SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25Coreografías didácticas institucionales y calidad de la enseñanzaExamining Performance Assessment: Illuminating Teacher Development and The Construction of a Profession author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.25  Brasília Jan./Dec 2019  Epub July 10, 2019

https://doi.org/10.26512/lc.v25.2019.23795 

Dossiê: Currículo e Avaliação da Aprendizagem

Práticas curriculares-avaliativas: Inventar cotidianamente considerando os movimentos de influência

Curricular-evaluative practices: To invent daily considering the movements of influence

Prácticas curriculares-evaluativas: inventar cotidianamente considerando los movimientos de influencia

Pratiques d'évaluation évaluatives: inventer chaque jour en considérant les mouvements d'influence

Priscila Maria Vieira dos Santos Magalhães1 
http://orcid.org/0000-0001-5186-6013

Lucinalva Andrade Ataide de Almeida2 
http://orcid.org/0000-0002-3577-1716

Carla Patrícia Acioli Lins3 
http://orcid.org/0000-0001-6941-4656

1Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco. Participante do Grupo de estudo e pesquisa Discursos e Práticas Educacionais.

2Doutora em Educação. Professora Associada no Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora do Grupo de estudo e pesquisa Discursos e Práticas Educacionais.

3Doutora em Educação. Professora no Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco. Participante do Grupo de estudo e pesquisa Discursos e Práticas Educacionais.


Resumo

O estudo a que se reporta este artigo analisou os movimentos de influência que atravessam as práticas avaliativas-curriculares de professores atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola da rede de ensino público do agreste pernambucano brasileiro. Os dados revelam que as políticas nacionais de avaliação, a gestão/coordenação escolar e as concepções de educação, currículo e avaliação de professores têm se revelado em movimentos de influência sob a tessitura das práticas e da organização curricular, o delineamento de uma avaliação orientada para fins pré-determinados, e a autonomia profissional e cristalização das concepções curriculares e avaliativas dos docentes.

Palavras-chave Avaliação; Currículo; Políticas; Práticas

Abstract

The study that reports this article analyzed the influence movements that cross the evaluation-curricular practices of teachers who were active in the initial years of Elementary Education of a school in the public school system of the Brazilian Pernambuco State. The data show that national evaluation policies, school management/ coordination, and conceptions of education, curriculum and teacher evaluation have been revealed in influential movements under the tessitura of curricular practices and organization, the design of an evaluation aimed at predetermined purposes, and the professional autonomy and crystallization of curricular and evaluative conceptions of teachers.

Keywords Evaluation; Curriculum; Policies; Practices

Resumen

El estudio a que se refiere este artículo analizó los movimientos de influencia que atravesan las prácticas evaluadoras-curriculares de profesores actuantes en los años iniciales de la Enseñanza Fundamental de una escuela de la red de enseñanza pública del agreste pernambucano brasileño. Los datos revelan que las políticas nacionales de evaluación, la gestión/coordinación escolar, y las concepciones de educación, currículo y evaluación de profesores, se han revelado en movimientos de influencia bajo la tesitura de las prácticas y organización curricular, el delineamiento de una evaluación orientada hacia fines predeterminados, y la autonomía profesional y cristalización de las concepciones curriculares y evaluativas de los docentes.

Palabras clave Evaluación; Plan de estudios; Políticas; Prácticas

Résumé

L’étude rapportant cet article a analysé les mouvements d’influence qui traversent les pratiques d’évaluation-programme des enseignants actifs dans les premières années de l’enseignement élémentaire d’une école du système scolaire public de l’État de Pernambuco au Brésil. Les données montrent que les politiques influentes sous la tessiture des pratiques et de l’organisation curriculaires, la conception d’une évaluation ont révélé les politiques nationales en matière d’évaluation, la gestion/ coordination des écoles et les conceptions de l’éducation, du curriculum et de l’évaluation des enseignants. visant des objectifs prédéterminés, ainsi que l’autonomie professionnelle et la cristallisation des conceptions curriculaires et évaluatives des enseignants.

Mots clés Evaluation; Programme d'études; Politiques Pratiques

Introdução

A avaliação da aprendizagem, historicamente, tem sido foco de interesse nas pesquisas e políticas educacionais brasileiras. Nestas, a avaliação tem assumido múltiplas tipificações – como diagnóstica, classificatória, formativa, somativa, processual, contínua, emancipatória, mediadora, dialética e dialógica (Luckesi, 2018) – que têm expressado formas e funções diversas ao ato avaliativo. No entanto, a despeito da diversidade epistemológica em torno da avaliação, suas tipificações estão a associar-se não apenas à dimensão conceitual que as embasam, mas também à dimensão política-prática que permeia a vida cotidiana da escola.

Enquanto política-prática presente na escola, a avaliação configura-se em ato complexo e indissociado a outros atos em efervescência nesse espaço, como os atos curriculares. Assim, as práticas avaliativas cotidianamente realizadas pelos professores envolvem não apenas as avaliações formais e informais desenvolvidas por esses profissionais, mas sobretudo, o currículo pensado-vivido que estão a seguir e fabricar (Certeau, 2014) na vitalidade dos cotidianos escolares. É, pois, nessa direção que vislumbramos a relação mútua entre currículo e avaliação, posto que como nos aponta Lima (2011), “a avaliação também é currículo, seja enquanto instrumento orientado para a inovação curricular, ou para a sua manutenção e controlo, seja ainda afetando os processos de gestão curricular, os modelos didáticos, e, em geral, a prática pedagógica de professores e alunos (p. 73).

Sendo a avaliação compreendida, também, enquanto currículo prescrito-vivido “que enuncia os objetivos da ação educativa e os conteúdos através dos quais se perseguirão esses objetivos” (Leite, 2003, p. 132), as práticas curriculares em sua dimensão de seleção e organização curricular têm, por vezes, sido influenciadas por contextos de influência advindos de instâncias centrais, como revelam os estudos de Figueiredo, Leite e Fernandes (2016), e Almeida, Silva e Lins (2015).

