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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília ene./dic 2020  Epub 06-Ago-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.31790 

Artigos

Estudantes de Licenciatura: trajetórias escolares e escolha da profissão

Estudiantes de pregrado: trayectorias escolares y elección de profesión

Undergraduate students: school trajectories and choice of profession

Étudiants de premier cycle: trajectoires scolaires et choix de profession

Tatiane Kelly Pinto de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0003-0933-6734

Elaine Gonçalo Bento2 
http://orcid.org/0000-0003-3272-7610

Paulo Roberto de Souza Anastácio3 
http://orcid.org/0000-0002-0686-2109

Maraísa Inês de Assis Martins4 
http://orcid.org/0000-0002-2025-1902

1Doutoranda em Educação no Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mestre em Educação (UEMG). Licenciada em História (UFMG). Professora da UEMG–Unidade Divinópolis. Atualmente é integrante do Grupo de Pesquisa NESFE/UFOP - Núcleo de Estudos Sociedade, Família e Escola.

2Mestranda em Educação no Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP.) Bolsista CAPES. Licenciada em Pedagogia pela mesma Universidade. Pós-graduanda em Ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica no Instituto Federal Minas Gerais - Campus Ouro Preto (IFMG-OP). Atualmente é integrante do Grupo de Pesquisa NESFE/UFOP - Núcleo de Estudos Sociedade, Família e Escola.

3Licenciado em Pedagogia pela Fundação Educacional de Divinópolis (FUNEDI). Licenciado em História pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Participou de pesquisas na área da sociologia da educação sobre trajetórias e percursos escolares de alunos da UEMG, e perspectivas de ingresso no ensino superior de alunos concluintes da EJA em Divinópolis.

4Graduanda em História (Licenciatura) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao longo da formação, tem realizado projetos de pesquisa e extensão na área de Educação.


Resumo

O acesso de sujeitos de camadas populares ao ensino superior brasileiro, sobretudo em Universidades Públicas, ainda se constitui como algo “estatisticamente improvável”. Objetivou-se, neste estudo, investigar quais as estratégias e mobilizações de escolarização construídas por sujeitos oriundos dos meios populares para o ingresso no ensino superior nos cursos de Licenciatura da UEMG-Ibirité. A pesquisa é de cunho qualitativo e seguiu três etapas: análise na literatura; aplicação de questionário socioeconômico e entrevista narrativa. Entre os achados, evidenciou-se que o curso escolhido nem sempre teve ligação com o desejo pessoal do graduando, mas sim com a possibilidade de ingresso.

Palavras-chave Camadas populares; Ensino superior; Trajetória escolar; Licenciaturas

Resumen

El acceso de los sujetos de las clases bajas a la educación superior brasileña, especialmente en las universidades públicas, todavía constituye algo "estadísticamente improbable". El objetivo de este estudio fue investigar qué estrategias y movilizaciones de la educación fueron construidas por sujetos de antecedentes populares para ingresar a la educación superior en los cursos de licenciatura UEMG-Ibirité. La investigación es de naturaleza cualitativa y siguió tres etapas: análisis en la literatura; aplicación de cuestionario socioeconómico y entrevista narrativa. Entre los hallazgos, era evidente que el curso elegido no siempre estaba vinculado al deseo personal del alumno, sino con la posibilidad de admisión.

Palabras clave Capas populares; Enseñanza superior; Trayectoria escolar; Licenciatura

Abstract

The access of subjects from lower classes to Brazilian higher education, especially in public universities, still constitutes something “statistically improbable”. The objective of this study was to investigate which strategies and mobilizations of schooling were constructed by subjects from popular backgrounds to enter higher education in UEMG-Ibirité Licentiate courses. The research is of a qualitative nature and followed three stages: analysis in the literature; application of socioeconomic questionnaire and narrative interview. Among the findings, it was evident that the chosen course was not always linked to the personal desire of the student, but with the possibility of admission.

Keywords Popular layers; University education; School trajectory; Degree

Résumé

L'accès des matières des classes inférieures à l'enseignement supérieur brésilien, en particulier dans les universités publiques, constitue encore quelque chose de «statistiquement improbable». L'objectif de cette étude était de rechercher quelles stratégies et mobilisations de scolarisation ont été construites par des sujets issus de milieux populaires pour entrer dans l'enseignement supérieur dans les cours de licence UEMG-Ibirité. La recherche est de nature qualitative et a suivi trois étapes: analyse dans la littérature; application du questionnaire socio-économique et entretien narratif. Parmi les résultats, il était évident que le cours choisi n'était pas toujours lié au désir personnel de l'étudiant, mais à la possibilité d'admission.

Mots clés couches populaires; Enseignement universitaire; Trajectoire scolaire; Les bacheliers

Introdução

A sociologia da educação, desde a segunda metade do século XX, desenvolve estudos para a compreensão das desigualdades sociais e educacionais e da relação entre origem social e destino escolar. Dubet (2001, p.12) alega que “por muito tempo, o paradigma da reprodução dominou a sociologia da educação, atribuindo unicamente às desigualdades sociais a ‘responsabilidade’ pelas desigualdades escolares”. Partindo dessa afirmação, entende-se que a entrada no ensino superior era tida como algo “improvável’’ para aqueles indivíduos oriundos das camadas populares.

