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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.25  Brasília ene./dic 2019  Epub 03-Jun-2019

https://doi.org/10.26512/lc.v25.2019.21867 

Artigos

Espaços e tempos de escolarização: marcas dos dispositivos disciplinares

Espacios y tiempos de escolarización: marcas de los dispositivos disciplinares

Spaces and times of schooling: marks of disciplinary devices

Espaces et des temps Scolarité: marques de mesures disciplinaires

Monique Cristina Francener Hammes Schütz1 
http://orcid.org/0000-0003-1048-3678

Gicele Maria Cervi2 
http://orcid.org/0000-0003-1667-4643

1Mestre pelo programa de pós-graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau. Graduada em Pedagogia. Pesquisadora do grupo de Políticas de Educação na Contemporaneidade.

2Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010). Atualmente é professora do quadro da Universidade Regional de Blumenau. Professora e Coordenadora do Mestrado em Educação - PPGE-FURB. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas de Educação na Contemporaneidade. Coordenadora Institucional do PIBID-FURB desde 2011-2018. Vice-Presidente do ForPibid Gestão 2014-2016.


Resumo

O objeto de estudo é a escola. O artigo problematiza como a escola contemporânea e nela o dispositivo disciplinar da vigilância produzem efeitos sobre os corpos. Trata-se de uma pesquisa pós-crítica. Os instrumentos de produção de dados foram: fotografias e o diário de campo. Infere-se que a escola é uma maquinaria, que através do dispositivo disciplinar da vigilância produz, na instituição pesquisada, corpos que se movimentam, mas que silenciam, são obedientes, consumistas, participativos, polícia de si e dos outros, corpos que se encontram, que resistem e constroem linhas de fuga.

Palavras-chave Corpo; Escola; Dispositivos disciplinares; Vigilância

Resumen

El objeto de estudio es la escuela. El artículo problematiza cómo la escuela contemporánea y en ella el dispositivo disciplinario de la vigilancia producen efectos sobre los cuerpos. Se trata de una investigación post-crítica. Los instrumentos de producción de datos fueron: fotografías y el diario de campo. La escuela es una maquinaria, que a través del dispositivo disciplinario de la vigilancia produce, en la institución investigada, cuerpos que se mueven, pero que silencian, son obedientes, consumistas, participativos, policía de sí y de los demás, cuerpos que se encuentran Que resisten y construyen líneas de fuga.

Palabras clave Cuerpo; Escuela; Dispositivos disciplinarios; Vigilancia

Abstract

The object of study is the school. The article problematizes how the contemporary school and in it the disciplinary device of surveillance produce effects on the bodies. This is a post-critical research. The instruments of data production were: photographs and the field diary. It is inferred that the school is a machinery, that through the disciplinary device of the surveillance produces, in the institution researched, bodies that move, but that silence, are obedient, consumerist, participative, police of self and others, bodies that meet, Which resist and build lines of escape.

Keywords Body; School; Disciplinary devices; Surveillance

Résumé

L’objet d’étude est l’école. L’article explique comment l’école contemporaine et son contrôle de l’appareil disciplinaire prennent effet sur les corps. C’est une recherche postcritique. instruments de données de production étaient des photos et journal. Infère que l’école est un mécanisme que, grâce à la discipline du dispositif de surveillance produit, dans l’institution de recherche, les organismes qui se déplacent, mais que le silence, sont obéissants, consuméristes, participative, la police eux-mêmes et d’autres, les organismes qui sont qui résister et construire des lignes de vol.

Mots clés École; des mesures disciplinaires; Surveillance

Introdução

O artigo dialoga com Varela e Alvarez-Uria (1992) compreendendo a escola como uma maquinaria, e com o conceito descrito por Foucault (2014) de dispositivo disciplinar, tendo o foco na vigilância. Isto é, a pesquisa problematiza a escola contemporânea e nela o dispositivo disciplinar produzindo corpos.

Pretende-se descrever, brevemente, a constituição da escola contemporânea e discutir as continuidades e atualizações do dispositivo disciplinar, a vigilância, no cotidiano de uma escola pública de Blumenau, Santa Catarina, bem como analisar os seus efeitos sobre os corpos.

Esta pesquisa insere-se em uma abordagem teórico-metodológica denominada pós-crítica, pois trata das micropolíticas do cotidiano, de contextos específicos, onde a subjetividade do pesquisador é um exercício rigoroso e político permeado por relações de poder (Gastaldo, 2014).

A instituição escolhida para a realização da pesquisa possui um projeto político-pedagógico (PPP) ancorado em cinco eixos que propõem uma escola: participativa, solidária, de conhecimentos, que transforma e é sustentável. Inaugurada na década de setenta, a escola, no ano da pesquisa (2015), atendia estudantes do primeiro ao nono ano do ensino fundamental, divididos em doze turmas no período matutino e doze turmas no período vespertino, totalizando seiscentos e trinta e dois estudantes. O quadro funcional é composto por cinquenta e dois professores, três coordenadores pedagógicos, uma diretora, uma diretora adjunta, um secretário, seis auxiliares administrativos e dez funcionários que cuidam da merenda escolar, da limpeza e da manutenção da escola.

A pesquisa apresenta alguns dados com os quais se pode inferir que algumas práticas da instituição pesquisada buscam rivalizar com as práticas de muitas escolas. Para tanto, este artigo não busca analisar essa escola para então criticá-la, fazer juízos de valor, descrever se suas práticas são certas ou erradas, se a escola é boa ou ruim, mas problematizar a escola funcionando enquanto maquinaria. A seguir, apresentam-se as ferramentas analítico-descritivas.

