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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.24  Brasília  2018  Epub 13-Feb-2019

https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.21850 

Dossiê Didática desenvolvimental: diferentes concepções histórico-culturais

Didática desenvolvimental e políticas educacionais para a escola no Brasil

Raquel A. Marra da Madeira Freitas1 
http://orcid.org/0000-0003-3978-0238

José Carlos Libâneo2 
http://orcid.org/0000-0001-6821-5946

1Doutora em Educação (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília, SP). Professora Adjunta na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Coordenadora da Equipe Editorial da Revista Educativa. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Teorias da Educação e Processos Pedagógicos (CNPq).

2Pós-doutor em Educação (Universidade de Valladolid, Espanha). Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Líder do Grupo de Pesquisa Teorias da Educação e Processos Pedagógicos (CNPq). Vice-Presidente do CEPED - Centro de Estudos e Pesquisas em Didática. Membro do GT Didática da ANPEd - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação.


Resumo

O artigo apresenta a concepção de didática desenvolvimental e discute sua relevância para as práticas de ensino-aprendizagem no contexto brasileiro. A didática desenvolvimental pode constituir-se como referência aos educadores brasileiros para práticas de ensino em contraposição ao modelo de educação escolar baseado em resultados. Fazemos referência à constituição e implantação do Sistema de Ensino Elkonin-Davydov na Rússia e em seguida apresentamos a teoria de Davydov, em especial, seus princípios e elementos que fundamentam a didática desenvolvimental. Por fim, são apontadas as contribuições da didática desenvolvimental para práticas de ensino-aprendizagem na educação escolar brasileira frente às políticas educacionais neoliberais em curso no país.

Palavras-chave didática; ensino desenvolvimental; políticas educacionais

Abstract

The article presents the concept of developmental didactics and discusses its relevance to teaching-learning practices in the Brazilian context. The developmental didactics represents an important reference for Brazilian educators for teaching practices as opposed to the results-based school education model. It begins with a reference to the constitution and implantation of the Elkonin-Davydov Teaching System in Russia, followed by the presentation of Davydov's theory, especially its principles and elements that support a developmental didactics. Finally, the contributions of developmental didactics to teaching-learning practices in Brazilian school education are pointed out in view of the neoliberal educational policies in progress in the country.

Keywords didactic; developmental teaching; educational policies.

Resumen

El artículo presenta la concepción de didáctica desarrolladora y discute su relevancia para las prácticas de enseñanza-aprendizaje en el contexto brasileño. La didáctica desarrolladora se constituye como referencia a los educadores para efectivar prácticas de enseñanza en contraposición al modelo de educación escolar basado en resultados. Se inicia haciendo referencia a la constitución e implantación del Sistema de Enseñanza Elkonin-Davydov en Rusia y luego se hace la exposición de la teoría de Davydov, en particular sus principios y los elementos que fundamentan una didáctica desarrolladora. Por último, se apuntan las contribuciones de la didáctica desarrolladora para las prácticas de enseñanza-aprendizaje en la educación escolar brasileña frente a las políticas educativas neoliberales en curso en el país.

Palabras clave didáctica; enseñanza en desarrollo; políticas educativas.

Résumé

L'article présente le concept de didactique pour le développement et discute de sa pertinence pour les pratiques d'enseignement et d'apprentissage dans le contexte brésilien. La didactique du développement peut servir de référence aux éducateurs brésiliens pour les pratiques d’enseignement, par opposition au modèle de formation scolaire axé sur les résultats. Il commence par une référence à la constitution et à l'implantation du système d'enseignement Elkonin-Davydov en Russie et ensuite est faite l'exposition de la théorie de Davydov, en particulier ses principes et éléments qui fondent une didactique didactique. Enfin, les contributions de la didactique du développement aux pratiques d’enseignement et d’apprentissage de l’enseignement scolaire au Brésil sont mises en évidence au regard des politiques éducatives néolibérales en cours dans le pays.

Mots clés didactique; enseignement du développement; politiques éducatives.

Introdução

A atividade profissional dos professores se defronta, na atualidade, com transformações econômicas, sociais, políticas, culturais e éticas que, em conjunto, atuam fortemente nas condições de trabalho, na formação docente, no trabalho com os conteúdos, no ensino, na avaliação da aprendizagem e nas formas de relações com os alunos. Os professores têm a responsabilidade de promover a apropriação de conhecimentos escolares pelos alunos para a vida social, cultural e profissional. Em poucas palavras, a atividade do professor se situa entre a necessidade social de formação e desenvolvimento humano dos alunos e às demandas de natureza econômica quanto ao desenvolvimento para o mundo do trabalho.

São muitas as incitações e adversidades trazidas por este contexto de transformações no qual estão situados os docentes, desde o impacto da sociedade global na economia, na política, na cultura, nas relações humanas, até a subordinação das políticas públicas aos critérios exclusivamente econômicos do mercado globalizado. Eles também estão sujeitos ao impacto das tecnologias digitais na vida cotidiana e escolar, da homogeneização dos modos de pensar, sentir e agir em função de determinados interesses das mídias, sobretudo daqueles do mercado de consumo, às mudanças nos valores e nas formas de viver a cotidianidade, bem como às demandas em relação aos direitos humanos, à busca da paz mundial, à educação ambiental, ao desenvolvimento sustentável e ao atendimento da diversidade sociocultural e da interculturalidade.

