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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.25  Brasília ene./dic 2019  Epub 12-Mar-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v25.2019.19720 

Entrevistas

Entrevista com Monica Ribeiro da Silva: a contrarreforma do ensino médio

Leonara Margotto Tartaglia1 
http://orcid.org/0000-0002-0455-4903

Erineusa Maria da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-8736-6739

1Mestre em Educação pela Universidade Federal do ES/PPGE. Professora e Coordenadora do Curso de Pedagogia do Centro Universitário do ES – UNESC. Membro e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais – NEPE/Ufes. Professora de Educação Básica. Consultora Educacional.

2Doutora em Educação pela Universidade Federal do ES/PPGE. Professora do Centro de Educação Física/Ufes. Membro e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais – NEPE/Ufes. Membro e pesquisadora do Centro de pesquisa Centro de estudos e pesquisa em formação inicial e continuada em Educação Física – Práxis/Cefd/Ufes. Coordenadora do Núcleo Interinstitucional de estudos e pesquisas em gênero e sexualidade/Ufes.


Introdução

O Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional, vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo, desenvolve pesquisas sobre políticas do ensino médio. Desde 2013, viemos realizando uma pesquisa sobre o Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI), em seus três anos de desenvolvimento no Estado do Espírito Santo. Com ela, objetivamos compreender as variadas formas de implantação do programa por diferentes escolas do Estado e as condições docentes de trabalho durante o mesmo. A pesquisa foi finalizada em outubro de 2017 e seus resultados estão sendo organizados em publicações.

Sabemos que o ensino médio passa a integrar a educação básica somente a partir da década de 1990. Com a promulgação da LDBEN (Lei nº 9.394/96), os debates foram intensificados e na década de 2000, o ensino médio passa a figurar de forma mais significativa nos debates de políticas públicas. Em 2016, pouco tempo após o golpe jurídico-parlamentar e midiático, o governo de Michel Temer apresentou o que estudiosos do campo das políticas educacionais para o ensino médio passaram a denominar de contrarreforma do ensino médio. A compreensão do contexto mais amplo desse complexo processo de reformas, contrarreformas e formulação das políticas públicas para essa etapa torna-se então fundamental para os estudos em andamento. O objetivo dessa entrevista foi dialogar sobre os problemas do ensino médio e refletir sobre as perspectivas que podemos vislumbrar relativas a essa etapa. No intuito de compreendermos o contexto das reformas atuais, entrevistamos a professora Monica Ribeiro da Silva.

Monica Ribeiro da Silva é doutora em educação e professora da Universidade Federal do Paraná, onde atua nos cursos de formação de professores e no Programa de PósGraduação em Educação – Mestrado e Doutorado. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Observatório do Ensino Médio e, entre os anos de 2013 e 2014, foi coordenadora da produção dos materiais de formação continuada de professores do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio (Pnem) junto ao Ministério da Educação. Além disso, como militante do Movimento Nacional em Defesa Ensino Médio, constitui-se como uma referência nacional no debate sobre as políticas públicas para o ensino médio.

A entrevista a seguir foi realizada no dia seis de setembro de 2017, logo após a participação instigante da professora Monica Ribeiro no Seminário “Ensino Médio: conjuntura política e formas de resistência”, realizado entre os dias 13 e 14 de julho de 2017 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional, do Centro de Educação, por ocasião dos seus 10 anos de atividades.

Entrevistadoras (E): Gostaríamos de iniciar agradecendo a sua disposição de estabelecer esse diálogo conosco. Professora MRS, o Núcleo […] vem pesquisando as políticas públicas para o ensino médio com o apoio do CNPq. Nessa pesquisa, investigamos a execução do Programa Ensino Médio Inovador em cinco escolas estaduais e observamos as condições do trabalho docente das práticas curriculares. Nosso núcleo tem a preocupação especial com os efeitos da nova reforma no ensino médio. Como a Lei nº 13.415/17 vai interferir na definição e na construção do ensino médio como etapa final da educação básica?

Monica Ribeiro da Silva (MRS): Primeiramente, obrigada! Agradeço pela oportunidade de estar trocando essas experiências. Com certeza, é importante ver crescendo no país os grupos de pesquisa que têm interesse no ensino médio, que são raros. Os retrocessos que estão por vir com as mudanças incorporadas na Lei nº 13.415/17 (MP nº 746/16) são objeto de preocupação para os mais variados grupos de pessoas e isso as leva a buscar entender melhor o que está ocorrendo. Em período anterior à proposição da Medida Provisória nº 746/16 vinha sendo construído um Projeto de Lei de reformulação do ensino médio, mas que de fato não se consolidou. Tramitava na Câmara dos Deputados o PL nº 6.840/2013, que trazia um formato curricular muito semelhante ao da reforma aprovada pelo Governo de Michel Temer. Já naquele momento, o grupo de entidades que formou o Movimento Nacional de Defesa do Ensino Médio chamava a atenção para o fato de que o formato curricular em ênfases significa uma fragilização do conceito de ensino médio como educação básica, um dos poucos avanços que a LDB trouxe: consolidar em lei que o ensino médio não se resume a um curso preparatório para o ensino superior ou em formação imediata para o mercado de trabalho. É preciso lembrar, que para que chegássemos a essa concepção de ensino médio como educação básica, passaram-se quase 100 anos. O que a mudança na LDB traz com a reforma apresentada pelo governo de Michel Temer, e que estava presente de forma semelhante no PL nº 6.840/2013 é uma fragilização exatamente desse sentido de ensino médio como educação básica. Por quê? Primeiramente, por não assegurar um conjunto de conhecimentos comuns a todos os estudantes ao propor o currículo por itinerários formativos e que cada estudante faça apenas um deles (área de humanas ou linguagens ou matemática ou ciências da natureza). A divisão nesses itinerários leva ao rompimento com a ideia de formação básica comum, portanto, a uma fragilização do que estava na LDB de 1996, do ensino médio como educação básica. Então, para o Movimento Nacional, a reforma representa um grande retrocesso, seja pela razão já apresentada, seja pelo fato de significar a retomada de um modelo já experimentado no Brasil no período da ditadura civil-militar que teve início em 1964 e mostrou-se inócuo e inviável.

