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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 20-Ago-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.32069 

Artigos

As tensões do início da carreira docente

Las tensiones del inicio de la carrera docente

The tensions of the beginning of the teaching career

Les tensions des débuts de la carrière de professeur

Flavia Aparecida Machado Fortes1 
http://orcid.org/0000-0002-5188-4470

Adair Mendes Nacarato2 
http://orcid.org/0000-0001-6724-2125

1Graduada em Pedagogia e Psicologia, mestre em Semiótica, Tecnologia da Informação e Educação e doutoranda em Educação pela Universidade São Francisco, campus Itatiba/SP.

2Licenciada em Matemática, mestre e doutora em Educação pela Unicamp, atua no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, campus Itatiba/SP, na linha de pesquisa Educação, Sociedade e Processos Formativos.


Resumo

Este artigo analisa narrativas de cinco professores em início de carreira, que cursaram Pedagogia na modalidade de Educação a Distância (EaD). Visa analisar o processo reflexivo do professor, sua profissionalidade e as tensões vividas no processo de inserção na carreira docente. Para a produção dos dados, utilizou-se a entrevista narrativa tangenciada pelo método biográfico. O ingresso na profissão é acompanhado por situações que geram tensões e inseguranças sobre como realizar as atividades diárias inerentes à docência. Revela também o trabalho solitário do professor e até mesmo o desprestígio por parte dos professores mais experientes em relação ao graduado em EaD.

Palavras-chave Pedagogia; Educação a Distância; Formação; Inserção na carreira docente; Narrativas

Resumen

Este artículo analiza las narrativas de cinco docentes al comienzo de sus carreras, quienes estudiaron Pedagogía en la modalidad de Educación a Distancia (EaD). Tiene como objetivo analizar el proceso reflexivo del profesor, su profesionalidad y las tensiones experimentadas en el proceso de inserción en la carrera docente. Para la producción de los datos, se utilizó la entrevista narrativa rozada por el método biográfico. La entrada en la profesión se acompaña de situaciones que generan tensiones e inseguridades sobre cómo llevar a cabo las actividades diarias inherentes a la docencia. También revela el trabajo solitario del docente e incluso la manera como los docentes más experimentados desprestigian al graduado en educación a distancia.

Palabras clave Pedagogía; Educación a distancia; Formación; Inserción en la carrera docente; Narrativas

Abstract

This article analyzes the narratives of five teachers at the beginning of their careers, who studied Pedagogy through a Distance Education (DE) program. It aims to analyze the reflective process of the teacher, the teacher's professionality and the tensions experienced in the process of insertion in the teaching career. The narrative interview, with a reference to the biographical method, was used for the production of the data. Entry into the profession is accompanied by situations that generate tensions and insecurities about how to carry out the daily activities inherent to teaching. It also reveals the lonely work of the teacher and even the way in which the more experienced teachers discredit the distance education graduate.

Keywords Pedagogy; Distance Education; Training; Entry into the teaching career; Narratives

Résumé

Cet article analyse les récits de cinq professeurs en début de carrière, qui ont suivi la formation de Pédagogie dans la modalité de Éducation à Distance (EaD). Le but est d´analyser le processus réflexif du professeur, sa professionnalité et les tensions vécues dans le processus d´insertion dans la carrière de l´enseignement. Pour la production des données, on autilisél´interview narrative sous l´anglebiographique. L´entrée dans la profession s´accompagne de situations génératrices de tensions et d´insécurités relatives à la manière de réaliser les activités quotidiennes inhérentes à l´enseignement. Cette approche révèle aussi le travail solitaire du professeur et même le discrédit de la part de professeurs plus expérimentés par rapport au jeune diplômé en EaD.

Mots clés Pédagogie; Éducation à Distance; Formation; Insertion dans la carrière de l´enseignement; Récits

Introdução

Em nossas trajetórias vivemos experiências que nos colocam em contato com formas de ver o mundo, jeitos de pensar e que, de alguma forma, impactam em nossa formação. Não passamos imunes pelas experiências; são esses contatos que nos integram ao mundo, e nossas reações a esses eventos constituem quem somos. Como nos constituímos como professores que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental?