Os instrumentos escolhidos para a produção de dados [1] foram fotografias, diário de campo, ambos construídos pelas pesquisadoras, e o projeto político-pedagógico da instituição.

O diário de campo, uma ferramenta da pesquisa etnográfica constitui um importante instrumento de anotação, registro e reflexão das observações realizadas. A imagem/ fotografia, enquanto valioso recurso de compreensão da experiência humana contemporânea invade nossas casas, produz e veicula concepções estéticas, políticas e sociais. Entende-se a imagem como produto e produtora do cotidiano contemporâneo (Schwengber, 2014). Elas formam e informam, são meio de comunicação e de representação de mundos, portanto constituem um importante instrumento de pesquisa.

O projeto político-pedagógico da instituição foi analisado para dar visibilidade a determinadas práticas da escola pesquisada, de modo a demonstrar os efeitos produzidos sobre os corpos.

Os dados produzidos foram organizados em cenas para a análise. As cenas são compostas por fotografias acompanhadas de um registro escrito do diário de campo ou apenas de registros do diário de campo. Geralmente, a cena se caracteriza como uma parte, passagem, situação de um filme, novela, peça ou romance, composta por cenários e atores que a apresentam para o público. Nesta pesquisa, o cenário é o cotidiano de uma escola pública de Blumenau, Santa Catarina e os atores são os estudantes, professores e funcionários da instituição. O público são as pesquisadoras que observaram, selecionaram e produziram as cenas para as análises.

Através desses instrumentos buscou-se estranhar, questionar e problematizar algo que sempre nos pareceu familiar – a escola –, construindo-se, a partir do ouvir, do olhar e do escrever, para inventar e produzir os caminhos da pesquisa. As escolhas das cenas para compor as análises associam-se às continuidades e atualizações do dispositivo disciplinar na escola contemporânea, devido à sua visibilidade nos registros realizados, ainda que elementos do dispositivo de segurança se façam presentes no cotidiano da escola pesquisada.

A pesquisa durou uma semana, no mês de novembro de 2015, nos períodos matutino e vespertino. Participou-se e acompanhou-se os movimentos e vivências na escola nos diferentes espaços e tempos.

Embora se tenha o termo de consentimento assinado, optou-se por desfocar os rostos dos sujeitos das fotografias selecionadas para manter o seu anonimato. Explicitadas as questões introdutórias e escolhas metodológicas, discorre-se a seguir sobre as opções teóricas conceituais da pesquisa.

Escola: instituição de disciplinamento

A seção apresenta conceitos necessários, nessa pesquisa, para dialogar com os dados empíricos. Explicita-se a compreensão sobre a escola, sua invenção, continuidades e atualizações, olhando a partir de Foucault (1999; 2006; 2008; 2008a; 2014), Dussel e Caruso (2003), Varela e Alvarez-Uria (1992), Veiga-Neto (2014), Veiga-Neto e Lopes (2015), Deleuze (1992) e Cervi (2010).

Demarca-se a invenção da escola na modernidade. Foucault (2000) denomina de Modernidade ou Novo Regime o período que sucede a Revolução Francesa (1789). A

Modernidade designa menos um período da história e mais uma atitude,

um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa (Foucault, 2000, p. 341-342).

Segundo Varela e Alvarez-Uria (1992) uma série de dispositivos emergiram e se configuraram a partir do século XVI para atender a um conjunto de demandas específicas que possibilitaram a constituição da escola, dentre elas: a definição de um estatuto da infância, a criança deixa de ser vista como um adulto em miniatura; a necessidade de um espaço específico destinado à educação da criança e a formação de um corpo de especialistas: os professores.

Com a criança, a escola e os especialistas, foi possível a construção de um saber pedagógico. Com o saber pedagógico, o estatuto da infância, o espaço e os especialistas derrubaram outros modos de educação, e a escola passou a ser o local, por excelência, destinado à educação das crianças (Cervi, 2010). Iniciava-se a emergência do poder disciplinar e das instituições de confinamento.

O poder disciplinar é de “modo terminal, capilar, uma intermediação, [...] em geral vem, no último nível, tocar os corpos, agir sobre eles, levar em conta os gestos, os comportamentos, os hábitos, as palavras” (Foucault, 2006, p. 50). Implica um controle contínuo, está-se perpetuamente sob o olhar de alguém.

A partir do século XVIII, o processo de concepção da escola como uma maquinaria de controle tomou forma e funcionou como um microscópio do comportamento, das divisões tênues e analíticas, formando-se um aparelho de observação, registro e treinamento em torno dos homens (Foucault, 2014).

A sala de aula adquiriu uma forma mais definida e regulamentada, através da lenta e segura expansão da obrigatoriedade da escola e da produção de técnicas de condução e vigilância por parte dos pedagogos (Dussel; Caruso, 2003).

No final do século XIX e início do XX a escola passou a fazer parte de uma estrutura de massa, e o sistema educacional serviu como modelo e centro de transmissão da cultura letrada. Houve a homogeneização e a centralização das formas de educar em torno do ensino simultâneo e do método global. O Estado assumiu a função de controlar e dirigir a educação, que foi organizada em torno de um cânone-padrão dominante fornecido pela escola pública estatal (Dussel; Caruso, 2003).