Já a partir da década de 1980 ocorreu um processo de reorientação das pesquisas no âmbito da sociologia da educação, ocasionado pela necessidade de novas formas de abordagem no debate das relações entre Família e Escola. Essas discussões se pautaram em “um novo referencial de análise que ambiciona ir além da já clássica sociologia da escolarização – que fizera das desigualdades de oportunidades uma evidência –, tentando construir uma sociologia dos cotidianos e das experiências escolares’’ (Nogueira, 2005, p.564). Dito isso, a constituição desse objeto de pesquisa no Brasil, a saber, trajetórias escolares das camadas populares, tem se inspirado na literatura francesa, com os trabalhos de Bernard Lahire (1997), na obra intitulada Sucesso Escolar nos Meios Populares: as razões do improvável, na qual foi investigado o improvável sucesso escolar de crianças das camadas populares.

Na década seguinte, nota-se que, no campo da sociologia da educação, surgem estudos com foco de investigação nos processos que permitiram a construção de trajetórias escolares “improváveis”. Entre estes trabalhos, destaca-se o estudo pioneiro de Portes (1993), que se propôs investigar as trajetórias e as estratégias escolares de sujeitos provenientes das camadas populares que tiveram acesso a todos os cursos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O que se observa na literatura sobre o tema é que o acesso ao ensino superior tem representado, para muitos sujeitos, a busca por uma (re) colocação profissional, a procura por conhecimento, chance de mobilidade, bem como uma oportunidade de ascensão social. Nessa perspectiva, a escolha de qual profissão seguir leva em consideração inúmeros fatores (intrínsecos e extrínsecos) condicionados às trajetórias escolares e profissionais dos sujeitos, como sinalizaram as investigações de Portes (2001), Viana (1998 e 2014), Piotto e Alves (2008 e 2011) e Souza (2014).

No bojo dos estudos sociológicos contemporâneos, Nogueira (2014, p.7) afirma que “tais investigações demonstram que uma trajetória escolar é fruto de uma combinação complexa de fatores (estruturais, familiares, pessoais) e que ela não se reduz a um único fator explicativo, nem a uma simples adição de fatores”. Desse modo, ao se realizar uma investigação das trajetórias dos estudantes universitários, é imperioso considerar que as escolhas não são meras causalidades: são constituídas em estreita relação com fatores familiares, instituições escolares pregressas, fatores socioeconômicos e culturais, dentre outros.

Mediante estas considerações, foram levantadas as seguintes questões, que nortearam a pesquisa: os estudantes universitários das licenciaturas apresentam gosto pela docência ou pela área de educação? Em qual medida os licenciandos vislumbram a profissão docente, considerando o baixo prestígio e o baixo retorno econômico da profissão? Dentro desta perspectiva, o presente artigo é o recorte de uma pesquisa realizada na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Campus Ibirité, no ano de 2018, que buscou, em consonância ao que foi discutido por Lahire (1997), compreender as estratégias e as mobilizações de escolarização construídas pelos sujeitos provenientes das camadas populares para o ingresso no ensino superior, bem como o interesse pela profissão escolhida. A relevância do estudo se justifica, assim como revela Nogueira (2004), pela necessidade de investigação mais apurada, que não se restrinja somente à origem social do sujeito, sobre as trajetórias sociais dos indivíduos e suas diferentes vivências no ambiente familiar, na escola, no mundo profissional, dentre outros.

Com base nos pressupostos de Minayo (2001), o desenho metodológico da pesquisa é de cunho qualitativo e consistiu, ao lado da pesquisa bibliográfica e documental sobre a temática, na aplicação de um questionário aos estudantes frequentes e matriculados nos cursos de pedagogia, matemática e letras de uma Universidade Pública. A posteriori, houve a realização de entrevistas narrativas com um estudante de cada curso, de modo a conhecer suas trajetórias escolares e interesses pela profissão docente.

Breves Considerações sobre o Ensino Superior no Brasil

Tendo em vista o objeto deste estudo, é relevante contextualizar a trajetória da educação superior no país, com o intuito de observamos as nuances que envolvem a oferta e o acesso a esse nível de ensino, marcadas pelo elitismo e por políticas que balizam entre a iniciativa privada e pública. O processo de criação das faculdades no Brasil aconteceu com a vinda da família real portuguesa, em 1808, mesmo apresentando desafios relacionados à falta de docentes habilitados. Essa situação se arrastou pelo século XIX e, com a Proclamação da República, em 1889, o desenvolvimento do ensino superior aconteceu de forma lenta, garantindo a indivíduos que dispunham de situação econômica favorável postos privilegiados ao mercado de trabalho. Na época, conforme aponta Martins (2002), havia 24 (vinte e quatro) projetos propostos para construção de novas universidades (período de 1808-1882), porém nenhum deles foi aprovado.

