado e a partir de um mapa que se coloca em múltiplos acessos e conexões; (vi) o decalque que oferece ao mapa uma complexidade. Enquanto o mapa oferece linhas e tendências, o decalque impõe à cartografia os seus impasses ou bloqueios, mas também as estabilizações temporárias do próprio funcionamento do rizoma.

Pensar as narrativas (auto)biográficas de forma rizomática não diz respeito apenas ao fato de estarem no ciberespaço, mas pela capacidade de proliferação de novas ações e ativismos em rede. Por ativismos em rede ou ciberativismo entende-se como explica Queiroz (2017, p. 3), o uso de tecnologias comunicacionais para o exercício de um ativismo. Conforme o autor, o ciberativismo possui três categorias de atuação:

[...] a primeira relacionada com a conscientização e promoção de uma causa, com a difusão de informações e eventos quebrando o bloqueio dos meios de comunicação tradicionais hegemônicos, agindo como meio alternativo de informação; a segunda envolve a organização e mobilização a partir do uso da Internet, tendo em vista uma determinada ação; e a terceira é a ação e reação, com o chamado hacktivismo ou ativismo hacker, que engloba vários tipos de ações, como apoio on-line, invasão ou congestionamento de sites. (Queiroz, 2017, p. 03)

O blog “Esclerose Múltipla e eu” foi aos poucos se transformando e proliferando de forma rizomática no campo do ciberativismo. A blogueira Bruna apareceu em 2009 com a intenção de comunicar no ciberespaço sua vida cotidiana com Esclerose Múltipla e começou a escrever sobre temas muito cotidianos, sobre sua família, sobre o que as pessoas perguntavam, novidades sobre a doença, seus surtos, internações e adaptações. Ela se tornou mestre e depois doutora, além de se casar e ser mãe. Ao longo do caminho continua escrevendo sobre seu cotidiano, mas seus textos vão revelando um ativismo no campo da saúde e do tratamento à pessoa com deficiência. Ela escreve sobre leis que podem prejudicar o acesso e atendimento integral à saúde, sobre comportamentos intolerantes que afetam as expectativas de futuro para um mundo mais justo e humano. Ela se apresenta como “paciente 2.0” e explica aos seus leitores o conceito, sugere um tempo em que é urgente repensar a postura médica, uma vez que o detentor de informações não é apenas o médico, mas o paciente 2.0 que pode inferir e se torna parceiro e menos “passivo”. Nas palavras dela em um post de 14 de outubro de 2015 intitulado “O paciente 2.0”: “Esse ‘dois ponto zero’ quer dizer, na verdade, ampla participação de todos os envolvidos. Mesmo aqueles que têm pouco conhecimento técnico da coisa. Assim o paciente 2.0 é aquele que tem ampla participação nas decisões sobre o andamento do seu tratamento”. Porém, tem o cuidado de preservar o saber técnico da medicina aos médicos, entretanto, posicionase na dicotomia de uma espécie de “paciente ativa”. Nas palavras dela:

E claro que eu não defendo aquelas pessoas que se acham muito sabichonas e querem ensinar o médico a ser médico. Mas, sim, os médicos precisam aprender a ter esses novos pacientes, que são bem informados, são questionadores e que buscam qualidade de vida. Aliás, paciente bem informado costuma ser paciente que adere melhor ao tratamento, que ensina melhor seus familiares e que lida melhor com as mudanças ocasionadas pela doença (Esclerose Múltipla e eu, 14 de outubro de 2015)

Faz-se uma potência inspiradora de novos blogs, ponto de conexões entre doentes, mas não funciona como um centro propulsor, uma raiz ou um tronco, antes, como um bulbo, um ponto na rede que se prolifera em heterogeneidade e multiplicidade.

Dessa forma, a palavra “recorte” está entre aspas exatamente porque se entende que não há possibilidades metodológicas de um corte em um rizoma uma vez que dele sempre prolifera novos bulbos de qualquer ponto. A criação de uma cartografia, mesmo que provisória, foi necessária. Foram selecionadas algumas narrativas contemporâneas a momentos de conclusões da formação acadêmica de Bruna, como a conclusão da especialização (2009), as defesas da dissertação de mestrado e tese (2012 e 2016). O final de sua formação inicial em Publicidade e Propaganda, em 2007, foi contemporâneo ao diagnóstico, assim, a criação do blog um tempo depois coincide com o Curso de Especialização em Comunicação Organizacional. Os textos analisados seguiram as imediações desses anos, um pouco antes ou um pouco depois, mas sempre contextualizados a partir do tempo de formação.

Esse artigo captura textos contemporâneos a essas datas que coincidem com sua formação convencional, como linhas em uma cartografia, e aposta na possível coincidência na relação de autoformação com a doença e da formação convencional. Estamos considerando que Bruna experimenta concomitantemente dois grandes agenciamentos para a sua formação, tanto as experiências com a doença e a escrita do blog, quanto a formação acadêmica estão interligados.