O grande objetivo do poder disciplinar foi fabricar corpos dóceis, e a escola desempenhou uma função fundamental neste processo, pois encarregou-se de operar as individualizações disciplinares e cumpriu com o papel decisivo na constituição da sociedade moderna. A escola tornou-se uma das instituições de sequestro pela qual todos passam o maior tempo de suas vidas, durante a infância e juventude (Veiga-Neto, 2014). “As ‘Luzes’ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (Foucault, 2014, p. 214). É este contexto, “de extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII e sua multiplicação por meio do corpo social” (Foucault, 2014, p 202), que Foucault chamou de sociedade disciplinar e na qual a escola foi inventada.

Para Veiga-Neto e Lopes (2015, p. 53) “as disciplinas se davam e ainda se dão no e sobre o corpo”. O corpo não é um objeto de investimentos imperiosos e urgentes apenas na sociedade disciplinar, mas “em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (Foucault, 2014, p. 134).

Paralelamente à sociedade disciplinar uma nova estratégia de poder emerge, denominada por Foucault (2008) de biopolítica. Esta se caracteriza como uma estratégia “que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela” (Foucault, 1999, p. 288-289).

A biopolítica é a maneira pela qual o poder tende a se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do XIX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de procedimentos disciplinares, mas toda a população. Preocupa-se em regular um organismo vivo, que cresce e se transforma.

A partir dessas novas formas de regulação, conhecimentos médicos e biológicos, a aprendizagem passou a ser um processo com raízes biológicas, que se desenvolve e cresce. E o professor deveria facilitar um processo que ocorreria espontaneamente. Iniciaram-se as investigações sobre o pensamento infantil e a discussão dentro da pedagogia estruturou-se em torno dessas novas percepções (Dussel; Caruso, 2003).

Em 1950, inovações seguiram com a instalação da técnica e da tecnologia no contexto escolar. Com o final da segunda guerra mundial, novos processos de reordenação adquirem consistência em um novo drama histórico. Para designar esse momento, Gilles Deleuze (1992) utilizou a expressão “sociedade de controle”.

Procedente da organização dos grandes meios de confinamento da sociedade disciplinar na sociedade de controle o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra. A cifra é uma senha, que marca o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. O dinheiro é o que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades (Deleuze, 1992).

Segundo Deleuze (1992), o capitalismo atual é dirigido para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado, e não para a produção. Por isso ele é essencialmente dispersivo. A fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército e a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes.

O marketing é agora o instrumento de controle social. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado (Deleuze, 1992).

Outra característica dessa sociedade é a entronização da empresa como uma instituição modelo, que contagia as demais instituições, assim como a escola e os corpos que por ela circulam. Propaga-se um culto da performance ou do desempenho individual, que deve ser cada vez mais destacado e eficaz. O comportamento passa a ser medido por critérios de custo-benefício e outros parâmetros mercadológicos, que enfatizam a capacidade de diferenciação de cada indivíduo na concorrência com os demais (Deleuze, 1992).

Da modernidade até os nossos dias a escola mantém traços disciplinares, modifica e atualiza as estratégias, aperfeiçoando e inovando as tecnologias e espaços que, na sociedade de controle, ultrapassam os muros, educando cada um durante um tempo cada vez maior, escolarizando a vida e ultrapassando a si própria (Deleuze, 1992; Cervi, 2010). A escola contemporânea segue disciplinando, recuperando, produzindo e controlando. Certamente não se trata de uma substituição, da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, mas “um deslocamento de tônica e do aparecimento de novos objetivos, logo de novos problemas e de novas técnicas” (Foucault, 2008a, p. 489).

Desta maneira, o artigo problematiza o dispositivo disciplinar da vigilância, suas continuidades e atualizações na escola contemporânea. Compreende-se a escola como invenção e questionam-se seus espaços e tempos, práticas, hierarquias, ritos e os efeitos produzidos sobre os corpos que por ela transitam. A intencionalidade desta seção foi localizar o conceito de escola como uma maquinaria, que enquanto instituição produz corpos, espaços, práticas, gestos, e continua a produzir. A seguir apresenta-se a análise dos dados produzidos.

Produção dos corpos na escola contemporânea: ver tudo o tempo todo, será?

O dispositivo disciplinar da vigilância se desenvolve, também, através da arquitetura, organização do espaço e também do tempo, com o intuito de controlar, detalhar, “tornar visíveis os que nela se encontram” (Foucault, 2014, p. 169). Os espaços e tempos transformam os indivíduos, agem sobre seus comportamentos, seus corpos, modificando-os. Cada elemento tem seu lugar bem determinado e o deslocamento é feito por um movimento regulado (Foucault, 2006).

Olhando para a escola pesquisada, a partir dessa referência teórica, organizou-se a seção em dois momentos. No primeiro momento, apresentam-se as cenas fotográficas e registros do diário de campo, referentes ao espaço escolar. E no segundo momento expõe-se sobre a organização do tempo na instituição pesquisada. Tais cenas são um recorte de uma pesquisa maior e foram produzidas pelas pesquisadoras durante a observação do cotidiano escolar.

Ver tudo ou quase tudo: a constituição do espaço escolar

Fonte: Fotografado pelas pesquisadoras, 2015.

