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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 05-Ago-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.28150 

Artigos

Estudos de plataforma: dimensões e problemas do fenômeno no campo da educação

Estudios de plataforma: dimensiones y problemas del fenómeno en educación

Platform studies: dimensions and problems of the phenomenon in education

Eduardo Santos Junqueira Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0001-7961-5574

1Professor do Instituto UFC Virtual e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará. Coordenador do Grupo de Pequisas LER/CNPq.


Resumo

O estudo exploratório teve o objetivo de analisar quatro plataformas dotadas de mecanismos automatizados de coleta de dados sobre o comportamento dos usuários e utilizadas crescentemente nas atividades didático-pedagógicas de escolas e universidades. Os dados coletados por essas plataformas abrangem o desempenho dos estudantes em atividades de estudos e a performance em testes. Para alegados fins de aprimoramento do ensino, a atuação docente e a gestão escolar são referenciadas por padrões de eficiência e qualidade pré-estabelecidos. A análise demonstrou que essas plataformas operam inseridas nos fenômenos da dataficação, comodificação e do capitalismo de vigilância. Seu uso se amplia em detrimento de uma melhor compreensão dos seus impactos nas práticas educacionais, em particular a aprendizagem e a natureza da educação pública.

Palavras-chave s: Plataformas; Mídias sociais; Privacidade; Dataficação; Educação

Resumen

El estudio exploratorio tuvo como objetivo analizar cuatro plataformas equipadas con mecanismos automatizados para recopilar datos sobre el comportamiento del usuario y que se utilizan cada vez más en las actividades didácticas-pedagógicas de las escuelas y universidades. Los datos recopilados por estas plataformas cubren el rendimiento de los estudiantes en las actividades de estudio y el rendimiento en las pruebas, con el supuesto propósito de mejorar la enseñanza, el rendimiento de la enseñanza y la gestión escolar están referenciados por estándares preestablecidos de eficiencia y calidad. El análisis demostró que estas plataformas operan insertadas en los fenómenos de capitalización de datos, mercantilización y vigilancia. Su uso se expande en detrimento de una mejor comprensión de sus impactos en las prácticas educativas, en particular el aprendizaje y la naturaleza de la educación pública.

Palabras clave Plataformas; Redes sociales; Intimidad; Datificación; Educación

Abstract

The exploratory study aimed to analyze four platforms equipped with automated mechanisms for collecting data on user behavior and that are used increasingly in the didactic-pedagogical activities of schools and universities. The data collected by these platforms cover student performance in study activities and performance in tests, for alleged purposes of improving teaching, teaching performance and school management and are referenced by pre-established standards of efficiency and quality. The analysis demonstrated that these platforms operate inserted in the phenomena of datafication, commodification and surveillance capitalism. Its use expands to the detriment of a better understanding of its impacts on educational practices, in particular learning and the nature of public education.

Keywords Platforms; Social media; Privacy; Datification; Education

A área de estudos de plataformas e sua aplicação no campo da educação

O artigo apresenta e analisa o campo emergente de estudos das plataformas e suas características, especificando como o fenômeno tem se manifestado na área da educação. Trata-se de um estudo exploratório com levantamento bibliográfico (Gil, 2008) utilizando-se a documentação indireta (Marconi & Lakatos, 2003) através da qual se identificaram e caracterizaram as plataformas AltSchool e Coursera (Van Dijck & Poell, 2018), ClassDojo (Williamson, 2017) e Class Care System (Yujie, 2019) voltadas às modalidades da educação básica e superior. O objetivo é oferecer uma visão geral, de tipo aproximativo, acerca das referidas plataformas educacionais, tendo-se em vista que o tema é recente e pouco explorado, inexistindo sobre ele uma ampla base de conhecimento científico neste momento. A escolha das quatro plataformas foi realizada a partir de critérios múltiplos: a disponibilidade de informações e estudos publicados sobre as mesmas – haja vista que seus mecanismos de operação são pouco transparentes e o acesso a informações sobre elas para fins de pesquisa e análise tem sido limitado – sua abrangência global (apenas a Class Care System é limitada a um país somente, a China) e a diversidade de recursos educacionais disponibilizados e de segmentos educacionais atendidos. ClassDojo e Coursera operam no Brasil.