Por autoformação, a partir da doença, estamos entendendo aquela relação tão individual que se encontra dificuldades para ser comunicada. Por analogia, ao que Gerard Ostermann (2012) escreve sobre a consciência da dor, é algo que encontra o limite léxico da palavra. Ele diz que todo ser humano é transformado pela dor e é através dessa transformação que a dor é comunicada. É no corpo que se mostra. “É pela publicização de nosso ser, cujo corpo é o pivô do mundo, numa transformação pela qual somos tomados por uma certa distância e estranheza de nós mesmos, que a dor pode mostrar-se e comunicar-se ao mundo” (Ostermann, 2012, p. 177). A auto-formação a partir da doença não é diferente, trata-se de uma experiência individual drástica, capaz de subjetivar pessoas e criar novas identidades. Escrever compulsivamente sobre essa relação com a doença, como propôs Bruna em seu primeiro post do blog, “vou escrever um texto por dia” pode ser libertador, mas nem sempre a consciência de autoformação está no ato da escrita e se manifesta consciente no texto.

Diante dessa dificuldade, para torná-la vista se optou pela análise do discurso, AD, da corrente francesa na partir de Pêuchex e no Brasil com os estudos de Eni Orlandi. Entendeu-se que seria necessário um exercício de ver o funcionamento do texto que deseja fazer-se visto, os resultados de autoformação que podem estar no corpo e expresso em narrativas. Especialmente por se tratar de uma metodologia que se propõe aberta a criação e adaptações de novos dispositivos teóricos de análise, dependendo do tipo de texto e condições de sua produção, ou seja, AD inaugura um tipo de análise que precede a teoria. Para cada discurso objeto de análise, se faz necessária um tipo de teorização. Orlandi (2003, p. 11) adverte que, “a cada passo, a AD redimensiona seu objeto, reavalia aspectos teóricos e se relaciona criticamente com seu(s) métodos(s)”.

O dispositivo teórico de análise utilizado neste artigo, já havia sido usado em outros momentos da pesquisa e em outros textos, porém, dedicou-se uma atenção ao fato de que, por se tratar de textos autobiográficos, produzidos para circular no ciberespaço em uma lógica rizomática, ou seja, sujeitos a uma intensidade de apropriações e interações entre leitores e autora que proliferam novos textos respostas em momentos diacrônicos. Para essa análise foram utilizadas as ferramentas básicas do dispositivo teórico de interpretação da AD, que são: (i) o sujeito autor do texto; (ii) o contexto de produção textual; (iii) a mobilização da linguagem e seus jogos metafóricos e deslizamentos como inspiradores, mas se preferiu considerar (i) os indivíduos como terminais de consumo interpelados pelos agenciamentos coletivos de enunciação e amalgamados neles nos processos de subjetivação; (ii) as subjetividades que se tornam agencias de enunciação ao mesmo tempo em que são também agenciadas; (iii) as possibilidades dos processos de subjetivação que tanto podem se alienar nos consumos a que se submetem em uma neurose reprodutiva ou, e ao mesmo tempo, singularizarem-se em novas criações e expressões (Venera, 2012, p. 131). Esse dispositivo de análise foi potente para evidenciar a blogueira Bruna, consumidora de enunciados médicos e culturais, sintomas corporais da doença, mas em uma multiplicidade de outros enunciados coletivos, como sua espiritualidade, sua relação com a irmã e o marido deficientes, as leituras acadêmicas e tantos outros agenciamentos, todavia ao mesmo tempo uma agente que reproduz parte disso e recria, a partir disso, novas possibilidades e projetos de si.

Com essa proposta o artigo está organizado em duas partes. A primeira parte apresenta um breve contexto temporal da criação do blog “Esclerose Múltipla e eu”, o aparecimento dos blogs e do mundo 2.0 a partir da obra de Malini & Antoun (2013). Além da sua formação acadêmica, suas principais escolhas epistemológicas e como isso foi somando as suas crenças e valores e se transformando em uma cartografia com pistas acerca dos sentidos formativos que proliferam em suas narrativas. Na segunda parte, o artigo apresenta alguns posts escolhidos e a análise discursiva dessas narrativas (auto)biográficas buscando evidenciar os vestígios de auto-formação. Também, apresenta algumas reflexões de Paulo Vaz (2002) acerca da forma como nossa cultura contemporânea se relaciona com os sentidos de saúde e doença em relação aos séculos passados. Esse contexto aponta especialmente para os agenciamentos coletivos de enunciação que circulam em torno da blogueira Bruna, ou o que é possível ser e dizer nesse tempo.

Os agenciamentos coletivos de enunciação no tempo da web 2.0

Voltando a cena da epígrafe desse artigo, existe no escuro da falta um fogo que ilumina por pouco tempo. Essa luz que faz parte do cenário, também pode cegar dependendo do ângulo em que se olha, porém pode fazer ver, mesmo que em um relampejo, um invisível que salta aos olhos. Bruna tinha uma luz do fogo do seu tempo, agenciamentos coletivos de enunciação, ferramentas tecnológicas que poderiam cegar, alienar, alimentar uma sede narcísica do espetáculo ou serem usadas para se fazer ver sua potência. A possibilidade de criar um blog, compartilhar sua dor, suas conquistas com a doença, conversar em uma comunidade narrativa, talvez tenha sido um fogo que iluminou um caminho possível naquele 2009. Ela fez parte desse contexto.

