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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 17-Ago-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.31767 

Artigos

Reflexos da política de gestão gerencial sobre o trabalho do coordenador pedagógico

Reflejos de la política de gestión gerencial sobre el trabajo del coordinador pedagógico

Reflections of the managerial management policy on the work of the pedagogical coordinator

Réflexions de la politique de gestion management sur le travail du coordinateur pédagogique

Soane Santos Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-3807-1798

Ennia Débora Passos Braga Pires2 
http://orcid.org/0000-0003-3924-4996

Maísa Oliveira Melo Ferraz3 
http://orcid.org/0000-0003-4672-1797

1Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) - Programa de Pós Graduação em Educação PPGED; Membro do Grupo de Pesquisa em Ludicidade, Didática, Política e Práxis Educacional – LUDIPPE.

2Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação PPGED da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB); Líder do Grupo de Pesquisa em Ludicidade, Didática, Política e Práxis Educacional (LUDIPPE).

3Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB); Programa de Pós-Graduação em Educação PPGED/UESB; Membro do Grupo de Pesquisa em Ludicidade, Didática, Política e Práxis Educacional – (LUDIPPE) e Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas para a Educação Superior (GEPPS).


Resumo

O artigo se propõe a compreender o contexto da gestão gerencial, enquanto política pública, suas características e influências no sistema educacional e no trabalho do coordenador pedagógico. Originário de uma pesquisa bibliográfica, o estudo evidencia que a gestão gerencial imprime ao trabalho do coordenador pedagógico políticas públicas de responsabilização pela articulação da prática e dos resultados da escola; e, ao exigir líderes executores e não reflexivos, o sistema gerencial tende a transformar o coordenador em um mero executor das ideologias neoliberais sem espaço e condições para superar as concepções ideológicas dominantes.

Palavras-chave Gestão Gerencial; Políticas Públicas; Coordenador Pedagógico

Resumen

El artículo tiene como objetivo comprender el contexto de la gestión gerencial como política pública, sus características y el trabajo del coordinador pedagógico. Originado en una investigación bibliográfica, el estudio demostró que la gestión gerencial imprime políticas de responsabilidad pública para la articulación de la práctica escolar y los resultados al trabajo del coordinador pedagógico; y, al requerir líderes ejecutivos y no reflexivos, el sistema de gestión tiende a transformar al coordinador en un simple ejecutor de ideologías neoliberales sin espacio ni condiciones para superar las concepciones ideológicas dominantes.

Palabras clave Gestión Gerencial; Políticas Públicas; Coordinador Pedagógico

Abstract

The article aims to understand the context of managerial management as a public policy, its characteristics and influences on the educational system and in the work of the pedagogical coordinator. Originating from a bibliographic research, the study showed that the management settles public responsibility policies for the joint of the results of the work and school's practice; and, by requiring executive and not reflective leaders, the management system tends to transform the coordinator into a bare executor of neoliberal ideologies with no room or conditions to overcome the dominant ideological conceptions.

Keywords Managerial Management; Public Policy; Pedagogical Coordinator

Résumé

L'article vise à comprendre le contexte de la gestion managériale, en tant que politique publique, ses caractéristiques et influences sur le système éducatif et le travail du coordinateur pédagogique. Issue d'une recherche bibliographique, l'étude a montré que la gestion managériale imprime des politiques de responsabilité publique pour l'articulation de la pratique et des résultats scolaires au travail du coordinateur pédagogique; et, en exigeant des dirigeants exécutifs et non réfléchis, le système de gestion tend à transformer le coordinateur en un simple exécuteur d'idéologies néolibérales sans espace et sans conditions pour surmonter les conceptions idéologiques dominantes.

Mots clés Management Management; Politique publique; Coordinateur pédagogique

Introdução

Este artigo apresenta uma reflexão acerca das mudanças ocorridas na estrutura organizacional da educação em virtude das redefinições no papel do Estado nas últimas décadas. Redefinições que significaram a composição de um Estado regulador e com menos responsabilidade social. A lógica do sistema capitalista no campo educacional vem atingindo todos os atores envolvidos no processo. Assim, o modelo gerencial com características reguladoras, tornou-se a melhor opção para fortalecer as políticas públicas implementadas sob as bases neoliberais. Este modelo garante o controle e a regulação dos resultados, imprimindo uma forte concepção de responsabilização e culpabilização aos profissionais da educação.