Entre os fatores que atingem diretamente o planejamento, organização e prática dos sistemas escolares cumpre realçar a tendência internacional da obrigação de resultados na educação. Tal como ocorre nas empresas e órgãos públicos, as instituições educacionais estão sendo coagidas a pautar suas ações por critérios de qualidade, baseados em indicadores numéricos de desempenho, aferidos por instrumentos padronizados. As consequências educacionais dessa coação são visíveis: os objetivos de formação subordinam-se a indicadores externos de desempenho estabelecidos pelo mercado, os professores trabalham para melhorar os índices, o que reduz a docência à preparação dos estudantes para provas externas. As escolas buscam objetivos imediatos descuidando-se daqueles a longo prazo, como é o caso dos processos formativos que visam o desenvolvimento humano (Libâneo e Freitas, 2018).

Frente a esses e outros desafios, os professores se angustiam em relação à sua atuação social e pedagógica e se questionam: como contribuir para que os alunos alcancem a aprendizagem sólida dos conteúdos relevantes para sua formação humana e sejam cidadãos mais éticos? Como promover uma formação que os tornem capazes de resistir ao consumo desenfreado, à escravização pela propaganda, à manipulação pelas mídias? Como formar para uma cidadania global sustentável? Com lidar com a mudança, a diferença e a diversidade sem perder de vista valores humanos universais? Como é possível, num mundo cada vez mais desigual, praticar critérios de justiça social na escola e na sala de aula? Como efetivar uma prática pedagógica que proporcione o desenvolvimento cognitivo, afetivo, moral e estético dos alunos?

Neste artigo, ao reconhecer as mudanças e as novas realidades que atingem o processo educativo, busca-se apontar caminhos para enfrentar os desafios postos à educação escolar. Desse modo, o objetivo do artigo é apresentar a didática desenvolvimental inicialmente fazendo referência à constituição e implantação do Sistema de Ensino Elkonin-Davydov na antiga União Soviética e atual Rússia, fundamentado na teoria do ensino desenvolvimental. Em seguida, aborda-se a teoria de ensino de Davydov descrevendo seus princípios, dos quais decorrem uma didática desenvolvimental. Por fim, são apontadas as contribuições da didática desenvolvimental para o ensinoaprendizagem na educação escolar brasileira frente às políticas neoliberais para as escolas, em curso no país.

O Sistema Elkonin-Davydov e a didática desenvolvimental

O Sistema Elkonin-Davydov é uma proposta curricular e pedagógica elaborada com base nos postulados de Vygotsky acerca das relações entre educação, ensino e desenvolvimento humano, concebido como alternativa de currículo e de organização do ensino para escolas pertencentes, no período 1958-1991, a várias regiões da União Soviética[1]. Atualmente este sistema integra o sistema oficial para o ensino fundamental na Rússia (Guseva & Solomonovich, 2017). A concepção do Sistema se remete a dois psicólogos e pedagogos, Daniil Borisovich Elkonin (1904-1984) e Vasili Vasilievich Davydov (1930-1998) que, como pesquisadores, a partir de 1958 reuniram psicólogos, pedagogos e especialistas em disciplinas escolares para pôr em prática um sistema de ensino voltado ao desenvolvimento intelectual e da personalidade global dos estudantes. Conforme relata Puentes (2017) o sistema Elkonin-Davidov[2] corresponde a uma dentre várias outras das teorias de ensino formuladas a partir das teses fundamentais de Vigotsky difundidas na Rússia, em outros países da antiga União Soviética e em países do ocidente, tais como o sistema Zankoviano de L. V. Zankov, e a teoria da formação mental por etapas de P. Y. Galperin e N. F. Talízina.

Zinchenko (2011) relata que Elkonin e Davydov, ao darem início à criação de um sistema de ensino desenvolvimental, puseram o foco no desenvolvimento do pensamento, tendo como fundamento a tese do filósofo marxista Ilyenkov de que a escola deve ensinar a pensar. Em razão do regime totalitário stalinista vigente à época que incluía a perseguição e expurgo de intelectuais considerados opositores, optaram por um trabalho que fosse ideologicamente mais seguro e que não gerasse conflitos com as autoridades soviéticas: o desenvolvimento do pensamento teórico de crianças em idade escolar. Davydov, no entanto, era convicto em apostar nesta nessa possibilidade e trabalhou não só nessa tarefa, mas também na distinção entre o pensamento teórico e o empírico e na elaboração da estrutura da atividade de aprendizagem para formar o pensamento teórico de crianças em idade escolar (Zinchenko, 2011).

O fundamento teórico-conceitual formulado por esses pesquisadores foi assentado em vasta pesquisa teórica e empírica experimental desenvolvida por cerca de quarenta anos, a qual deu respaldo para a elaboração do sistema de ensino Elkonin-Davydov. Conforme refere Kudriavtsev (2011), por suas características, o sistema escolar russo à época era tido como uma das instituições sociais mais conservadoras e aparentemente resistentes a reformas. Naquele contexto, o sistema Elkonin-Davydov foi considerado inovação pedagógica.

Davydov (1998) assinala que seu entendimento acerca do ensino desenvolvimental decorreu de estudos e pesquisas empreendidas como parte da reorganização do processo educacional em várias escolas russas, como por exemplo, a Escola Experimental nº 91 em Moscou, a nº 17 em Kharkov, a nº 11 em Tula, a nº 106 em Krasnoiarsk, entre outras. Com base nessas pesquisas, sua equipe projetou novos currículos para a escola primária, elaborou livros didáticos e preparou manuais metodológicos para professores. Com Elkonin e outros pesquisadores, o trabalho experimental de Davydov buscou, com a maior precisão possível, seguir as hipóteses de Vygotsky sobre a relação entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento, produzindo vasto material empírico para transformar essa hipótese em uma teoria do ensino desenvolvimental (Davydov, 1998).

Desse modo, o Sistema Elkonin-Davydov foi criado e desenvolvido como método experimental de investigação das potencialidades do desenvolvimento de crianças e adolescentes por meio da educação escolar e do ensino, constituindo-se referência teórica e prática para a didática desenvolvimental (Zuckerman, 2011).