No quadro destas ideias, considerando ser fundamental a compreensão dos impactos desses contextos sob o delineamento das práticas cotidianas realizadas por professores, objetivamos através deste texto analisar os movimentos de influência que atravessam as práticas avaliativas-curriculares de professores atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Para análise desses movimentos, tivemos como lócus de pesquisa uma escola [1] pública municipal de Caruaru, agreste pernambucano. Para seleção desta, estabelecemos como critério a obtenção do melhor desempenho avaliativo no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), no período [2] de desenvolvimento desse estudo. Tal critério justifica-se por intencionarmos captar como tais resultados influenciam e são influenciados pelas “práticas comuns” (Certeau, 2014) de currículo e avaliação realizadas pelos microdecisores curriculares-avaliativos atuantes no chão da escola.

Especificamente, a escolha do lócus investigativo foi orientada pela inquietação em compreender como os/as professores/as, alunos/as e demais sujeitos desse espaço se relacionavam com as políticas avaliativas, isto é, como o contexto de influência expresso nos resultados das avaliações externas influencia o ensino, o currículo, a avaliação e as práticas cotidianas vivenciadas na escola. E, ainda, como a própria escola, frente a esses resultados, se apresenta como contexto de influência sob as práticas dos/as professores/as, uma vez que partíamos do pressuposto de que, para além das políticas curriculares avaliativas expressas nos documentos oficiais, a escola poderia aliar-se a estas para compor o contexto de influência.

Nessa direção, selecionamos duas professoras [3] como colaboradoras nesse estudo. Estas atuavam em turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental e tinham tempo médio de 10 a 30 anos de atuação na docência. Os procedimentos metodológicos consistiram na observação sistemática das aulas dessas docentes, que foram analisadas à luz da Análise de Discurso (Orlandi, 2010) e do Ciclo de Políticas (Ball, 2001), por compreendermos que esses dispositivos nos possibilitavam evidenciar a produção discursiva subjacente aos movimentos de influência que atravessam as práticas avaliativas-curriculares inventadas na escola.

Políticas-práticas curriculares-avaliativas: um olhar para suas relações

Analisar as políticas-práticas de currículo-avaliação em suas relações incide na compreensão empírica e analítica acerca dos contextos macro-micro políticos nos quais emergem, visto que nesses, o currículo e a avaliação se delineiam de formas distintas, podendo apresentar-se em discurso enquanto influência, texto e/ou prática (Ball, 2001) nas esferas global-local nas quais são pensadas-vividas.

Ao compreendermos discurso enquanto efeitos de sentidos entre os interlocutores (Orlandi, 2010), vislumbramos que os sentidos de currículo e avaliação produzidos no âmbito macro das políticas curriculares-avaliativas reverberam na esfera micro cotidiana escolar e vice-versa, posto entendermos que “as políticas resultam de uma bricolagem de conceitos e decisões globais e locais, na qual um influencia o outro numa relação mútua” (Lima & Marran, 2013, p. 54).

Na tessitura da relação mútua entre currículo e avaliação, estamos entendendo esta última como “componente integrado do currículo, como parte de um mesmo sistema e não de sistemas separados” (Marinho, 2014, p. 54). Apesar de partirmos desse entendimento, ao lançarmos um olhar para pesquisas em educação produzidas nos últimos anos no Brasil (Magalhães, 2018; Roldão & Ferro, 2015; Lima, 2011), vemos o quanto o currículo tem estado, em muitos casos, subordinado às políticas-práticas de avaliação. Nessa direção, as pesquisas evidenciam que o currículo vivido cotidianamente nas escolas, em suas formas de seleção e organização curricular, por vezes tem estado ao serviço dos exames externos, indicando que “a avaliação não apenas controla se estamos implementando adequadamente uma proposta curricular, mas se propõe a definir o próprio currículo” (Macedo, 2011, p. 37) ao determinar que “vale somente aquilo que entra no exame […], o que não é objeto de exame carece de valor e, portanto, de interesse. […] e o valor intrínseco dos conteúdos de aprendizagem fica à margem” (Méndez, 2002, p. 36).

Nesse cenário, as práticas curriculares em desenvolvimento nos espaços escolares sofrem influência de um Modelo das Racionalidades Técnicas (Pacheco, 2005), intensamente permeado por um “contexto de decisão curricular fortemente centralizado, fragmentado e marcado pelo critério da eficiência” (Alves & Machado, 2011, p. 62), no qual a avaliação apresenta-se como mecanismo de controle ao serviço de uma lógica de conformidade normativa e prescritiva (idem. p. 62).

Entretanto, apesar das políticas-práticas curriculares-avaliativas serem influenciadas e interpeladas por lógicas performativas (Ball, 2002; Almeida, Leite & Santiago, 2013), em um movimento inverso, elas constituem-se também a partir de processos de leitura e tradução (Ball, Maguire & Braun, 2016) curricular-avaliativa produtora de sentidos antagônicos aos que foram pensados no âmbito macropolítico.

Tais processos de produção, leitura e tradução em torno do currículo e da avaliação sinalizam a existência de uma arena de poder, tensões e embates entre as prescrições políticas globais e as políticas locais, revelando que:

A criação das políticas nacionais é, inevitavelmente, um processo de “bricolagem”; um constante processo de empréstimo e cópia de fragmentos e partes de ideias de outros contextos, de uso e melhoria das abordagens locais já tentadas e testadas, de teorias canibalizadoras, de investigação, de adoção de tendências e modas e, por vezes, de investimento em tudo aquilo que possa vir a funcionar. A maior parte das políticas são frágeis, produto de acordos, algo que pode ou não funcionar; elas são retrabalhadas, aperfeiçoadas, ensaiadas, crivadas de nuances e moduladas através de complexos processos de influência, produção e disseminação de textos e, em última análise, recriadas nos contextos da prática (Ball, 2001, p. 102).