Adentrando o século XX, o Estado de São Paulo, por ter umas das capitais mais ricas do país na década de 1930, recebeu um apoio do governo estadual para que fosse aberta uma Universidade. Neste cenário, foi criada, em 1934, a Universidade de São Paulo (USP), que se tornou o maior centro de pesquisa nacional. Entretanto, ressalta-se que a elite paulista ainda dava preferência para os cursos de medicina, engenharias e direito. Já na década de 1940, o crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, ao lado da expansão do ensino médio, fez com que o público feminino se dedicasse ao magistério e passasse a frequentar a universidade. Neste cenário, novos cursos, que pertenciam às faculdades de filosofia, se espalharam por todo o país, sendo que havia a preparação dos docentes das áreas de história, matemática, química, etc. (Oliven, 2002).

Na década de 1960, o ensino superior brasileiro vivenciou um momento turbulento. No período do regime civil-militar (1964-1985), as universidades ficaram sob vigilância, enfraquecendo o movimento estudantil devido ao expurgo de importantes lideranças. É crucial ainda observar que o período ditatorial reflete em dois pontos significativos para a educação superior. O primeiro é a truculência, a repressão e a perseguição de reitores, professores e alunos; o segundo é a promulgação de decretos primordiais para o avanço da Pós-graduação e do desenvolvimento da ciência, assim como uma melhor estruturação dos espaços universitários (Cunha, 2011).

Com o fim do regime militar e a crise de 1980, também conhecida como “década perdida’’, o período foi marcado por uma má gestão de dinheiro captado no exterior e, em razão disso, fomentou a paralização do crescimento econômico brasileiro, momento em que a ideologia privatista[1] ganha força. Na década seguinte, verifica-se que a expansão do ensino superior obedeceu a interesses mercadológicos, como por exemplo, a oferta de formação de mão-de-obra em curto espaço de tempo.

Carvalho (2006) explana que a expansão do ensino superior brasileiro, na década de 1990, apresentou fortes mudanças em sua estrutura de ensino, especialmente após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96), também conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Esta dedica os artigos 43 a 57 ao ensino superior, apontando para a necessidade de uma ampla reforma em todos os níveis educacionais. Outro fator destacado se refere ao papel do Estado como controlador e gestor das políticas educacionais; e também do Plano Nacional de Educação (PNE).

Nas últimas décadas, Michelotto et al. (2006) afirma que a educação superior passou por fases de forte expansão. Destaca-se que o neoliberalismo trouxe uma nova forma de se ver a qualidade educacional do ensino superior, associando-a aos princípios mercadológicos de produtividade e rentabilidade, introduzindo nas escolas a lógica da concorrência. Assim, ao contrário das décadas anteriores, em que o acesso ao ensino superior tinha uma maior seletividade dada a uma menor oferta de vagas, hoje o universo acadêmico é mais democrático e aberto ao público de todas as classes sociais, embora o acesso a determinados cursos não se resuma ao custo das mensalidades, mas, também se relaciona a uma maior demanda pelas vagas, em cursos considerados social e economicamente mais rentáveis, como medicina, engenharias, etc. Ristoff (2013, p.534) ainda afirma que “crescimento do número de estudantes oriundos do ensino médio público na educação superior já vem ocorrendo há alguns anos, em função das políticas públicas implementadas nos últimos anos (Prouni, Fies, Reuni) e deverá continuar a crescer”.

Como destacou Schwartzman (1999), o ensino superior brasileiro está recuperando seu dinamismo, e o aumento do número de matrículas pode ser explicado em razão da demanda de jovens recém-saídos da educação média e de adultos que buscam as universidades e outras instituições de ensino superior para complementar seus conhecimentos, adquirir novas qualificações e títulos, bem como almejar melhor colocação profissional. Contudo, é necessário pontuar que a distribuição dos indivíduos pelos cursos de graduação nem sempre se trata de uma “escolha” e, sim, da possibilidade de ingresso e permanência na universidade.

“Causalidade do provável”: estudantes de camadas populares em cursos de Licenciatura

O acesso ao ensino superior, assim como a sua permanência, imbrica compreender elementos que envolvem o processo de escolha do curso. Nesta perspectiva, os estudos de Nogueira (2004), Vargas (2010), Gatti e Barreto (2009), Nogueira e Pereira (2010), Leme (2012) e Ristoff (2014) problematizam a forte correlação entre a origem social dos indivíduos e a escolha da graduação. Nogueira (2004) expõe que o processo de escolha do curso superior não pode se pautar apenas pela escolha realizada pelo indivíduo; isso nos sugere refletir sobre a existência de uma relação um tanto direta entre os gostos desses sujeitos e as oportunidades que a vida oferece, inclusive a posição social ocupada.