A presença e uso das mídias sociais na educação formal é constante fonte de polêmicas. Enquanto educadores reconhecem o potencial conectivo, social e informacional dessas redes e buscam compreender, articular e praticar aspectos positivos das redes sociais em atividades mais específicas de ensino e de aprendizagem (Gikas & Grant, 2013; Mao, 2014), muitos argumentam que elas produzem efeitos disruptivos indesejados, provocando perda de foco, indisciplina e até problemas emocionais para professores e estudantes (Davis et al, 2012; Junco, 2012).

O conceito e a área de estudos das plataformas são originários das discussões entre hardware e software dos games e agrega as áreas da estrutura computacional e dos estudos culturais sobre as novas mídias há cerca de 10 anos. Desde o artigo pioneiro da área (Gillespie, 2010), políticas das plataformas têm sido fruto de análises que inicialmente se debruçaram sobre ações de broadcasting do YouTube, no contexto das ações da corporação Alphabet Inc. (proprietária também da Google), a partir de uma perspectiva de estudos críticos da internet e, desde então, se encontra em construção como campo emergente de estudos (D'Andrea, 2019). Orienta-se, dentre outros, pela problemática da cultura da conectividade articulada por Van Dijck (2013) e grupos de pesquisadores holandeses, dentre outros, e abrange modelos de negócios empresariais, infraestruturas tecnológicas e práticas sociais de usuários das redes digitais.

O campo de estudos situa-se, por sua vez, no fenômeno mais amplo da “era do capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2019) sustentado pelo fato de que mais de 3 bilhões de pessoas geram dados incessantemente através de dispositivos diversos da computação ubíqua, bem como através de câmeras de vigilância e de sensores automatizados. Segundo a autora, trata-se de um novo estágio do capitalismo em que empresas da área digital, como o Google, exercem vigilância ininterrupta e coletam, processam e analisam quantidades massivas de dados, produzidos pelos internautas ao utilizarem as tecnologias digitais em rede. Dessa forma, produzem informações valiosas sobre tendências comportamentais e perfis psicológicos dos usuários para a predição e indução de atos comportamentais com fins de controle e aumento da lucratividade das empresas.

Uma plataforma é “uma infraestrutura que suporta o design e o uso de aplicativos específicos, seja hardware de computador, sistemas operacionais, dispositivos de jogos, dispositivos móveis e formatos de disco digital” (Gillespie, 2010, p. 4, tradução nossa). Essas novas ambiências ensejam uma leitura multidimensional que abrange sua mecânica de ser “alimentada com dados, automatizada e organizada por meio de algoritmos e interfaces, formalizada por meio de relações de propriedade orientadas por modelos de negócios e regidas por acordos de usuários” (Van Dijck et al, 2018, tradução nossa) e acessada através de interfaces digitais. Destacam-se, particularmente, por viabilizar tecnicamente compatibilidades entre diversos provedores, serviços e interfaces web a fim de permitir a formatação dos dados que os usuários produzem ao navegar e interagir nas redes. Essas compatibilidades entre diversos sites, plataformas e aplicativos foram desenvolvidas por interesses mercadológicos, visando a maximização e maior fluidez na coleta dos dados dos usuários pelas empresas e a comodidade dos usuários, que podem acessar diversas interfaces sem necessidade de realizar login separado, por exemplo, dentre outras facilidades.

Um dos marcos tecnológicos dessa nova estrutura de plataforma e modelo de negócios se deu com a criação das APIs (Application Programming Interface), que são uma interface de programação de aplicativos. Trata-se de um conjunto de rotinas e padrões de programação para acesso a um aplicativo de software ou plataforma baseada na Web, uma ponte entre sistemas. Uma API facilita o fluxo de dados nas redes, pois permite aos usuários interagir ou responder a solicitações de dados ou serviços de outro programa, aplicativo ou website sem precisar realizar as ações de logar e deslogar entre aplicativos. Ou seja, facilitam a troca de dados entre aplicativos, permitem a criação de novos aplicativos e formam a base para o conceito "Web como plataforma" (Murugesan, 2007). Em suma, tornam um website programável, oferecendo acesso estruturado a seus dados e funcionalidades, transformando-o em uma plataforma na qual outros podem construir a fim de gerar fluxos de dados para seu negócio.

Em 2003, o website de bookmarking social del.icio.us começou a oferecer acesso programático ao seu website, seguido pelo Flickr em 2004, YouTube em 2005, Last.fm, Facebook e Twitter em 2006. No Facebook essa iniciativa deu-se através da criação da chamada Plataforma de Desenvolvimento do Facebook, o que permitiu acesso a desenvolvedores de aplicativos para acessarem dados dos usuários da rede social (perfis, amizades, fotos e eventos). Assim, o clássico botão “Curtir” passou a ser utilizado também para a coleta de dados gerados por conexões fora do Facebook para alimentar a base de dados dessa rede social, permitindo, por exemplo, capturar o número total de pessoas que curtiram um post localizado no Facebook mesmo sem estarem navegando dentro do site do Facebook (Helmond, 2015).