A história dos blogs dá conta da criação de uma ferramenta que pudesse apresentar um conjunto de links que hiperligava páginas interessantes da Internet. Malini & Antoun (2013) descreve ainda que no começo de 1999, em nome de uma popularização dos diários virtuais o nome weblog foi dividido não mais como web-log, mas we blog, como “nós blogamos”, criando a palavra blog, o verbo blogar e o sujeito blogueiro. O gênero textual também mudou em conteúdos breves, como uma arte de produzir conteúdos curtos e atualizados constantemente em uma ordem cronológica inversa, como o último post em destaque e uma manutenção da presença da hipertextualidade e hiperligações entre páginas e outros blogs.

Os softwares que permitiram a publicação gratuita e automática desse tipo de conteúdo popularizaram o hábito de divulgação de narrativas autobibliográficas de cotidianos comuns. Os antigos diários íntimos foram transformados em blogs e ocupavam outro lugar na cena social através da escrita informal e a conversação com o interlocutor do outro lado da tela. Não mais uma confissão consigo mesmo, mas um testemunho de uma intimidade compartilhada, com direito a intervenções dos leitores. A lógica do diário em blogs trouxe uma linguagem que permite ao leitor sentir a história contada que se passa em forma de descrição pessoal. Mas, essa descrição provoca uma conversação, não é um ato individual como nos diários íntimos, a partilha exige uma conversa com os internautas surgindo assim uma comunidade em torno dela mesma. Nas palavras de Malini & Antoun (2013, p. 122) “trata-se de um público que ‘bisbilhota’ para compreender que a memória do outro também está composta na sua”.

Essas hiperconexões entre blogs e blogueiros foram então chamadas, em 2001, de globosfera. Ou seja, houve o reconhecimento de que embora os blogs fossem um formato da web, a interconexão entre eles fez transbordar um fenômeno social, como se fossem um ente coletivo. Foi nesse contexto já consolidado em 2009, que Bruna decidiu construir um blog. Recém-formada em Publicidade e Propaganda, com um diagnóstico recente, resolve como tantos adolescentes do seu tempo, construir um espaço em que pudesse mais que escrever sobre a vida com Esclerose Múltipla, mas também conversar com pessoas sobre a sua doença e especialmente, como ela escreveu, “ajudar todas as pessoas que têm essa doença e que muitas vezes sentem-se perdidos”. Em seu primeiro post ela diz:

Acho que hoje já estou preparada para falar da minha doença, minhas dores, minhas dificuldades com maturidade, aceitando o meu destino. [...] gostaria muito da contribuição de vocês portadores de EM ou não, para que esse blog seja rico em informações úteis para o nosso cotidiano. (Esclerose Múltipla e eu, 11 de março de 2009).

Ela propõe descrever seu cotidiano, mas também convida para a interação. Para a Análise do Discurso, o contexto de produção do discurso é fundamental. O blog foi criando em um momento em que a Internet já fazia parte da vida de um número grande de pessoas, a tal ponto que diante do diagnóstico de uma doença, além de uma segunda opinião médica, consulta-se o site de informações Google que funciona como um agenciador de subjetividades. E diante do fato de que qualquer pessoa pode ser protagonista na produção de conteúdos na Internet, muito facilmente se lê as mais diversas consequências de um diagnóstico como a Esclerose Múltipla. Nesse contexto, Bruna estava convicta de que poderia se tornar uma agente e “ajudar todas as pessoas” que fossem buscar informações na rede de computadores. Pretensão de uma adolescente ou sonho de uma comunicadora recém-formada sensível e empática as ações assistenciais? O fato é que ela havia sido vítima de conteúdos desesperadores enquanto vivia uma paraplegia, que foi passageira e ela queria compartilhar o fato de haver possibilidades de reversão e uma forma positiva de encarar a vida com EM. Ela entendeu o que seu tempo lhe oferecia, “como um fogo que ilumina”, a possibilidade de se tornar ativa nesse rizoma, uma agente que também produz conteúdo e pode proliferar suas ideias positivas.

Outro agenciamento coletivo de enunciação que está muito presente na subjetividade da blogueira é a formação acadêmica. Em seu currículo Lattes é possível mapear sua formação acadêmica em uma trajetória claramente amalgamada a vida que ela narra em seu blog. Depois de um Curso de Especialização em Comunicação Organizacional, quando criou o blog, ela defendeu, em 2012, sua dissertação de mestrado em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com o título “Entre a vitimização e a divinização: a pessoa com deficiência em Viver a Vida”. Orientada pela professora Ana Carolina Escosteguy, construiu análises de mídia a partir dos Estudos Culturais e publicou artigos com referenciais teóricos metodológicos críticos. Posicionou-se feminista em defesa das diferenças e das minorias. Em seu blog ela conta ser filha caçula e fala de sua irmã com deficiência. Compartilha seus incômodos, desde muito criança, com as limitações sociais diante da condição de vida de sua irmã. Inquieta-se com o poder midiático de criar sentidos sociais para a deficiência. E na formação acadêmica se apropria de referenciais e discursos que a permite refletir e produzir conhecimentos a partir de seus incômodos.