É no âmbito do contexto da prática, então, que vislumbramos ser as políticas-práticas curriculares-avaliativas não fadadas às lógicas e deliberações dos contextos oficiais, haja vista os agentes de influência outros envolvidos na sua produção, como os professores, gestores e coordenadores escolares que também fazem as políticas no chão da escola (Ball, et al., 2016).

Enxergando a escola como lócus de produção política e reinvenção cotidiana, vislumbramos que nesse espaço as práticas curriculares-avaliativas cotidianamente fabricadas pelos sujeitos ordinários (Certeau, 2014) remetem para uma “politicidade” (Lima, 2011) da avaliação e do currículo que escapa à dimensão estritamente técnica e procedimental historicamente atribuídas, posto aludir aos “valores, interesses, objetivos, epistemologias e visões de mundo diferenciados” (Lima, 2011, p. 72) que subjazem tais práticas.

Enquanto lócus complexo, situado para além das representações que historicamente incumbiram-lhe à conformidade dos produtos curriculares-avaliativos verticalmente instituídos para consumo (Certeau, 2014), a escola é aqui entendida “como uma obra […] construída e transformada pela ação dos sujeitos” (Penin, 1989, p. 17) envolvidos na (re)formulação dos discursos políticos.

Nessa ótica, ao entendermos que “a análise de políticas deve incidir sobre a formulação do discurso da política” (Mainardes, 2006, p. 29), reconhecemos a necessidade de atravessarmos a superfície dos discursos de modo a mergulhar em sua profundidade na busca de perceber como os seus não ditos e silenciados produzem sentidos no interior de sua estrutura.

No caso específico brasileiro, faz-se importante questionar: Quais sentidos de currículo compõem as políticas de avaliação elaboradas em nível nacional e local? Quais as lógicas e os interesses tidos como pano de fundo nos textos das políticas curriculares-avaliativas? Como influenciam e são influenciadas pelo contexto micro das práticas cotidianas fabricadas na escola?

Movimentos de influência atravessados nas práticas avaliativas-curriculares: que implicações trazem ao cotidiano escolar?

Inicialmente, consideramos importante pontuar que, ao intencionarmos refletir acerca dos movimentos de influência que atravessam as práticas avaliativas-curriculares de professoras atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental, partirmos da compreensão de que as atividades realizadas pelos docentes e o processo de profissionalização desses, historicamente não se deu de modo endógeno, mas sim a partir de influências reguladoras externas à profissão, o que significa dizer que, além dos agentes de controle internos (pares, gestores escolares, alunos e pais), a docência desde sua gênese tem sido regulada também por agentes externos, a exemplo da própria sociedade que historicamente produz sentidos do que significa ser professor, e, sobretudo do Estado e de suas políticas de educação, currículo e avaliação, que incumbiu à docência a natureza de “atividade do Estado” portadora de todos os bônus e ônus advindos desse status.

Assim, a docência, e nesta, o saber-fazer avaliativo-curricular, têm sido atravessados por movimentos de influências, por processos fluidos de disputas e embates permeados por relações de poder que tentam controlar a tessitura das práticas curriculares-avaliativas desenvolvidas pelos/as professores/as em sala de aula. No caso específico de Daniela e Clara – colaboradoras desse estudo – suas práticas se esteiam no centro de um jogo conflituoso de forças antagônicas que operavam em direção à cristalização de sentidos [4] hegemônicos da avaliação e do currículo pensado-vivido cotidianamente na escola.

De modo específico, identificamos ser suas práticas reguladas por movimentos de influência diversos, como a gestão/coordenação da escola, as políticas nacionais e locais de currículo-avaliação, e as concepções de educação, currículo e avaliação de Daniela e Clara. Juntos, estes movimentos/agentes de influências corroboravam no delineamento das formas de consumo das prescrições oficiais impostas, na fabricação de astúcias sutis de burla (Certeau, 2014) dos produtos instituídos, e na construção da profissionalidade docente das professoras.

Entre tais movimentos de influência e as práticas cotidianas de currículo-avaliação das docentes, vislumbramos a existência de um entremeio no qual localizam-se agentes de influência que, na posição discursiva (gestores e coordenadores) que ocupam, apresentam-se como tradutores de políticas (Ball, et al., 2016). Nesse entremeio, visualizamos que os sentidos em torno da avaliação e do currículo não estão fixos e determinados, mas sim suspensos na polissemia discursiva que perpassa as leituras e os consumos feitos às políticas avaliativas-curriculares.

É nesse entremeio ocupado por agentes de influência, isto é, por sujeitos que na posição discursiva ocupada galgam poder para interpretar e traduzir as políticas, que observamos o quanto a gestão e a coordenação da Escola Novo Horizonte estavam envolvidas na leitura inicial e na interpretação dos textos das macro-micropolíticas avaliativas-curriculares, interpretação esta entendida como “um processo político institucional […] de explicação, esclarecimento e criação de uma agenda institucional, muitas vezes contraditória e sempre socialmente incorporada” (idem, p. 69).

De forma específica, intencionando colocar as prescrições oficiais em movimento, principalmente no que diz respeito ao trabalho com os descritores curriculares e ao alcance das metas estabelecidas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) [5] , a equipe gestora dessa instituição buscava estratégias para atender às determinações impostas a essa unidade escolar. Tais estratégias podem ser percebidas através das solicitações da coordenadora feitas à Daniela para que, em sua organização curricular, antecipasse o ensino de conteúdos que estavam planejados para ser trabalhados no segundo semestre do ano letivo, como foi expresso pela docente:

[…] Vê, são duas provas, uma de Português e uma Matemática, e aí pra cada área dentro dessas disciplinas tem as habilidades que serão avaliadas. Por isso, ela [coordenadora] disse pra gente contemplar todos os conteúdos. Por exemplo, o ano retrasado em uma dessas provas caiu as “horas” na prova de matemática, sendo que eu não tinha trabalhado esse assunto com eles, então muitos tiraram nota baixa porque ainda não tinham estudado. Então, ela (coordenadora) disse assim pra gente: “Olhe minha gente, mesmo que vocês não tenham planejado trabalhar alguns conteúdos agora no primeiro semestre, mas vão tentando inserir, tentando mostrar a eles esses assuntos dentro do que vocês já estão trabalhando agora, porque eles vão tendo uma noção mais geral de tudo, de tudo um pouquinho, porque quando essas provas vierem, eles já vão ter uma noção de tudo que vai cair”. Então, assim […] é muita coisa pra gente dar conta! Porque a gente tem que trabalhar a partir dos conteúdos dessas avaliações […] (Extrato de diário de campo, 2017).