Cena 1 Sala de aula de primeiro ano do ensino fundamental 

Primeiro ano do ensino fundamental, aula de arte. Mobiliário adequado ao tamanho das crianças. Em cada carteira há uma folha colada que contém o alfabeto com letras maiúsculas e minúsculas, números de zero a cinquenta e o nome do aluno escrito em caixa alta e letra “script”. Acima do quadro, o alfabeto, cada letra representada por um desenho que inicia com aquela letra. Ao lado do quadro, um cartaz com os números de zero a cem. Abaixo, um calendário. Há também figuras com a língua brasileira de sinais (Libras), pois nesta turma um dos estudantes é surdo. Mais cartazes com quantidade e cédulas de dinheiro, mural de aniversariantes, livros sobre uma mesa no fundo da sala, materiais reciclados nas estantes e caixas de material dourado para trabalhar matemática. Alguns estudantes estavam em pé, outros conversando com os colegas, outros sentados em duplas, sem filas, com mochilas no chão espalhadas pela sala, alguns pintando livros de colorir. A professora chegou, acalmou e silenciou as crianças, organizou a sala em fila, solicitou que guardassem os materiais e colocassem as mochilas atrás da cadeira, trocou os lugares e escolheu cinco ajudantes que estavam “comportados”. Iniciou-se a aula! A professora escreveu no quadro o nome da cidade, a data e a atividade a ser realizada. (Relato do diário de campo das pesquisadoras, 2015).

Na Cena 1 produziu-se um dos espaços escolares que parece não se modificar muito há mais de três séculos: a sala de aula. Alguns traços permanecem até os dias atuais, naturalizam-se, e parece não ser possível pensar ou organizar a escola de outra maneira. As salas e seus espaços, com as carteiras e suas formas, limitam outras formas de organização. O quadro é fixo, as carteiras são muitas, a metodologia em geral está centrada na autoridade do professor.

Há outras possibilidades de organização do espaço e tempo, mas a maioria delas, na maior parte do tempo, opera na lógica de os estudantes olharem para o quadro, para copiar, e para o professor, o “detentor do saber”. Cada estudante fica em sua carteira, pois a produção da aprendizagem quase sempre é individual. Essa prática dificulta a possibilidade de troca, de construção coletiva, de diálogo e estimula um comportamento individualista.

Pode-se também olhar para a Cena 1 criticando a prática da professora, que exige ordem, organização e silêncio para iniciar a aula. Porém, assim como o espaço e o tempo se naturalizam, as práticas docentes também são resultado de elementos da escola disciplinar. Os professores, em geral, possuem um corpo escolarizado, mais escolarizado do que os corpos dos estudantes para os quais lecionam, em sintonia com o que viveram, com as experiências que tiveram na escola por onde passaram, em seu tempo de formação, passando da educação básica ao ensino superior, quem sabe por uma pós-graduação e tantos outros cursos e formações continuadas que lhes são exigidos.

Os corpos docentes, comumente vivenciaram aprendizagens individuais, o sentar sozinho, em silêncio, olhando para o professor, ainda que alguns professores busquem outras experiências, diferentes das que eles tiveram. Segundo Stirner (2001, p. 81),

a miséria de nossa educação até nossos dias reside em grande parte no fato de que o Saber não se sublimou para tornar-se Vontade, realização de si, prática pura. Os realistas sentiram essa necessidade e preencheram-na, mediocremente por sinal, formando “homens práticos” sem ideias e sem liberdade. A maioria dos futuros mestres é o exemplo vivo dessa triste orientação. Cortaram-lhes magnificamente as asas: agora é sua vez de cortar as dos outros! Foram adestrados, é sua vez de adestrar.

Passam por toda a formação – ensino fundamental, ensino médio, graduação, pósgraduação – sendo disciplinados dentro de alguns padrões, dentre eles: filas, silêncio, obediência, ordem, organização, repetição, imitação. O poder disciplinar é produtivo, produz saberes, discursos, visibilidades, indivíduos, verdades institucionais. Formam-se determinados professores e professoras que devem agir de certa maneira e ensinar um currículo, difundem-se rituais e impõem-se verdades, que com o passar do tempo tornam-se naturais, e não se questiona mais por que a escola funciona assim. E a maquinaria continua a funcionar e a produzir corpos dóceis e úteis (Foucault, 2014).

Não apenas a sala de aula ilustrada na Cena 1, mas todas as salas da escola pesquisada durante a realização da pesquisa estavam organizadas em fileiras. As portas contêm o número da sala e a placa indicando a turma, o período e o professor. As salas de aula dos anos finais do ensino fundamental são ambientes, portanto cada disciplina possui uma sala: são os estudantes que trocam de sala, não o professor. Cada sala tem cartazes referentes à sua disciplina escolar: na sala de geografia há mapas, na de ciências partes do corpo humano, na de português poesias etc. Cada sala tem uma ou duas disciplinas curriculares, com seus materiais específicos expostos nas paredes e guardados nos armários.

Questiona-se: Onde está o corpo em português? A poesia em ciências? Os mapas em matemática? Cada qual tem seu lugar e tempo específico, invenção das disciplinas. A forma como as ideias estão corporificadas na organização do conhecimento escolar, através de determinados padrões discursivos, conteúdos e formas de ensiná-lo produzem identidades que se relacionam às formas de ver e entender o mundo e as coisas (Popkewitz, 1994), consequentemente fragmentados.