Neste sentido, a concepção bourdieusiana de “causalidade do provável” pode ser compreendida como uma tendência do sujeito em antecipar seu futuro em conformidade com a experiência do presente, não desejando aquilo que parece pouco provável para o seu grupo social (Bourdieu,1998a). Conforme revela Bourdieu (1983), a estrutura social é valorizada de forma hierarquizada, determinando as relações materiais e simbólicas. Dessa forma, compreende-se que a opção por uma carreira profissional nem sempre é pautada na própria vontade do indivíduo, mas sim em incluir suas chances de ingresso e permanência no ensino superior.

Ristoff (2014), assim como apontado por Vargas (2010), explana que alguns cursos como engenharias, direito e medicina são considerados de alto prestígio e, geralmente, são ocupados por sujeitos pertencentes às elites. Ainda segundo o autor, em contraposição a isso, nos cursos de licenciaturas, se observa uma baixa relação candidato/vaga, além da discrepância socioeconômica dos estudantes, se comparados aos cursos mais elitizados. Na pesquisa realizada, evidenciou-se também que 89% dos estudantes de Medicina e 75% dos estudantes de odontologia afirmaram ter cursado integralmente o ensino médio privado. Por outro lado, nos cursos de licenciatura o que se observou foi um alto percentual de estudantes originários da escola pública.

Diante da situação brevemente ilustrada, é possível afirmar que a profissão docente, embora pouco almejada, parece atrair sujeitos com dificuldades em acessar profissões que demandam altos custos de formação, ou seja, aquelas que são ministradas em período integral, bem como exigem a aquisição dos materiais didáticos específicos e o ingresso exige alto desempenho em exame vestibular, impossibilitando ainda a conciliação entre estudos e trabalho (Leme, 2012). Cabe ressaltar que estes indivíduos que buscam as licenciaturas e, na maioria das vezes, possuem restritas condições socioeconômicas, são pertencentes às camadas populares [2] . Trata-se, portanto, de um público que vivenciou dificuldades de diferentes ordens para chegar ao ensino superior e escassos recursos para investir em ações que lhes permitissem maior riqueza cultural e acesso à leitura, cinema, teatro, eventos, exposições e viagens (Gatti & Barreto, 2009).

Vale ainda lembrar que a escolarização do pai ou da mãe não é um elemento, por si só, que pode garantir a longevidade escolar dos indivíduos: “é preciso que o detentor desse capital escolar esteja disponível, tanto objetiva quanto subjetivamente, de forma a possibilitar as adequadas condições para que o capital possa ser herdado” (Piotto & Alves, 2011, p. 82). Nesse sentido, os estudos de Viana (1998), Portes (2001) e Piotto e Alves (2008) demonstram que a trajetória escolar pode ser entendida como o resultado de uma combinação complexa de fatores e não pode ser reduzida a um único fator explicativo. Desse modo, considerar as estratégias e mobilizações escolares que os sujeitos das camadas populares empreenderam para ingressar no ensino superior “implica considerar o efeito sincrônico e diacrônico de múltiplas influências sociais” (Nogueira & Nogueira, 2009, p. 92).

Atrelada às estratégias e às mobilizações de escolarização (familiares ou individuais), a noção de habitus é importante para a compreensão das trajetórias escolares dos sujeitos. Enquanto matriz cultural que predispõe os indivíduos nos modos de pensar, agir e sentir sob a forma de disposições duráveis, incorporadas ao longo do processo de socialização, é possível refletir sobre a relevância que este atribui à educação escolar, considerando “as marcas da posição social que o indivíduo ocupa, os símbolos, as crenças, os gostos, as preferências que caracterizam essa posição social” (Silva, 2008, p. 95).

Entretanto, o habitus, por si só, não é capaz de explicar as trajetórias de escolarização dos sujeitos; além das variáveis da sociologia (renda, ocupação e escolaridade dos pais), Lahire (2002) defende que é inviável pensar o indivíduo contemporâneo sendo regido apenas por um único princípio de conduta, isto é, o homem não age de forma homogênea nas situações vividas. Ainda na perspectiva do autor, mais do que buscar reduzir o conjunto das práticas e comportamentos de um sujeito a uma improvável fórmula geradora, pode-se tentar reconstruir as disposições incorporadas ao longo das trajetórias de vida, profissionais, familiares, etc.

É preciso também levar em consideração, na “escolha” da carreira, aspectos pelos quais os indivíduos se identificam: possibilidade de mobilidade social, habilidades, personalidade, expectativa com relação ao futuro, etc. É possível afirmar que “as preferências e, em última instância, a própria escolha são resultado de uma espécie de adaptação dos agentes às condições sociais objetivas” (Nogueira & Pereira, 2010, p. 16). Neste aspecto, as escolhas profissionais nem sempre são pautadas pelo alcance do “curso desejado, mas, no que é possível estudar e aonde é possível se matricular” (Amaral & Oliveira, 2011, p. 874). Gatti e Barreto (2009) ponderam algumas características da profissão docente que podem motivar os indivíduos a escolherem o magistério: horários flexíveis de trabalho, liberdade de ação na sala de aula, a estabilidade, as facilidades de acesso (baixas exigências de formação) e, principalmente, seu prestígio em relação às ocupações manuais.