As instituições escolares passam a ser organizadas sob um regime de gestão gerencial, modelo típico da política de mercado capitalista que visa à produtividade e à eficiência nos resultados. Os principais agentes deste processo, que estão nas unidades escolares (diretor, coordenador, professor, alunos, entre outros), tornam-se canais de interlocução entre as políticas públicas e a prática educativa. Diante deste contexto, o estudo destaca o papel do coordenador pedagógico, que está inserido nas instituições escolares, na condição de líder e responsável por articular ações que efetivam a prática pedagógica na sala de aula. O papel articulador do coordenador pedagógico o coloca numa posição de poder, uma vez que a esse profissional também é atribuída a função formadora e transformadora. Assim, incumbe-se ao coordenador a função de articular os processos educacionais, bem como a responsabilidade pela formação continuada dos professores, com vistas à transformação da prática educativa para a melhoria do ensino e aprendizagem. No entanto, o modelo gerencial e todo o seu arcabouço produzem limitações no desenvolvimento do trabalho desse profissional, pois a sua função pode ser desempenhada apenas com a finalidade de garantir a manutenção da eficiência e produtividade capitalista, como fiscalizador e controlador dos resultados, diante das políticas de avaliações.

Perante o exposto, este artigo objetivou apresentar os reflexos da política de gestão gerencial sobre o trabalho do coordenador pedagógico. Mais especificamente, buscou-se compreender o contexto da gestão gerencial, enquanto política pública, suas características e influências no sistema educacional e o trabalho do coordenador pedagógico e sua relação com esse modelo de gestão.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica caracterizada pela identificação e análise de informações para construção e ampliação de um referencial teórico quanto à função do coordenador pedagógico nas instituições escolares em meio à gestão gerencial. A pesquisa bibliográfica “implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório” (Lima & Mioto, 2007, p. 38). Permite investigar os aspectos relativos a uma temática com base na análise das fontes secundárias. Para tanto, realizou-se uma análise crítica/reflexiva de alguns estudos produzidos a respeito da temática gestão gerencial e o trabalho do coordenador pedagógico. O estudo perpassou pela compreensão da política de gestão gerencial no contexto das redefinições do papel do Estado a partir da década de 1990 e seus reflexos no trabalho do coordenador pedagógico.

Uma análise crítica/reflexiva sobre os processos que envolvem a organização do trabalho de coordenação pedagógica, sob os reflexos da política de gestão gerencial, contribui com a ampliação do conhecimento sobre a atuação desse profissional, que é apontado e responsabilizado por políticas públicas educacionais, como figura referencial no espaço escolar, que deve agir no interior das unidades escolares assumindo um papel de mediador e, ao mesmo tempo, vivenciando os desafios e os dilemas das interfaces dos princípios ideológicos neoliberais.

A política de gestão gerencial: contexto e interfaces na educação

O processo de gestão educacional tornou-se alvo essencial para a manutenção das reformas políticas dos últimos anos que reconfiguraram o papel do Estado e a maneira como tem disponibilizado o seu serviço, por meio das suas políticas públicas. O enfoque em um novo modelo de estruturação de gestão, espelhado nos moldes organizacionais das políticas do mercado capitalista, passa a visar à eficiência e à produtividade, sustentadas pela competitividade. Assim, é possível verificar que

Este “encorajamento do mercado” traduz-se, sobretudo, na subordinação das políticas de educação a uma lógica estritamente econômica (“globalização”); na importação de valores (competição, concorrência, excelência etc.) e modelos de gestão empresarial, como referentes para a “modernização” do serviço público de educação; na promoção de medidas tendentes à sua privatização (Barroso, 2005, p. 741).