No discurso de Daniela, percebemos o quanto os sujeitos que ocupam uma posição discursiva de poder – como os gestores e coordenadores – têm influenciado a tessitura das práticas curriculares desenvolvidas por essa professora, revelando, assim, que a gestão da escola estabelece com o professorado interdependências “repletas de tensões, disputas de poder e interesses entre os grupos e sujeitos, e dessa maneira podem pressionar o professorado tanto no sentido da profissionalização quanto em seu contrário” (Lins, Leocádio & Santos, 2017, p. 126).

No bojo dessas interdependências, percebemos que, ao solicitar que a docente fizesse ajustes na organização curricular para contemplar todos os conteúdos avaliados nas avaliações de larga escala, entendemos que a gestão escolar tem tido sua atuação profissional orientada por visões tecnicistas de currículo, nas quais “as decisões políticas são tomadas em nível macro, com o reconhecimento do papel centralizador da Administração central” (Pacheco, 2005, p. 109). Assim, as práticas de Daniela sinalizavam estar sob o julgo de decisões curriculares fortemente centralizadas, fragmentadas e marcadas por um modelo conformista, normativo e prescritivo de currículo e avaliação.

Ao indicar que “a gente tem que trabalhar a partir dos conteúdos dessas avaliações”, o discurso de Daniela assenta-se em um interdiscurso que historicamente vem sendo problematizado no âmbito dos estudos curriculares (Macedo, 2011; Marinho, 2014), o qual denuncia o fosso entre currículo e avaliação, e afirma ser esta última, instrumento de controle do currículo e do ensino desenvolvido nas escolas. Nessa perspectiva, “a avaliação acaba por assumir uma função de controle de uma racionalidade burocrática e de uma concepção determinista da ação humana” (Alves & Machado, 2011, p. 62).

Ressaltamos que, a influência da gestão e coordenação sobre a seleção, a organização e o tempo curricular desvencilhados cotidianamente, também foi observada nas aulas da professora Clara, posto que constantemente em sua prática curricular a mesma mobilizava os conteúdos avaliados nas avaliações externas de larga escala sob o argumento de que era uma solicitação feita pela equipe gestora. A exemplo, em uma das aulas dessa professora, observamos o registro feito por ela no quadro de uma atividade sobre “Unidades de Medida” reproduzida de um livro didático de matemática intitulado “Prova Brasil”. Ao lhe questionarmos se este livro teria sido disponibilizado pela escola, a docente respondeu:

Não, querida! Nós que temos que comprar! […] Porque sempre nas reuniões dizem para a gente trabalhar com os conteúdos das avaliações externas, mas não chegam pra gente para disponibilizar algum material desse. Então, como eu sei que tem que trabalhar com essas questões, eu fui e comprei esses livros. Aí, na última reunião eu mostrei esses livros à diretora, ela gostou muito e pediu que as outras professoras tirassem cópias (Extrato de diário de campo, 2017).

No relato de Clara, vislumbramos o currículo enquanto “criação cotidiana dos praticantespensantes do cotidiano escolar” (Oliveira, 2013, p. 58), interpelado por relações de poder e por interesses diversos dos sujeitos envolvidos nessa criação. Assim, a partir das traduções feitas pelos gestores e coordenadores escolares das políticas avaliativas, o currículo tem sido concebido como produto cultural subordinado ao conhecimento que “cai” nas provas.

Como dissemos anteriormente, historicamente o fenômeno avaliativo, e neste, as políticas avaliativas, têm sido atravessados por não ditos que, ao não dizer um discurso ou ao enfatizá-lo repetidamente, acabam silenciando outros que não intencionam explicitar. Nesse processo de silenciamento de sentidos, os discursos oficiais passam pelo crivo das interpretações e traduções dos agentes de influências, que na posição discursiva que ocupam e na formação discursiva que estão inseridos, acabam traduzindo o que intencionalmente foi silenciado nos textos políticos.

Nessa perspectiva, ao buscarmos os discursos ditos e os silenciados em torno das questões curriculares apresentados nos documentos oficiais do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), especificamente, na base online do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), órgão responsável pela definição das características da Aneb [6] , Anresc [7] (Prova Brasil) e Provinha Brasil, observamos as seguintes informações sobre as matrizes de referência curricular dessas avaliações:

As matrizes da Aneb e Anresc (Prova Brasil) não englobam todo o currículo escolar e não podem ser confundidas com procedimentos, estratégias de ensino ou orientações metodológicas […] (INEP, 2018).

[…] de forma alguma deve substituir o currículo da escola em relação às habilidades de Língua Portuguesa e Matemática (INEP, 2018).

Como percebido, é recorrente neste documento a afirmação de que as matrizes de referência “não englobam todo o currículo e não podem ser confundidas ou substituir o currículo das escolas”. A insistência nesses enunciados parece funcionar como um mecanismo de antecipação (Orlandi, 2010), no qual o documento se antecipa a possíveis críticas que, porventura, argumentem que ele intenta direcionar procedimentos metodológicos ou substituir o currículo das escolas. Dessa maneira, o documento “antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem” (idem. p. 39), intencionando regular os efeitos de sentido sobre seu interlocutor.

A recorrência desses enunciados revela-se como um mecanismo não só de antecipação, mas também de defesa frente aos estudos do campo curricular-avaliativo que historicamente vêm denunciando as influências e o controle da avaliação na tessitura do currículo pensado-vivido nas escolas. Como evidenciam as pesquisas de Luis (2011) e Roldão e Ferro (2015), por vezes, a cultura avaliativa vivenciada nas escolas tem resultado numa sobreposição das exigências dos exames sobre o currículo e as práticas curriculares realizadas em sala de aula.

