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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 05-Ago-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.24327 

Artigos

Ensino médio e segregação urbana

La escuela media e segregación urbana

High school and urban segregation

Le lycée et ségrégation spatiale

Alexandre Weingrill Araujo1 
http://orcid.org/0000-0002-7792-475X

1Atuou como professor de educação básica na rede estadual de São Paulo por seis anos. Mestre em educação pela Universidade Federal de São Paulo. O foco de pesquisa é o ensino médio no Brasil. Doutorando em educação pela Universidade de Alberta - Canada na área de educação secundária.


Resumo

O objetivo desse trabalho é discutir a influência do lugar sobre as escolas urbanas, sobretudo no ensino médio, nível esse que marca o fim da educação básica e cujo objetivo é propiciar aos educandos inserção na vida econômica e social. Assim, se debruçando sobre as escolas estaduais de nível médio do município de Suzano, na Grande São Paulo, serão analisados os resultados do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo e a porcentagem de alunos concluintes do terceiro ano médio que realizaram o Exame Nacional de Ensino Médio para verificar a influência do lugar sobre tais variáveis. Por fim, serão discutidos os motivos de tal influência, apontando a relação entre segregação urbana e baixo aproveitamento dos alunos em bairros periféricos.

Palavras-chave Ensino Médio; Influência de lugar; Segregação urbana

Resumen

El objetivo de este trabajo es discutir la influencia del lugar sobre las escuelas, sobre todo en la enseñanza media, nivel que marca el fin de la educación básica y que, según los documentos oficiales, debería propiciar a los educandos inserción en la vida económica y social. En el caso de las escuelas estatales de nivel medio del municipio de Suzano, en la Grande São Paulo, se analizará los resultados del Sistema de Evaluación del Rendimiento Escolar del Estado de São Paulo y el porcentaje de alumnos concluyentes del tercer año medio que realizaron el programa Examen Nacional de Enseñanza Media para verificar la influencia que el lugar tiene sobre tales variables. Por último, se discute los motivos de tal influencia, apuntando la relación entre segregación urbana y bajo aprovechamiento de los alumnos en barrios periféricos.

Palabras clave Enseñanza Media; Influencia del lugar; Segregación urbana

Abstract

The purpose of this paper is to discuss the influence of the place on schools, especially in high school, which marks the end of k-12 education and which, according to the official documents, should prepare students for life. Thus, considering the state high schools in the municipality of Suzano, in the metropolitan region of São Paulo, the paper will analyze the results of the School Performance Evaluation System of the State of São Paulo as well as the percentage of students graduating from grade 12 who took the National High School Examination to verify the influence that the place has on such variables. Finally, the reasons for this influence are discussed, pointing out the relation between urban segregation and low student achievement in impoverished neighborhoods.

Keywords High School; Influence of place; Urban segregation

Résumé

L’objet de cet article est de discuter de l’influence de la place sur les écoles, en particulier au lycée, qui marque la fin de l’éducation de base et qui, selon les documents officiels, devrait offrir aux étudiants une vie économique et sociale. Ainsi, en considérant les écoles publiques moyennes de la municipalité de Suzano, dans le Grand São Paulo, les résultats du système d’évaluation du rendement scolaire de l’État de São Paulo seront analysés et le pourcentage d’étudiants diplômés de la troisième année intermédiaire ayant terminé le Examen national des lycées pour vérifier l’influence de la place sur ces variables. Enfin, les raisons de cette influence sont discutées, en soulignant la relation entre la ségrégation urbaine et la faible réussite des élèves dans les quartiers périphériques.

Mots clés Lycée; Influence du lieu; Ségrégation

Introdução

Nas últimas décadas, profundas mudanças na educação básica brasileira vêm ocorrendo. Alavancadas pelas inovações introduzidas pela Constituição Brasileira de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996, a taxa de escolarização passou por acentuado incremento. De acordo com dados do Ministério da Educação (MEC), a taxa de frequência para o ensino fundamental (para crianças de 7 a 14 anos) passou de 80% para 97% entre os anos de 1980 e 2001 (Torres et al., 2005, p. 123). Mesmo o acesso ao Ensino Médio, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e do Ministério da Educação (MEC) apresentou forte aumento, sobretudo entre os anos de 1991 a 2017, quando o número de matrículas passou de 3.772.698 em 1991 para 7.930.384 em 2017. No Estado de São Paulo, observa-se também essa tendência à expansão, segundo dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo (SEADE). Em 1994, o número total de matrículas nesse nível era de 1.110.185 e passou para 1.618.00 em 2014 (Fundação SEADE, n.d.).