Ensino desenvolvimental na perspectiva teórica de Davydov

Davydov (2017) caracteriza o ensino desenvolvimental pelo compromisso com a transformação pessoal e social do aluno, efetivado no processo de ensinoaprendizagem que leva ao desenvolvimento da capacidade de análise dos objetos com base na reflexão dialética e, em última instância, ao desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Desse modo, cumpre os postulados básicos da filosofia marxista-leninista aplicando-os às questões e problemas da educação das novas gerações. Em sua teoria, realça a ideia de que a forma universal do desenvolvimento intelectual da criança é a apropriação de conhecimentos e habilidades social e historicamente constituídos. Esse conceito se fundamenta na concepção de que o indivíduo se engaja ativamente no processo de apropriação de conhecimentos por meio de sua atividade, de modo que as aptidões humanas historicamente desenvolvidas sejam reproduzidas e incorporadas como características do próprio indivíduo (Zuckerman, 2011). Nessa perspectiva, o conteúdo principal do ensino é a assimilação de métodos generalizados de ações com conceitos científicos e consequentes mudanças qualitativas no desenvolvimento mental (Davydov e Markova, 1982; Davídov, 1982).

Desenvolvimento, na visão de Davydov (1998), se refere a mudanças essenciais nas esferas intelectual, emocional e pessoal do aluno, sendo impulsionado pelo processo de ensino-aprendizagem. Com base nesse princípio, Davydov investigou e indicou as condições psicológicas e pedagógicas do ensino, tendo em vista influenciar funções mentais específicas para promover o desenvolvimento do aluno. Assinalou, também, que na atividade formal de ensino e aprendizagem os alunos devem assimilar o conhecimento teórico realizando ações mentais de análise, planejamento e reflexão. Isso define o desenvolvimento cognitivo e da personalidade das crianças (Davydov, 1998).

Davydov (1998) recorre a Repkin para caracterizar o ensino desenvolvimental como aquele em que as leis do desenvolvimento determinam o conteúdo, o método e as formas de organização, tendo como objetivo geral provocar no estudante o interesse e a necessidade de sua própria transformação. O ensino desenvolvimental, assim, cria as condições para que essa transformação ocorra distinguindo-se “fundamentalmente do objetivo da escola tradicional, que é formar a criança para desempenhar várias funções da vida social (Repkin, 1992, como citado em Davydov, 1998, p. 31, tradução nossa). Assim, o ensino não se limita ao preparo para o desempenho de determinadas funções na sociedade. Ao contrário, busca, especialmente, a criação de condições da transformação pessoal e social dos alunos, sua autonomia e independência intelectual.

A ideia de que o processo ensino-aprendizagem visa promover mudanças qualitativas nas operações mentais dos alunos e no seu modo de agir é recorrente na proposta pedagógica de Davydov. Ela inclui a visão de aluno como sujeito ativo de sua aprendizagem e, portanto, sua autotransformação. O autor recorre a um trabalho escrito por Elkonin sobre a atividade de estudo, onde se lê:

O resultado da atividade de estudo no curso da qual tem lugar a assimilação de conceitos científicos é, antes de tudo, a transformação do próprio aluno, ou seja, seu desenvolvimento. No geral, pode-se dizer que esta transformação é a aquisição, peça criança, de novas capacidades, de novos procedimentos de ação com os conceitos científicos. Assim, a atividade de estudo é, antes de tudo, aquela atividade cujo produto são as transformações no aluno, isto é, uma atividade de autotransformação e nisso consiste sua principal particularidade (Elkonin 1961 como citado em Davídov e Markova, (1987, p. 324).

E quais são os processos que produzem essa autotransformação? Davydov escreve que a base desses processos é a apropriação de conhecimentos teóricos visando formar o pensamento teórico. Segundo o autor, o conteúdo desses conhecimentos não se descobre por meio da observação imediata, e sim por meio de ações materiais pelas quais os alunos realizam transformações mentais no objeto de estudo e, com esse procedimento, desvelam suas relações internas e essenciais. Escreve, ainda, Davydov:

A necessidade de aprendizagem vem a ser a necessidade que o aluno tem de experimentar de forma real ou mental este ou aquele material, de modo a identificar nele aspectos gerais essenciais e aspectos particulares, e ver como estes aspectos estão inter-relacionados. Observemos que, na ciência lógica, os conhecimentos sobre a interligação entre aspectos essenciais gerais e aspectos particulares são chamados de conhecimento teórico. A necessidade da criança no processo de ensino é, precisamente, sua aspiração de obter conhecimento sobre aspectos gerais de um objeto, ou seja, o conhecimento teórico sobre algo por meio da experimentação e exploração com o objeto. Estas transformações e experimentações com o objeto envolvem, necessariamente, elementos criativos. Quando o professor cria sistematicamente na sala de aula as condições que exijam dos alunos a obtenção de conhecimentos sobre o objeto por meio da experimentação com este, as crianças se deparam com tarefas que exigem delas a atividade de estudo (Davydov, 1999, p. 2, tradução nossa).

Davydov, acompanhando Elkonin, considera que mudanças qualitativas na personalidade dos alunos significam a aquisição de novas capacidades para o domínio dos processos pelos quais os conhecimentos teóricos são criados e organizados. Com efeito, os dois pesquisadores elucidaram dois tipos de conhecimento bastante distintos em sua estrutura e organização, com diferentes lógicas de pensamento, e requerendo diferentes tipos de abstração e generalização: o empírico e o teórico.