Contudo, o desejo de ser professor, também, pode ter relação com fatores intrínsecos, e uns dos principais motivos que levam à escolha da profissão estão relacionados à realização pessoal, à identificação com as crianças, ao amor pelo próximo e pela profissão, seguido pela necessidade da conquista da autonomia financeira (Gatti & Barreto, 2009). Por outro lado, como assinala Jacques e Hobold (2014), o desafio da sobrecarga de trabalho, seguido do adoecimento e consequente desvalorização da profissão, são fatores que afastam os sujeitos das licenciaturas.

Delineamento Metodológico

Para compreender as trajetórias escolares e escolha da profissão docente por estudantes de Licenciaturas, o lócus de pesquisa foi a Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Unidade Ibirité. O critério de escolha teve ligação com os precedentes históricos da instituição, isto é, sua estreita relação com os cursos de licenciatura, pois, desde sua criação, em 1955, ainda como Instituto Superior de Educação Rural – ISER, já eram ofertados os cursos de formação de professores.

O desenho metodológico seguiu os pressupostos de Minayo (2001, p.21) para a compreensão do objeto de estudo, isto é, foi observado o “universo de significados, motivos, aspirações, crenças valores e atitudes” dos sujeitos investigados. A priori, a amostra inicial deveria compreender a participação, em média, de 120 (cento e vinte) estudantes da UEMG (Unidade Ibirité), assim distribuídos entre os cursos: pedagogia Noturno (40), matemática (40) e letras (40). Contudo, seja pela desistência de sujeitos participantes do estudo, seja pelo fato de terem se ausentado da instituição no dia da aplicação do questionário, os dados coletados contemplaram 78 (setenta e oito) licenciandos respondentes da pesquisa, sendo 32 (trinta e dois) do curso de pedagogia Noturno, 26 (vinte e seis) de matemática e 20 (vinte) de letras.

A investigação incluiu estudantes matriculados e frequentes no primeiro período de cada curso, no ano de 2018, e a razão para essa escolha perpassa a fundamentação de que o primeiro período universitário é um tempo crucial de revisitar memórias dos processos de escolarização na escola básica e, ao mesmo tempo, aprender o ofício de estudante universitário. Os dados empíricos iniciais foram coletados por meio de questionário (pré-testado) aplicado aos estudantes, acompanhado de uma carta explicativa sobre a pesquisa. O intuito, neste primeiro momento, era levantar dados que contemplassem: a) presença da família na escolarização dos estudantes ao longo da educação básica; b) mobilizações escolares do sujeito ao longo de sua trajetória escolar; c) referências sociais e institucionais nos percursos escolares; d) perfil socioeconômico predominante entre os estudantes, considerando dados sobre faixa etária, sexo, escolaridade dos pais, renda e ocupação profissional familiar.

Posteriormente, sucedeu-se a realização de entrevistas narrativas, com os sujeitos selecionados dentre os questionários respondidos, visando compreender as trajetórias escolares dos indivíduos e a escolha pela licenciatura, considerando que “as narrativas, mais do que algo comum, devem ser compreendidas em parte como formas de arte, que transmitem significados simbólicos” (Thompson, 1992, p. 266). Foram entrevistados 1 (um) graduando de cada curso, sendo solicitada autorização para a utilização dos seus relatos, garantindo sigilo e anonimato. A escolha dos sujeitos considerou os seguintes parâmetros: I) provir de famílias cujos pais tivessem baixa escolaridade e ocupações consideradas de baixo prestígio; II) terem cursado ensino fundamental e médio em escola pública ou supletivo; e III) possuírem renda familiar de 2 (dois) a 4 (quatro) salários mínimos, pertencentes às classes . e ., segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2016)[3]. Por fim, os dados foram analisados à luz das teorias supracitadas, incluindo a sistematização da escrita, tratamento do questionário aplicado e das entrevistas realizadas, entrecruzando os dados empíricos com a literatura pertinente sobre a temática.

Discutindo os resultados: o perfil socioeconômico dos estudantes das licenciaturas

Com relação ao perfil socioeconômico dos estudantes investigados (dados sobre faixa etária, sexo, escolaridade dos pais, renda e atuação profissional da composição familiar) o questionário aplicado revelou que a maioria dos sujeitos é oriunda das camadas populares, ou seja, tem um perfil socioeconômico desfavorável. Essa constatação vai de encontro ao que é colocado por Bourdieu (1998b) no que se refere aos capitais (econômico, social e cultural): sujeitos com mais dificuldades ao longo de seus percursos escolares tendem a ser direcionados para profissões de baixo prestígio.

Ainda segundo Tartuce et al. (2010, p. 446), quando indivíduos que possuem um capital econômico desfavorável adentram o mundo universitário, eles levam consigo um novo perfil que “traz implicações para os cursos que formam para o magistério, os quais precisam lidar com um novo background cultural”. Dito de outro modo, entende-se que estes estudantes universitários, ao longo de suas trajetórias, tiveram desafios para investir em ações que possibilitassem experiências culturais distintas, como o acesso ao cinema, eventos culturais, livros, etc. Esse indício aparece no Gráfico 1: 53,93% dos discentes que adentraram os três cursos de licenciatura na UEMG – Ibirité têm idade acima de 21 anos, evidenciando que o ingresso no ensino superior não aconteceu imediatamente após o término do ensino médio, como pode ser observado em cursos de alto prestígio.