Esse significativo aumento no número de alunos matriculados no ensino médio indica que houve absorção de pessoas de grupos sociais que antes estavam excluídos do processo escolar. Esse incremento de escolaridade e consequente assimilação dos menores pela vida escolar não ocorre, entretanto, sem descompassos, porque não existe uma adolescência prototípica, ou uniforme, mas modos de viver essa etapa da vida conforme diferentes lugares, situações sociais, econômicas e culturais (Sancristan, 2005, p.17).

A influência da situação socioeconômica da família sobre o rendimento escolar dos alunos é um tema já bem pesquisado e corroborado, como, por exemplo, em Bourdieu (2007), que afirma que o nível cultural dos antepassados de primeira e segunda geração permite explicar as variações mais prováveis do êxito escolar.

O campo da geografia da educação, destarte, vem procurando se aprofundar na questão dos efeitos de lugar sobre os processos escolares. Pesquisas como, por exemplo, a de Torres et al. (2005) e Saraví (2008) vêm demonstrando, de diferentes maneiras, como a localização da escola tem significativa influência sobre os processos escolares que ali transcorrem, em articulação com questões econômicas, sociais e culturais.

Utilizando-se das pesquisas referidas e do arcabouço teórico proposto por François Dubet (1994) para ação social e Pierre Bourdieu (2007) para as desigualdades escolares, esse trabalho se debruça sobre 18 escolas de ensino médio da rede estadual situadas no município de Suzano, na Grande São Paulo, e busca verificar e relacionar o lugar da escola (no caso sua distância em relação ao centro) ao rendimento e perspectiva de continuar os estudos dos jovens egressos. É importante salientar que só foram analisadas escolas de ensino médio regular, excluindo as escolas com modalidade para jovens e adultos (EJA) para que a comparação fosse equiparada.

Para tal fim, foram utilizados dados do SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) que, junto do indicador de fluxo, compõe o IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo), principal referência de qualidade adotada pela Secretária de Educação do Estado de São Paulo.

As escolas e seus índices e a influência de lugar no município de Suzano

Pierre Bourdieu (1997, p. 160) explica que “não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais”. Isso pode ser visto no município de Suzano, na Grande São Paulo, onde claramente há uma distinção entre bairros que se acentua à medida que se afasta do centro. No quadrilátero central da cidade, se localizam todos os estabelecimentos da rede bancária, a maioria das lojas das grandes redes (tais como Casas Bahia, por exemplo), a estação de trem, que conduz à cidade de São Paulo, o único shopping da cidade e a maioria dos estabelecimentos de ensino privado. Bourdieu (1997, p. 161) nos ajuda a conceber essa disposição espacial afirmando que:

O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se apresenta, assim, como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies de bens ou serviços e também de agentes individuais e de grupos fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos importantes […] É na relação entre a distribuição de agentes e a distribuição dos bens no espaço que se define o valor das diferentes regiões do espaço social corporificado.

Assim, o fato de a maioria dos bens ou serviços estar localizada na região central indica que seu valor (tanto simbólico quanto econômico) é maior. Como referência de lugar da escola, portanto, foi tomada, como base, sua distância em relação ao quadrilátero central, conforme expresso nas placas das ruas que o compõem.

Caldeira (2000) aponta que a principal causa das disparidades centro-periferia, tão comuns nas metrópoles brasileiras, é a histórica priorização dos interesses das classes altas e médias urbanas em detrimento das classes trabalhadoras. Dessa forma, a partir de meados do século passado, quando o crescimento urbano e a industrialização ganhavam força, os municípios começaram a desenvolver diversos planos de readequação da infraestrutura viária para dar vazão à crescente circulação de automóveis, pessoas e bens. Uma das consequências disso foi a remoção de moradias populares das regiões centrais e o consequente aumento no valor dos aluguéis. Dessa forma, as classes trabalhadoras, que pagavam aluguel, se viram forçadas a se mudar para locais até então vazios nas regiões periféricas, que passaram a ser servidos por linhas de ônibus.