Dessa maneira, as plataformas promoveram sua capacidade de programação para descentralizar a produção de dados e recentralizar a coleta de dados (Gerlits & Helmond, 2013, como citado em Helmond, 2015). As APIs marcaram a transformação da antiga interface para publicação de conteúdos para uma plataforma para desenvolvimento de softwares em rede, visando também formatar os dados que produzimos ao navegar de modo a serem úteis aos modelos de negócio das plataformas/empresas. Cria-se um modelo de negócios chamado de “multi-sided market” em que uma plataforma permite a interação entre duas ou mais partes distintas. Originam-se nesse contexto dois novos conceitos.

A dataficação opera no novo contexto de codificação das relações humanas nas redes e refere-se ao processo de quantificar todos os aspectos das interações socais nas redes e transformá-los em código através de processo automatizados e nem sempre transparentes para os usuários (Van Dijck & Poell, 2018). A comodificação ou mercantilização diz respeito à monetização do tráfego social on-line por meio de modelos de negócios e estruturas de governança das plataformas como Facebook, Twitter e outras (Helmond, 2015). No caso particular da educação, geralmente envolve o processamento de dados sobre a aprendizagem por grandes hubs de dados que tornam os fluxos de big data monetizáveis e potencialmente lucrativos. Segundo os autores, “a comodificação está surgindo como um princípio estruturante em plataformas online voltadas para o ensino superior em todo o mundo, um desenvolvimento ilustrado pelo Coursera” (Van Dijck & Poell, 2018, p. 3). Esses dois princípios realizam as novas possibilidades para comunicação, interação e vendas-novos lucros (Gillespie, 2010), haja visto que “a acumulação, ordenação e organização de dados sobre os usuários está sendo utilizada pelos operadores de plataforma como forma de extrair valor deles" (Williamson, 2017, p. 5).

Diante disso, estudos na área deslocam o foco da análise. Ao invés de se limitarem à tradição de busca de compreensão apenas das ações relacionais que se processam nas redes sociais, expandem a busca por compreensão de outras cinco dimensões das redes sociais enquanto plataformas de grandes conglomerados econômicos globalizados:

· a infraestrutura das plataformas (que inclui servidores e se situa em um campo de estudos denominado “plataformização da infra”);

· a dataficação e os algoritmos (essas áreas abrangem o processo conhecido como “plataformização da web”);

· as políticas de governança da plataforma (esses estudos abrangem elementos tais como os termos de serviço disponibilizados pela empresa aos usuários e as ações de moderação dos usuários e dos conteúdos publicados exercidas pelas plataformas);

· os modelos de negócio adotados por tais empresas (incluindo Initial Public Offerings, os IPOs, e os mercados multilaterais);

· as interfaces e affordances criadas e disponibilizadas (abrangendo as tecnogramáticas no que se refere às funcionalidades e às práticas cotidianas de milhões de usuários a partir de formas de uso específicas inseridas nas plataformas) (D'Andrea, 2019).

Vale destacar o aspecto da plataformização do social, referindo-se à especificidade desse projeto de dataficação da sociedade atual, que se (re)forma constantemente e abrange áreas como a mobilidade urbana, os relacionamentos sociais em rede, as mídias digitais e o streaming, e também a educação. Assim como nas demais áreas, as plataformas estruturam sua atuação na educação valendo-se da lógica que lhes caracteriza: um modelo único de negócios customizado para era digital em que a matéria prima principal são os dados capturados e extraídos pelas empresas detentoras e que, assim, se estabelecem como intermediários entre usuários, anunciantes, instituições de ensino e governos. A intensa e massiva coleta de dados aponta para a complexa discussão sobre os limites da privacidade dos usuários e o uso dos resultados das análises dos dados sugere a possibilidade de ações a fim de influenciar ou direcionar comportamentos de forma sub-reptícia, indicando profundas mudanças nas instituições e práticas educacionais.