Para Foucault (2014), o espaço da sala de aula para disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas ou elementos que há para repartir. É um espaço analítico, celular, com quadros vivos de multiplicidades organizadas. Por isso as fileiras, as turmas organizadas por idade, as salas ambientes, os estudantes mais agitados nas carteiras da frente, próximos do professor, os estudantes mais calmos nas carteiras do fundo, o professor sempre à frente, com a possibilidade de circular por todo o espaço vigiando os estudantes organizados nas fileiras. Enquanto isso, os estudantes permanecem sentados, sendo autorizados a levantar caso necessitem ir ao quadro resolver alguma questão, ir ao banheiro, tomar água ou buscar materiais para a professora ou professor.

Essa organização serial do espaço possibilitou uma economia do tempo de aprendizagem, tornando a escola uma máquina de ensinar e também de vigiar, hierarquizar, de recompensar (Foucault, 2014).

O espaço fechado, uma das principais condições para as instituições disciplinares, permanece na escola pesquisada. Os estudantes organizados em fileiras servem de estratégia para sua vigilância e controle, mas por vezes observou-se ser a melhor forma de organização do espaço devido ao tamanho das salas e o número de estudantes. O professor à frente, como autoridade que fala ao rebanho, representa traços do poder pastoral que se acoplaram aos dispositivos disciplinares e permanecem na escola contemporânea. O grande número de estudantes em sala tornou-se uma prática comum que permanece até os nossos dias, e as formas de organização são diversas: organização por mérito, por idade, por série. Na Cena 1, observa-se que a professora organizou os lugares dos estudantes conforme seu comportamento e recompensa os mais comportados atribuindo-lhes a função de ajudantes.

Na instituição pesquisada há duas entradas e saídas. Há um portão por onde estudantes, pais, professores e funcionários podem entrar até o início do horário de aula. Após este horário deve-se entrar pela secretaria, pois o portão é fechado. Cada espaço exerce uma função. A direção está no meio da arquitetura escolar, possibilitando, desse modo, a visão do todo.

Fonte: Fotografado pelas pesquisadoras, 2015.

Cena 2 Chegadas tardias 

Um garoto dos anos finais do ensino fundamental, esperando o horário de sua aula no contraturno, percebe que sua colega, que chegou atrasada, está do lado de fora do portão. Disfarçadamente, e sempre de olho na sala da direção, ele vai até o portão e o abre, para que sua colega entre sem ter que passar pela vigilância da secretaria. (Relato do diário de campo das pesquisadoras, 2015).

Este relato demonstra um dos efeitos da vigilância hierárquica sobre o corpo: o controle de si e dos outros. O estudante sabe que as chegadas tardias têm implicações, anotações na agenda e na frequência, e que a entrada estipulada pela instituição, quanto aos atrasos, é pela secretaria. Ao abrir o portão para sua colega, ele sabe que está quebrando uma regra da instituição, por isso permanece olhando para a direção, vista nessa ocasião como “o vigia”, pois se sabe quem este é. Essa atitude também pode indicar uma forma de resistência, reconhecendo-se que a adolescência é uma faixa etária de muita cumplicidade: ao abrir o portão para a colega, ele, talvez, não assume uma postura de vigia ou polícia, entregando a colega à direção ou coordenação – ajudando dessa maneira a controlar as entradas tardias da escola –, e nem os colegas que estavam no pátio o fazem. Ao contrário do que se deseja nesta sociedade de controle – a construção do controle sobre todos, em que o vigia se atualiza e todos se tornam polícias de si e dos outros –, esses estudantes reagiram com cumplicidade ao não denunciarem a colega que chegou atrasada.

A vigilância hierárquica possibilita um olhar extensivo sobre todos os que estão sob seu domínio. Porém, em alguns momentos esse domínio não se fez tão presente, como na situação anterior, ou ainda nesta:

Fonte: Fotografado pelas pesquisadoras, 2015.

Cena 3 A professora saiu 

A professora ausentou-se da sala. Uma voz ecoa pela classe: Uhul! A professora saiu da sala. Segundos depois os estudantes levantam-se, conversam, param de copiar e de realizar os exercícios solicitados pela professora, conferem as respostas com outros colegas. Ao retornar, a professora, vendo a situação, ameaça os estudantes dizendo que chamará os pais e que eles irão para a coordenação. (Relato do diário de campo das pesquisadoras, 2015).

A professora – percebida por alguns como o vigia – saiu, pode-se fazer o que quiser. Novamente, nesta cena não se identificou a vigilância dos estudantes uns sobre os outros, que estaria em consonância com esta sociedade de controle, em que todos são polícias de si e dos outros. Nenhum estudante anotou ou relatou para a professora quem conversou, levantou ou copiou a resposta dos outros, o que pode ser entendido como cumplicidade de uns para com os outros. Além disso, pode ser o fato de as práticas da professora não estimularem ou induzirem a anotação, controle de uns sobre os outros.

Nos relatos acima, observam-se alternativas para driblar as vigilâncias sobre o corpo: ajudar a colega atrasada a entrar na escola, aproveitar a saída da professora da sala para conferir as respostas com o colega, circular pela sala, conversar. Os estudantes sabem que há um vigia em algum lugar, que pode ser o/a professor/a, a diretora ou um colega, pois se não soubessem não olhariam para a sala da direção ao abrir o portão para a colega, e a professora não ameaçaria os estudantes de chamar-lhes os pais ou mandá-los para a coordenação. As atitudes dos estudantes ou da professora – de não estimular a prática de anotação – podem ser formas de resistências a traços desse dispositivo disciplinar.