Essa expansão do território urbano não foi acompanhada por um planejamento por parte dos órgãos públicos, que garantiam, em grande medida, o cumprimento das leis apenas nas regiões centrais. Dessa forma, como aponta Caldeira (2000), os bairros periféricos foram se proliferando com o crescente movimento de trabalhadores em busca de moradias a preços acessíveis e o êxodo rural, que se intensificava exponencialmente.

A ocupação desses novos espaços, contudo, seguiu os interesses dos proprietários de terras que, em muitos casos, descumpriam as leis. Como resultado, muitos terrenos vendidos não seguiam os parâmetros legais para lotes, novas ruas que eram abertas não recebiam infraestrutura adequada (como asfalto e calçamento, por exemplo) e os bairros não tinham equipamentos adequados para a população (como lazer e mobilidade urbana). Além disso, pessoas mais pobres não conseguiam acessar linhas de crédito habitacional por não possuírem pré-requisitos mínimos e, por isso, recorriam à “autoconstrução”, que se iniciava com um barraco em condições precárias ao qual, aos poucos, se adicionavam novos cômodos para formar uma residência, construída sem planejamento arquitetônico ou estrutural (Caldeira, 2000). Dessa forma, as regiões periféricas urbanas têm, como característica marcante, a concentração de pessoas de baixo poder aquisitivo vivendo em condições de falta de estrutura, além de moradias precárias.

O gráfico a seguir relaciona a distância da escola do centro do município de Suzano ao Indicador Socioeconômico da Escola (INSE), estabelecido pelo Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e relacionado à posse de bens e à contratação de serviços pela família dos estudantes, além do nível de escolaridade de seus pais ou responsáveis (INEP, 2018). Tal índice vai de zero a cem e, quanto mais alto, melhores as condições socioeconômicas médias da escola.

Fonte: INEP (2018).

Gráfico 1 Indicador socioeconômico da escola e sua distância do centro da cidade 

Analisando-se o gráfico, percebe-se que há uma tendência de diminuição do INSE médio da escola conforme ela se distancia do centro. Isso está relacionado ao fato de que cada escola tende a atrair o público residente das proximidades, embora possam haver alunos que optem por estudar em estabelecimentos distantes de casa, por motivo de trabalho ou preferência pessoal. Além disso, observam-se escolas que destoam da linha de tendência, o que pode ser relacionado ao fato de que o desenvolvimento urbano não segue um padrão linear e há bairros afastados com diferentes características demográficas, conforme seu desenvolvimento histórico.

Outro ponto a salientar é que, conforme os mesmos dados do INEP (2018), o INSE das escolas particulares de ensino médio do município é muito superior ao das escolas estaduais, o que indica que, em geral, os alunos das classes mais abastadas se encontram em estabelecimentos privados. Isso sugere que a própria opção pelo ensino público está relacionada às classes médias e pobres e que a escolha do estabelecimento de ensino segue a lógica do desenvolvimento urbano desigual no Brasil. Dessa forma, quem pode pagar opta por estabelecimentos privados por enxergarem que há mais qualidade. Os estabelecimentos públicos acabam sendo ocupados, em grande medida, por aqueles que não têm recursos.

Uma análise das escolas de ensino médio no município de Suzano, contudo, aponta como a distância entre a escola e o centro da cidade tem correlação com o desempenho dos alunos no Sistema de Avaliação do Rendimento do Ensino de São Paulo (SARESP), prova padronizada anual de português e matemática aplicada a todos os alunos do 5º e 9º anos do ensino fundamental e 3º ano médio, servindo de principal parâmetro para a Secretaria de Educação para acompanhar o desempenho dos alunos.

Fonte: http://saresp.fde.sp.gov.br/2018 acesso em 10/04/2019.