Compreendemos ainda que, para além de mobilizar mecanismos de antecipação, esses enunciados funcionam também como uma forma de silenciamento, pois, ao que parece, o documento, ao tentar enfatizar alguns pontos (não englobam o currículo total, não direcionam estratégias, não substituem o currículo), buscam silenciar não só a ideia de que é, sim, currículo, mas, principalmente a ideia de que englobam o currículo por inteiro, visto que a forma como a política está estruturada, direciona, através dessas avaliações, o modo como o próprio currículo não só é proposto à escola, mas igualmente constituído e vivido nesse espaço.

Contudo, se lançarmos um olhar mais cuidadoso sobre esses enunciados, veremos que essa produção discursiva não nega por completo o intento de configurar-se como currículo, pois ao dizer que engloba o currículo, expressa que é, mas, por outro lado, se justifica dizendo que não engloba o currículo por inteiro. Assim, se não engloba o currículo por inteiro, quais sentidos de currículo e avaliação estão velando defender, uma vez que a avaliação perpassa o currículo? Se as políticas avaliativas afetam o currículo apenas parcialmente, quais as perspectivas que as embasam? Se apenas uma parte do currículo é englobada, que parte é esta?

A reflexão dessas questões nos possibilita perceber que os sentidos construídos em torno da avaliação e do currículo não dependem de propriedades intrínsecas destes (Magalhães, Gonçalves, Almeida & Oliveira-mendes, 2018), mas resultam de articulações discursivas decorrentes das interpretações e traduções feitas pelos sujeitos, que na posição discursiva que ocupam, produzem efeitos de sentidos diversos em torno das políticas-práticas curriculares-avaliativas.

Tais articulações discursivas são permeadas por forças antagônicas que expressam concepções díspares de educação e avaliação dos sujeitos envolvidos nos processos avaliativos. Se de um lado, Clara e Daniela indicavam compreender a avaliação como ação processual própria da vida cotidiana da escola, do outro, a equipe gestora sinalizava a entender como atividade burocrática de fim de processo, reduzindo-a a um sentido de avaliação como instrumento burocrático de promoção discente. A exemplo, em conversas informais, Daniela expressou seu descontentamento com a centralidade da dimensão burocrática da avaliação defendida pela gestão da escola, que, por vezes, resultava na descredibilidade da avaliação processual realizada pela docente cotidianamente, como observamos no discurso a seguir:

[…] O pior de tudo é que essa recuperação não serve de nada, porque de todo jeito eles [alunos] têm que passar! Têm que passar de todo jeito! Faz recuperação só por fazer mesmo, porque não podem reprovar, aí eles têm que passar independente do que eu penso ou acho! Então é umas coisas sem lógica mesmo, entende? E aí eu lhe pergunto: para que a avaliação que a gente faz todos os dias serve? É só para burocracia mesmo, e isso é um dos principais problemas da educação hoje em dia: ela está mais preocupada com a burocracia do que com a parte pedagógica de fato! Se preocupam com o papel, mas com a aprendizagem do aluno não! [Em voz mais baixa ela continuou dizendo] Para você ter uma ideia, quando chega final de novembro a diretora passa nas turmas do 4º, 5º ano e pergunta quantos alunos as professoras acham que vão ser reprovados, e aí as meninas dizem, por exemplo 7, e aí ela diz: “Vamos escolher, então, quem de fato vai! Porque 7 é muito!” Agora me diga, como é que o menino passa o ano todinho sem estudar, sem fazer nada, e chega no fim de ano vai ter que passar de todo jeito? Quer dizer que todo nosso trabalho de avaliar o ano todinho não valeu de nada! (Extrato de diário de campo, 2017).

O discurso de Daniela ao questionar a credibilidade que a gestão tem dado (ou não) às práticas avaliativas desenvolvidas processualmente por ela no decorrer do ano letivo revela o quanto seu saber-fazer avaliativo era regulado por uma cultura de avaliação orientada para o controle externo do trabalho docente. Ao expressar “para que a avaliação que a gente faz todos os dias serve? É só para burocracia mesmo”, a professora indica que os sentidos de avaliação emergidos nas práticas pedagógicas dos profissionais dessa escola carregam marcas de uma memória discursiva de avaliação assentada no “padrão burocrático que preside a organização e funcionamento dos sistemas de ensino” (Penin, 1989, p. XI) em sua cotidianidade.

Nessa cultura avaliativa burocraticamente organizada, as práticas de avaliação de Daniela precisavam voltar-se para o atendimento das solicitações da gestão feitas a ela, como a realização de provas de recuperação com um resultado previamente determinado, isto é, a promoção automática dos alunos. Assim, mesmo a docente não comungando com tal solicitação, precisava desvencilhar-se dos resultados das avaliações formais e informais realizadas processualmente durante o ano letivo, para “passar de todo jeito” os discentes, visto que, no entender dela, os gestores educacionais estão mais preocupados “com o papel, do que com a aprendizagem do aluno”.

Compreendemos, assim, que embora Daniela intencionasse basear sua prática avaliativa em concepções formativas de avaliação, revelando entender o ato avaliativo como ação cotidiana articulada e a serviço dos processos de ensino-aprendizagem, tal intento encontrava obstáculos para concretização, posto que no contexto escolar em que estava inserida, parece que os padrões burocratizantes que orientam o trabalho pedagógico têm atribuído maior valor ao produto final das avaliações pontuais de fim de processo, que às práticas avaliativas cotidianas menos sistematizadas que aludem a um movimento de defesa pela avaliação formativa.

Ainda, a partir do discurso dessa professora, vislumbramos que “as práticas cotidianas dos diversos agentes pedagógicos, contudo, ora cumprem e reforçam a orientação burocrática, ora se contrapõem a ela” (Penin, 1989, p. 111). Daniela, contudo, mesmo tendo que consumir (Certeau, 2014) as prescrições (solicitação para promoção automática) impostas, tal ato não se dava tão passivamente, pois frequentemente contestava o sentido de avaliação como instrumento burocrático de promoção discente presente nas orientações da equipe gestora.