Barroso (2005, p. 742), ainda destaca que este cenário encoraja a criação dos “mercados educativos”, em que a compreensão do “serviço público” é transformada em “serviços para clientes”. Esta dinâmica estimula ainda mais as desigualdades, apesar de apresentar-se como uma proposta de modelo unificador, pois causa o distanciamento social e as diferenças no acesso aos serviços educacionais. As decisões políticas sobre os rumos da educação saem das mãos do Estado e são lançadas ao mercado que, por sua vez, impõe modelos que priorizam a excelência e a concorrência dos processos organizacionais. Ball (2001) reforça esta concepção ao evidenciar que, diante desses preceitos,

Assistimos a um movimento em direção a uma maior devolução, autonomia institucional, à introdução de um novo paradigma de gestão pública, ao desenvolvimento de relações de competitividade entre provedores públicos e a proliferação do privado, de provedores de educação voltados para o lucro (Ball, 2001, p. 112).

Presencia-se a política do controle no contexto educacional por meio da regulação e busca de resultados, na justificativa de se alcançar uma educação de qualidade. Para manutenção desta política de mercado nos sistemas educacionais, reconfiguram-se os modelos de gestão, a considerar que, ainda segundo Ball (2001, p. 109), “ela desempenha um papel crucial no desgaste dos regimes étnicos profissionais nas escolas e a sua substituição por regimes empresariais competitivos”. A máquina da produtividade e controle de resultados é instaurada nas unidades escolares sob o manto de um modelo de gestão considerado descentralizador, mas que, na verdade, tem a finalidade de reproduzir o sistema gerencial implantado pelas concepções ideológicas do neoliberalismo. Assim, ao invés das escolas trabalharem sob a tão desejada política de gestão democrática, veem-se presas às amarras da política de uma gestão gerencial.

Mundim e Silva (2019) destacam que a ideologia gerencialista ocupa todos os espaços, estando fortemente disseminada nas esferas pública e privada e, consequentemente, na educação. Para as autoras, essa ideologia passa a ser apresentada como a solução para os problemas vivenciados pelas escolas públicas, e consiste em priorizar o resultado em detrimento das perdas e dos prejuízos que ocorrem nesse processo.

Com o foco no controle e nos resultados, a gestão gerencial emerge com as redefinições do papel do Estado ocorridas a partir da década de 1990, com uma estrutura organizacional baseada em processos administrativos burocráticos, com vistas à produtividade nos resultados, seguindo as exigências das grandes empresas privadas. Peroni e Caetano (2015, p. 336) afirmam que “a relação entre o público e o privado na política educacional é parte constitutiva das mudanças sociais e econômicas”, não é uma questão de determinação, mas de relação e processo. Destaca-se, mais uma vez, o papel do Estado que perpassa pelos interesses do mercado e se distancia dos interesses sociais. As autoras ainda evidenciam que a iniciativa privada aparece, neste cenário, como uma proposta que garantiria a qualidade da educação pública. Esta compreensão direciona para uma naturalização da perspectiva de privatizações em que o Estado é mínimo para as questões sociais, porém, máximo para o capital.

Sobre o papel do Estado nessa contextualização, Carvalho assim enfatiza:

De acordo com o modelo gerencial, o Estado deixa de ser investidor e mantenedor, eximindo-se da responsabilidade direta de produzir e fornecer bens ou serviços e assumindo o papel de regulador e facilitador da iniciativa privada. Separa-se, assim, a função de governar e a de executar (Carvalho, 2009, p. 1148).

O gerencialismo situa a escola na posição de cumpridora de tarefas preestabelecidas por políticas públicas que atendem aos interesses do mercado capitalista e à lógica de organização das instituições privadas. Com características bem definidas, a gestão gerencial entra no universo escolar com a proposição de descentralizar decisões, mas, na verdade, apenas desconcentra tarefas, delegando funções e reforçando a política de responsabilização. Mais ainda, delineia os caminhos do controle dos serviços públicos, nesse caso, o educacional, utilizando medidas de avalição de resultados. Como sinalizam Araújo e Castro (2011, p. 94), “essa estratégia visa a estabelecer uma nova cultura organizacional no interior das escolas, baseada nos princípios de gestão estratégica e do controle de qualidade, direcionada para a racionalização, eficiência e eficácia dos processos educativos”.