Gráfico 2 Resultado das turmas do 3º ano médio no SARESP em 2017 e a distância da escola do centro 

Ao analisar esse gráfico, podemos ver uma tendência de queda do rendimento dos estudantes do terceiro ano do ensino médio no SARESP conforme a distância escola-centro aumenta. Essa queda é ainda mais acentuada do que a observada no INSE, conforme exposto no gráfico 1. O que fica evidente, dessa forma, é que, no município de Suzano, além de o nível socioeconômico médio da escola cair à medida que ela se afasta do centro, o mesmo acontece com o desempenho dos alunos em prova padronizada.

Após verificar os dois gráficos, pode-se inferir que as escolas que possuem melhor rendimento no exame e público com melhores condições socioeconômicas são as mais próximas do centro. É possível indagar se as desigualdades escolares são reflexos diretos de desigualdades socioeconômicas, existindo, mesmo dentro da rede pública, hierarquia entre os estabelecimentos conforme seu local.

Inclusive, há a tendência de estudantes residentes dos bairros mais afastados de optarem pelo deslocamento para uma escola central por serem consideradas melhores, conforme aponta Araujo (2015). Assim, além de as escolas atraírem o público de seu entorno por questões de praticidade, e refletirem esse capital cultural no desempenho dos alunos, há também uma força de atração simbólica das unidades escolares centrais, mesmo sobre aqueles que moram longe e que desejam um incremento na vida estudantil. Isso intensifica a concentração de alunos com bom desempenho e melhor condição socioeconômica nesses lugares.

Nesse sentido, Torres et al. (2005), utilizando dados do censo de 2000, procuraram verificar os fatores ligados à probabilidade de conclusão do ensino médio. Após cruzar diversos dados, o estudo concluiu que os principais fatores que interferem na probabilidade de se concluir a educação básica são, em ordem de influência, a renda domiciliar, gênero (com vantagem para as mulheres), escolaridade dos pais, tempo de residência no município e local de moradia e estudo. Ou seja, mesmo com perfil socioeconômico semelhante, a probabilidade de conclusão da escola básica de um indivíduo que more ou estude em regiões centrais será superior a um que more em regiões urbanas periféricas.

Efeitos de lugar sobre a escolarização

A ação dos indivíduos sempre se circunscreve a um lugar, portanto, este deve ser entendido em referência às relações que nele ocorrem. Para François Dubet (1994) essa ação é composta de três dimensões (integrativa, estratégica e subjetiva) não hierárquicas que, muitas vezes, competem e têm conflitos entre si. Utilizando-se desse paradigma, se procurará discutir a conexão entre o lugar e a escolarização.

A primeira dimensão descrita por Dubet (1994) é a de integração, na qual o indivíduo está mais perto do personagem social com a incorporação do discurso de outrem numa socialização primária e profunda, transformando essa identidade numa espécie de natureza quando ela diz respeito à língua e à nação, ao sexo, à religião, à classe social. Em outras palavras, o papel graças ao qual o ator se constitui como ser social.

Nesse sentido, Koonings & Kruijt (2007) apontam como as distâncias sociais nas regiões metropolitanas brasileiras acarretam uma crescente segregação dos habitantes das periferias urbanas, restringindo seu acesso ao mercado de trabalho formal, serviços públicos e segurança. Essa segregação também está relacionada à estigmatização dessas regiões, que têm importantes consequências sobre a identidade e a autoestima dos moradores (Saraví, 2004). Seus efeitos atingem os jovens de maneira mais intensa, levando-os a desenvolver um conjunto de normas que são percebidas como desviantes, mas que os permite lidar com a frustração causada pela percepção de que o alcance de metas sociais respeitáveis é muito improvável (Saraví, 2004).

Outro efeito da segregação urbana é acarretado pela concentração homogênea de grupos socioeconômicos pobres em regiões periféricas, o que condiciona sua socialização a ser apenas com pessoas em situações semelhantes. Nesse sentido, como apontam Cesar e Soares (2001), o fato de o público que frequenta uma escola ser homogeneamente pobre tem influência sobre o desempenho dos alunos. Por outro lado, o fato de um indivíduo estar em um meio no qual as pessoas detêm níveis mais avançados de realização escolar pode influenciá-lo a se dedicar aos estudos. Em outras palavras, “[…] o aluno pobre na escola rica é beneficiado por seu meio” (Cesar e Soares, 2001, p. 108).