Para criar e operar com o conhecimento, uma pessoa necessita realizar as ações intelectuais de análise, planejamento e reflexão, seja na forma empírica ou na forma teórica. A forma teórica tem papel preponderante na promoção do desenvolvimento (Davydov, 1998). Na aprendizagem de um conceito, o domínio do conhecimento precisa estar conectado com o domínio da generalização teórica desse conhecimento (Davydov, 1988a; 1999; 2017). Mas, isso depende da forma pela qual se organiza a atividade do aluno com o objeto da aprendizagem em uma tarefa de estudo. Assim, Repkin (2003) reconhece na formulação de Davydov duas dimensões da tarefa de estudo: é ao mesmo tempo a tarefa de transformação do aluno produzida pelo conhecimento teórico e a tarefa de domínio desse conhecimento pelo aluno. No ensino desenvolvimental, o aluno domina o conhecimento teórico dominando os princípios teóricos da sua construção e os modos de ação relacionados a esses princípios.

Este deve ser o objetivo da atividade de estudo, que é uma forma especial de organização da atividade do aluno para levá-lo à análise e generalização do tipo teórica (Davydov, 1999, Repkin, 2003). Portanto, o objetivo da tarefa na atividade de estudo não é o domínio apenas dos modos de ação, mas sobretudo dos fundamentos teóricos subjacentes a esses modos de ação.

Disso se conclui que, na perspectiva teórica de Davydov, o desenvolvimento do aluno não depende do volume de conhecimentos e sim do domínio dos métodos de pensamento e de ação próprios desses conhecimentos. Para estabelecer quais conhecimentos os alunos precisam adquirir, é preciso antes considerar quais métodos de pensamento e quais novas capacidades eles precisam se apropriar. Para este procedimento, requer-se levar em conta duas tendências contraditórias: a reprodutiva e a criativa. Os conhecimentos teóricos têm como conteúdo a concepção, gênese e desenvolvimento do objeto da aprendizagem. Sua apropriação inicia-se pela transformação criativa do conceito estudado, mas envolve também a reprodução de procedimentos e formas de pensamento conexas a esse conceito. Assim, a reprodução e criatividade não são excludentes. O professor formula a tarefa de estudo tanto com ações de caráter reprodutivo (reprodução de métodos de pensamento e de ações que outros já realizaram), como com as de caráter criativo (criação de novas ações mentais, novas formas de pensamento e ação, de representação e de relações com o objeto em contextos concretos). As capacidades de reprodução e de criação são essenciais para o desenvolvimento da personalidade do aluno e a aquisição de autonomia intelectual.

Princípios do ensino desenvolvimental conforme Davydov

Davydov (1999a) incorporou, e realçou ainda mais, a importância da formação de conceitos presente desde a teoria de Vygotsky, mas discutiu e acentuou as diferenças entre os tipos de conceitos e do papel que cumprem no desenvolvimento da consciência do aluno, ressaltando a primazia dos conceitos teóricos. Ele também angariou contribuições de teóricos russos clássicos da abordagem do desenvolvimento psicológico humano dentro do materialismo histórico dialético, (como Ilyenkov e Rubinstein) e incorporou à sua teoria os elementos e a estrutura da atividade humana descritos por Leontiev, o que lhe permitiu sistematizar a forma e o conteúdo da atividade de estudo do aluno.

Os princípios formulados por Davydov (1988a; 1988b; 1999a; 2017;) para o ensino desenvolvimental constituem uma base para a organização da atividade de estudo do aluno. São eles:

a. A atividade humana como fonte, meio e forma de estruturação, conservação e utilização dos conhecimentos;

b. O conceito de um objeto é a unidade de dois processos: a investigação científica que possibilitou sua criação e as ações mentais incorporadas ao método de pensar o objeto e suas relações. Assim, o conhecimento é o resultado do pensamento unido ao processo pelo qual esse resultado é obtido; ao conhecer o objeto o aluno forma, simultaneamente, as ações mentais e materiais requeridas para conhecê-lo;

c. Em decorrência do anterior, o foco da aprendizagem escolar deve ser a unidade formada por conteúdos/métodos de pensamento e ações mentais conexas aos conteúdos;

d. Na escola, a formação do pensamento teórico deve ser a regra e não a exceção; o pensamento empírico nunca deve ser dominante ao teórico;

e. O professor promove a relação cognitiva do aluno com o objeto de conhecimento por meio da atividade de estudo, que é a forma básica da organização do ensino;

f. Os elementos que compõem a atividade de estudo são desejo, necessidade, motivo/objeto, objetivos, ações, operações, condições (internas e externas ao aluno);

g. A forma estruturante da atividade é tarefa a ser realizada pelos alunos, composta de ações cujo caráter é teórico e objetal, mental e prático;

h. O caráter criativo da atividade de estudo é assegurado pela busca, investigação, criação de modelos representativos das relações centrais e secundárias do objeto de conhecimento;

i. Sem a necessidade de aprender, de adquirir o conceito, o aluno não estabelece com ele a necessária relação cognitiva;

j. Como as necessidades aparecem sob a forma de manifestações emocionais, e o que leva uma pessoa a decidir e agir são as suas emoções, estas representam a base das tarefas que o aluno se propõe a fazer, inclusive as de pensamento;

k. A avaliação da aprendizagem consiste em um exame qualitativo, consciente e reflexivo realizado pelo aluno, identificando suas transformações subjetivas e a formação de conceitos;

l. A forma pela qual são organizadas as disciplinas escolares promove a aprendizagem pela passagem dos conceitos do geral ao particular e o movimento do pensamento do abstrato ao concreto; a aprendizagem dos conhecimentos de caráter geral e abstrato precede a aprendizagem dos conhecimentos de caráter particular e concreto;

m. Os estudantes precisam descobrir, inicialmente, a conexão geral e geneticamente inicial que determina o conteúdo e a estrutura do conceito em certo campo de conhecimento;

n. A conexão geral e geneticamente inicial do conceito deve ser reproduzida pelos estudantes em modelos que possibilitem o estudo de suas propriedades de forma pura (gráficos, verbais, simbólicos);

o. Os estudantes devem passar do trabalho com o objeto à abstração, generalização e conceito teórico (plano mental).