De semelhante modo, em estudos desenvolvidos por Villar (2009) e Luis (2011), visualizamos que o fazer avaliativo, e a própria profissionalidade docente, têm sido delineados por relações de poder que intentam reduzir a avaliação a uma atividade técnica desenvolvida por professores-burocratas que saibam lidar “[…] com muitas exigências burocráticas, sociais e políticas em torno de seu trabalho e da avaliação que fazem, uma vez que a própria "cultura da avaliação" é tão onipresente hoje em suas vidas, nas das escolas e dos alunos […]” (Luis, 2011, p. 1).

Nessa direção, ao influenciar a configuração das práticas avaliativas-curriculares indicando que essas devessem convergir para fins determinados, a coordenação escolar acabava contribuindo para fragilizar a autonomia profissional de Daniela e Clara, revelando marcas históricas de uma memória na qual o professorado - em sua gênese profissional - estava assujeitado às imposições de outrem, como a Igreja, o Estado e as Políticas educacionais (Nóvoa, 1991).

Lançando um olhar para a história e para a memória discursiva da docência, vislumbramos que, desde sua gênese, o trabalho docente tem estado sob regulações externas, o que tem acarretado a perda do controle sobre seus processos de trabalho, sua autonomia, autoridade, valorização social e monopólio de sua tarefa (Diniz, 1998).

Frente a estes efeitos, compreendemos que os movimentos de influência que atravessavam as práticas curriculares-avaliativas de Clara e Daniela resultavam na desprofissionalização do desenvolvimento profissional dessas professoras, revelando ser a docência uma atividade a enfrentar a intensificação de processos de precarização e proletarização, levando a sua desprofissionalização. Nesse viés, evidenciamos que o modo verticalizado e autoritário no qual as políticas educacionais, e nestas, as políticas avaliativas, têm chegado às escolas, tem produzido efeitos às práticas curriculares, à profissão docente e ao processo de profissionalização e profissionalismo dos professores, já que afetam a autonomia e o autocontrole desse grupo ocupacional sobre suas atividades profissionais.

Desta feita, entendendo que o professor assume posições discursivas (Orlandi, 2010) na hierarquia social, compreendemos que a posição de “subordinação” assumida muitas vezes por este frente às diversas formas de controle burocrático e administrativo (Cabrera & Jaén, 1991), tem dificultado o professorado galgar o status de profissão reconhecida e prestigiada socialmente, visto que, historicamente, autonomia e autocontrole têm sido elementos essenciais para a legitimação de uma profissão, e principalmente, para a consolidação do profissionalismo docente, o qual é definido por Freidson como “método de organização do trabalho calcado na busca por monopólio de um saber, fechamento contra o não diplomado, autonomia, e controle do conteúdo, da prática e da avaliação do próprio trabalho” (Borba, 2015, p. 14).

Nesse cenário, vislumbramos ser tal desprofissionalização fruto das lógicas performativas e gerenciais que permearam as reformas educacionais neoliberais iniciadas a partir de década de 90 no Brasil, conforme assinala Lins (2013). Tais lógicas têm se constituído como mecanismos de controle do que significa ser professor na contemporaneidade. No que se refere à performatividade, Ball (2005) sinaliza ser esta “uma tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudança” (p. 543); na mesma direção, “o gerencialismo representa a inserção, no setor público, de uma nova forma de poder, ele é um instrumento para criar uma cultura empresarial competitiva, uma força de transformação” (p. 544).

Como visto, ao se caracterizarem como tecnologias de controle e busca exacerbada pela eficiência e eficácia nos espaços profissionais, as lógicas performativas e gerenciais que atravessam as reformas e políticas educacionais “são também mecanismos para reformar os profissionais do setor público, como os professores, ao mudar o significado do que é ser professor” (Ball, 2005, p. 546). Em outras palavras, assiste-se que paulatinamente a profissionalidade do professorado tem sido refreada, uma vez que os professores têm sido transformados em técnicos extraídos de saberes e competências profissionais. Consequentemente, esses têm “perdido progressivamente a capacidade de decidir qual será o resultado de seu trabalho, pois este já lhe chega previamente estabelecido em formas de disciplinas, horários, programas, normas de avaliação, etc.” (Enguita, 1991, p. 48).

Tais lógicas, permeadas nas esferas macro (políticas) e microavaliativas (sala de aula), têm contribuído para que os docentes não sejam vistos como intelectuais que refletem e teorizam sobre seu fazer, antes, porém, se revelem como “semiprofissionais” incapazes de refletir, julgar e autorregular suas atividades. Como indica Ball (2005),

[…] a combinação das reformas gerencial e performativa atinge profundamente a prática do ensino e a alma do professor – a “vida na sala de aula” e o mundo da imaginação do professor […] – aspectos específicos e díspares da conduta são reformulados e se muda o local de controle da seleção de pedagogias e currículos. A prática da sala de aula cada vez mais é “remodelada” para responder às novas demandas externas. Os professores são “pensados” e caracterizados de novas maneiras; cada vez mais são “pensados” como técnicos em pedagogia (p. 548).

Desta feita, esse grupo profissional perde o controle sob seu trabalho, que tem sido regulado por mecanismos exógenos ao grupo, a exemplo das políticas de avaliação e dos agentes de influência (gestores e coordenadores escolares), que agem na regulação das competências desse “novo profissional”. Como indicado por Ball (2005), cada vez mais os docentes “estão sujeitos a uma miríade de julgamentos, mensurações, comparações e metas. Informações são coletadas continuamente, registradas e publicadas com frequência na forma de rankings” (p. 549). Estes, ao expressarem em números a eficiência e eficácia do trabalho docente, acabam contribuindo para delimitação do “bom” professor, já que o êxito de suas práticas educativas passa a ser interpretado pelos resultados apresentados nas avaliações externas.