Deste modo, enquanto uma escola central propicia ao aluno um contato com pares de estratos socioeconômicos distintos, as escolas afastadas do centro são marcadas pela homogeneidade de alunos pertencentes a estratos socioeconômicos empobrecidos. Pesquisa realizada na Cidade do México, inclusive, indica que uma quantidade significativa dos jovens dos bairros periféricos não conhece ninguém que tenha alcançado níveis superiores ao próprio (Saraví, 2008). Situação similar pode ser inferida em relação às metrópoles brasileiras, por terem desenvolvimento histórico semelhante.

A questão da socialização pode, também, explicar porque existe maior possibilidade de as mulheres concluírem o ensino médio em relação aos homens, pois, em muitos locais, os estudos são associados a uma atividade feminina, ao passo que o ingresso precoce no mercado de trabalho indicaria sinal de masculinidade (Saraví, 2008).

Outra dimensão da ação no modelo proposto por Dubet (1994) é a da estratégia com vistas de a sociedade ser um campo concorrencial por recursos escassos, como o dinheiro, o trabalho, o poder, o prestígio, a influência, o reconhecimento.

Nesse sentido, o primeiro ponto a se salientar é que, enquanto os alunos dos estratos sociais mais favorecidos têm a garantia de manutenção para prosseguimento dos estudos, muitos jovens das camadas populares têm a necessidade de começar a trabalhar cedo, seja para contribuir com a família ou para gerar renda para seu próprio consumo. Assim, a escola passa a ter importância secundária e o fato de trabalhar incide diretamente no tempo e intensidade dedicados ao estudo, afetando o desempenho escolar.

Um segundo ponto relacionado à estratégia está ligado à expectativa de benefícios ligados ao prolongamento dos estudos. Para famílias residentes nos bairros afastados e com baixa realização escolar, o prosseguimento dos estudos parece uma ideia distante, bem diferente de grupos das famílias favorecidas para as quais um curso universitário é uma sequência natural e, portanto, o investimento escolar no ensino médio é visto como indispensável. O gráfico abaixo, que relaciona a porcentagem de concluintes do ensino médio, que realizaram o Exame Nacional para o Ensino Médio (ENEM) no ano de 2017, à distância escola-centro corrobora essa percepção:

Fonte: http://www.qedu.org.br acesso em 23 de abril de 2019.

Gráfico 3 Porcentagem de alunos concluintes do 3º ano médio que fizeram o ENEM 2017 e distância escola-centro no município de Suzano. 

Percebe-se novamente uma tendência de queda à medida que auementa a distância em relação às escolas centrais, ainda que não haja uma correspondência exata. Ressalte-se que, para alunos da rede pública, a inscrição no ENEM é gratuita e pode ser feita pela internet. Dois fatores parecem influenciar isso. O primeiro está ligado à ausência de informação sobre o exame e o que ele pode propiciar. Destarte, muitos jovens podem nem sequer conhecer detalhes sobre a prova, nem em casa, onde a família também não possui informações, e nem na escola, que pode não realizar sua divulgação ampla. Vale notar que o ENEM é o caminho mais acessível para jovens de baixa renda para cursar o ensino superior, pois dá acesso a vagas em universidades públicas e bolsas de estudo para universidades privadas, além de ser importante para a obtenção de empréstimo estudantil.

Um fator explicativo para os baixos índices de participação no exame também pode estar relacionado às próprias expectativas dos alunos para os quais “[…] as esperanças subjetivas não são senão as oportunidades objetivas intuitivamente aprendidas e progressivamente interiorizadas” (Bourdieu, 2007, p. 49). Desse modo, como aponta Guimarães (2005), ainda que o trabalho seja uma questão central, tanto nos programas de estudos da educação básica como na percepção dos jovens brasileiros, os estudantes residentes de bairros periféricos percebem suas possibilidades sob a lente do contexto local, onde a maioria não prossegue os estudos e se ocupa em trabalho informal. Isso acaba sendo visto como o percurso normal.