Fonte: Pesquisa realizada no mês de julho de 2018.

Gráfico 1 Perfil Etário dos sujeitos. 

O Gráfico 1 ainda nos sugere pensar que estes estudantes buscaram alcançar outros objetivos após a conclusão da educação básica, como, por exemplo, tiveram a necessidade de se firmar no mercado de trabalho. Considerando que a posição e a trajetória individual dos indivíduos não são independentes, como afirma Bourdieu (2008, p.104), “nem todas as posições de chegada são igualmente prováveis para todos os pontos de partida: eis o que implica a existência de uma correlação bastante forte entre as posições sociais e as disposições dos agentes que as ocupam”.

Outro dado que demonstra, conforme o perfil socioeconômico, o pertencimento destes estudantes aos meios populares está ligado ao fato de a grande maioria exercer atividade remunerada. A título de exemplificação, no curso de pedagogia apenas 9,37%, de um universo de 32 (trinta e dois) investigados nunca trabalharam. Esse achado ainda revela que, se os cursos de licenciatura fossem ofertados em período integral, impossibilitaria o ingresso destes indivíduos no ensino superior, não sendo possível a conciliação entre estudos e trabalho.

O questionário aplicado aos estudantes dos cursos de licenciatura também revelou informações acerca da instrução de suas famílias. Conforme o Gráfico 2 mostra, os genitores dos licenciandos possuem baixa escolaridade e o quantitativo de 53% dos pais não concluiu a educação básica.

Fonte: Pesquisa realizada no mês de julho de 2018.

Gráfico 2 Nível de escolaridade dos pais até Ensino Médio incompleto 

Diante de tal constatação, nota-se que estes estudantes universitários, cujos pais possuem baixa escolaridade, romperam com o “estatisticamente improvável”, contrariando a perspectiva inicial do conceito de habitus: ascenderam ao ensino superior mesmo adentrando em cursos considerados de baixo prestígio. Corroborando com Lahire (2002), o conjunto de disposições variáveis ao longo das trajetórias de vida escolar, profissional e familiar dos indivíduos permite entender que os indivíduos não seguem necessariamente uma única regra geradora em seus percursos.

No tocante à renda das famílias de origem dos estudantes, evidenciou-se um baixo investimento em relação à escolarização devido à disposição de escassos recursos econômicos, sociais e principalmente culturais que tornam incerto o retorno do investimento escolar. Nesse sentido, além de ser um resultado a longo prazo, faz com que as “aspirações e condutas educativas e a relação com a escolaridade dos filhos", sejam moderadas, chegando por vezes a patamares que tal classe compreende como auge (Nogueira, 2005, p. 569). Ao lado do nível de escolaridade, outra constatação da pesquisa é a renda familiar dos estudantes universitários. Como demonstram Braga et al. (2001, p.144):

Esses estudantes parecem estar conscientes de que a sua chance de êxito é pequena, caso escolham carreiras mais tradicionais ou mais bem-conceituadas quanto às perspectivas de ganhos financeiros. Sendo assim, optam por carreiras de menor prestígio, como aquelas que oferecem a habilitação licenciatura, para as quais concorrem com razoável probabilidade de sucesso.

Logo, é perceptível que, geralmente, há um impacto da origem social na longevidade escolar destes estudantes, bem como também na escolha de cursos na modalidade licenciatura. Em conformidade com a metodologia comumente empregada pelo IBGE (2016), que classifica a classe A (acima de 20 salários mínimos), B (10 a 20 salários mínimos), C (4 a 10 salários mínimos), D (2 a 4 salários mínimos), e por último E (até 2 salários mínimos), nota-se, no Gráfico 3, que 64,94% dos ingressantes nas licenciaturas da UEMG – Ibirité são pertencentes às classes E e D, com renda familiar de até 3 (três) salários mínimos, corroborando com outros estudos que constataram o pertencimento de estudantes de licenciatura às camadas populares.

Fonte: Pesquisa realizada no mês de julho de 2018.

Gráfico 3 Renda Familiar 

Considerando o perfil socioeconômico dos estudantes das licenciaturas da referida instituição de ensino superior pública, é possível afirmar que os estudantes de camadas populares, sujeitos que se distanciam da herança dos capitais descrita por Pierre Bourdieu, encontram-se em situação desfavorável e que, de certo modo, não estariam propensos à longevidade escolar, até mesmo porque estes grupos são vinculados recorrentemente a uma “lógica de oposição negativa, tais como: ausência de consciência, imediatismo, apatia, resignação, círculo de relações sociais restritas, sentimento de inferioridade etc.” (Sampaio, 2011, p. 36).