Em termos gerais, o ensino desenvolvimental na perspectiva de Davydov tem estas características: - finalidade a ampla transformação pessoal e social do aluno; - desenvolvimento como transformações essenciais nas esferas intelectual, emocional e pessoal dos alunos; - apropriação da cultura material e intelectual como a forma universal de promover o desenvolvimento dos alunos; - desenvolvimento do aluno associado ao domínio dos métodos de pensamento e de ação subjacentes aos conceitos; - apropriação de conceitos e subjacentes métodos generalizados de pensamento e de ação como conteúdo principal do ensino e aprendizagem; - tarefa de estudo que assegura a realização de ações mentais reprodutivas e criativas pelos alunos. Assim, o ensino tem por objetivos gerais a promoção da capacidade dos alunos para análise da realidade utilizando a forma de pensamento dialética, abstrata e generalizada, e a criação do interesse e da necessidade de aprender pelo estudante, como parte de sua própria transformação.

O “modus operandi”: as condições para o ensino que promove desenvolvimento

Os formuladores do ensino desenvolvimental buscaram desde cedo responder ao problema da natureza e do conteúdo da atividade dos alunos e à forma de sua organização para favorecer o desenvolvimento da personalidade dos alunos. Chegou-se, assim, à atividade de estudo: atividade realizada pelos estudantes como uma busca investigativa necessária e motivada, com o objetivo de apropriação do conhecimento teórico de um objeto, por meio de um conjunto de ações e operações, em dadas condições. O professor a elabora na forma de tarefas contendo meios e métodos de pensamento e de ação, para que os estudantes trabalhem de forma consciente, ativa, participativa, cooperativa e com progressiva autonomia (Freitas, 2016, Libâneo, 2016)

A atividade de estudo visa prover as condições para que o aluno se aproprie de conhecimentos teóricos nos quais se incluem os conceitos e os métodos generalizados de pensamento e de ação referentes à matéria (Zuckerman, 2011; Rubtsov, 1996). Desse modo, destaca-se na concepção do ensino desenvolvimental e na experiência do sistema de ensino Elkonin-Davydov a participação os alunos em práticas interativas na escola e na sala de aula. Mais uma vez, portanto, é realçada a importância da organização da atividade de estudo de forma tal que assegure o caráter participativo e interativo das práticas dos alunos.

Conforme os fins pedagógicos e o tipo de interação que proporciona, um sistema de ensino pode suprimir, deixar de promover ou até enfraquecer as capacidades dos alunos. Por essa razão, é preciso ter clareza sobre o que se propõe no ensino escolar em relação ao desenvolvimento dos alunos (Zuckerman, 2011).

A autora se remete, também, ao conceito de atividade dominante em cada período do desenvolvimento, conforme a visão de Elkonin, ressaltando que na transição de um tipo de atividade dominante a outro (p. ex. transição da pré-escola para a escola) o aluno é sensível a intervenções pedagógicas e ao tipo de ajuda que recebe para seu desenvolvimento. Introduzir o aluno a novos conhecimentos e capacidades é importante, mas não o suficiente, pois importa também com que tipo de assistência pedagógica e de ajuda. Nessa perspectiva, a cooperação do adulto deixa de ser apenas instrumento auxiliar do desenvolvimento, ou um apoio externo, constituindo-se como um pilar da construção do desenvolvimento do aluno, promovendo sua capacidade de participar, fazer parcerias e colaborar de forma independente. Portanto, o que o ensino desenvolvimental desenvolve depende do tipo de ajuda recebida pelo aluno, do tipo de apoio e de assistência pedagógica do professor na zona de desenvolvimento proximal (Zuckerman, 2011).

As prioridades e princípios orientadores da ajuda que um professor pode utilizar no apoio e assistência ao aluno são determinados pelo sistema educacional. O “sistema educacional predominante em um país possibilita identificar as capacidades humanas socialmente requeridas” e que precisam ser implementadas por meio da educação (Cole 2005 como citado em Zuckerman, 2014, p. 199). Para determinar que desenvolvimento se espera no aluno em decorrência do ensino, é preciso determinar as ações mutuamente ativas e conjuntas entre alunos e professor para o domínio de conhecimentos, assim como os tipos de interação e de assistência pedagógica adequados para provocar e apoiar a independência dos alunos na sua apropriação e domínio. Portanto, é preciso ter clareza sobre quais capacidades estão sendo promovidas e quais estão tendo seu desenvolvimento limitado ou restrito. É isso que precisa ser levado em conta quando se quer esclarecer o que o ensino desenvolvimental desenvolverá no aluno (Zuckerman, 2014).

“Modus operandi”: a atividade do aluno como transformação do objeto e do aluno

Davydov (1988a) considera que para o aluno se apropriar de um objeto de conhecimento ele precisa estar inserido em uma atividade que promove sua relação cognitiva com o objeto, transformando o objeto para conhecê-lo, e transforma-se pela apropriação desse conhecimento. A formação do conceito teórico requer do aluno um trabalho com o objeto e este é organizado pelo professor como uma atividade de estudo. A atividade de estudo é descrita como a transformação do material de estudo dentro de uma tarefa para resolver um problema ou questão. Para Davydov (1998), a apropriação das várias formas de conhecimento pelos alunos começa com a transformação criativa do objeto. Aí se encontra um aspecto essencial da atividade de estudo.