Para Foucault (1985, p. 91), “onde há poder há resistências”, e as duas coisas não são oposições antagônicas, dialéticas: “a resistência ao poder não é a antítese do poder, não é o outro do poder, mas é o outro numa relação de poder” (Veiga-Neto, 2014, p. 123). As resistências são minuciosas, transitórias e móveis.

Em outros momentos, durante a realização da pesquisa, verificaram-se movimentos de compartilhar aprendizagens e de interação entre os pares e entre diferentes idades, propostos e planejados pelos professores, mas também se evidenciou a vigilância hierárquica atuando sobre os corpos das crianças, enquanto vigias, polícias de si e dos outros.

Fonte: Fotografado pelas pesquisadoras, 2015.

Cena 4 Sustentabilidade e socialização 

Com o intuito de dar visibilidade ao quinto eixo do projeto político-pedagógico da instituição – a sustentabilidade –, a professora do quarto ano, com os estudantes, confeccionou jogos com sucatas e os desafiou a socializar com os primeiros, segundos e terceiros anos do ensino fundamental da instituição. Promoveu-se um momento para compartilhar as experiências e aprendizados de diferentes conteúdos escolares (tabuada, estados brasileiros, adição, subtração, sílabas etc.). Após este movimento acompanhamos um diálogo, dirigido pela professora, sobre como foi realizar essa socialização. Algumas das falas das crianças sobre a socialização dos jogos com os demais colegas da instituição foram: “Em casa eu brinco de escola, só que os bonecos não fazem nada, e aqui é muito difícil, você explica e eles não entendem”, “Não é fácil ser professora, tem que explicar muitas vezes e ter paciência” e “Eles não prestam atenção, isso é ruim”. (Relato do diário de campo das pesquisadoras, 2015).

Os dados inferem que grande parte das crianças, quando desafiadas a socializarem com os estudantes mais novos, se colocam na condição de professor, que ensina, que mantém a ordem. Não se impôs uma forma de as crianças socializarem seus jogos, mas elementos do dispositivo da vigilância se fazem presentes em suas práticas. A maioria das crianças, ao assumirem a condição de professor, assume a condição de vigilante, requerendo a atenção dos colegas menores aos seus “ensinamentos”, descaracterizando os jogos, que normalmente são divertidos e descontraídos, transformando-os em conteúdo, escolarizando. É a disciplina, função primordial da escola, atuando também sobre os corpos das crianças que agora, enquanto vigias, exigem atenção e silêncio para o aprendizado. O poder disciplinar atinge rapidamente os corpos dessas crianças, funciona sozinho, e a vigilância é mais que virtual, torna-se um hábito (Foucault, 2006).

A sustentabilidade, eixo do projeto político-pedagógico da instituição, está em conformidade com este tempo na medida em que estende, do corpo humano são (sadio) para o planetário, o papel conferido à vida. Há uma preocupação com o planeta, de preservação ambiental e ecológica. Controla-se, governa-se a vida, a sustentabilidade serve como possibilidade e captura.

Não se trata de certo ou errado, bom ou ruim. O que a pesquisa evidencia é que a escola funciona e produz. A escola produz, molda e modela a forma como os eventos sociais e pessoais são organizados para a reflexão e a prática. Regulam e legitimam o que é razoável e o que não é razoável como pensamento, ação e auto-reflexão. Para além do conteúdo escolar interessa regular os indivíduos e seu conhecimento sobre o mundo, sua maneira de agir, pensar, ver, falar, sentir etc. (Popkewitz, 1994).

Fonte: Fotografado pelas pesquisadoras, 2015.

Cena 5 Os lugares dos jogos 

Espalhados pelo pátio da escola, cada jogo ocupa um lugar. Também se organizou o tempo para que cada criança conhecesse todos os jogos. (Relato do diário de campo das pesquisadoras, 2015).

O espaço e o tempo são fundamentais para o desenvolvimento da vigilância. Os estudantes do quarto ano zelavam para que o rodízio de fato acontecesse e se certificavam de que todas as crianças passaram pelo seu jogo. As crianças estão em um funcionamento no qual, dentre outras funções, aprendem a controlar, a ser vigia ou polícia de si e dos outros. Tal dispositivo – ser vigia dos outros e de si – atualiza-se neste tempo, na sociedade de controle, tornando cada um polícia de si e dos outros, o “ser gestor” (Cervi, 2013). A professora não precisou encarregar-se do rodízio e de seu funcionamento, as próprias crianças responsabilizavam-se por isso.

Outro mecanismo desse tempo é a participação: “agora se apela à participação de todos” (Passetti, 2003, p. 277). Numa sociedade em que se pretende controlar tudo e todos, articulada à escola e à gestão democrática implica-se a participação, o movimento, a autonomia, ainda que tais exercícios se deem por imobilização, obediência, submissão e controle (Cervi, 2013).

A instituição pesquisada conta com outros espaços, como o bosque – área que possibilita contato com a natureza e que é utilizada especialmente nas aulas de educação física. Há um campo de futebol e uma quadra de esportes coberta, bem como hortas e um parque bastante amplo. No pátio coberto há mesas de pingue-pongue, mesas para lanche e jogos, e bancos distribuídos por todo o espaço.