Outro aspecto importante referente à esfera econômica é a falta de recursos para que os estudos sejam realizados a contento. Como mencionado anteriormente, a pressão para que jovens em idade escolar ingressem no mercado de trabalho é muito maior em face das necessidades de subsistência da família. Além disso, para muitos dos jovens em idade escolar que trabalham, essa atividade é garantia de inserção no mundo do consumo, elemento profundamente arraigado em sociedades contemporâneas (Bauman, 2001). O surgimento de subculturas como o “rolezinho” e o funk ostentação, a partir das regiões periféricas urbanas, atesta o importante significado que a posse de certos bens materiais (como celular, tênis, etc.) tem para jovens e adolescentes.

Finalmente, há a questão dos recursos materiais propriamente ditos. Ainda que as escolas da rede estadual paulista possuam infraestrutura semelhante, nos bairros em si a situação é bem diferente. Como mencionado anteriormente, muitas casas em regiões periféricas foram construídas paulatinamente e sem planejamento. Desse modo, a falta de um lugar adequado para estudar afeta o desempenho dos estudantes. Outro aspecto é a dificuldade em obter materiais, como livros e internet, além de realizar passeios a lugares culturais, cursos livres, entre outros, por parte de famílias que estão em situação de pobreza. Além disso, como apontado anteriormente, os bairros periféricos urbanos, em geral, carecem de equipamentos de lazer e cultura, como parques e bibliotecas, que, como no caso de Suzano, se concentram nas regiões centrais. Desse modo, a própria distância e o custo de deslocamento para quem mora em locais afastados é um importante empecilho ao acesso a esses bens. Muitos jovens residentes dos bairros afastados, inclusive, sequer têm ciência da existência desses equipamentos (Araujo, 2015).

Finalmente, a ausência de alguém que tenha feito o percurso escolar completo e obtido conhecimentos acadêmicos na família elimina uma importante fonte de ajuda aos alunos, quando confrontados com dificuldades nas diferentes disciplinas. Tudo isso contribui para que os jovens não desenvolvam hábitos que os ajudarão a avançar nos conhecimentos escolares. A terceira dimensão que compõe a ação social do indivíduo para François Dubet (1994) é a subjetivação, que se caracteriza pelo distanciamento dos âmbitos de integração e estratégia com uma visão crítica das mesmas. A parte subjetiva da identidade percebe-se tanto no desprendimento quanto no empenhamento, na crítica e na distância porque “a identificação com a definição cultural de um sujeito impede a adesão total ao Ego, ao Nós e ao interesse” (Dubet, 1994, p. 131).

Nesse aspecto, “o estado de tédio manifestado pelos jovens denota sua percepção na incapacidade da escola de gerar alguma transformação, de deixar alguma marca na construção desses sujeitos” (Saraví, 2008, p. 208). Ou seja, o fato de não verem nos estudos e atividades escolares algo que trará benefícios materiais ou realizações pessoais faz com que o desinteresse apareça e aumente à medida que se sobe nos níveis escolares. Os estudantes das classes populares, sem a boa vontade cultural das classes médias nem o capital cultural das classes superiores, acabam desenvolvendo uma atitude negativa, “que desconcerta os educadores e se exprime em formas de desordem até então desconhecidas” (Bourdieu, 2007, p. 58). Tais jovens, mesmo que frequentem a escola, não aderem ao processo escolar pela falta de sentido que ele apresenta para eles, e acabam se ocupando em atos de indisciplina, o que é agravado pelo fato de não haver outros locais na região onde possam se socializar. Esse aspecto é corroborado por Tavares e Pietrobom (2016), que demonstram como há uma significante correlação entre o nível socioeconômico do entorno e a probabilidade de atos de vandalismo no espaço escolar.

Tudo isso contribui para o desenvolvimento de uma atmosfera pessimista, na qual os próprios professores não enxergam nos alunos potencial para serem bem sucedidos, oferecendo apenas conteúdos básicos (como, por exemplo, copiar um texto da lousa no caderno) para mantê-los ocupados (Araujo, 2015; Cornbleth, 2010). Além disso, mesmo entre os professores que tentam contribuir para o avanço escolar dos alunos, há a desesperança causada pela sensação de impotência e falta de assistência e recursos para lidar com todas as limitações sociais, econômicas e culturais impostas a estudantes de bairros periféricos (Torres et al., 2008). Afinal, o que pode um professor oferecer a um aluno que não se alimenta direito, que não tem acesso a nenhum apoio especializado ou a bens culturais e nem condições de estudar fora do período de aulas?