A assimilação de várias formas de conhecimento pelo aluno na aprendizagem formal começa com a transformação criativa do material que deve aprender. Mais uma vez é necessário destacar o papel do pensamento teórico: ele permite ao estudante estabelecer a relação geral, o núcleo conceitual do objeto em estudo, revelando nele uma universalidade conectada dialeticamente com suas particularidades e singularidades. A abstração própria do pensamento teórico é a que possibilita chegar ao aspecto geral e essencial do objeto, sua “célula”, tornando-a uma referência para a generalização teórica e o aprofundamento da análise do objeto, relacionando seu aspecto geral e essencial aos seus aspectos particulares, singulares e concretos. Conhecer um objeto por esse caminho é apreender sua existência mediada por símbolos, descobrir e recriar suas propriedades, compreender suas relações e conexões gerais e particulares a partir de sua origem ou base genética. Desse modo, o aluno conhece o objeto em seu movimento e transformação.

A atividade de estudo compõe-se de ações que orientam e conduzem o aluno na relação cognitiva com o objeto e na aquisição do método de pensamento. Essas ações envolvem a busca de solução a um problema originado da realidade social e natural, mas que põe ao aluno questões de natureza teórica, requerendo dele ações mentais de natureza dialética, abstrata e generalizada. As ações se compõem de operações, dependem de condições internas do aluno (motivo, desejo, conhecimentos prévios, apropriações conceituais já realizadas etc.) e de condições externas para efetivação do processo de ensino e aprendizagem (materiais didáticos, procedimentos, estratégias, recursos etc.). Tem especial relevância na atividade de estudo o desejo vinculado a uma necessidade, ambos suscitados no decorrer da própria atividade por uma exigência ou problema presente na tarefa. Sem a necessidade o aluno não se põe de fato como um sujeito em atividade de estudo. Também está ligado à necessidade o caráter criativo da aprendizagem, uma vez que só tendo necessidade de aprender o aluno põe-se questões e entra em processo de busca e experimentação para descobrir “os segredos” do objeto (Davydov, 1999b, p. 3, tradução nossa).

Davydov faz uma advertência: apenas adotar o termo ensino desenvolvimental não é suficiente se o ensino não atender determinadas condições concretas. Operar com o conceito de ensino desenvolvimental no sentido estrito exige organizar o ensino atentando para certas questões como: as novas estruturas psicológicas que surgem e se desenvolvem em determinado período de desenvolvimento; a atividade dominante em um período de desenvolvimento, que determina o surgimento de nova estrutura psicológica; o conteúdo e os métodos de realização conjunta da atividade dominante; a relação da atividade dominante com outros tipos de atividade; os procedimentos que podem ser usados para determinar os níveis de desenvolvimento das novas estruturas psicológicas; a natureza da relação entre os níveis de desenvolvimento, a organização da atividade dominante e de outras atividades ligadas a ela (Davydov, 1998, tradução nossa).

Atento a estas questões, o professor formula ações de estudo para compor a tarefa dentro da atividade de estudo. Nela, o movimento do pensamento dos alunos iniciase pela abstração do objeto para chegar à sua compreensão na forma concreta. Para isso, os alunos precisam descobrir a relação geral essencial do conceito do objeto — que confere seu caráter universal — e depois a utilizam na análise e compreensão do objeto concreto, particular e singular. Na primeira ação, eles trabalham com o objeto dentro de um problema ou questão para chegar à sua relação geral, encontrando-a, eles passam para a segunda ação, em que elaboram um modelo que a representa, de forma escrita, por meio de desenho, de gráfico, ou de outra forma. Na terceira ação, o modelo sofre transformações realizadas como se fossem um “erro”, para que fiquem ressaltadas as propriedades da relação universal. Na quarta ação, eles resolvem tarefas particulares diversas que exigem a utilização da relação universal como base e procedimento de análise do objeto em qualquer situação particular. Assim, tendo formado a compreensão do objeto, percebendo seu movimento e as transições entre sua forma geral, universal e abstrata, e, as formas particulares e concretas em que ele se apresenta em determinados contextos e situações, o aluno desenvolveu e ampliou sua estrutura psicológica, conquistando uma nova capacidade de pensamento e ação com aquele objeto (Davydov, 1988a). A partir desta ação, os alunos já podem pensar e agir com mais autonomia e independência intelectual. Esse caráter de autonomia também é assegurado por meio das ações de avaliação como exame reflexivo e consciente do aluno sobre sua aprendizagem.

Compreende-se que na teoria de Davydov estão presentes princípios didáticos para o ensino escolar com uma orientação crítica. Trata-se de uma escola capaz de articular, no seu currículo e em suas práticas pedagógico-didáticas, a formação cultural e científica centrada no desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos, por meio dos conteúdos, com as práticas socioculturais em que se manifestam conhecimentos, modos de agir, diversidades sociais e culturais, redes de conhecimento etc., promovendo interfaces pedagógico-didáticas entre o conhecimento dos conceitos científicos escolares e as formas de conhecimento local e cotidiano trazidas das condições de vida dos alunos.

A didática desenvolvimental e as políticas em curso para a escola no Brasil

A política educacional em curso no Brasil foi concebida nos marcos da Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Unesco, 1990), documento elaborado para servir de referência e orientação aos sistemas de ensino de países em desenvolvimento, produzido com o patrocínio de organismos multilaterais, principalmente o Banco Mundial e a Unesco. As finalidades educativas e as diretrizes operacionais contidas nessa Declaração sustentam-se em critérios de qualidade assentados no modelo da racionalidade econômica que incidem de modo direto ou indireto no planejamento das políticas educacionais, na legislação educacional, no currículo, nas formas de organização, de gestão escolar e nos procedimentos pedagógico-didáticos. De modo singular, elas atingem os professores em suas condições de exercício profissional, o que resulta em precarização, intensificação do seu trabalho, pressão para acatarem decisões definidas externamente à escola, perda de autonomia e desvalorização do seu trabalho (Libâneo, 2014; Libâneo & Freitas, 2018).