A continuidade de sua formação no doutorado segue na mesma direção. Em 2016, Bruna defendeu sua tese no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e fez da sua prática de blogueiraum lugar de produção de conhecimento. Consciente do lugar amalgamado nesse agenciamento coletivo na globosfera, em interconexões entre outros blogueiros da saúde, percebeu que existe nessas (auto)biografias uma potencialidade de produção de conhecimentos. Expôs suas práticas, como blogueira, como motivadoras para a escrita da tese e a defendeu com o título "’Dor Compartilhada é dor diminuída’: autobiografia e formação identitária em blogs de pessoas em condição crônica de doença”. Os referenciais teóricos escolhidos abrem-se para leituras sensíveis acerca da vida com uma doença. Sempre em defesa de uma sociedade inclusiva, inventa o termo “condição crônica de doença”, para nominar uma vida marcada pela necessidade de adaptações constantes diante de pequenos lutos causados pelas perdas biológicos. Esse artigo concorda com as opções teóricas de sua tese, no entanto, escolhe não o usar como citações, mas apenas o expõe para mapear o lugar de fala e contexto interdiscursivo da blogueira. Atualmente Bruna continua sua formação no pós-doutoramento na mesma universidade.

Além desses agenciamentos coletivos e dessas condições discursivas, Bruna compartilha timidamente em seu blog sua opção religiosa nos estudos espíritas, em consonância à erradicação da desigualdade social, solidariedade e da justiça social.

Sua posição política é externada na postura ativista em defesa de políticas públicas que garantam o acesso universal a saúde pública, ao Sistema Único de Saúde, SUS, e a democracia como princípio republicano de vida coletiva. Este é o contexto e o interdiscurso em que é possível dizer o que é dito no blog “Esclerose Múltipla e eu” que será analisado em seguida.

O que o blog “Esclerose Múltipla e eu” agencia?

Porque eu aprendi a valorizar cada passo que eu dou. Aprendi a valorizar pequenos momentos simples da vida, como levantar sozinha da cama. Tomar banho sozinha. Viver de forma independente. [...] Apesar de existir milhares de coisas que eu não consigo fazer, existem outras milhares que eu consigo, posso e faço muito bem. O negócio é dar valor às coisas que a gente pode e não lamentar pelo que não pode. Ao ficar lamentando, a gente deixa de ver as coisas boas da vida. E não venham me dizer: ai, minha vida não tem nada de bom. Peraí, alguma coisa boa tem. Cata bem catadinho que você vai achar. Vamos começar a aplaudir nossas pequenas coisinhas boas do dia a dia. (Esclerose Múltipla e eu, 25 de setembro de 2009)

Não é necessária uma leitura profunda para perceber o quando os posts de blog “Esclerose Múltipla e eu” externam uma inspiração positiva para a vida, com ou sem uma doença rara, como no exemplo acima. No entanto, esse artigo busca com a análise do discurso evidenciar aquilo que não está explícito no texto, entretanto faz parte do seu funcionamento. A partir dos agenciamentos coletivos mapeados e a subjetividade de blogueira que se faz amalgamadas a esses agenciamentos, que palavras e estratégias de linguagem foram escolhidas para dizer o que se diz? Que funcionamento discursivo foi posto em ação? O explícito diz sobre uma perspectiva quase de “autoajuda”, mas o que é possível ler em análise dessa intenção expressa em texto?

O sentido positivo para a vida marca as narrativas do blog “Esclerose Múltipla e eu”, sempre há outra perspectiva, um melhor ângulo. A blogueira Bruna parece implicada em oferecer aos seus leitores um motivo para ser feliz apesar da doença. Em alusão ao “Dia Mundial de Doenças Raras”, 29 de fevereiro, por exemplo, ela usa a palavra “comemoramos” a data entre aspas e explica: “Na verdade não se comemora doença né?” E em seguida denuncia o fato de que muitas doenças raras recebem poucas pesquisas e anuncia uma campanha “dia a dia de mãos dadas”, convida a todos para postar uma foto com #somos todos raros, no facebook e compartilha um vídeo com a mensagem que “todos precisamos de uma mão, que uma mão pode ser fundamental em alguns momentos. E que nós estamos Dia a dia, de mãos dadas!” Junto a esse texto sua foto com o marido Jota e a frase #somos todos raros.