Para todo gerenciamento exige-se a presença de bons gerentes capazes de garantir a funcionalidade e a eficiência dos resultados. Consoante Carvalho (2009, p. 1142), “nessa nova lógica empresarial, o gerenciamento e a liderança” ganham centralidade e são consideradas as “chaves para a vantagem competitiva”. De acordo com o autor, nesse cenário, o líder se torna uma figura de destaque e deve ser aquele capaz de influenciar as pessoas e de organizar as ações no trabalho. Assim, no modelo gerencial, não é qualquer profissional que se enquadra no perfil, somente aqueles com habilidades e capacidades para desenvolver o trabalho lidando com as diversas situações, opiniões e relações de trocas de experiências.

Essa política de responsabilização se efetiva no chão das escolas, destacando-se, para o sucesso organizacional, o desempenho dos gestores escolares. Ball (2001) corrobora com essa acepção ao sinalizar que

o gestor é um herói cultural do novo paradigma. O trabalho de gestor envolve a infusão de atitudes e culturas nas quais os/as trabalhadores/as se sentem, eles/as próprios/as, responsabilizados/as e, simultaneamente, comprometidos/as ou pessoalmente envolvidos/as na organização (Ball, 2001, p. 108).

Segundo o autor, nesse modelo de organização do gerenciamento se destaca o profissional que apresenta capacidade de iniciativa e de resolução dos problemas que lhes são delegados. Dessa maneira, os trabalhadores/as, por si sós, sentem-se responsabilizados/as pelo bom desempenho da organização, o que ocasiona, muitas vezes, o acúmulo de funções para que o trabalho possa ser executado, ocorrendo uma cobrança não apenas por parte da organização, mas entre os/as próprios/as trabalhadores/as, em meio a um ambiente de competitividade.

O funcionamento dessa gestão gerencial nas instituições escolares leva-nos à identificação do processo de descentralização, caraterizado pela desconcentração de tarefas, quando encontramos bem definidos num mesmo espaço a figura do diretor (responsável pela dimensão administrativa/financeira), do coordenador pedagógico (responsável pela dimensão pedagógica), do orientador educacional (responsável pela dimensão disciplinar), dos professores (responsáveis pela prática educativa), secretários (responsáveis pela dimensão jurídica documental) e pessoal de apoio (responsáveis pela manutenção da infraestrutura escolar), dentre outros coadjuvantes que integram esta dinâmica. Reproduz-se aqui uma lógica de distribuição de atividades, bem característica e evidente do modelo de produção capitalista taylorista/fordista, que

Tem como paradigma a organização em unidades fabris que concentram grande número de trabalhadores distribuídos em uma estrutura verticalizada, que se desdobra em vários níveis operacionais intermediários (de supervisão, planejamento e gestão), cuja finalidade é a produção em massa de produtos homogêneos para atender a demandas pouco diversificadas (Kuenzer, 2008, p. 35).

Entretanto, é na lógica do modelo produtivo do toyotismo que emergem as bases ideológicas das concepções de descentralização e flexibilização do trabalho que lança uma sobrecarga de responsabilidades sobre os profissionais, com o intuito de manter a fiscalização e regulação dos resultados. De acordo com Silva (2001, p. 76), a produção no modelo toyotismo “é sustentada pelo processo produtivo flexível que permite a operação de várias máquinas por um operário […] o trabalho passa a ser realizado em equipe […] estrutura-se a partir de um número mínimo de trabalhadores”. Alinhando a concepção do autor ao contexto escolar, evidenciamos que

Há um entendimento entre os defensores desse novo modelo, de que, para modernizar a gestão educativa, é necessário superar a gestão burocrática da educação implantando uma gestão mais coerente com o novo modo de produção flexível, inspirado na liberalização dos mercados. Para isso, torna-se necessário adotar uma série de estratégias que possibilitem a descentralização do sistema público de ensino, com maior participação e controle da sociedade nos serviços prestados (Araújo & Castro, 2011, p. 92).