Nos anos 2000, em uma perspectiva economicista de educação escolar, consolidase a adesão do governo brasileiro e o apoio de empresários e fundações privadas às propostas do Banco Mundial e Unesco (apoio esse expresso no movimento Todos pela Educação), com a ideia de que essa perspectiva asseguraria a qualidade na educação, ganha visibilidade na sociedade e levando à mobilização de dirigentes escolares, professores, pais e comunidades em diversos locais no país. A reforma educacional brasileira, já nos moldes do neoliberalismo, ensaiara seus primeiros passos nos governos de Fernando Collor, quando foi instituído o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Na sequência, no governo Itamar Franco, foi formulado e divulgado o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-1994), redigido com base na Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Unesco, 1999). Posteriormente, as reformas desencadeadas nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2008), estavam articuladas com as orientações da agenda neoliberal, principalmente por meio do Banco Mundial e da Unesco. Logo após, nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff foi dada continuidade a essas políticas educacionais, ainda que tenham aberto espaço ao atendimento de demandas sociais, especialmente de setores empobrecidos da população e de movimentos sociais, mesclando políticas de inclusão social com o atendimento às orientações dos organismos multilaterais.

As políticas educacionais voltadas ao cumprimento obrigatório de metas expressas em resultados quantitativos e imediatos se concretizaram nas escolas por meio do currículo instrumental como parte do conjunto de políticas de aliviamento da pobreza traçadas pelo Banco Mundial. Tais políticas traçam para a escola três incumbências:

a) introdução do currículo instrumental, pragmático, visando empregabilidade para os mais pobres; b) efetivação de aferição da aprendizagem por testes elaborados externamente; c) organização de formas de acolhimento e integração social para controlar conflitos. Trata-se de uma escola simplificada e aligeirada com base em conteúdos instrumentais, visando preparação dos pobres como força de trabalho para o mercado.

Para os propósitos deste artigo, cumpre realçar que, no projeto neoliberal, no que se refere à educação das camadas pobres em países periféricos, os aspectos pedagógicodidáticos ficam diluídos no currículo e nas formas de avaliação externa. Com isso, perdem-se de vista as finalidades de formação e de desenvolvimento global da personalidade dos estudantes. Com efeito, na visão neoliberal de educação, as escolas devem funcionar apenas para melhorar os índices educacionais quantitativos, e o trabalho do professor fica reduzido a “passar” aos alunos os conteúdos apresentados em pacotes pedagógicos e em variados tipos de materiais didáticos. O ensino torna-se regulado pela avaliação externa, a formação dos alunos fica subordinada a conteúdos previstos nos testes nacionais e os professores têm sua profissão esvaziada à medida que perdem sua autonomia (Silva, 2014).

Em contraposição a esse modelo, insurge-se outra orientação curricular que concebe a escola como uma das mais importantes instâncias de democratização da sociedade e de inclusão social, cabendo-lhe propiciar a apropriação dos saberes sistematizados social e historicamente como condição essencial para o desenvolvimento das capacidades intelectuais e para a formação da personalidade dos estudantes. Em decorrência, defende-se um currículo assentado na formação cultural e científica em interconexão com as práticas socioculturais dos alunos como sujeitos concretos (Libâneo, 2014). Trata-se de uma perspectiva de qualidade da educação centrada no desenvolvimento humano para uma sociedade justa e democrática, amparada em princípios da teoria histórico-cultural, concebendo a educação escolar como lugar de apropriação dos conceitos científicos e da formação do pensamento teórico enquanto meios instrucionais para a promoção do desenvolvimento intelectual e da formação global da personalidade dos estudantes. A instrução (em russo obutchénie) compreendida como estudo, aprendizagem e instrução, simultaneamente (Prestes, 2010) sintetiza a unidade indissolúvel entre aprendizagem e ensino e, a nosso ver, caracteriza o trabalho colaborativo e independente de formação e desenvolvimento humano realizado ativamente pelos sujeitos no processo didático.

Como já mencionado, entender a escola como o lugar em que se promove a educação para o desenvolvimento significa educar para a formação dos processos psíquicos superiores por meio de mediações culturais. Sendo assim, o desenvolvimento mental, afetivo e moral dos alunos depende da apropriação da experiência histórico-cultural em situações sociais de aprendizagem criadas e mediadas por um processo adequado de ensino. O desenvolvimento mental, afetivo e moral dos alunos depende da apropriação da experiência histórico-cultural em situações sociais de aprendizagens criadas e mediadas por um processo adequado de ensino. Esse processo de apropriação de conhecimentos requer dos alunos uma atividade mental e prática de transformação dos objetos de estudo, o que possibilita a eles transformar-se, também, subjetivamente. Ou seja, implica uma reelaboração subjetiva pelo aluno dos produtos e dos métodos de e atuar da ciência, da arte, da cultura em geral. Não se trata, portanto, de transferência direta de conhecimentos e modos de agir de fora para dentro, e nem tampouco de uma aprendizagem ativa de caráter individual em que a participação do professor é posta em segundo plano. Na didática desenvolvimental, a apropriação implica o papel ativo dos alunos na interiorização de ferramentas mentais para lidarem com a realidade, com os outros e consigo, mas essa atividade é social, historicamente mediada e depende também da atividade do professor na promoção das relações e dos meios interacionais, colaborativos e cooperativos da aprendizagem com a comunicação, com a ajuda mútua e com o compartilhamento de ações de estudo. É assim que o processo de apropriação promove mudanças qualitativas no modo de ser e de agir dos alunos, instiga amplamente o desenvolvimento e promove a formação da personalidade. Aquilo que é internalizado se converte em meio da própria atividade do aluno, em formas de orientação da própria personalidade.