E: Aproveitando a sua fala sobre a questão da fragmentação, temos visto que o que passa para a população em geral, e talvez até para alguns professores, é que houve uma flexibilização e que isso é bom. Em que medida podemos dizer aos professores: a proposta não possibilita de fato uma flexibilização. Na verdade, o que ela traz é uma fragmentação curricular?

MRS: A primeira coisa a dizer sobre o argumento da flexibilização é que ela por si só não resolve os problemas da organização pedagógica e curricular. Porque você pode flexibilizar de várias formas, por meio de disciplinas optativas e de outros arranjos que não sejam só disciplinas. O Programa Ensino Médio Inovador fazia isso também quando ampliava a jornada e trabalhava com os macrocampos e com o trabalho em projetos. Uma das reflexões que a gente tem que fazer sobre a reforma da Lei nº 13.415/17, com os professores e estudantes, é que de fato não haverá escolha, somente há uma ilusão de que o estudante vai poder escolher. O que ficou na lei é que esses itinerários formativos serão ofertados conforme a disponibilidade dos Sistemas de Ensino e nenhuma escola ficou obrigada a oferecer os cinco itinerários. Nós temos quase 28 mil escolas de ensino médio no Brasil. Temos três mil municípios com apenas uma escola que não estarão obrigados a oferecer esses cinco itinerários formativos, incluindo aí a formação técnica profissional. Então, não há uma escolha e não dá para dizer que há uma flexibilização uma vez que, concordo com vocês, é uma fragmentação maior ainda do que já existe no currículo. É uma fragmentação que traz uma sonegação do acesso ao conhecimento. Na medida em que o estudante faz uma ou outra coisa, isso está significando uma perda de direitos do ponto de vista da sua formação e da natureza do conhecimento que esse jovem e essa jovem poderiam ter acesso se não fosse esse fatiamento do currículo.

E: Cury (2008) afirma que a educação básica é um conceito mais que inovador para um país que, por séculos, negou de modo elitista e seletivo aos seus cidadãos e cidadãs o direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar. Como etapa final da educação básica, o ensino médio vai arcar com o ônus de preparação para o trabalho ou para o ensino superior. Em outros momentos a senhora aponta que é necessário se reformular o ensino médio. Qual seria, então, a proposta emancipatória para a formação dos jovens brasileiros?