Assim, a participação da sociedade, nesse processo, resume-se a cada um com atribuições específicas, numa perspectiva de democratização do espaço escolar, porém, o que ocorre é a individualização das atividades e o aumento da quantidade de atribuições, tornando-se mais fácil o controle e a responsabilização.

Ball (2001) destaca que, nesse novo quadro, é possível presenciar o surgimento de uma organização para as escolas baseada em uma forte relação entre o público e o privado, que cria um novo currículo ético fundamentado no princípio da competitividade. Para o estudioso, nesse novo ambiente moral constituído, predomina a luta pelo melhor desempenho, tanto dos sujeitos quanto das organizações. O desempenho serve como medida para calcular quem produz mais, em maior quantidade e qualidade. Uma grande vitrine produtiva que deve ser constantemente inspecionada. A qualidade e o valor do indivíduo são mensurados por uma prática de controle focada no desempenho dos sujeitos diante das atividades que lhes serão atribuídas.

As relações entre o modelo de gestão gerencial e o trabalho do coordenador

Estreitando ainda mais o alcance do funcionamento gerencial, encontramo-nos com a figura do coordenador pedagógico, que neste contexto é o responsável pela dimensão pedagógica escolar e que na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Senado Federal, 2017) é mencionado como o profissional que exerce a função de supervisão. Em algumas legislações estaduais e municipais, o coordenador pedagógico é mencionado como o responsável por exercer não somente a função de supervisão, mas também de orientação educacional. Independente das nomenclaturas e atribuições, evidencia-se que este profissional, nas últimas décadas, tem se destacado ao desempenhar função de poder nas instituições escolares. Assumindo papel de liderança, a ele cabe, dentre outras atribuições, mediar a efetivação das políticas públicas educacionais na prática educativa. Em outras palavras, num contexto de mercado capitalista, cabe ao coordenador pedagógico garantir o controle da produção e da qualidade do setor/grupo, bem como apresentar produtividade por meio de resultados quantitativos representados nas diversas formas de avaliações. No entanto, esta ciranda torna-se um dilema no espaço escolar para o coordenador pedagógico.

Os últimos estudos realizados e publicados sobre essa função e suas atribuições na prática educativa revelam que o coordenador pedagógico deve desenvolver seu trabalho numa perspectiva articuladora, formadora e transformadora. Conforme Silva e Sampaio (2015, p. 966),

A amplitude e a dimensão das ações propostas para os coordenadores pedagógicos podem ser identificadas ao se analisar o conjunto de funções a serem exercidas por esse profissional, responsável pela organização dos processos escolares, ação materializada nas funções de articulação, formação e transformação do contexto escolar (Silva & Sampaio, 2015, p. 966).

Esta função de articular as ações pedagógicas da escola e ser responsável pela formação contínua, com vistas à transformação da prática educativa, impõe grande responsabilidade sobre esse profissional. Nesta berlinda entre o desejado e a prática, o coordenador terá que exercer o papel a ele decretado nos documentos de legislação educacional, diante de uma comunidade escolar que sofre diretamente os reflexos da política neoliberal. Assim, surgem três questões em torno do trabalho de coordenação pedagógica, na lógica da gestão gerencial, que buscamos evidenciar neste texto.

Primeiro, que o coordenador lidará como mediador entre as políticas públicas e a prática educativa, trabalhando diretamente com os principais personagens deste contexto: o professor e o educando, no processo ensino aprendizagem. Para trabalhar com o professor é preciso considerar todos os impactos que ele vem sofrendo com as redefinições do papel do Estado nas últimas décadas, como o processo de precarização e desvalorização do trabalho docente. Além disso, é necessário considerar que as políticas públicas também refletem os interesses neoliberais e não as necessidades da sociedade e da educação. Silva e Sampaio (2015) enfatizam que, diante deste quadro, os coordenadores se tornam obrigados a desenvolver um trabalho adaptado aos interesses administrativos gerenciais, o que aumenta a complexidade do papel deste profissional nas escolas. Os autores acrescentam que ao articular as políticas públicas definidas por órgãos centrais, do âmbito nacional, estadual ou municipal, que definem os padrões de qualidade, o coordenador acaba sendo direcionado a desenvolver um papel regulador.