Perspectivas críticas sobre as plataformas educacionais e problemas detectados

À exceção da Class Care System, desenvolvida e utilizada na China, as três outras plataformas aqui analisadas foram desenvolvidas e são mantidas por empresas sediadas no chamado Vale do Silício norte-americano, ainda que alguns dos seus fundadores sejam de outras nacionalidades. Alinham-se, dessa forma, a uma nova estratégia de negócios computacionais centrados nos lucros advindos da analítica de dados e que tem sido denominada de “uberização da educação”, uma referência ao mundialmente famoso serviço de transporte organizado por aplicativo digital. Assim com as empresas Uber e AirB&B, ganham a alcunha de “lean companies”, “empresas enxutas”, pois seus negócios e lucratividade não se baseiam na propriedade de bens físicos, mas na geração e análise massiva de dados coletados de usuários na internet para fins comerciais.

Plataforma AltSchool

A AltSchool, fundada na Califórnia em 2013, se define como uma “plataforma para personalizar a aprendizagem e simplificar as operações escolares […] uma rede habilitada por tecnologias para capacitar e conectar famílias, alunos e professores” (Altschool, s.d.). Assim como redes sociais comerciais e empresas de entretenimento “que oferecem o serviço de streaming, a AltSchool não oferece instalações físicas ou outros objetos materiais, exceto um tablet ou computador para cada aluno afiliado, e utiliza algoritmos de recomendação, a análise massiva de dados das ações dos usuários para aprimorar e personalizar sua experiência de aprendizagem e mecanismos de reputação dos estudantes com base no monitoramento de suas ações na plataforma e nos resultados de testes padronizados. Sua rotina de funcionamento se desenvolve da seguinte maneira:

Instruídos por meio de uma "lista de atividades" semanal, cada aluno se envolve em atividades individuais ou em grupo, adaptadas às suas capacidades únicas. Aprendizagem baseada em projetos foi substituída pela instrução direta do grupo. Professores supervisionam o processo de aprendizagem; o desempenho do aluno é monitorado por meio de sistemas de rastreamento que analisam minuciosamente as tarefas e os resultados de cada criança. Informados por esses dados, os professores mantêm cartões de progresso e dificuldades de cada criança e os usam para fazer planos semanais de aprendizado personalizados para cada criança. (Van Dijck & Poell, 2018, p. 4)

No que se refere à sua filosofia educacional, o AltSchool favorece a tecnologia em detrimento dos professores; o aprendizado personalizado on-line assume o controle em detrimento da sala de aula; e a primazia da análise preditiva rebaixa o julgamento profissional dos professores. Além disso, esquemas de aprendizagem individualizados têm primazia sobre a noção de currículo como a pedra angular da educação. Todas as atividades são gravadas e analisadas, dados são extraídos e sistemas de recomendação, similares ao site de streaming Netflix e da Amazon, são utilizados em tempo real, a exemplo de mecanismos similares de redes sociais e websites comerciais, bem como sistemas de reputação dos alunos com base em suas contribuições no desenvolvimento das atividades e medidas relativas de suas pontuações e supressão de atividades consideradas desnecessárias ao processo de aprendizagem segundo as performances mensuradas a fim de se produzir eficiência.

Isso reduz o processo educacional à aprendizagem de conteúdos em processos imediatistas e de curta duração que excluem a proatividade de professores e alunos participantes, fruto de uma concepção segundo a qual a aprendizagem pode ser monitorada, gerenciada e controlada com base em inferências e predições realizadas sobre complexa análise de dados massivos buscando oferecer soluções customizadas aos estudantes ao invés de abrir espaços para a intervenção do professor, esvaziando a prática docente.

Segundo os autores, a AltSchool

prospera na dataficação: os processos de aprendizagem [dos estudantes participantes] são traduzidos em processos de dados e transformados em sistemas de rastreamento que relacionam continuamente o progresso individual ao desempenho padronizado. A arquitetura tecnológica da plataforma informa diretamente sua filosofia pedagógica de rastreamento personalizado de dados - um mecanismo que domina todo o ecossistema da mídia conectiva. (Van Dijck & Poell, 2018, p.1, tradução nossa)

Adicionalmente, as práticas da AltSchool têm suscitado outros questionamentos, particularmente aqueles relativos à privacidade dos estudantes que possuem todas as suas ações monitoradas, e ranking seletivos que podem priorizar alguns estudantes em detrimento de outros com fins de aprimoramento de performance, etc.