MRS: Uma primeira observação está relacionada com essa fala de que como etapa final da educação básica, o ensino médio arca com ônus de preparação para o trabalho e para o ensino superior. Discordo disso. A ideia de trazer o ensino médio como educação básica é colocá-lo como uma etapa, conforme está nos artigos 35 e 36 da LDB, que proporcione uma formação para compreender os processos culturais, econômicos, políticos da sociedade atual e contribuir com o desenvolvimento da necessária autonomia intelectual em cada pessoa. Por isso, ele seria a última etapa da educação básica e teria uma finalidade essencialmente formativa e não necessariamente preparatória para isso ou para aquilo. Nesse sentido, o ensino médio é a última etapa da educação básica não porque prepara para o trabalho ou para o ensino superior, até porque isso marca a forma dual que teve ao longo do século XX inteiro – de que “para as elites condutoras”, como dizia Gustavo Capanema na Exposição de motivos das Leis Orgânicas do Ensino, o ensino clássico e científico, e para os demais, o ensino técnico e profissional. Essa forma dual caracterizou o ensino médio ao longo do século XX e essa é uma particularidade que marca o processo de seleção e distribuição do conhecimento de nível médio no Brasil: de forma excludente e segmentada. Então, o avanço da LDB em dispor sobre o ensino médio como educação básica foi justamente o de enfrentar essa segmentação. É o que Cury diz, em seu texto de 2008 [1] , que ser educação básica significa primeiro anunciar um direito que não está assegurado em lei, mas que caminharia nessa direção. A ideia de formação básica traz consigo o conceito de formação básica comum, comum a todos e a todas, o que a reforma atual deixa de garantir. Na questão da pergunta propriamente dita, qual seria uma proposta de reformulação do ensino médio? Eu penso assim: em primeiro lugar, uma proposta que tenha que negar radicalmente a reforma atual, tanto na forma, por ter sido feita por medida provisória e aprovada após 11 audiências públicas no Congresso Nacional sem ter levado em conta as oposições claramente explícitas nessas audiências. Ela contém, portanto, um vício de origem que é de reformar a educação básica, a última etapa da educação básica, onde se encontram 8,5 milhões de pessoas matriculadas e um público alvo de 10,5 milhões de jovens na faixa etária de 15 a 17 anos, sem qualquer diálogo com essa juventude. Então, eu colocaria que o primeiro passo para enfrentar essa proposta é a necessidade de negá-la tanto pela sua forma – feita sem diálogo, passando por cima das escolas, dos pesquisadores, do acúmulo que há sobre a juventude, a educação, etc., e uma outra, negá-la em seu conteúdo propriamente dito, por várias razões, e eu vou apontar três. A primeira razão é que essa reforma propõe o fatiamento do currículo, o que significa a negação do direito de acesso ao conhecimento escolar de forma a completar o conjunto das áreas que compõem o currículo. A segunda razão é pelo fato de estimular a precarização da formação do ensino médio profissional. Imagina o que seria 28 mil escolas, praticamente, ofertando cursos técnicos concomitantes em parceria com o setor privado, sem qualquer qualidade assegurada. A terceira razão se assenta sobre a utilização de recursos públicos na medida em que a lei (da reforma) passa a permitir a participação do setor privado na oferta da educação. Ela alterou não só a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) alterou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e, ao alterar a legislação do Fundeb, altera as regras de financiamento, além de incentivar e permitir o uso de recursos públicos para as parcerias com o setor privado, tanto para oferecer o itinerário da formação técnica, quanto para oferecer cursos a distância, substituindo uma parte da educação presencial. Portanto, o primeiro passo é negar essa reforma. O segundo passo parte da seguinte pergunta: É preciso uma reformulação do ensino médio? No nosso entendimento, é preciso. Nós tivemos um acréscimo imenso da matrícula, de 3,5 milhões de matrículas em 1991 para 9 milhões de matrículas em 2004, e, atualmente, 8,075 milhões de matrículas. Esse crescimento acelerado em pouco mais de dez anos fez aquilo que o século XX inteiro não fez do ponto de vista do acesso, trouxe para dentro dessa escola uma juventude múltipla, diversa e que não é aquela que estava no ensino médio para ir para o ensino superior. Nesse sentido, a gente tem que pensar qual ensino médio é necessário para essa multiplicidade de pessoas, de condições e de classes sociais diferentes, de lugares do Brasil que jamais pensaram ir para o ensino médio, que era tido como coisa de elite e de classe média. É preciso compreender que se trata de um outro público que está no ensino médio atualmente e não dá para ficar com um currículo pensado como um curso propedêutico para o vestibular. Então, a gente tem que repensar o formato do ensino médio, seja do ponto de vista da forma – de seus tempos e espaços e lógicas de organização –, seja do ponto de vista do conteúdo, de qual conhecimento escolar para esse grupo de jovens, que é imenso, que diz respeito a quem já está no ensino médio e a quem ainda vai ingressar se conseguirmos cumprir minimamente as metas do Plano Nacional de Educação. Portanto, como segundo elemento, eu colocaria a necessidade de que se reconheça essa multiplicidade de juventudes e que as suas necessidades e expectativas, nessa sua multiplicidade, sejam consideradas ao se pensar a reformulação do ensino médio. Um terceiro ponto é que se supere a rigidez do formato curricular que temos, que é uma forma também absolutamente fragmentada de organizar o conhecimento, em disciplinas que não dialogam entre si, que hierarquizam muito mais as aulas de português e matemática do que a de sociologia e a de filosofia. O caminho que a gente vinha construindo para isso era pensar um currículo integrado. No caso brasileiro, e conforme as atuais diretrizes curriculares nacionais do ensino médio (Resolução CNE/CEB 02/2012), a proposta é pensar um currículo integrado tendo como eixo a ciência, a cultura e o trabalho. Um eixo que integraria e que articularia o conjunto das disciplinas e/ou componentes curriculares, pensando formatos que convivessem com uma forma disciplinar e formas não disciplinares de se organizar o conhecimento. Eu acredito que esse seria o caminho para a reformulação. Um quarto ponto para se pensar é que essa reformulação fosse construída de forma dialógica com as redes de ensino, com estudantes e professores/ as, com vistas a superar essa forma de fazer política curricular centrada em especialistas e nos gabinetes das Secretarias ou do Ministério da Educação (MEC). Esta tem sido a prática hegemônica: um grupo de supostos iluminados especialistas produzem o texto e depois mandam pronto para as escolas executarem. Isso explica o enorme fracasso das políticas curriculares experimentadas em tempos recentes e que provavelmente se repetirá na dita Base Nacional Comum Curricular. Todo o campo de pesquisa em políticas de currículo tem muita clareza em relação a isso: para que se operem mudanças profundas na lógica de organização curricular, bem como na cultura escolar consolidada, é fundamental que haja uma construção conjunta por parte de todas as pessoas envolvidas. E, por último, ao pensar um processo de reformulação do ensino médio, que se alie às mudanças na organização pedagógica e curricular um conjunto de outras políticas, pois é insuficiente alterar o currículo sem articular isso à formação de professores, às condições de trabalho e salários, à assistência estudantil, à melhoria das condições das escolas, a outros formatos dos materiais pedagógicos, à gestão escolar e assim por diante. Não teremos sucesso numa ação qualificada para o ensino médio, sobretudo em se tratando do ensino médio público que comporta quase 90% da matrícula, se não (re)pensarmos o modelo de organização pedagógica curricular aliado a um conjunto de ações integradas que componha uma política pública para o ensino médio. Qualquer mudança parcial terá efeitos bastante parciais também, que podem, inclusive, agravar os problemas já existentes.

E: De acordo com os dados do Censo Escolar nos anos de 2011 a 2015, a matrícula do ensino médio diminuiu em aproximadamente 271 mil. A população que abrange a faixa etária entre 15 e 17 anos, que está na escola, corresponde a quase 84%, sendo que 28% estão no ensino fundamental. O quantitativo de jovens de 15 a 17 anos que não está na escola é de aproximadamente 1,7 milhão. Podemos afirmar que esses dados demonstram que as políticas para o ensino médio ainda estão distantes de promover a universalização do ensino médio? Como a senhora avalia as políticas para o ensino médio na última década?