A positividade de Bruna pode ser explícita como no primeiro exemplo na epígrafe e implícita como nesse post. Ela mostra que apesar de raros ela tem companhia para estar de mãos dadas e desejos para conseguir conquistas, sua vida pulsa “de mãos dadas conseguimos muito mais”. Porém, sua positividade não é ingênua ou alienada como alguém que vive em um castelo de areia. Em um poste de 3 de abril de 2012, com o título “Só sabe quem passa”, ela compartilha uma dor que acredita não poder ser entendida senão por experiência. Nesse post ela denuncia um limite léxico para compartilhar a dor e escreve em um tempo passado recente. Conta de uma crise de fadiga e descreve a reação das pessoas que nunca sentiram essa fadiga: “mas tu não tá bem? Mas o que tu tem?” E ela responde: “oras, tenho esclerose múltipla, ué?” Com uma resposta aparentemente mal-humorada ela se mostra em sua humanidade e os limites do comportamento positivo em todo tempo. Em outro momento do texto ela diz: “Algumas pessoas ainda dizem: mas porque tu não vai num médico ver esse teu cansaço? Por dentro eu penso: porque não é cansaço, porra! Mas aí, como diva fina que sou, dou um sorrisinho e digo: tá tudo bem, pode deixar.”

No momento da emoção da experiência, ela mostra que é difícil manter o aprendizado da positividade a todo custo, mas meses antes, em 8 de julho de 2011, ela escreve sobre seus aprendizados e diz: “há quem pense que só porque uma situação/experiência te trouxe um aprendizado, ela é uma coisa boa. Eu penso que não.” E em outro momento, “E sim, acredito que tudo, mas tudo mesmo, pode virar um aprendizado. Isso vai depender do ponto de vista de cada um". Se analisarmos esse conjunto de frases paráfrases percebemos, por exemplo:

1. Tudo pode virar um aprendizado.

O uso do verbo “pode” exigiu um complemento condicionante.

2. Depende do ponto de vista de cada um.

Se o ponto de vista é determinante, a aprendizagem não depende do “tudo” e sim do “ponto de vista”.

Bruna segue elencando várias de suas aprendizagens com a doença, todas com um tom positivo. Por exemplo: “Aprendi que a dor pode enlouquecer uma pessoa. Pode até tirar a vontade de viver. Mas também aprendi que ter pessoas que te amam em volta, faz qualquer dor ser menor do que a vontade de ser feliz com essas pessoas”. Mas, em consonância ao seu argumento anterior ela se pergunta: “Mas será que isso em aprendi por conta da EM ou por conta da vida mesmo? Não sei... é provável que nunca saiba. O importante é que aprendi”. Ela mostra um momento reflexivo do seu processo, essa análise considerou os diferentes agenciamentos coletivos em que ela está envolvida e de forma múltipla, talvez não seja possível afirmar que somente a doença tenha a ensinado, mas evidente que se trata da doença na multiplicidade do contexto da sua vida. E todo o resto da sua vida não seria o que foi sem a EM. Ela parece ter consciência dessa multiplicidade quando diz no mesmo post: “talvez a EM tenha me ensinado que nem tudo é o que parece ser, que sempre há uma forma diferente de ver as coisas, e que, quando a gente se abre para essas outras visões, a gente pode se surpreender muito de forma positiva”. Essa frase traz uma complexidade para as frases analisada anteriormente. Na primeira composição de frases a aprendizagem era condicionada pelo ponto de vista de cada um. Aqui ela diz: “sempre há uma forma diferente de ver as coisas, e que, quando a gente se abre para essas outras visões, a gente pode se surpreender muito de forma positiva”. Isso parece explicar porque ela busca em todas as situações ruins achar o lado mais positivo. Parece haver uma conexão dessa evidência aos múltiplos agenciamentos em que ela faz parte. Existe uma predisposição para as resiliências.

Essa forma positiva que Bruna escolheu evidenciar suas experiências também não deixa de ser parte de um contexto social e tem a ver com os cuidados que a blogueira expressa sobre a sua saúde. Paulo Vaz (2002), no texto “Um corpo com futuro” expõe a passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do controle e observa que na primeira a doença aparece em forma de sintomas que são tratados e esquadrinhados a partir dos prognósticos médicos, mas na lógica da sociedade de controle, ao indivíduo é dada a possibilidade da administração do risco, depois da predisposição genética. A realidade da doença pode aparecer mesmo sem sintomas e o fator de risco empurra os sujeitos para o campo da prevenção, dos cuidados pessoais com o corpo. Ter saúde no século XXI não é sinônimo de ausência de sintomas, mas tem a ver com a capacidade dos sujeitos de gerir a própria qualidade de vida: pensamento positivo, vida social, alimentação saudável, atividade física, consultas e exames preventivos em dia. Nesse contexto, a responsabilidade sobre a saúde é do indivíduo, “os valores maiores de nossa sociedade parecem ser, na relação consigo, o bem-estar, a juventude prolongada, o autocontrole e a eficiência; na relação com os outros, a tolerância, a segurança e a solidariedade. Estes valores implicam o cuidado a partir do risco como fundo de negatividade a ser evitada” (Vaz, 2012, p. 137).