Plataforma Coursera

Processos semelhantes e que incluem modelos desenvolvidos com base nos princípios da dataficação e comodificação têm se propagado também no campo da educação superior. A Coursera foi fundada em 2012 e possui renomadas universidades parceiras nos vários continentes, incluindo a Universidade de São Paulo (USP). É uma plataforma de cursos massivos de nível universitário do tipo Massive Open Online Courses (MOOCs) e oferece cursos gratuitos – a fim de atrair um massivo número de usuários – baseados em conteúdos no formato de vídeos, exercícios estruturados e testes. Opera segundo modelos econômicos similares aos das redes sociais como Facebook: coleta e vende dados gerados pelas ações de milhares de estudantes espalhados pelo mundo ao realizarem testes, publicações em fóruns, etc., o que “pode afetar o valor pedagógico e econômico da educação universitária (institucional)” (Van Dijck & Poell, 2018, p.1).

Ao discorrer sobre sua política de privacidade, a Coursera informa que a empresa coleta “detalhes de registro de conta, detalhes de cursos on-line que você realiza, informações de pesquisas (onde você as fornece), dados de verificação de identidade e informações sobre o uso de nosso site e serviços” (Coursera, s.d.). Informa também que os dados dos estudantes podem ser usados para diversos fins,

incluindo o fornecimento de nosso site e serviços, garantindo a segurança e o desempenho de nosso site, pesquisas relacionadas a cursos acadêmicos, compartilhando informações com nossos parceiros (como instituições acadêmicas) e nossos fornecedores, marketing direto e para realizar análises estatísticas do uso de nosso site e serviços. (Cousera, s.d.)

Caracteriza-se, dessa forma, uma prática rotineira e automatizada, mas também um modelo comercial, fortemente baseado na coleta e no uso dos dados dos usuários cativos que utilizam a plataforma em busca de cursos massivos abertos e sem custos financeiros, alguns ministrados por especialistas de renome em suas áreas de conhecimento. As ações de coleta e dos usos comerciais dos dados sobre o comportamento dos estudantes não são de amplo conhecimento público.

Plataforma ClassDojo

A ClassDojo está presente em mais de 180 países e opera por princípios similares aos das plataformas referidas anteriormente, no segmento da educação básica. O aplicativo é de propriedade da startup Class Twist Inc., considerada a mais bem sucedida no mundo neste segmento e que define o ClassDojo como “uma plataforma de comunicação escolar que os professores, alunos e famílias usam diariamente para construir comunidades unidas através do compartilhamento do que foi aprendido na sala de aula e em casa via fotos, vídeos e mensagens” (Classdojo, s.d.). Segundo Williamson (2017), trata-se de uma plataforma comercial que oferece funcionalidades típicas das redes sociais associadas a princípios behavioristas da gamificação e que opera para registrar dados sobre o comportamento dos alunos em sala de aula e fora dela, além de conectar alunos, pais e professores, caracterizando-a também como uma interface de gestão escolar.

Na prática, o aplicativo permite que cada professor crie uma sala de aula virtual privada para as atividades da turma, onde também compartilhe dados sobre os alunos (inclusive testes e provas) e se comunique com os pais (por texto e vídeo). Os pais podem acompanhar o comportamento dos filhos através de funcionalidade de monitoramento e avaliação do aplicativo, que também oferece sistemas automatizados de gestão da turma associados a programas gerenciais da escola e do distrito escolar. Funcionalidades como o TrendSpotter pode ser usada para gerar representações gráficas sobre padrões comportamentais de indivíduos e classes inteiras ao longo do tempo. A interface é dinâmica e colorida, com telas e botões que lembram redes sociais populares e que permitem, por exemplo, que pais usem um botão do tipo “curtir” ao visualizarem as atividades dos filhos na escola. Os alunos, de acordo com suas performances na escola e na rede social do aplicativo, são representados por diversos avatares customizáveis de seres carismáticos e coloridos que funcionam segundo metas de natureza behaviorista (ícones de biscoitos verdes são distribuídos como recompensas por tarefas bem-sucedidas) controladas pelos professores. Todos os dados dos usuários são coletados e circulam pelos computadores da empresa e de outros 20 fornecedores de tecnologias associadas ao produto. A empresa afirma atuar segundo princípios éticos que protegem a privacidade e a segurança dos usuários, em particular das crianças.

Segundo o autor,

à medida em que o ClassDojo foi se ampliando de um aplicativo de controle de comportamento para uma plataforma de mídia social, ele está se tornando um substrato infraestrutural das escolas e que orquestra o rastreamento de alunos, a comunicação dos pais e a difusão de discursos e modelos de melhores práticas de ensino e aprendizagem. No processo, ele está reposicionando os professores como trabalhadores voluntários de dados que coletam informações calculáveis, e os alunos como os sujeitos que geram dados também de forma voluntária para os cálculos executados através da plataforma. (Williamson, 2017, p.3)

Dessa forma, fica configurado o fato de que o modelo computacional e comercial propagado pela ClassDojo está remodelando discursos, práticas e subjetividades nas escolas, o que provoca um forte impacto no campo da educação pública.