Estratégias e mobilizações de escolarização empreendidas visando à ascensão ao Ensino Superior

As trajetórias de escolarização dos sujeitos pertencentes aos meios populares compreendem as mobilizações que estes indivíduos tiveram de traçar, ao longo de seus percursos, visando ao ingresso na universidade. Isso ainda inclui as experiências e práticas familiares empreendidas de modo inconsciente ou consciente, mas que permitiram a longevidade escolar. Por exemplo, quando questionados se os pais prestavam auxílio nas tarefas escolares, 46,35% dos estudantes afirmaram que a prática acontecia em suas famílias. Como Viana (1998) ressaltou, a contribuição nas tarefas escolares é um elemento que pode ser observado nas famílias com baixo capital cultural, principalmente nas pesquisas que contemplam as interações da educação com a sociologia da família.

Nesta pesquisa, a respeito da participação familiar na escolarização dos estudantes universitários das licenciaturas, ficou evidenciado que 60,72% das famílias empreenderam estratégias que possibilitaram aos filhos dedicação total aos estudos, sem a necessidade de exercerem algum tipo de trabalho remunerado. Somado a outros elementos, essa condição contribuiu para que estes estudantes pudessem, inclusive, não abandonar os estudos e vislumbrar o ensino superior, mesmo prestando vestibular para cursos considerados de baixo prestígio.

A título de exemplificação, Mário[4], estudante do curso de letras, revelou que o acompanhamento escolar por parte da sua família, embora não tenha acontecido ao longo de toda a educação básica, teve importância no seu percurso escolar. Conforme destaca, a participação da mãe na realização das atividades escolares foi essencial: “sempre estava ajudando no trabalho de casa […] essas coisas […] pesquisa […] sempre ia nas reuniões da escola […] até […] assim […] eu terminar o ensino fundamental […]. Vale pontuar que os pais de Mário são indivíduos com baixa escolaridade, sendo o pai é analfabeto e a mãe tendo cursado somente até a 4ª série (5º ano) do ensino fundamental.

A respeito dessa colaboração familiar na trajetória escolar dos filhos, o estudo de Portes (2001) aponta que, embora os pais não possam auxiliar pedagogicamente os filhos nas tarefas escolares, é inegável que as ações realizadas por eles são permeadas de traços de uma pedagogia baseada na “ordem moral”, que influi diretamente sobre o pedagógico e favorece a longevidade escolar. Por outro lado, é importante lembrar que o percurso escolar prolongado destes sujeitos oriundos dos meios populares é ainda fruto de uma mobilização individual, visto que nem sempre há apoio familiar no processo de escolarização.

Outro dado que nos chamou atenção na pesquisa diz respeito ao desejo dos pais pela inserção dos filhos no ensino superior. Apenas 38,00% dos pais dos estudantes investigados desejavam que os filhos prolongassem os estudos, ascendendo à educação superior. Pode-se inferir que, pelo fato da baixa escolarização e ocupação profissional destas famílias, elas não viam o ensino superior como um elemento que pudesse contribuir significativamente para a ascensão social destes indivíduos.

Ao lado das estratégias traçadas para a permanência na educação básica, conscientemente ou não, os investigados também relembraram desafios e desvantagens durante este percurso. Os 3 (três) estudantes entrevistados disseram que cursaram tanto o ensino fundamental quanto o médio integralmente em instituições públicas, destacando, como disse Poliana, graduanda em Matemática, que “[…] a gente sabe a diferença de escola pública e escola particular como é defasado”. Percebe-se, assim, que há um abismo entre a qualidade do ensino privado e público, refletindo na preparação para o ingresso no ensino superior. Contudo, mesmo diante destas adversidades vividas em escolas públicas, nota-se que, ainda assim, estes estudantes conseguiram romper com o improvável, como expõe Viana (2014), e ingressaram em uma universidade pública.

Constatou-se, também, a importância do capital econômico, conceito amplamente desenvolvido por Bourdieu (1998b) nas trajetórias escolares. Ludmila, estudante do curso de pedagogia, questionada se o recurso econômico impactou seu percurso, afirmou que:

Sim, porque foram coisas que eu não tive acesso. Essa questão financeira interferiu até na questão familiar, por exemplo, porque meus pais tinham de trabalhar e não tinha um tempo pra me ensinar […] ou pra pegar no meu pé […] pra mim colocar para ler […] o que são coisas que também impactaram no meu aprender hoje em dia.

O relato da estudante revela que o impacto financeiro marcou seu percurso na educação básica e, além disso, pôs a graduanda em desvantagem em sua trajetória escolar, uma vez que o baixo capital econômico familiar não permitiu que ela tivesse acesso a bens e serviços que possibilitassem um investimento na escolarização. Desse modo, o capital econômico teve influência na aquisição do capital cultural, levando Ludmila a “escolher”, de certo modo, carreiras consideradas de baixo prestígio e que tivessem notas de corte e/ou relação candidato/vaga no processo de vestibular mais adequadas à sua trajetória escolar.