Como já mencionado, a escola possui parcerias com a universidade, e nos dias de realização da pesquisa um desses movimentos foi analisado. A gestão e professores da escola convidaram os acadêmicos/estagiários de uma instituição de ensino superior de Blumenau, Santa Catarina para realizarem assembleias nas quais as crianças poderiam propor e escolher soluções para organizar um recreio com “menos conflitos e menos acidentes” – termos utilizados pelos adultos referindo-se ao recreio. Esse foi um momento de construção coletiva e de vivência democrática, com todos os elementos que se exigem: participação, autonomia, transparência e inclusão. Após votações, discussões e debates, os estudantes escolheram as seguintes opções para o recreio: jogos, espaço para desenho, refeitório diferente e cantinho para descansar e conversar. Observou-se o movimento de construção desses espaços, como exibido na cena a seguir.

Fonte: Fotografado pelas pesquisadoras, 2015.

Cena 6 Construção dos espaços para o recreio 

Discussão entre os estudantes ao construir os “puffs” com garrafas PET:

Estudante 1: Vamos usar o [TNT[2]] vermelho e o quadrado azul.

Estudante 2: Eu não concordo, e é trabalho em grupo, não vamos fazer o que você quer.

Minha ideia é cada um cortar um pedaço [do TNT] e colar.

(Relato do diário de campo das pesquisadoras, 2015).

A gestão da instituição e os acadêmicos da universidade, ao buscarem alternativas para o recreio em conjunto com os estudantes e professores, os ouviu e fez com que eles participassem da construção do espaço escolar. O espaço do recreio se difere do da sala de aula e assume outra função. Numa escola cujo objetivo não é fazer com que as vivências sejam democráticas, dificilmente as ações estariam preocupadas com o envolvimento de todos, do olhar e da escuta atenta.

Na democracia todos são chamados a participar, opinar, sugerir e deliberar sobre questões que afetam o coletivo. Nesse sentido a democracia pode operar como um inibidor de resistências ativas, pois inspeciona cada indivíduo, agindo como um dispositivo de controle, mas ela pode indicar uma possibilidade de liberdade, linha de fuga e resistência (Cervi, 2013).

A tentativa de construir uma experiência ou vivência na escola com a participação de todos pode ser uma possibilidade de resistir a esse controle, uma possibilidade de se pensar a escola de outra forma, uma vivência de diálogo entre diferentes atores, estudantes, professores, gestão e acadêmicos de uma universidade de Blumenau. Mas, também pode ser apenas para produzir o discurso do cidadão democrático, da gestão democrática ou da sociedade democrática.

Paradoxalmente, a democracia tanto pode estar a serviço do controle como pode estar a serviço da construção de coletivos (Biesta, 2013). Entramos na sociedade de controle, no mundo da atuação política democrática, onde todos devem participar, e a democracia apresenta-se como o valor universal por excelência. Nesta sociedade responsabiliza-se, inclui-se e exige-se a participação de todos, e participando os indivíduos são mais bem controlados (Passetti, 2003).

Em síntese, os dados inferem que dentre outros movimentos, o dispositivo disciplinar está operando e a vigilância é um dos recursos para fazê-lo funcionar, produzir corpos disciplinados. Traços do dispositivo da vigilância sobre o espaço permanecem na escola pesquisada, através da organização da sala de aula, nas práticas de docentes e discentes, e ao estabelecer lugares para cada jogo no pátio da escola. Há também atualizações, o vigia assume a função de polícia, gestor de si e dos outros, e a participação atua como paradoxo que controla e possibilita potencialidades, coletivos. As possibilidades de resistência ocorreram através da amizade e cumplicidade ao abrir o portão para a colega, não anotar quem levantou ou copiou a resposta quando a professora saiu da sala.

A seguir analisa-se outro meio pelo qual o dispositivo disciplinar opera: o tempo, este que busca garantir qualidade, utilidade e exaustão.

O tempo todo: controle contínuo e ilimitado

Fonte: Fotografado pelas pesquisadoras, 2015.

Cena 7 Objetos das salas de aula 

Algo comum permanece em todas as salas de aula da escola pesquisada: o relógio bem no centro, acima do quadro, ventiladores, a bandeira do Brasil e uma placa com os seguintes dizeres: “Favor manter os celulares desligados. (Relato do diário de campo das pesquisadoras, 2015).

O tempo é outro aspecto marcante da vigilância hierárquica. Cada aula é dividida em 45 minutos: 45 minutos para ciências, mais 45 para matemática, 45 para inglês, 15 para o lanche. “O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (Foucault, 2014, p. 149).

Diferentemente de outras escolas, esta não possui sino, apenas toca-se uma música ao início e ao final do período. O sino não se faz presente, mas o relógio sim, e ele está no lugar mais visível da sala de aula, acima do quadro, para onde todas as crianças olham, um local onde se centra a prática do docente, para a resolução das atividades e a sistematização dos conteúdos, exercícios, recados etc. O relógio tem uma intencionalidade que não é apenas informar a hora, mas exercer o controle do tempo. Os professores e estudantes não necessitam de um sino para orientar-lhes quanto ao término e início dos 45 minutos, término e início de uma aula, “o tempo penetra o corpo” (Foucault, 2014, p. 149), todos já sabem os horários de trocas de salas, ninguém precisa advertir sobre os horários, todos vigiam a si e aos outros, estudantes, professores e gestão.

Há tempo para tudo: tempo para sentar, para brincar, para correr, para comer, para falar, para não falar, para pensar, para atividades, para leitura, para chegar, para partir. É o princípio da não ociosidade, da exaustão: extrair mais instantes disponíveis e força útil (Foucault, 2014).