MRS: Eu colocaria, com base nesses dados, o fato de que o Brasil tem 10,5 milhões jovens aproximadamente. Dessa faixa etária obrigatória, pouco mais da metade está no ensino médio, por volta de 30% no fundamental e quase 2 milhões sem qualquer vínculo escolar. Eu penso que esse é o primeiro cenário para a gente pensar essa política educacional para o ensino médio, uma política de acesso e permanência. Eu costumo dizer que não se trata de acesso e permanência pura e simplesmente, mas que se qualifique essa permanência, tanto pedagógica quanto curricularmente e que, de fato, se atenda essa juventude plural em suas necessidades e interesses. O que já se tem feito nessa direção? Eu destacaria, na última década, algumas coisas. A formulação do Ensino Médio Integrado, o Decreto nº 5.154/2004, que permitiu a oferta integrada do ensino médio com educação profissional, que merece destaque tanto concepção quanto busca de oferta de educação de qualidade. Destaco também a experiência do Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI), mesmo com os seus limites. O Observatório do Ensino Médio realizou uma pesquisa junto às duas mil escolas que ofertaram o ensino médio inovador e percebemos avanços e limites. Os resultados da pesquisa estão disponíveis em www.observatoriodoensinomedio.ufpr.br. De qualquer modo, é a experiência mais expressiva que tivemos no sentido de provocar um debate sobre um outro formato curricular para o ensino médio, ainda que o ProEMI tenha chegado a apenas 2 mil escolas (de um total de 28 mil escolas), e de formas diferentes pelo Brasil. Outra coisa que eu também considero bastante importante foi a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) de 2012. Essas DCNEM superam as diretrizes anteriores, de 1998, que propunham a formação por competências e habilidades e que eram de caráter reducionista tanto quanto a atual reforme do ensino médio e a BNCC. O foco do currículo no desenvolvimento de competências possui um caráter formativo reducionista ao dar ênfase a um suposto “saber-fazer” e secundarizar, com isso, a centralidade do conhecimento na formação dos estudantes. Além disso, nas DCNEM de 1998, havia um claro atrelamento do projeto formativo a demandas do mercado. Essas perspectivas comprometem uma formação mais densa e integral que contribua com a autonomia intelectual e com a capacidade de análise crítica da realidade, finalidade do ensino médio em seu caráter de educação básica. Agora, o fato de ter sido proposto o ensino médio integrado, o Programa Ensino Médio Inovador e novas DCNEM não quer dizer que se tenha resolvido os problemas que se acumulam desde o início do século XX.

E: Até porque esses problemas (universalização, evasão e repetência) não se resolvem de uma hora para outra, não é?

MRS: Não! Por isso falei de uma política articulada que pensa em tudo ao mesmo tempo, do ponto de vista do estudante, do professor, da escola, do currículo. Ou se faz uma política que integra tudo isso ou a gente vai continuar assim: uma hora muda e faz um ProEMI, outra hora muda e faz um programa que leva o computador na escola, mas, se essas coisas não se derem de forma sincrônica e integradas em uma política pública efetiva, não sairemos do lugar. As inconclusões desses programas particularizados muitas vezes fazem com que a gente fique o tempo todo voltando para o mesmo lugar. O ensino médio padece de problemas crônicos que não são problemas curriculares apenas, são problemas de acesso, de permanência, de conclusão, de condições de qualidade. Nós terminamos o século XX com menos de um quarto dos jovens que deveriam estar no ensino médio efetivamente matriculados. Isso é gravíssimo! A gente passa 100 anos, o século XX inteiro, sem tornar o ensino médio obrigatório e não o tornamos ainda hoje, ainda que seja educação básica e que tenha se ampliado a obrigatoriedade para a faixa etária até 17 anos. Ainda assim, mantemos muitos dos problemas estruturais como as distorções territoriais, temos matrícula concentrada na região sul e sudeste; a ausência de conclusão é muito maior na região norte e nordeste; a conclusão é menor entre os negros, nos territórios mais pobres, nas zonas mais periféricas e no campo. Então, como podemos resolver problemas estruturais como esses que vêm vindo desde o início do século passado, simplesmente com mudanças localizadas e parciais? Nesse sentido, acho que a última década tentou enfrentar alguns desses problemas, mas não chegou a formular uma política capaz de resolver essas situações estruturais de deficiência da oferta que acabaram marcando o ensino médio por mais de um século.

E: Vivenciamos no governo Lula a ampliação do Ensino Médio Integrado. Esse movimento contou com a participação tanto das universidades, do Estado, mas também de empresários, numa espécie de conciliação. Essa ampliação a partir de uma educação profissional voltada para atender ao mercado foge também da proposta do ensino médio inspirada na ideia de escola unitária de Gramsci. Como você analisa a oferta do Ensino Médio Integrado no Brasil?