O desprestígio das licenciaturas foi citado pelo estudante do curso de Letras. Segundo ele, houve desaprovação de amigos e familiares quanto à escolha da licenciatura em letras. Nessa lógica, Tartuce et al. (2010) afirmam que as “motivações de natureza social e econômica aparecem como fatores não atrativos associados à docência, ou seja, ninguém pensa em ser professor porque essa é uma profissão valorizada simbólica e financeiramente”. Ainda segundo os autores, dentre os fatores que afastam os indivíduos da carreira docente estão a baixa remuneração somada à rotina escolar e sobrecarga de trabalho, bem como as condições de organização de tempo e espaço escolares.

Os achados da investigação ainda revelaram que os próprios estudantes de licenciatura pertencentes aos meios populares não acreditavam ser possível chegar à universidade pública. Esse desânimo, e até mesmo descrença, em dar continuidade aos estudos foi relatado por Ludmila, bem como a crítica sobre a escolha do curso de pedagogia:

Não era exatamente o que eu queria quando eu escolhi o curso. Era o que havia no meu campo de possibilidades. Mais de positivo eu vejo hoje que eu tenho aprendido muito. Era uma coisa […] era um ramo no qual eu não me via […] mas hoje eu tenho […] eu tô pegando amor.

O relato de Ludmila vai ao encontro do que foi evidenciado no estudo de Gatti e Barreto (2009): o curso superior não se trata bem de uma escolha; é a única possibilidade. Entretanto, Mário nos revelou que a opção por cursar letras teve ligação com uma realização pessoal:

É […] na verdade foi uma coisa muito minha mesmo […] porque escolhi […] porque eu sempre gostei muito de literatura […]. Gostei de escrever […] ai eu sempre quis fazer letras […] ai eu tava até meio desanimado mas só que como minha irmã […] ela sempre soube que eu gostava […] aí quando já tava pra fazer a inscrição foi ela que me incentivou a vim, né?!

Ressalta-se que 47,44% dos estudantes, quando questionados sobre o principal motivo de escolha do curso, alegaram interesse pessoal pela profissão. Nenhum dos 78 (setenta e oito) estudantes investigados afirmou que houve influência da família ou a possibilidade de melhores ganhos financeiros nesta escolha pela licenciatura. Assim, nas trajetórias destes indivíduos de camadas populares que alcançaram a longevidade escolar, nota-se um processo singular em que várias nuances se interconectam e os percursos são resultado de um “tempo próprio”, conforme as suas condições de vida (Viana, 1998).

Disposições finais

À guisa de conclusão, ao analisar as trajetórias de escolarização dos estudantes de uma universidade pública, bem como as mobilizações individuais e familiares ao longo dos percursos escolares, confirmou-se que o capital econômico, social e cultural impacta, de maneira significativa, o processo de escolarização dos indivíduos. Como salienta Viana (2014), as desigualdades escolares estariam intimamente relacionadas às desigualdades de acesso ao capital cultural, repartido de maneira diversa entre os grupos da sociedade.

A escolha do curso superior se aproxima do que foi levantado por outros estudos sobre a temática: o perfil sócio socioeconômico de quem escolhe as licenciaturas, em sua maioria, refere-se a sujeitos pertencentes às famílias das camadas populares; são estudantes egressos da educação pública e apresentaram dificuldades durante o percurso escolar.

Evidenciou-se ainda que as famílias dos estudantes dão importância à longevidade escolar e, quando possível, possibilitam aos filhos dedicação total aos estudos durante a educação básica, sem a necessidade de conciliar estudos e trabalho. Contudo, a desvantagem no percurso escolar foi evidenciada pelos sujeitos investigados, tanto pelo baixo capital econômico que impacta na aquisição de capital cultural, bem como pela discrepância do ensino ofertado nas escolas públicas.

Finalmente, essa pesquisa contribui para a compreensão de que a escolha do curso superior não é neutra; “as preferências e, em última instância, a própria escolha são resultado de uma espécie de adaptação dos agentes às condições sociais objetivas’’ (Nogueira & Pereira, 2010, p.16). Além disso, a pesquisa apresenta contribuições aos estudos no campo da sociologia da educação por trazer reflexões sobre as trajetórias de escolarização de sujeitos que, historicamente, foram excluídos das oportunidades escolares e de ascender ao ensino superior.

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[1]Cunha (2007), ao explanar sobre a reforma tributária no período do governo militar, aponta que os recursos transferidos às instituições privadas, na forma de apoio governamental aos empresários como imunidade fiscal, favoreceu e propiciou a acumulação de capital para o campo educacional.

[2]São considerados indicadores para pertencimento: renda, escolaridade das famílias, ocupação com pais (Viana, 2014).

[3]Segundo o IBGE (2016), são considerados indivíduos de camadas populares aqueles pertencentes as classes E e D, cujos rendimentos familiares per capita estão expressos no salário mínimo vigente do ano de 2018.

[4]Os nomes e identidades dos participantes foram preservados, seguindo os preceitos éticos das pesquisas com seres humanos.

Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 24 de Junho de 2020

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