Bruna faz parte também desse agenciamento coletivo, é “filha do seu tempo”, possui em sua história outros consumos que sustentam pensamentos positivos e solidários com o próximo. Tem consciência de que uma doença autoimune é equivalente a um auto boicote e mesmo sabendo que esse processo é inconsciente ela externa sua responsabilidade. Assume o controle de seu projeto de si, busca e filtra informações a que se filia, compartilha e discute suas ideias, coloca-se como corresponsável, junto ao seu médico, para decidir sobre seus tratamentos. Nomeia-se de “paciente 2.0”. Vaz (2012) fala dos sujeitos desse tempo que estão em formação constante, Bruna estabelece com a doença um campo de autoformação. Isso é sinônimo de sujeito saudável no nosso tempo. Segundo Vaz (2002, p. 140) “O homem seria são quando é capaz de descobrir outras possibilidades de ser para si mesmo”. A alimentação é um dos exemplos de autocuidado, as informações disponíveis sobre a alimentação funcional, acabam por responsabilizar o sujeito pelas escolhas que não seguem impunes aos sintomas de doenças. Vaz se pergunta e se responde “como alimentar-se com prazer cuidando da saúde e da forma do corpo? A comida ideal hoje é a salada saborosa, por outro lado, ninguém come feijoada ou carne vermelha impunemente. [...] nunca afastaremos a obrigação de aprender, trabalhar e cuidar do corpo” (Vaz, 2002, p. 138). Essa é a complexidade das subjetividades como parte dos agenciamentos coletivos de enunciação, se reproduz comportamentos, valores em uma autogestão de si, com uma autonomia quase autoral, mas anunciada previamente e silenciosamente nos movimentos da cultura.

Além dessa escolha individual de Bruna pela perspectiva positiva sobre a vida, ela não esconde de seus leitores o fato de que sua vida, como todas as outras, também passa por momentos ruins, mau humor e tristezas profundas. Mas, sempre que relata esses momentos ela o faz no tempo passado, ou seja, na condição de quem já atribuiu novos sentidos a negatividade. Em poucos casos, como exposto no post do dia 03 de abril de 2012, ela externou ímpetos de mau humor frente às reações sociais com sua dor em um passado recente. Ela se mostra claramente responsável por incentivar positivamente outros doentes. Compartilha o fato de que participa de encontros de blogueiros da saúde onde esses agentes se capacitam e se especializam com as ferramentas tecnológicas e posturas positivas na produção, compartilhamento de conteúdo e conversas com internautas. Dizendo de outra forma, Bruna está incluída em um contexto de regulação de produção de conteúdo com vistas à responsabilidade com o tema saúde e autonomia das pessoas com o cuidado do próprio corpo. Nesse aspecto ela se subjetiva parte desse agenciamento coletivo como evidenciou Vaz (2002) em que seríamos sãos quando nos tornássemos capazes de descobrir outras possibilidades de ser para nós mesmos.

E sobre esse contexto, o fato dela conviver com sua irmã mais velha com uma deficiência mental fez diferença na sua perspectiva de mundo. Quero dizer que o fato dela ter sido diagnosticada com Esclerose Múltipla aos 14 anos, não teria o mesmo sentido se não fosse uma adolescente que sempre conviveu com a diferença da deficiência. Quando escolheu um tema para sua pesquisa de mestrado, foi a deficiência a sua sensibilidade, seu desejo para saber mais. E foi em um post de 23 de março de 2010, contemporâneo ao início do mestrado, com o título “Inclusão Social uma pinóia” que ela expressa sua indignação ao fato de que se fala em inclusão, mas, verdadeiramente na vida prática a família sente o oposto. Em sua perspectiva ela vê sua irmã sendo excluída, ela diz: “se tem uma coisa que minha irmã ama fazer, mas ama mesmo, de paixão, é ballet”, e mais adiante ela completa

Ela nem dormiu direito a noite, esperando a aula de hoje. E fez a aula e gostou muito. A nossa sorte é que ela não entende muito bem a rejeição das pessoas. Sutilmente, a dona do Ballet Redenção disse que ela não se adequava àquela escola, que ela não seria feliz ali [...] (Esclerose Múltipla e eu, 23 de março de 2010)

Observa-se que a frase começou com o uso da primeira pessoa do plural, a sorte do não entendimento da irmã era “nossa”, entende-se dela, da sua mãe e da própria irmã. Ela não se referia ao fato da irmã ter sido excluída, mas da emoção dela ao ver sua irmã excluída. A consciência social da exclusão fazia maior o incômodo. No mesmo texto ela fecha com uma nota dizendo que “não por acaso, o depoimento de hoje da novela Viver a Vida foi sobre inclusão escolar”. Sua dissertação de mestrado tinha esta novela como objeto midiático, está explícito que a formação convencional de Bruna segue conscientemente amalgamada às experiências de sua vida.