MRS: Eu não sei se eu concordo muito com essa ideia de que o Ensino Médio Integrado que está sendo ofertado foge totalmente da proposta de escola unitária. Se a gente olhar, por exemplo, tudo o que foi produzido desde 2004, 2005, 2006 e que fomentou a política de oferta de Ensino Médio Integrado, essa produção tem como referência a escola unitária pensada por Gramsci, tem como referência a ideia do princípio educativo do trabalho associada ao eixo ciência, cultura e trabalho. Em 2003, logo que o governo Lula assumiu, foi realizado um seminário em Brasília que se chamou “Ensino Médio: Ciência, Cultura e Trabalho”. Esse seminário foi o marco de uma formulação importante. É a partir desse debate que nós vamos ter toda a discussão que orientou a formulação do ensino médio integrado à formação profissional, do Programa Ensino Médio Inovador e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio aprovadas em 2012. Toda a base teórica e conceitual dessas ações remete à escola unitária de Gramsci. E vale lembrar ainda da criação dos Institutos Federais, de imensa relevância. Se você me perguntasse assim “Qual foi a principal política educacional de ensino médio do governo Lula?” Eu diria “Com certeza, a criação dos Institutos Federais”. E por várias razões. Por uma razão conceitual, os Institutos Federais foram criados para viabilizar Ensino Médio Integrado, todo o programa e projeto de Instituto Federal estavam assentados nessa perspectiva. Depois, eles acabaram também ofertando licenciatura e cursos à distância, mas o projeto original dos Institutos era enfrentar uma coisa que não se tinha enfrentado até então, ampliar a rede federal de educação profissional concentrada somente nos CEFETs – meia dúzia em cada lugar, com uma matrícula quase que irrisória no contexto de crescimento de matrícula que estava acontecendo. E a outra coisa importante dessa política foi a interiorização. Podíamos pensar em uma escola pública de qualidade, inteiramente gratuita e oferecida pela rede federal de ensino médio, lá no interior mais longínquo. O programa dos Institutos Federais foi esse: interiorizar com qualidade a educação para o ensino técnico de nível médio, tendo como referência teórica o eixo ciência, cultura e trabalho que remete à ideia de princípio educativo do trabalho de Gramsci. Então, eu responderia dessa forma à pergunta. Agora, eu diria que entre a proposta feita e a execução é outra coisa. Mas é assim! Quando analisamos a política curricular entendemos que uma coisa é a concepção do texto de política curricular, outra coisa é como isso é apropriado pelas escolas, desde a compreensão que os educadores passam a ter dessa concepção, que tem a ver com a sua formação. Então, por exemplo, é muito difícil para um engenheiro entender a relação entre teoria e prática do modo como a gente entende essa relação, porque, para ele, a prática é a aplicação da teoria: “eu aprendi o conceito e obviamente vou aplicar na prática”. É uma concepção positivista dessa relação e nós não falamos disso dessa forma. A gente percebe o imbricamento entre teoria e prática que orienta o processo formativo, mas ao escrever uma integração entre teoria e prática no texto, o engenheiro vê e acha que tem de aplicar na prática o que ele aprendeu. É nesse sentido que eu estou falando: ele ressignifica e reinterpreta a partir das suas próprias referências teóricas e práticas também. Eu fico imaginando, nos mais de 500 Institutos Federais que temos, e nas redes estaduais que têm o Ensino Médio Integrado, caso aqui do Paraná, a distância que passa a ter entre a concepção de Ensino Médio Integrado e o que é realizado nas salas de aula. Mas este movimento é próprio das políticas de currículo, e imensamente rico. Por fim, é preciso lembrar que a partir do Seminário de 2003, a concepção de Ensino Médio Integrado passou a ser a que deveria orientar todo o ensino médio, não só o que se refere à educação profissional. Quando ocorreu o seminário de 2003, o que estava posto naquele debate acabou orientando mais a oferta de Ensino Médio Integrado à educação profissional, mas o que estava sendo sinalizada, na verdade, era uma concepção para todo o ensino médio, e que iria impactar na relação dessa escola com a juventude. Nesse sentido, de fato, são propostas que contém avanços, mas que, muito timidamente se conseguiu tornar realidade. De qualquer modo, vejo como algo muito positivo o que foi experimentado a partir dessas propostas. Quanto à pergunta sobre como avalio a oferta de Ensino Médio Integrado, também avalio de forma extremamente positiva e importante, ainda que reconhecendo os limites, por exemplo, nem sempre atingindo o público que mais necessita dos IF ou não expandindo tanto quanto necessitaria. A gente vê agora um retrocesso grande porque o atual governo Federal, de Michel Temer, é contra o Ensino Médio Integrado nos Institutos, considera que é ineficiente e caro, como disse recentemente a secretária executiva do MEC. Mas, ainda sim, são experiências muito interessantes e a gente avançou em relação às formas anteriores de educação profissional. A formação técnica e a formação científica não dialogavam em nada. Então, o Ensino Médio Integrado permitiu algumas experiências que foram aproximando a formação científica básica da formação técnica e profissional.

E: Pensando um pouco sobre essa tradução da política que a gente estava falando, gostaríamos de ouvir de você sobre a sua participação na coordenação da pesquisa de “Implementação de programa ensino médio inovador no Brasil”. O que foi possível observar e concluir dessa experiência, e a seu ver qual foi o diferencial do ProEMI em relação a outros programas desenvolvidos no Brasil para o ensino médio? Você até já adiantou algumas questões, mas se puder, pedimos que conclua seu raciocínio.

MRS: Com certeza! Adoro falar sobre isso. É engraçado porque a gente faz pesquisa e ao mesmo tempo temos a preocupação não só em produzir o conhecimento e divulgar, mas uma preocupação com ela em si. Por exemplo, o estado do Paraná foi o primeiro estado que efetivamente implantou o Ensino Médio Integrado na rede estadual. Cresceu muito o número de matrículas, houve investimento e eu fiz a pesquisa aqui durante nove anos dessa implementação, sempre preocupada não só com a questão de acesso, mas com o avanço da base curricular mais integrada.

E: Qual foi o ano dessa integração no Paraná?

MRS: Foi de 2003 a 2011. O Paraná foi o estado que passou a ofertar o Ensino Médio Integrado antes mesmo do decreto 5154/2004.

E: O estado do Espírito Santo também passou a ofertar o Ensino Médio Integrado a partir de 2003.

MRS: É... eu acompanhei as escolas aqui no Paraná, durante a implementação. Foram 9 anos de pesquisa! Eu publiquei os resultados dessa pesquisa em 2013, num livro que chama “Ensino Médio Integrado: Travessias” com vários artigos que são resultados dessa pesquisa, de orientandos/as de mestrado e de doutorado e de outras pessoas que eu fui convidando para fazer parte do livro. Mas acabou que o livro só foi publicado depois que havia mudado o governo. E o governo que assumiu de fato não tinha o menor interesse em manter a oferta, e, inclusive, extinguiu o departamento de educação profissional da Secretaria de Estado da Educação. Estou falando tudo isso para falar a mesma coisa em relação ProEMI. É muito triste que a primeira grande experiência audaciosa, que poderia ter sido a maior política pública de reformulação curricular do ensino médio, tenha produzido tão poucos avanços. Talvez isso se deva ao pouco tempo em que o ProEMI esteve dentro das escolas, mas também a outras razões. Por exemplo, ao fato de que o Ministério da Educação, ainda durante os governos do PT, tenha autorizado em vários Estados a experiência privada do Programa Ensino Médio Inovador, especialmente por meio do Programa Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco, que possuía uma concepção radicalmente oposta à concepção presente nos documentos orientadores do ProEMI e era executado com recursos públicos destinados ao Programa e a uma reformulação do ensino médio.