Destarte, destacamos que o olhar empírico sobre as práticas avaliativas de Clara e Daniela nos possibilitou visualizar os movimentos de influência que as atravessavam, como também as lógicas que constituíam tais movimentos. Contudo, mesmo reconhecendo o controle exacerbado que tais mecanismos têm exercido sob as práticas e o saber-fazer curricular-avaliativo dessas docentes, vislumbramos que seu desenvolvimento profissional não estava fadado à regulação e à desprofissionalização advindas dos mecanismos de cunho neoliberal das políticas de avaliação, visto entendermos que o poderio desses movimentos está intimamente ligado às diversas formas de consumo de Daniela e Clara. Assim, as práticas dessas professoras mostraram que a posição de “subordinação” atribuída muitas vezes ao professor frente às diversas formas de controle burocrático e administrativo (Cabrera & Jaén, 1991) contribui para que este ocupe um lugar, ou melhor, um “não lugar”. Contudo, visualizamos que era nesse “não lugar” que Clara e Daniela mobilizavam formas outras, táticas astuciosas (Certeau, 2014) de escape e burla de sobrevivência frente às lógicas performativas e gerenciais que historicamente tentam controlar o fazer e o saber-fazer desse grupo ocupacional. Assim, as práticas cotidianas de currículo e avaliação inventadas por essas docentes revelaram ser permeadas por apropriações plurais, criativas e singulares, não ocorrendo “por meio de um ato passivo, de recebimento de algo pronto e acabado; ao contrário, se constituindo num processo ativo, de (re) construção das práticas já existentes” (Oliveira, p. 25, 2004).

Considerações finais

No conjunto das ideias apresentadas, evidenciamos que as políticas nacionais de avaliação, a gestão/coordenação da escola lócus desse estudo, e as concepções de educação, currículo e avaliação das professoras Clara e Daniela constituíam-se em movimentos de influência sob a tessitura das práticas e organização curricular, o delineamento de uma avaliação orientada para fins pré-determinados, e a autonomia profissional e cristalização das concepções curriculares e avaliativas das docentes.

Assim, na análise dos movimentos de influência atravessados nas práticas avaliativas-curriculares das professoras Clara e Daniela, evidenciamos que tais práticas trazem subjacentes relações e sentidos diversos em torno do currículo e da avaliação em desenvolvimento na sala de aula. Sentidos estes que, ora revelam a relação mútua e dialógica entre os atos de currículo e avaliação, ora outorgam a esta última, o controle e a regulação sobre o como/quando/que se ensinam na escola.

Essas constatações nos mostram que a ênfase nos resultados, permeada na agenda institucional da gestão/coordenação escolar, traduzia-se na redução e no empobrecimento do currículo e a da avaliação vividos na escola, implicando no desenvolvimento de processos curriculares e avaliativos voltados apenas à valorização do que é objeto dos exames.

Atravessada por uma “metanarrativa do controlo” (Alves & Machado, 2011), essa agenda institucional agia de modo a controlar o poder-saber-fazer avaliativo-curricular e a autonomia profissional das professoras, outorgando a essas o papel de aplicadoras de modelos pré-fabricados de currículo e avaliação.

Rejeitando o status de aplicadoras/reprodutoras de um currículo e uma avaliação regidos pela lógica de conformidade normativa e prescritiva, as concepções curriculares e avaliativas das professoras empregam sentidos outros aos modelos cristalizados de currículo e avaliação advindos dos contextos macros políticos e administrativos, revelando que, apesar de todo o aparato oficial de controle, a avaliação e o currículo podem ser astuciosamente (re)inventados na escola a partir dos subjacentes sentidos de educação, currículo e avaliação que fundamentam as suas práticas.

Referências

Almeida, L. A. A., Silva, J. F., & Lins, C. P. A. (2015). Movimento curricular para prática docente de estudantes-professores em formação. Linhas Críticas, Brasília, DF, n.46, p. 645-664, set./dez. [ Links ]

Almeida, L., Leite, C., & Santiago, E. (2013). Um olhar sobre as políticas curriculares para formação de professores no Brasil e em Portugal na transição do século XX para o XXI. Revista Lusófona de Educação, v. 23, p. 119-135. [ Links ]

Alves, M. P., Machado, E. A. (2011). O sentido do currículo e os sentidos da avaliação. In: ALVES, M. P., KELETE, Jean-Marie de (Orgs.). Do Currículo à Avaliação, da Avaliação ao Currículo. Portugal, Porto Editora. [ Links ]

Ball, S. J. (2001). Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem fronteiras, v.1, n.2, pp.99-116. [ Links ]

Ball, S. J. (2002). Reformar escolas/reformar professores e os terrores da performatividade. Revista Portuguesa de Educação, p. 03-23. [ Links ]

Ball, S. J. (2005). Profissionalismo, gerencialismo e performatividade.Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564. [ Links ]

Ball, S. J., Maguire, M., & Braun, A. (2016). Como as escolas fazem política: atuação em escolas secundárias. Tradução: Janete Bridon. Ponta Grossa: Editora UEPG. [ Links ]

Borba, C. (2015). Dos ofícios da alimentação à moderna cozinha profissional: reflexões sobre a ocupação de chef de cozinha. Recife. Tese de doutorado em Sociologia. PPGS/UFPE. [ Links ]

Brasil. (2018). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.http://portal.inep.gov.br/educacaobasica/saeb/matrizes-e-escalasLinks ]

Cabrera, B., Jaén, M. J. (1991). Quem são e o que fazem os docentes? Sobre o “conhe cimento” sociológico do professorado. Teoria & Educação, Porto Alegre. [ Links ]

Certeau, M. (2014). A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 21. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]

Diniz, M. (1998). Repensando a teoria da proletarização dos profissionais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1):165-184. [ Links ]

Enguita, M. (1991). A ambiguidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Teoria & Educação, Porto Alegre. [ Links ]

Figueiredo, C., Leite, C., & Fernandes, P. (2016). O desenvolvimento do currículo no contexto de uma avaliação de escolas centrada nos resultados: que implicações? Currículo sem Fronteiras, v. 16, n. 3, p. 646-664. [ Links ]