Plataforma CCS - Class Care System

Informações sobre plataformas similares utilizadas na China são mais restritas, mas a prática avança pautada por interesses comerciais de empresas daquele país e de controle e vigilância estatal. O CCS Class Care System foi desenvolvido pela empresa de tecnologia chinesa Hanwang (Yujie, 2019). Utiliza variadas tecnologias de monitoramento por imagens e de reconhecimento facial e biométrico dos estudantes em sala de aula através de projetos piloto de Inteligência Artificial que estabelecem padrões e atribuem notas de desempenho aos estudantes a fim de aprimorar a educação no país. Um dos programas utilizados em uma escola de Beijing fotografa a sala de aula a cada segundo e as imagens do rosto de cada aluno são analisadas por algoritmos a partir de categorias tais como “ouvindo”, “respondendo perguntas”, “escrevendo”, “interagindo com outros alunos” e “dormindo”. Alunos recebem notas semanais em uma escala de zero a 100 pontos enviados a professores, pais e administradores escolares através de um aplicativo. Em algumas escolas, estudantes desconectaram as câmeras do sistema em sinal de protesto.

Considerações finais

As plataformas têm se tornado intermediários ou mediadores de práticas socioculturais da vida contemporânea para milhões de pessoas conectadas às redes digitais. Além disso, as plataformas se posicionam como empresas que lucram ao conectar e monitorar indivíduos – inclusive crianças – em todo o mundo para obter e comercializar dados. No contexto educacional, as ações das plataformas voltadas a esse setor provocam forte adesão e permanência dos usuários cativos através da adesão de professores e de instituições educacionais. Suas funcionalidades abrangem atividades pedagógicas e sociais, atores, conteúdos e tecnologias e cuja utilização pelos usuários produz valiosos dados, sendo alvo de coleta, processamento e disseminação de informações pelas empresas proprietárias.

Como destacado por vários autores citados nesse artigo, o modus operandi dessas plataformas indica profundas mudanças nas noções do público e do privado, no sistema de educação pública e em seu caráter aberto e democrático, e na prática docente autônoma nos seus aspectos pedagógicos e profissionais. O autor alerta para o fato de que “o ClassDojo é distintamente prototípico de como a educação está sendo remodelada em um contexto em que plataformas de mídia social - em vez de infraestruturas de estado - estão se tornando modelos de como a vida social e pública é organizada” (Williamson, 2017, p.3).

Abre-se um mercado novo e que projeta lucros milionários na área tecnológica. Segundo os autores,

o intrincado entrelaçamento entre dados e mercantilização como mecanismos subjacentes ilustra como o ecossistema de plataformas conectivas é alimentado por forças tecno econômicas. Como vimos no exemplo do AltSchool, o acúmulo de dados de aprendizado comportamental coletados de participantes de todo o mundo pode ser vendido para empresas que competem por talentos globais. O apetite por dados educacionais como recursos valiosos no mercado de dados é enorme. (Van Dijck & Poell, 2018, p. 7)

O fenômeno, porém, não se resume a plataformas e aplicativos genuinamente educacionais. Grandes corporações, como Google e Facebook, têm apoiado e desenvolvido iniciativas similares, se integrando e buscando avançar suas ações no campo da educação, seja desenvolvendo produtos customizados para a área, seja oferecendo extensões e conexões entre as plataformas de tais empresas e suas estruturas digitais e seus serviços genéricos, como armazenamento em nuvem, bibliotecas, sistemas comunicacionais, etc. – por onde todos os dados dos estudantes e das escolas passam a circular. Isso pode gerar tamanha ubiquidade de soluções e serviços inseridos no campo da educação - sem a devida e rigorosa testagem e avaliação - tornando-se virtualmente impossível exercer a opção de não os utilizar. Configuram mecanismos e práticas tecnológicas em rede que possuem o potencial de afetar profundamente a pedagogia, as práticas de aprendizagem e de docência de maneiras nunca antes vividas pela população em decorrência dos interesses econômicos das empresas detentoras das plataformas.

Referências

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Recebido: 08 de Novembro de 2019; Aceito: 27 de Julho de 2020

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