E: É o que está acontecendo aqui no estado do Espírito Santo, nesse momento!

MRS: Pois é, eu sei. E como aconteceu em Goiás, Mato Grosso do Sul. De início, foram cinco estados, depois dois saíram, entraram mais quatro e chegou a ter sete estados das 27 unidades da federação com experiência orquestrada pelo setor privado. Também precisamos falar disso quando falamos de Programa Ensino Médio Inovador. E tem experiências interessantes porque o ProEMI, se em alguns estados passou por essa oferta de concepção empresarial seletiva e meritocrática, e a pesquisa mostrou o quanto isso era inconsistente com a oferta do ensino médio público, a mesma pesquisa acabou mostrando as experiências realizadas em outras redes estaduais, dente elas da do Ensino Médio Politécnico do Rio Grande do Sul, com uma proposta muito próxima do que se apresenta nas DCNEM de 2012. A pesquisa evidenciou, entre outras coisas, a relevância do financiamento federal, pela via do ProEMI, para uma ação na esfera estadual e o quanto isso contribuiu para a efetivação de uma política curricular nacional expressa nas diretrizes curriculares. O que mais a pesquisa identificou? Por exemplo, uma compreensão bastante parcial da ideia de currículo integrado. Na pesquisa, tivemos o retorno de questionário respondido por quase 1,3 mil professores e 800 gestores. A compreensão deles acerca das propostas do ProEMI era também bastante diversificada. Perguntamos, inclusive, se eles conheciam os documentos orientadores do ProEMI e muitos diziam que não. Como a escola está implementando uma política curricular e diz “eu não conheço?!”. Chegamos a ter um conjunto até expressivo de escolas, não vou lembrar o número agora – nós trabalhamos com 2.000 escolas – em que sabíamos que a escola fazia parte do Programa e ao perguntar “Vocês têm o ProEMI? Como que está indo o programa na escola?” E a resposta era “Na escola não temos o Programa Ensino Médio Inovador”. Então, é disso que eu estou falando, entre o Estado conceber um programa, uma política curricular e o modo como a escola lida com ela é uma caminhada longa que, muitas vezes, mostra fragilidades, mostra como no interior das escolas as propostas são resinificadas, se distanciam das formulações originais, conferem sentidos novos ou inesperados. Mas reside justamente aí a riqueza de se fazer esse tipo de pesquisa. Para finalizar, há uma conclusão a que chegamos na pesquisa que é muito interessante. Com todos os problemas e as dificuldades que as escolas têm, nós trabalhamos com escolas em que mandamos o questionário por email e as escolas respondiam, outras não respondiam e chegamos a telefonar e de fato é assim: a escola tem internet, mas não tem. Nós chegamos a mandar carta física, fazer uma carta física, pôr no correio e mandar para as escolas para, de fato, eles poderem responder. Penso que precisamos refletir sobre isso também. É uma diferença imensa de escola para escola. Enfim, a conclusão a que chegamos e que eu considero mais importante é a de que o grande beneficiário do ProEMI foram os estudantes porque em todas as situações analisadas se conclui que eles gostaram muito de se envolver com as atividades que o Programa possibilitou, seja o acesso a cursos de natureza e temas variados, seja quanto à organização de grupos de teatro ou assemelhados na própria escola, visitas e viagens, contato com uma variedade de mídias, etc. Ainda que com todos os limites, se o ProEMI não alcançou o que deveria alcançar do ponto de vista de uma reformulação curricular, ele avançou bastante no que diz respeito à relação dos jovens com a escola.

Eu colocaria isso como o maior avanço do Programa Ensino Médio Inovador.

E: Nós ouvimos muito isso na pesquisa que a gente realizou sobre o ProEMI no Estado do Espírito Santo: “As escolas e professores não conhecerem os documentos do programa”. E o que mudou ou o que favoreceu mais, no geral, foi a estrutura física. Isso foi fundamental, inclusive, para mudar algumas questões porque não se tinha absolutamente nada. Quando se passa a ter alguma coisa, você começa a pensar em outras possibilidades, então, achamos que isso foi realmente fundamental! Mas seguindo as questões da entrevista, vamos invocar Mészáros [2] (2008), para quem é praticamente impossível pensar a emancipação humana dentro do sistema capitalista, mas admite ser possível romper alguns dos consensos produzidos historicamente pelas instituições educacionais. A centralidade dos debates, no final da década de 1990 até hoje, está no currículo. A senhora mesmo falou há pouco sobre isso. Assim como exemplo, a formação de professores tem sido direcionada para o debate sobre metodologias com foco nos problemas do ensino médio despolitizando, aliás, a própria metodologia. Os cadernos do Pnem, que a senhora teve oportunidade de coordenar e elaborar traçavam um contexto mais aprofundado e teórico de formação. A senhora poderia abordar quais eixos orientaram essa produção e em que medida essa proposta se diferenciava da atual proposta de reforma do ensino médio do governo Temer?