Os antagonismos e os conflitos no interior das unidades escolares se intensificam e as cobranças destinadas ao coordenador pedagógico partem não somente das políticas públicas, mas, também, de toda a comunidade escolar. A culpabilização do profissional da educação pelo sucesso ou fracasso escolar encontra-se impregnada do convencimento de que os resultados estão associados às competências e habilidades, sem considerar as condições mínimas para a efetivação do trabalho na prática. Além disso, o enfoque gerencial significa a privação de direitos políticos e sociais conquistados pela classe trabalhadora que sofre com a instabilidade e más condições de trabalho, crescendo significativamente o número de profissionais docentes insatisfeitos e com saúde fragilizada. Sendo assim, torna-se difícil para o coordenador pedagógico lançar propostas reflexivas no espaço escolar. Esta tarefa requer habilidades conscientes voltadas à articulação, não somente das atividades direcionadas às questões organizacionais do trabalho pedagógico, mas também das problemáticas que giram em torno da dimensão humana de toda a equipe, exigindo do profissional uma clara compreensão do percurso ideológico que envolve todos os aspectos da dinâmica escolar.

A segunda questão levantada refere-se ao seguinte: para se obter bons resultados faz-se necessária a qualificação da equipe. O coordenador pedagógico é quem, dentro da unidade escolar, recebe diretamente a atribuição pelo processo de formação continuada dos professores. De acordo com Placco et al., (2012, p. 761), “as diferentes legislações preveem: atribuições explicitamente formativas; atribuições potencialmente formativas (que constituem a maioria), dependendo do sentido que o coordenador confira a sua ação formativa; e atribuições administrativas”.

O que ocorre nesta questão é que as políticas de formação de professores surgem também na perspectiva de atender às exigências criadas pelo sistema neoliberal e suas influências econômicas e sociais. A política instaurada com foco na qualidade recai sobre os profissionais da educação, sobretudo os professores, num discurso voltado ao desenvolvimento do profissional docente com pré-requisitos, essencialmente na sua formação. Para Silva e Sampaio (2015), o processo de formação, diante deste quadro, torna-se um mecanismo de regulação e de controle, visando fiscalizar o cumprimento das atividades direcionadas e responsabilizadas aos profissionais por órgãos gerenciais externos à escola.

As políticas públicas direcionadas à formação de professores surgem de forma rápida e sem a preocupação de destinar, aos profissionais, espaço e, principalmente, tempo para se dedicarem aos estudos. Problemática que se estende à formação do próprio coordenador pedagógico, a quem também é destinada uma formação insuficiente e, muitas vezes, precária, sendo comum muitos ocuparem a função com pouca experiência e formação profissional inadequada? para atuar na área, comprometendo o processo de construção da identidade do profissional.

Para Placco et al., (2012), a construção da identidade de um profissional está relacionada ao contexto histórico, social e político vivenciado individualmente e coletivamente. Nesse ponto, as autoras ainda evidenciam que a identidade do coordenador torna-se vulnerável e questionável, considerando a dinâmica gerencialista das atividades que lhe foram atribuídas pelo sistema de organização escolar, como o coordenador se relaciona com essas atribuições e como se identifica com a escola e com a função.

A disponibilização de cursos de formação com qualidade representa um fator relevante para o fortalecimento da identidade do coordenador pedagógico, para a conquista da valorização, do reconhecimento e da confiança, diante do contexto de um sistema que oferta espaços de trabalho com características totalmente contrárias a estes preceitos.