Considerações finais

O significativo aumento no número de alunos matriculados nas últimas décadas indica que houve a entrada de pessoas de grupos sociais que antes estavam excluídos do processo escolar. Análises mais recentes sobre o sistema educacional, todavia, apontam que a exclusão, que antes barrava a entrada e permanência de diversos grupos, passou a ser intra-escolar, posto que, além de um nível elevado de reprovações e evasão (sobretudo no ensino médio), há um considerável número de alunos que não aprendem o adequado para sua série (Freitas, 2007). Essa exclusão, no entanto, é seletiva e, no contexto urbano, assume contornos claramente espaciais.

A acentuada hierarquia socioeconômica brasileira se reflete no espaço urbano e diferentes bairros adquirem diferentes valores econômicos e simbólicos, conforme a presença de bens e serviços, da arquitetura e etc. Essas estruturas sociais “se convertem progressivamente em estruturas mentais e sistemas de preferência” (Bourdieu, 1997, p. 163). As escolas públicas, que tem como princípio oferecer educação a todos, têm significativa influência dos lugares sobre seus processos escolares.

Tal correlação está intimamente ligada aos efeitos da segregação urbana, que influencia fortemente os tipos de moradia, os tipos de sociabilidade e o acesso a recursos que os indivíduos têm disponíveis para si. Todos esses elementos acabam se acumulando e criando importantes dificuldades para o desenvolvimento de atividades escolares, o que gera desigualdade no desempenho dos estudantes em provas, influenciando aspirações para o futuro.

Enquanto que, para as camadas com capital cultural e econômico mais elevado das regiões centrais, os estudos são um caminho seguro e conhecido para a ascensão ou manutenção da posição social, para as classes populares, que ocupam os bairros afastados do centro, a escola, sobretudo o ensino médio, representa um investimento de retorno incerto e pouca utilidade para a constituição subjetiva. Os jovens das regiões periféricas que circulam pelas regiões centrais, seja por opção da família por considerar que as escolas são melhores ou por motivo de emprego, acabam, por contato com pessoas com um grau mais elevado de capital cultural e econômico, desenvolvendo maiores expectativas em relação ao valor e ao retorno que os estudos podem conferir (Cesar & Soares, 2001).

Para o sistema educacional gerar oportunidades iguais, ele tem de se desenvolver de maneira diferenciada, dando ênfase às escolas mais afastadas. Young (2007, p. 1297, grifo nosso) afirma que “para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa nas escolas pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares”.

Mudanças profundas na maneira como o espaço urbano está disposto nas metrópoles brasileiras é uma tarefa complexa e de longo prazo. Destarte, uma das prioridades das escolas das regiões periféricas deveria ser quebrar a segregação de seu alunado e, de diferentes formas, promover a sua circulação pela região central e do público da região central pelos seus domínios. Isso poderia ser feito através de passeios ao teatro, cinema, estabelecimento de parcerias com as escolas da região central para atividades conjuntas. Além disso, a escola de bairro deveria promover o esclarecimento de seu público quanto às potencialidades que ele tem e as possibilidades que o estudo pode propiciar. Isso poderia ser feito promovendo eventos nesses locais, para toda a comunidade, com a presença de especialistas em diversos campos como educação, saúde, trabalho e etc. Finalmente, a escola deveria ter estrutura adequada para dar condições de que os alunos possam se concentrar em aprender, como, por exemplo, alimentação, apoio de profissionais, como psicólogos e fonoaudiólogos, professores auxiliares para alunos com dificuldades, entre outros.

A simples presença de escolas iguais em termos de pessoal e infraestrutura acaba gerando processos educacionais desiguais, pois elas não são ilhas, isoladas de seu entorno. Em uma sociedade marcada pela desigualdade, expressa na maneira como o espaço social é demarcado, as escolas têm de ser diferentes para poderem ser unitárias em seus resultados.

Referências

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Recebido: 26 de Abril de 2019; Aceito: 23 de Junho de 2020

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