MRS: Olha, vou contar uma coisa para vocês, até chegar no que eu vou falar agora, foi quase um ano de reuniões entre 2011 e 2012. De fato, até se chegar em quais conteúdos, em qual formato e em quais as intenções dessa formação continuada foram reuniões e reuniões, muitas delas bastante acaloradas mesmo! Mas valeu a pena porque eu considero que a gente chegou numa compreensão de escola de ensino médio em um único eixo que articularia toda essa formação e a gente já sabia que iríamos chegar nas escolas, as mais distintas possíveis. Almejávamos alcançar 420 mil professores e essa dimensão preocupava bastante porque a ideia era a de que não fosse um cursinho a mais, como tantos outros que os professores fazem. Com base nisso, definimos um eixo para o curso: “sujeitos do ensino médio e formação humana integral”, pensando nos sujeitos que teríamos como centro da formação – estudantes e educadores – e esse seria o eixo estruturante de toda a formação, com ênfase para os jovens que frequentam a escola pública de ensino médio, em suas várias formas de viver a juventude. Não daria para pensar num conteúdo voltado para uma parcela dessa população, mas para o conjunto dessa juventude. E, ao pensar nos outros sujeitos, que são os professores e gestores, nós definimos que o material teria uma linguagem que falaria diretamente com esse sujeito, sem precisar usar uma linguagem acadêmica ou técnica, uma linguagem tão abstrata e distante da escola que não fosse reconhecida. Avalio que na produção do material atingimos parcialmente os dois objetivos. Falo especialmente com relação à coordenação da produção do material, dos Cadernos de formação do Pnem. O trabalho foi em conjunto com colegas que são especialistas, seja em políticas de ensino médio, em currículo, na relação dos jovens com a escola, ou nas áreas do conhecimento. Falar para o professor de escola pública de ensino médio do Brasil inteiro numa linguagem que esse professor se sentisse atraído, que o levasse a pensar junto sobre quem é o seu aluno, o que é essa escola, como (re) pensar o ensino médio e, ao mesmo tempo, não incorrer em uma linguagem simplificada, reforçando estereótipos do tipo “Ah, eles são jovens conectados ou precisamos dar aula pela internet”. Não queríamos uma linguagem que simplificasse quem é essa juventude porque ela é também uma juventude que é política, que tem lá as suas expectativas em relação à escola e à sociedade. Essa foi uma preocupação central. A outra estava em compreender quem são esses sujeitos do ensino médio: estudantes, alunos, professores e pensar com eles e a partir deles, as possibilidades de reformular essa escola estava posto nas DCNEM em relação a ideia de formação humana integral, compreendida como aquela que considera o ser humano nas suas múltiplas dimensões, intelectual, afetiva, social, política, etc. Foi muito interessante pensar o material e a partir desse eixo quais seriam os conteúdos desses cadernos. Um caderno que fala de juventude, outro que fala de currículo, outro que fala da história do ensino médio, outro que fala de avaliação, depois os que abordam as áreas e, por último, um caderno que não chegou a ser utilizado na formação do pacto, mas que a gente concluiu, sobre as modalidades de oferta do ensino médio, tratando da educação de jovens e adultos, da educação indígena, da educação especial, da educação profissional e da educação do campo. O caderno foi concluído e se encontra no site do Observatório do Ensino Médio. Foi um desafio enorme pensar essa formação e ela é o oposto do que está na reforma de governo Temer. Essa reforma se inicia com uma medida provisória não considera quem são os jovens que estão na escola. Não só não dialogou com esses jovens como estigmatizou os jovens de escola pública com vistas a lhes oferecer muito menos do que é obrigação do Estado. A reforma pela Lei nº. 13.45/17 leva justamente ao sentido oposto do que seria uma formação humana integral, justamente por parcializar, parcelar e fragmentar ainda mais a formação desses sujeitos.

São duas concepções muito distintas de currículo: uma que é a reforma, a fragmentação e a hierarquização e outra que tentava trabalhar numa perspectiva mais integrada, considerando diferentes referências conceituais a partir do eixo ciência, cultura e trabalho.

E: Para finalizar e dar continuidade a essa questão da reforma proposta pelo governo Temer, a gente pergunta quais possíveis alternativas de resistência a senhora vislumbra para as escolas, professores e professoras que se depararam com a necessidade de reformular o ensino médio com base na Lei nº. 13.415. Nós pensamos que essa resistência já começou a ser feita a partir desse debate em Brasília, mas que alternativas as escolas têm, principalmente, as escolas? Quais alternativas teríamos de enfrentamento?

MRS: Eu estava bastante pessimista porque é muito pertinente essas preocupações de um currículo que retrocede. Mas há algo pior acontecendo. Os estados viram nessa reforma do Governo Temer a possibilidade de colocar uma placa de “vende-se” na última etapa da educação básica. O que está havendo na implementação nos estados que já se manifestaram, é que estão fazendo parcerias com os institutos ligados a bancos ou outros tipos de fundações privadas para tudo: para ofertar a educação profissional, para ofertar a ampliação da jornada, para ofertar os itinerários, para fazer formação de professores, para produzir materiais. O governo Temer fez uma coisa que eu considero criminosa, um empréstimo vultoso junto ao Banco Mundial de 1,7 bilhão para implementar a reforma e tudo indica que parte considerável desse recurso não irá para as escolas, mas para os agentes privados. É de se lamentar que ensino médio brasileiro, com essa reforma, tenda a se tornar um grande mercado. Nenhuma dessas agências de cunho empresarial irá assumir os ônus da oferta pública de ensino médio, mas ficará com os bônus em uma dupla via: realizar um projeto formativo estruturado com base em uma compreensão gerencialista de educação, e ainda acumular consideráveis lucros financeiros. Eu diria assim “Quais as perspectivas que a gente vê nesse cenário complexo, está tudo perdido?” Há poucos dias, o MEC assumiu que a base nacional comum curricular de ensino médio não ficará pronta em 2017 e nem 2018. Somente ficará pronta em 2019 para implementar em 2020. E como na lei ficou atrelado implantar a reforma do ensino médio com a BNCC, que não vai ficar pronta, eu fiquei um pouco mais animada. Nós temos, pelo menos, mais dois anos para reconstruir formas do enfrentamento nos estados. Ganhamos fôlego para poder mudar o cenário. O grande problema dessa reforma é que quem está no MEC hoje tem uma relação extremamente próxima do empresariado nacional ligado à educação e só a eles que o MEC dá resposta, não é a nós ou às universidades.