Quanto à terceira questão, destaca-se que o coordenador vive em processo de construção de sua identidade profissional, uma vez que esta função e suas atribuições ainda não são bem definidas e respaldadas pelas principais leis que regulamentam a organização do ensino, como a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Senado Federal, 2017). As referências encontradas para esta função são discretas diante da responsabilidade e do papel que exerce no âmbito escolar. Esta situação fragiliza as possibilidades para desenvolver um potencial articulador, formador e transformador, colocando o coordenador numa situação de vulnerabilidade identitária em relação aos outros profissionais. A propósito disto, Ramos (2013) alerta que é preciso ampliar o campo de visão sobre a prática do coordenador pedagógico, reconhecendo a relevância e complexidade do seu papel, reconstruindo sua estima na educação e desconstruindo os olhares negativos diante das demandas burocráticas, rotineiras e urgentes que precisa executar.

Não é de se espantar que boa parte dos profissionais que assumem esta função em muitos estados brasileiros são professores/pedagogos que ocupam o cargo por indicação política. Situação favorável para a gestão gerencial, pois é preciso ter na liderança, profissionais presos aos princípios ideológicos do mercado, de forma que garantam o funcionamento do sistema e que exerçam a função fiscalizadora/controladora.

Não é interessante para a estrutura capitalista gerencial abrigar líderes que abram espaço para debates e discussões, que reflitam sobre a própria prática. Esta concepção atinge os princípios da autonomia, pois

A autonomia relaciona-se a essa capacidade de refletir e analisar a própria prática profissional visando à superação do enquadramento ideológico constituído pela estrutura de poder, bem como a construção de uma perspectiva emancipatória concernente à transformação política da realidade social (Silva & Sampaio, 2015, p. 967).

Na gestão gerencial, a autonomia é compreendida como instrumento fundamental para a propagação ideológica organizadora do mercado. Araújo e Castro (2011, p. 92) afirmam que, “nessa acepção, as pessoas passam a ser responsáveis diretamente por suas decisões no interior na escola, pelo seu sucesso e pelo seu fracasso”. Ainda para complementar, Drabach (2011) esclarece o seguinte:

Portanto, o que acontece no modelo de gestão gerencial é a transferência de funções para a escola em nome da autonomia que traz em seu bojo o significado supostamente democrático. Na verdade, a sua adoção não passa de um mecanismo para viabilizar a implementação de práticas mercadológicas no âmbito educacional (Drabach, 2011, p. 05).

O coordenador pedagógico encontra entraves nesse contexto, pois o trabalho pedagógico, no universo gerencial, está atrelado às políticas educacionais priorizadas pelo mercado. Dessa forma, a autonomia pedagógica das unidades escolares perde força. Mais ainda, a autonomia do coordenador pedagógico, que lida diretamente com o pedagógico, diante do trabalho com o professor e a prática educativa, perde o significado de uma concepção democrática embasada nos princípios da participação. Segundo Drabach (2011, p. 06), o controle sobre o trabalho é o maior sentido destinado à autonomia no modelo gerencial, pois “se por um lado a escola conquista a autonomia por outro é obrigada a prestar contas desta autonomia. Trata-se de uma estratégia de implantação de mecanismo da gestão privada no setor público”.

Desse modo, todo movimento democratizante no espaço escolar que provoca o envolvimento, a participação e a tomada de decisões coletivas, de acordo com Araújo e Castro (2011, p. 93), “servem muito mais para legitimar as ações voltadas para a implementação da cultura organizacional gerencialista do que para fazer com que as pessoas possam participar, democraticamente, com poderes de decisão sobre os rumos da escola”.

Silva e Sampaio (2015) apontam que a autonomia respaldada nos princípios democráticos de participação coletiva torna-se um fator de risco para a gestão gerencial, isso porque seus conceitos estão destinados a ultrapassar a situação de domínio ideológico delimitado por sua estrutura de poder e porque propõe a reflexão e a análise da prática educativa pelos profissionais envolvidos.

Neste sentido, é possível que o coordenador, posto numa condição de se apropriar da autonomia, a partir de um olhar reflexivo dos conceitos que envolvem os processos de gestão gerencial, tenha possibilidade de desenvolver, além do papel articulador e formador, o papel transformador da realidade.