Após os anos como alunos no curso de Pedagogia, chega o momento de mudar o papel e assumir-se como professor. Esse novo papel não é algo que desperta automaticamente após o final do curso de licenciatura. É um processo que tem início antes do ingresso na graduação, vai se constituindo ao longo do curso, até que chega o dia de assumir-se como professor e adentrar como docente, pela primeira vez, em uma sala de aula.

O encontro com a profissão nem sempre se desenrola de forma tranquila – muitas vezes é carregado de tensões, incertezas e desafios. Este é o foco do presente texto, que é parte integrante de uma tese de doutorado em Educação, em formato multipaper, desenvolvida com apoio financeiro da CAPES[1]. Tem por objetivo identificar as tensões existentes no processo de inserção profissional na carreira docente e conhecer as percepções dos participantes da pesquisa sobre a prática docente. Para isso, analisam-se narrativas de professores em início de carreira, que cursaram Pedagogia na modalidade de Educação a Distância (EaD).

A pesquisa apoia-se no método biográfico e toma a Entrevista Narrativa (EN) como dispositivo para a produção de dados. Entrevistamos cinco professores (quatro mulheres e um homem), que realizaram a graduação em Pedagogia EaD e residem numa pequena cidade do interior paulista. Seus nomes aqui mencionados são pseudônimos escolhidos por eles: Ana, 41 anos de idade e Bia, 43 anos de idade, ambas graduadas em 2013; Laura, 45 anos de idade, graduada no ano de 2015; Claudia, 22 anos, e Vilela, 23 anos de idade, ambos graduados no ano de 2017. Conhecemos os participantes da pesquisa na rede social Facebook e, à medida que foram se disponibilizando a participar da pesquisa, buscamos identificar os que tivessem a Pedagogia EaD como sua primeira graduação e que não possuíssem experiência anterior em docência.

Após essa identificação, marcamos um encontro com cada docente e realizamos entrevistas narrativas na perspectiva de Jovchelovitch e Bauer (2012). Essas entrevistas foram transcritas e devolvidas aos depoentes para revisão; e seu uso na pesquisa foi autorizado[2].

Passegi (2016, p. 70) considera que a pesquisa com narrativas tem avançado e se consolidado,

no sentido de conceber a especificidade epistemológica das narrativas de si como prática de formação geradora de uma outra forma de produzir conhecimento em Educação, adotando, para tanto, um posicionamento crítico que, sem desconsiderar as aprendizagens disciplinares, centra-se no sujeito da formação e não apenas na formação em si mesma.

Para a análise de dados utilizamos a perspectiva biográfica, proposta por Bolívar (2002), em que as histórias são narradas, entretecendo a teoria com as vozes dos participantes, numa leitura interpretativa. Assim, após leitura cuidadosa das narrativas, buscamos agregá-las em unidades integradas ou temáticas de significados: a profissionalidade docente; a reflexividade e a formação do professor; e tensões da formação. Concluímos o texto com alguns achados da pesquisa e nossas reflexões sobre a análise realizada.

Na próxima seção iniciamos com a primeira dessas unidades integradas, em um movimento em que se entrelaçam a teoria, as narrativas e as análises dos dados. Optamos por não construir uma seção em que apresentássemos o referencial teórico à parte das narrativas, entendendo o quanto as próprias narrativas se evidenciam e se integram ao referencial teórico.

A profissionalidade docente

Ser professor não é algo intuitivo, não é espaço para a reprodução de como “eu aprendi na minha época”; ser professor é uma profissão, repleta de complexidades que envolvem saberes e práticas docentes, que ultrapassam os espaços da sala de aula.