Tal como vimos apontando, a instrução, enquanto unidade das ações de ensino e de aprendizagem, é o meio privilegiado de organização das formas pelas quais os alunos se apropriam dos conhecimentos sistematizados e experiências construídas social e historicamente, enriquecendo e impulsionando onilateralmente seu desenvolvimento.

Considerações finais

O texto mostrou como, no sistema educacional brasileiro, encontra-se consolidado o currículo instrumental de resultados em que a aprendizagem reduzida à assimilação de conhecimentos úteis e habilidades é vista como a principal finalidade da escola, sendo que sua eficácia é medida por provas de avaliação externa. Desse modo, o desempenho dos estudantes nos testes padronizados é o principal indicador de aprendizagem e, consequentemente, de qualidade, de modo que o papel da organização escolar e do ensino é assegurar bons resultados de desempenho. Tal visão de qualidade, expressa em documentos de organismos multilaterais, especialmente o Banco Mundial e a Unesco, e praticada em políticas educacionais brasileiras, resulta em uma visão ilusória, restrita e restritiva de qualidade de ensino. Restrita porque trabalha com uma noção instrumental e utilitária voltada para objetivos econômicos definidos pelo mercado para a educação das gerações futuras, distanciada de preocupações com a formação humana, cultural e científica. Ilusória porque, ao sustentar finalidades educativas escolares inseridas em políticas sociais de aliviamento da pobreza para países periféricos como estratégia da globalização econômica, esses organismos destinam aos pobres uma escola meramente instrumental, com baixo nível de apropriação de conhecimentos social e culturalmente relevantes, que sequer garante o critério de qualidade utilitário esperado de formação para a empregabilidade.

As reformas educativas e os planos educacionais inspirados nos motes “educação para todos” e “aprendizagem para todos”, não fizeram mais do que justificar a oferta de uma educação de qualidade inferior destinada à população pobre, tirando de foco a discussão sobre o nuclear do processo educativo: assegurar o direito de todos os alunos à formação e ao desenvolvimento humano. A subordinação do processo de ensino-aprendizagem à avaliação homogeneizadora torna-o desconectado das reais necessidades de aprendizagem dos alunos e resulta na perda do protagonismo do aluno e do professor, na desconsideração das realidades socioeconômicas e culturais dos alunos e consequentes desigualdades sociais, das peculiaridades das regiões brasileiras e, principalmente, das escolas.

A intenção deste texto foi a de sugerir aos educadores um entendimento das finalidades educativas e de critérios de qualidade baseados em uma visão de educação orientada para o desenvolvimento humano e justiça social. Desse modo, põe-se no Brasil o principal desafio para seu sistema escolar: uma escola justa como aquela que proporciona uma cultura comum em função do desenvolvimento das capacidades de pensar e da socialização em estreita ligação com a diversidade sociocultural trazida pelos alunos à situação escolar.

A questão acerca da escola justa é polêmica (Dubet, 2004), mas é elencada aqui ao menos para instigar nos leitores a busca por alternativas políticas e pedagógicas. A pretensão das reformas educativas neoliberais em melhorar a qualidade da educação tendo como critério resultados do desempenho dos alunos em testes de larga escala, acabam acentuando ainda mais a exclusão e a desigualdade escolar e desfavorecendo a qualidade pedagógica e social da escola. Em outra direção, uma escola e uma didática voltadas para o desenvolvimento humano considera as desigualdades sociais reais e as enfrenta com um currículo rico, com processos pedagógicos e didáticos enriquecedores na formação dos alunos e formas de assistência permanente às dificuldades surgidas no processo de ensino-aprendizagem.

As estratégias para se pensar essa escola são, ao mesmo tempo, políticas e pedagógicas. Políticas, pois, assegura a todos o direito ao acesso e a permanência na escola, o suficiente financiamento, as condições, meios, instrumentos, etc. Pedagógicas, criando-se formas de reduzir os impactos da desigualdade social nas possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos. Não se está postulando aqui o retorno à escola das classes médias e altas nem à educação dita “conteudista”, que jamais foram portadoras de uma qualidade educacional humanística e emancipatória. Não se trata, também, de aderir aos critérios de qualidade social usados por segmentos progressistas e entidades acadêmicas e sindicais, conceito esse um tanto vago e impreciso em razão de predominar nele uma visão sociopolítica que frequentemente inclui a visão propriamente pedagógica. Desde um ponto de vista pedagógico, trata-se de perguntar não apenas por ações políticas e institucionais para uma escola inclusiva, mas por ações pedagógicas que assegurem o justo e democrático processo de ensinoaprendizagem, principalmente às camadas pobres da sociedade.

Uma didática desenvolvimental fundamentada na perspectiva da teoria de Davydov, presente no Sistema Elkonin-Davydov, adquire no contexto brasileiro outro sentido: constituir-se como alternativa ao ensino puramente instrumental e funcional estabelecido para atender finalidades educativas neoliberais. Nessa perspectiva enquanto forma especial de atividade humana, cujo objeto é a transformação pessoal e social dos alunos, a didática desenvolvimental pode contribuir para efetivar a perspectiva da educação escolar com finalidade democrática, proporcionando oportunidades de aprendizagem efetivamente promotoras de desenvolvimento humano unilateral dos alunos, professores e todos os sujeitos do processo educacional.

Referências

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[1]Este período corresponde à concepção, desenvolvimento e implantação do Sistema até 1991, ano da dissolução da União Soviética. Com a criação da Federação Russa e instauração do sistema presidencialista em 1991, o Sistema continuou, até hoje, oficialmente implantado (Puentes, 2017).

[2]Detalhes biográficos e do trabalho investigativo teórico e experimental de Davydov e de Elkonin são apresentados por Libâneo e Freitas (2017), Puentes (2017), Kudriavtsev (2011), Lazaretti (2011).