Gomes, S. S. (2005). Avaliação da aprendizagem na organização escolar em ciclos: concepções, práticas, sentidos e significados atribuídos pelos professores. Anais da 28ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Caxambu, MG. [ Links ]

Grego, S. M. D. (2012). Reformas Educacionais e Avaliação: Mecanismos de regulação na escola. Estudos em Avaliação Educacional. São Paulo, v. 23, n. 53, p. 60-81. [ Links ]

Lima, L. C. (2011). Avaliação, competitividade e hiperburocracia. In: Alves, M. P., Ketele, J. Do Currículo à Avaliação, da Avaliação ao Currículo. Porto: Porto Editora. [ Links ]

Lima, P. G., Marran, A. L. (2013). A avaliação de políticas educacionais por meio da abordagem teórico-analítica do ciclo de políticas. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 8, n. 1, p. 41-62. [ Links ]

Lins, C. P. A. (2011). Professor não dá aula, professor desenvolve aula: mudanças nas atividades docentes e o processo de profissionalização do professor: o caso do professor de Ensino Médio. Tese de doutorado. UFPE/CE, Recife, Pernambuco, Brasil. [ Links ]

Lins, C. P. A. (2013). Processo de profissionalização docente: o contexto das práticas. Estudos de Sociologia, v. 1, n. 19. [ Links ]

Lins, C. P. A., Leocadio, P. R., & Santos, M. C. X. (2017). Profissionalidade e profissionalismo docente, pensado e tecido na interdependência entre a gestão da escola e o professorado. Interritórios, Revista de Educação, Universidade Federal de Pernam buco, Caruaru, Brasil, v. 3, n. 4, p. 12-137. [ Links ]

Luckesi, C. C. (2018). Avaliação em educação: questões epistemológicas e práticas. – São Paulo: Cortez. [ Links ]

Luis, S. M. B. (2011). Avaliação como princípio de desenvolvimento profissional docente a partir da escrita de diários reflexivos. Anais da 34ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Natal, RN. [ Links ]

Macedo, E. (2011). Criar currículo no cotidiano. 3. Ed – São Paulo: Cortez (Série cultura, memória e currículo, v. 1). [ Links ]

Magalhães, P. M. V. S. (2018). As artes de fazer da avaliação fabricadas no cotidiano escolar: Um olhar para as táticas avaliativas dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental. (165 f.) Dissertação (Mestrado) – UFPE - CAA, Caruaru, Pernambuco, Brasil. [ Links ]

Magalhães, P. M. V. S., Gonçalves, C. L., Almeida, L. A. A., & Oliveira-mendes, S. A. (2018). Dos discursos aos sentidos: as práticas avaliativas de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental Revista Eletrônica de Educação, v. 12, n. 1, p. 90103. [ Links ]

Mainardes, J. (2006). A abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade; Campinas, vol.27, nº 94,4769. [ Links ]

Marinho, P. M. T. (2014). A avaliação da aprendizagem no ensino básico: contributos para a compreensão da sua relação com o sucesso escolar. (410 f.) Tese (Ciências da Educação). Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal. [ Links ]

Marinho, P., Fernandes, P., & Leite, C. (2014). A avaliação da aprendizagem: da pluralidade de enunciações à dualidade de concepções. Acta Scientiarum. Maringá, v. 36, n. 1, p. 153-164. [ Links ]

Méndez, J. M. A. (2002). Avaliar para conhecer-examinar para excluir. Porto Alegre -RS: Artmed. [ Links ]

Nóvoa, A. (1991). Para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão docente. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 4. [ Links ]

Oliveira, I. B. (2013). Currículos e pesquisa com os cotidianos: o caráter emancipatório dos currículos pensadospraticados pelos praticantespensantes dos cotidianos das escolas. Ferraço, C. E., Carvalho, J. M. (org.). Currículos, pesquisas, conhecimen tos e produção de subjetividades. Rio de Janeiro: De Petrus, p. 47-70. [ Links ]

Oliveira, S. A. (2004). O ensino e a avaliação do aprendizado do sistema de notação alfabética numa escolarização organizada em ciclos. Recife: O autor. Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CE. Educação. [ Links ]

Orlandi, E. P. (2010). Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes Editores. [ Links ]

Pacheco, J. A. (2005). Políticas curriculares descentralizadas. Escritos curriculares. São Paulo: Cortez. [ Links ]

Penin, S. (1989). Cotidiano e escola: a obra em construção. São Paulo: Cortez. [ Links ]

Roldão, M. C., & Ferro, N. (2015). O que é avaliar? Reconstrução de práticas e concepções de avaliação. Estudos em Avaliação Educacional. São Paulo, v. 26, n. 63, p. 570-594, set./dez. [ Links ]

Villar, A. P. R. (2009). A prática avaliativa em uma organização escolar por ciclos de aprendizagem. O Autor, 257 f.: il.; graf. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CE. Educação, Recife, Pernambuco, Brasil. [ Links ]

[1]A esta, atribuímos o nome fictício de Escola Novo Horizonte.

[2]Tomamos por referência os dados do IDEB fornecidos pelo Saeb em 2016.

[3]Nomeadas por Clara (atuante no 5º ano) e Daniela (atuante no 2º ano) na intenção de preservarmos suas identidades.

[4]A exemplo de sentidos como: Avaliação como dispositivo de controle e regulação curricular; Avaliação como medida do conhecimento; e Avaliação como moeda de troca.

[5]Criado em 2007, o IDEB é um indicador estatístico que reúne em um só conceito, elementos referentes ao fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações. Para tanto, estabelece metas diferenciadas para cada rede e unidade escolar, indicando que “estados, municípios e escolas deverão melhorar seus índices e contribuir, em conjunto, para que o Brasil chegue à meta 6,0 em 2022” (INEP, 2017).

[6]Avaliação Nacional da Educação Básica.

[7]Avaliação Nacional do Rendimento Escolar.

Creative Commons License Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.