Ela vai se fazendo, consciente do seu processo identitário, como irmã, depois esposa do Jota, que progressivamente se debilita com a Esclerose Múltipla. No post de 24 de julho de 2017, com o título “Quem sou eu?” ela se mostra múltipla em suas identidades, mostra como é difícil responder os formulários de emprego. A pergunta “quem sou eu?” resumida à profissão, ela diz: “eu poderia dizer que sou blogueira, que sou escritora, que sou publicitária, que sou respondedora de e-mails, que sou conselheira, que sou pesquisadora, que sou estudante, que sou leitora... tudo isso é meu trabalho diário. E aí?” E continua se auto definindo em várias:

Eu sou esclerosada, por exemplo. [...] Eu sou mãe do Francisco. Eu sou esposa, companheira do Jota, outro esclerosado. E isso carrega mais um monte de coisas junto. Eu sou ativista do movimento das pessoas com deficiência. Eu sou feminista. Eu sou filha. Eu sou neta. Eu sou eterna estudante. Eu sou sonhadora. Eu sou uma chata de galocha perfeccionista. Eu sou uma leitora voraz. [...] Coisa difícil de ser alguém né? [...] Pois eu tenho dificuldade de ser uma coisa só. Ou duas. Ou três [...] (Esclerose Múltipla e eu, 24 de julho de 2017)

Sua narrativa é um exercício de mostrar que uma doença não é capaz de aprisionar, e estigmatizar na maior parte dos casos, a identidade de uma pessoa. Aqui aparece sutilmente sua formação acadêmica nos Estudos Culturais. Como não perceber suas múltiplas identidades depois estudos das bibliografias usadas em sua dissertação e tese, por exemplo? Essa perspectiva que no blog acaba se desdobrando em um ativismo, que em última instância também oferece um olhar mais positivo para a pessoa doente, aparece em outros posts de outra forma, como na comemoração dos cinco anos do blog. Ela escreve em 11 de março de 2014 um post explicando o “Porquê escrevo”. O texto, como em outras ocasiões, parece responder os questionamentos dos internautas. Uma mãe a questiona sobre estar muito envolvida com o tema Esclerose Múltipla, com os problemas de outras pessoas e sugere que ela vá fazer outras coisas compatíveis com a sua idade. E ela escreve em sua defesa e ela diz:

Bom, primeiro gostaria de dizer, em minha defesa, que minha vida é cheinha de coisas maravilhosas. Assim como a doença é uma parte da minha vida, o blog é um pedaço do meu dia. Eu faço doutorado, tenho uma tese pra escrever e, normalmente, mais uns 2 ou 3 artigos científicos na fila a serem escritos e entregues com prazos apertados. Eu viajo todos os meses pra ver meu namorado lindo, que eu amo demais, e ainda tem meses que eu viajo pra participar de congressos ou pra fazer férias mesmo. Eu tenho uma família queridona que me apoia e está comigo sempre, e que precisa de mim também. Eu faço trabalho voluntário, que me dá muito prazer. Eu saio pelo menos uma vez por semana pra fazer botecoterapia ou cafezinhoterapia com amigos. Eu adoro ver filmes e seriados, e me permito, alguns dias, não fazer nada muito útil, só ficar deitada na frente da tv, ou ficar brincando com meus gatos, que são lindos, fofos, gordos e ronronam como tratores [...]. (Esclerose Múltipla e eu, 11 de março de 2014)

Em outras palavras, ela reproduz um agenciamento coletivo de enunciação que diz sobre o estar saudável ativamente, apesar da doença e mostra sua versatilidade identitária.

Minha identidade não é a doença, mas há muito dela na minha identidade. Porque ela está comigo 24h por dia, há 14 anos, e estará comigo sempre. Mesmo que descubram a cura (tomara que venha logo), ela fará parte de mim, daquilo que eu me tornei, de todo o aprendizado desses anos todos. (Esclerose Múltipla e eu, 11 de março de 2014)

Quando Bruna se questiona se seus aprendizados advêm da doença ou teria aprendido a mesma coisa sem ela, aqui ela parece não ter dúvidas de que o que ela se tornou, mesmo que em diversas identidades, está relacionado totalmente a Esclerose Múltipla. Lembra-se do seu passado com os sintomas mais sérios e finaliza o argumento novamente com um tom de positividade.

E lembrar as dificuldades que eu já passei não me enfraquece, só me fortalece. Como eu não vou ficar feliz ao lembrar que eu já parei de caminhar mas hoje caminho, que eu já fiquei 100% dependente eu hoje eu sou quase independente? (Esclerose Múltipla e eu, 11 de março de 2014)

Esse mesmo post tem o propósito de explicar o porquê do gesto de escrever no blog. E ao fazer isso, ela anuncia uma razão individual que é a busca pelo outro, na procura desesperada de não se sentir só com a sua experiência com a Esclerose Múltipla. Ela diz: “porque algumas coisas me devoram permanentemente, e a minha forma de lidar com isso é colocando pra fora, é compartilhando com vocês. E agradeço, por não me deixarem sozinha”. E também ao anunciar uma razão coletiva, ela assume uma postura política:

Eu escolhi que tudo o que eu faço deve ser pensado no bem estar de todos. E decidi que ninguém que tiver o mesmo diagnóstico que eu, deve se sentir sozinho. Assim como decidi que nenhum texto meu será excludente. Assim como academicamente escolhi a área dos estudos culturais e os estudos de gênero e os estudos sobre deficiência. (Esclerose Múltipla e eu, 11 de março de 2014)

E voltando ao post quando ela anuncia uma campanha do Dia Internacional da Deficiência ela escreve na sua foto com o Jota #somostodosraras. Existe nesse post uma sutileza hibrida em que o adjetivo aparece no feminino e o sujeito no masculino, talvez na intenção de incluir os dois gêneros entre os raros. Esse fato não se resume em trocas de letras, mas na estratégia de linguagem para o propósito da sua decisão: “decidi que nenhum texto meu será excludente”. Alguns posts são menos sutis e escancaram as opções políticas da blogueira, como foi o caso do post do dia 7 de novembro de 2016 em que ela discute a PEC 241/PEC 55. E se posiciona no título “Por que sou CONTRA a PEC 241/PEC 55”. Ela tinha recém sido mãe e mesmo as voltas com os cuidados do início da maternidade fez uma defesa política relacionada às perdas que os cortes prometiam e não perdoou um #ForaTemer, #OcupaTudo e #CorteZero.

Durante essa breve análise foi possível observar que o blog “Esclerose Múltipla e eu”, como parte da globosfera é também parte de um agenciamento coletivo que faz proliferar sentidos sociais que estão em muitos outros agenciamentos coletivos. É possível dizer que no blog existe uma exposição de auto formação da blogueira com a doença crônica Esclerose Múltipla, entretanto é importante destacar que ela está amalgamada e acontece concomitantemente a outras formações. A vida não se resume apenas a doença, mas a uma multiplicidade rizomática.

Algumas reflexões acerca de uma vida em “condição crônica de doença”

Como já foi anunciado no início desse artigo, ele é parte de uma pesquisa maior e “recorta” apenas uma das possibilidades cartográficas de um rizoma que se configura um blog e suas hiperconexões. O fato da blogueira escolhida para a pesquisa ser também acadêmica e fazer parte do grupo de pesquisadores (auto)biográficos implica um duplo cuidado. Por um lado, existe uma aproximação pela sua produção. O termo “condição crônica de doença”, escolhido para o título desse artigo diz sobre a concordância acerca da sua produção. Entretanto, escolhemos nos afastar do uso da sua produção acadêmica nessa análise e atentamos apenas para a sua produção ativista no blog. Por outro lado, o resultado que chegamos nas análises das narrativas nos mostraram que a sua formação acadêmica esteve muito amalgamada aos seus posts na globosfera. Supomos que a concomitância entre formação stricto-sensu e formação pela doença tenha trazido essa consciência auto formativa e de formação identitárias para os textos.

Especialmente, sua sensibilidade para a causa das pessoas com deficiência é explícita tanto nas suas (auto) narrativas no blog quanto na escolha dos objetos de pesquisa e teorias que sustentam seus escritos acadêmicos. Esse lugar que se torna político e ativista aparece também no esforço de dizer que a doença influencia em suas várias identidades, mas não a resume apenas a uma pessoa esclerosada. Ao dizer sobre suas múltiplas identidades, em concordância a suas escolhas teóricas nos Estudos Culturais, também diz que possui uma condição crônica de doença, que por vezes está em crises e por vezes desativada.

Essa possibilidade de estar doente, mas saudável, reforça uma escolha positiva de narrativa de vida e compulsivamente aparece em seus posts de forma explícita ou implícita quase como, também, outra identidade. Dessa forma, não é possível afirmar que exista uma formação graças, e apenas graças à doença, antes, auto formação pela doença amalgamada a tantos outros enunciados.

Talvez, pela escolha teórica metodológica em que privilegiou ver uma parte cartográfica de um rizoma, o destaque ficou nos processos de subjetivação como parte de vários agenciamentos coletivos de enunciações. Tanto a formação acadêmica que norteou a cartografia, quanto à análise dos posts escolhidos mostraram que a auto formação se faz a luz de nosso tempo, mas de forma muito consciente e reflexiva. Voltando a cena da epígrafe do início do artigo e que permeou metaforicamente os argumentos dessa análise, algo invisível lhe saltou aos olhos e, talvez, além do próprio blog e possibilidade de escrever e conversar sobre a doença, seja a descoberta de que uma doença é apenas uma parte de uma vida e a “condição crônica de doença” é apenas uma condição que ela procura dar o sentido positivo possível. Agenciar esse sentido, acreditando que pode fazer a diferença na vida de muitos internautas no desespero da ausência de luz de um diagnóstico como esse, talvez tenha sido um dos grandes aprendizados explícitos no texto. E implicitamente está a reprodução de uma forma de lidar com a autogestão da doença no nosso tempo.

Referências

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Recebido: 01 de Junho de 2018; Aceito: 01 de Julho de 2018