O dispositivo da disciplina, através da vigilância, atua sobre o corpo através do enclausuramento, adestramento e controle. O domínio sobre o corpo se efetua segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus (Foucault, 2014).

O tempo na escola, na sociedade de controle, quer ocupar todos o tempo todo. Avaliase, reforma-se, criam-se leis, organizam-se formações continuadas para aumentar o tempo de permanência nas escolas, de docentes e discentes. A formação contínua é um mecanismo da sociedade de controle para se manter no fluxo, pois lhe interessa a ampliação de formação, de carga-horária, a ocupação do tempo e mais escolarização, e assim a máquina segue ampliando e produzindo (Deleuze, 1992; Cervi, 2010).

Um exemplo dessa ampliação escolar e do dispositivo disciplinar é a carga horária mínima anual, que passou de 180 dias, conforme previsto na Lei n.º 5.692/71, para 200 dias letivos, excluído o tempo reservado aos exames finais, conforme prescrito na Lei de Diretrizes e Bases (9.394/96). A ampliação do ensino fundamental de oito para nove anos foi legitimada na Lei n.º 11.274/2006. São formações continuadas, cursos para os mais variados gostos, aulas dos mais variados esportes, instrumentos musicais, línguas etc. A preocupação na sociedade de controle é com a inteligência e a participação. Acredita-se que se é livre, mas para estar no fluxo é necessário consumir, então se antecipa a entrada e retarda-se a saída (Cervi, 2013).

O relógio não tem a função apenas de esquartejar, esmiuçar o tempo para garantir a sua qualidade, sua utilidade e exaustão, mas também está ligado ao custo, ao aproveitamento, à ocupação e ao investimento. Nunca se termina nada, a formação é constante, o controle é contínuo e ilimitado. Neste século interessa, dentre inúmeras e infinitas exigências, produzir corpos eficientes, esportistas, cooperativos, participativos, solidários, inteligentes, elegantes, democráticos e consumistas, “interessa estar escolarizado e manter-se escolar sempre, permanecer aluno” (Cervi, 2013, p. 37).

Portanto, a partir das cenas produzidas, infere-se que, através das continuidades e atualizações do dispositivo disciplinar, a vigilância hierárquica, por meio do espaço e do tempo, a escola pesquisada produz determinados corpos, que seguem determinados modelos, padrões e que são disciplinados e controlados ao serem: silenciados, enfileirados, organizados, enclausurados, tornando-se polícias de si e dos outros, obedientes, participativos, consumistas, mas que também podem resistir.

Considerações finais

O artigo demarcou a invenção da escola na modernidade, apresentando alguns dos dispositivos que emergiram e se configuraram a partir do século XVI para atender a um conjunto de demandas específicas que possibilitaram sua constituição.

Conclui-se que a pesquisa deu visibilidade ao dispositivo disciplinar produzindo corpos preparados para reformarem e serem reformados, controlarem e serem controlados, governarem e serem governados. Os dispositivos disciplinares trabalharam e trabalham no corpo produzindo as condutas adequadas esperadas, a partir de continuidades e atualizações, produzindo corpos dóceis e úteis, participativos, polícia de si e dos outros, sujeitados, disciplinados e controlados.

E, se a resistência é coextensiva ao poder e tão produtiva quanto ele (Foucault, 2003), na escola também se produzem corpos, que embora disciplinados, operam com outra lógica, resistem e tentam rivalizar com o tempo presente. Corpos que são solidários, cuidam uns dos outros, amigos, que inventam e criam, que querem uma outra escola, não como maquinaria, mas, como um espaço que permite que a vida pulse, uma espécie de heterotopia.

Distinta da utopia, a heterotopia caracteriza-se como sítios sem lugar real, que apresentam a sociedade numa forma aperfeiçoada, ou totalmente virada ao contrário. São espaços fundamentalmente irreais. A heterotopia refere-se a espaços diferentes, lugares-outros, assume variadas formas, pode, na medida em que a história de uma sociedade se desenvolve, atribuir uma função diversa da original. Consegue se sobrepor num só espaço real, em vários espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis. Na maior parte dos casos, as heterotopias estão ligadas a pequenos momentos, pequenas parcelas do tempo, pressupõem um sistema de abertura e encerramento que as torna tanto fechadas como penetráveis, dentro, porém excluídas, não aceitas publicamente. Têm uma função específica ligada ao espaço que sobra: seu papel será criar um espaço ilusório ou um espaço outro, real (Foucault, 2001).

Na escola pesquisada existem pessoas que conseguiram e conseguem fazer uma outra escola, no interior dela mesma, ainda que em pequenos momentos, parcelas do tempo. Conseguem fazer uma escola para a vida, que pulsa, que é solidária, criativa, inventiva, resistente, onde a amizade e o cuidar do outro se estabelecem em pequenos momentos do cotidiano. E, a partir da pesquisa realizada, afirma-se que escola é uma maquinaria destinada a produzir corpos disciplinados, dóceis, úteis, participativos e segue produzindo. Porém, se ela pode ser esse outro lugar no interior dela mesma, ela também pode produzir outros corpos, resistentes, no interior de um corpo disciplinado e controlado.

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[1]Emprega-se o termo “produção de dados”, pois compreende-se que os dados não estão prontos e acabados à espera do pesquisador, mas são construídos, fabricados, ressignificados, inventados. A presença do pesquisador em campo não é neutra, e suas escolhas são produzidas a partir do campo teórico no qual se fundamenta.

[2]O significado de TNT é: tecido não tecido.

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