E: Não há mais diálogo, não tem a possibilidade de enfrentamento. Só mais uma pergunta, professora Monica, ...uma curiosidade. A partir do que você falou agora no final, em relação a esse fôlego e à questão do empresariado nesse governo Temer. A rede Educa dos movimentos empresariais nos países latino-americanos é uma articulação forte dentro desse modelo que agora estamos vivenciando plenamente. Aqui no Brasil é o “Todos pela educação” e cada país tem um nome semelhante, alguns chegam a se chamar “Empresários pela educação”. Eles estão trabalhando direto nessas reformas aqui no Brasil e em outros países. Se você puder falar um pouco sobre isso...

MRS: Eu tenho uma notícia sobre isso que eu considero muito triste. Aconteceu uma audiência pública na Câmara dos Deputados há algumas semanas. Foi a primeira audiência pública desde que a lei foi aprovada em fevereiro, pois até então não havia acontecido nada. O tema e a pauta eram educação profissional de nível médio e quem foi convidado para a audiência pública e/ou estava lá? A Confederação Nacional da Indústria, a Confederação Nacional do Comércio e o “Todos pela Educação” representando esses institutos, o Sistema S e nenhum representante dos institutos federais, nem o presidente do Conif que é o Conselho nacional dos dirigentes dos Institutos Federais. Para mim, isso diz muito na direção daquilo que você está mencionando, o MEC e o congresso vão chamar o empresariado para coordenar a implementação da reforma.

E: E a questão da escola sem partido, Monica? Por exemplo, foi todo o empresariado, mas esse projeto é desse empresariado? Essa questão é uma ideia que aparece nos debates ou não?

MRS: Não, ela apareceu. A Medida Provisória nº. 746 recebe novecentas e poucas emendas e um conjunto de emendas era do “Escola sem Partido”. Esse conjunto foi uma tentativa de aproveitar e “surfar na onda” para poder aprovar o “Escola sem partido”, o que acabou não acontecendo. Mas eu considero de muita gravidade esse movimento chamado “Escola sem Partido” porque, de fato, ele existe desde 2004 e foi criado quando o PT assumiu o governo, há 13 ou 14 anos. Por quê? O criador, o advogado Miguel Nagib e as pessoas que com ele dialogavam já imaginavam que haveria um “governo comunista”, porque eles chamam o governo do PT de um governo comunista, que o governo iria fazer doutrinação comunista nas escolas. Então, era necessário proibir a “doutrinação”. O projeto nasce assim. Depois que surge o que chamam de “ideologia do gênero” e outras discussões, mas quando (o projeto) é criado, já é para proibir qualquer mudança que o PT pudesse fazer na educação brasileira. Depois acabou entrando essa ideia que as Igrejas Católica e Evangélica mais conservadoras chamam de ideologia do gênero “que isso é coisa do demônio, porque homem nasce homem e mulher nasce mulher; qualquer coisa diferente disso não é de Deus, tem que acabar mesmo”. Eles acabaram entrando no projeto “Escola sem Partido” com essa defesa de que não se pode falar de sexualidade com as crianças e muito menos das questões do gênero e dos LGBTs de maneira geral. Agora, o que eu hoje colocaria de preocupação maior do projeto Escola sem Partido é o seguinte: depois do golpe, vimos o crescimento de pessoas que até então poderiam pensar coisas, mas elas não falavam a respeito, não as expunham e não as defendiam. Pessoas que têm ódio de negros, pessoas que são racistas, as pessoas que têm nojo do pobre, as pessoas que têm ódio dos homossexuais, elas até tinham essas noções antes também, mas como a lei proibia e era crime, ficavam quietas. Nesse contexto de golpe em que as coisas se polarizaram, é PT e PSDB, direita e esquerda, Dilma e Aécio, Lula e Bolsonaro, nessa polarização, cresceu muito exponencialmente a rejeição a qualquer pauta chamada de “esquerda”. Para mim, o Escola sem Partido está sendo usado para isso, como instrumento de censura, para que se viabilize a censura. Esses dias, eu vi uma coisa horrível! Estavam dizendo que direitos humanos é coisa de esquerda. Não se pode falar dos direitos humanos! Isso é um absurdo, é a direita mais ignorante! É como se dissessem assim: direitos humanos – é proibido falar direitos humanos; direito à vida – é proibido falar direito à vida; direito à água – também é proibido falar direito à água. Mas como eu tenho dito por aí, o ódio, a intolerância e a ignorância foram os três ingredientes de nazifascismo e o “Escola sem Partido” trabalha e opera com esses três fundamentos: a intolerância, o ódio, sustentado com muito desconhecimento. E as piadinhas de quando os municípios estavam fazendo plano municipal de educação e que não se podia falar do gênero? Tiveram que tirar inclusive gênero alimentício, gênero literário, então, é esse tipo de ignorância, são pessoas absurdamente ignorantes. E com a prática, também uma prática nazista que é a delação, porque eles pregam isso, que você delate o professor para que ele seja criminalizado e punido. Então, considero o projeto “Escola sem Partido” hoje o que se têm do mais perigoso em termo de educação no Brasil, sem dúvida.

E: Obrigada pela entrevista, Professora Monica.

Referências

Cury, C. R. J. A (2008).Educação Básica como um direito. Cadernos de Pesquisa (PUCMINAS), 38(134), 293-303. [ Links ]

Mészáros, I. (2008). A educação para além do capital. 2ed. São Paulo: Boitempo editorial. [ Links ]

[1]A autora se refere ao seguinte texto: CURY, C. R. J. A Educação Básica como um direito. Cadernos de Pesquisa (PUCMINAS), v. 38, n. 134, p. 293-303, maio/ago. 2008.

[2]MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. 2ed. São Paulo: Boitempo editorial (Mundo do trabalho), 2008.

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