Considerações finais

O estudo evidenciou que a reorganização nas estruturas administrativas, por conta das redefinições ocorridas nas últimas décadas, alcançou as instituições escolares no formato da gestão gerencial. Esse processo se reflete em todas as dimensões que envolvem o trabalho educacional e naqueles que o executam, em específico, no trabalho do coordenador pedagógico enquanto profissional sinalizado como responsável pela organização das atividades pedagógicas das unidades de ensino. Diante desse panorama, é possível sinalizar alguns aspectos que demonstram os reflexos da gestão gerencial no trabalho do coordenador tais como: a precarização e desvalorização do trabalho educacional; a pouca eficácia dos cursos de formação continuada; a desvalorização da função de coordenação pedagógica; o coordenador pedagógico na condição de reprodutor de ideologias neoliberais; e a autonomia como instrumento de responsabilização.

A gestão gerencial organiza-se sobre as bases ideológicas neoliberais, imprimindo a responsabilidade dos resultados aos profissionais da educação. Estes profissionais, por sua vez, vêm sofrendo com a precarização e desvalorização do trabalho, tornando-se frágeis e susceptíveis à desmotivação e ao adoecimento. Esta desvalorização gera resistência e revolta, o que dificulta a articulação das atividades por parte do coordenador, mesmo com propostas participativas e reflexivas, dentro das unidades escolares.

Dentre as atribuições do coordenador pedagógico está a responsabilidade pela formação continuada, no entanto, as políticas de formação direcionadas aos profissionais da educação também foram influenciadas pelas redefinições ocorridas para atender às exigências do mercado capitalista, como forma de controle. Além disso, questiona-se a ausência de formações destinadas ao próprio coordenador pedagógico.

As incertezas diante da função do coordenador pedagógico, ainda fragilizada pelas leis que normatizam a educação, compõem uma situação favorável ao sistema gerencial que exige apenas líderes executores e não reflexivos do processo. Este quadro revela a situação de descrença por parte dos profissionais envolvidos, principalmente nas situações em que o coordenador ocupa a função por indicação política.

A gestão educacional influenciada pela gestão gerencial favorece o funcionamento de uma estrutura organizacional de mercado, respaldada na transferência de responsabilidades por meio de instrumentos reguladores como as avaliações de desempenho. O trabalho do coordenador imprime os reflexos desse processo e encontra grandes desafios, uma vez que precisa articular as políticas públicas impostas pelo governo e a prática educativa. Diante desta situação, o profissional corre o risco de se tornar apenas um reprodutor e/ou executor das ideologias impostas por estas políticas públicas implementadas sob as bases neoliberais, a exemplo das políticas de gestão e de formação de professores, que consequentemente são refletidas no espaço escolar.

A autonomia no contexto de gerenciamento não está vinculada ao poder de decisão, pois, conforme as concepções voltadas aos princípios com bases democráticas, esta deve permitir a participação coletiva. No sistema gerencial, a autonomia caracteriza-se como forma de controle, uma vez que serve como instrumento de responsabilização pelo sucesso ou fracasso dos resultados.

Diante do exposto, o coordenador pedagógico tem encontrado grandes embates e conflitos para conseguir desempenhar um trabalho reflexivo. Este profissional não tem encontrado nem espaço e nem condições para superar as concepções ideológicas dominantes e reguladoras no atual contexto em que estão inseridas as unidades escolares. Apropriar-se da autonomia, no seu sentido mais amplo, como ato de ação e reflexão da prática, e encontrar espaço para construir o papel formador, articulador e transformador tornaram-se tarefas demasiadamente desgastantes, no entanto, necessárias para a mudança do cenário da organização gerencial do sistema educacional. Mudanças que, evidentemente, não dependem e não devem ser destinadas a apenas um profissional, mas a um conjunto de ações coletivas de todos os envolvidos na dinâmica educacional.

Referências

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Recebido: 25 de Maio de 2020; Aceito: 04 de Agosto de 2020

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