Para Contreras (2012), profissionalidade é o termo utilizado para referir-se ao desempenho, aos valores, às intenções e aos objetivos que se pretende alcançar e que envolvem o processo de ensinar. Essa profissionalidade não surge ao entrar em sala de aula, ela vai se constituindo, formando-se, não só pelo acesso à teoria, mas a partir da oportunidade do exercício da teoria articulada com a prática e perdura durante todo o exercício profissional do professor. Os depoimentos aqui transcritos desvelam esse processo de constituição paulatina e processual da profissionalidade docente. Começamos com a experiência de Ana, que nos conta de sua primeira oportunidade de ingresso na profissão após concluir a graduação. Um misto de medo e insegurança, em uma pessoa que se divide entre querer aceitar o convite e não saber como conduziria a aula.

O primeiro dia de formada, com diploma, foi na escola Conceição. “Ana, dá para você dar aula?” eu não sabia se eu falava sim ou não, eu queria, mas eu falava (pausa). “Será que você pode dar aula em tal horário?” e eu fiquei tão assim (pausa) falei para a menina que estava do meu lado: “vou”. […] Era aqui no [bairro na divisa entre as duas cidades], no Educamais Paraíso. Cheguei lá, aquela escola enorme. Antes de eu sair daqui, falei para minha irmã “E agora? Não tenho atividade, não tenho nada, como que eu vou para o 3º. Ano?” Então a minha irmã falou assim: “Ana, entra na sala, você não fala que é seu primeiro dia, você não fala. Você entra como se você já tivesse dado aula. Daí você se apresenta, conhece as crianças”. Daí eu fiz isso. (Ana, EN, 2018[3], grifos das autoras)

O relato de Ana leva-nos a refletir sobre a forma como a escola se relaciona com os professores iniciantes. Sua narrativa aponta para alguém, o professor iniciante, que vai até uma escola e faz um cadastro para atuar como professor eventual. Após o cadastro, ele poderá ser convidado a lecionar nos dias em que houver ausências de professores, assumindo, assim, a responsabilidade pelas atividades educativas desenvolvidas com a turma. Essa é uma prática bastante usual nas escolas paulistas, desconsiderando a própria concepção de que ser professor requer um repertório de saberes, e o futuro professor ainda se encontra no início da graduação.

Na narrativa de Ana, o medo pela falta de orientação sobre o que fazer com a turma e as preocupações que envolvem ser vista como professora iniciante e inexperiente estão presentes e a fazem pensar em estratégias que a ajudem a superar essa insegurança. Não conseguimos identificar, em seus relatos, quais as orientações recebidas antes de ingressar na sala, que conceitos seriam desenvolvidos e que atividades poderiam ser aplicadas; a única informação presente na narrativa é que era uma turma de 3.º ano.

Eu entrei, me apresentei, perguntei o que eles estavam aprendendo, daí eles falaram que era sobre fábula e eu falei: “Que ótimo, fábula deve ter algum livro aqui”. Só que eu tinha, sim, umas atividades soltas em casa, que eu sempre tive da minha filha mais velha, no computador também, porque minhas irmãs estavam me dando atividades. Preparei alguma coisa para levar, porque eu não quis ir sem nada. (Ana, EN, 2018, grifos das autoras)

A tensão é evidente: por não saber o que fazer em sala de aula, por não ter sido informada sobre qual conteúdo estava sendo trabalhado. Ana tem consciência de que um professor não pode ir para a escola sem nada planejado. Ainda que não saiba o que está sendo trabalhado, é necessário que se organize e planeje sua atuação. Assumir um novo papel profissional envolve um encontro com novas posturas, novas formas de agir, associadas a questões técnicas, que não podem ser esquecidas.

Não estamos falando de um personagem que “faz de conta que é professor” e que assim aplica uma “atividadezinha” para completar a cena; falamos de um profissional que entra em sala e conduz uma turma, tendo como objetivo contribuir com o processo de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos. E que precisa de apoio para, pouco a pouco, sentir-se seguro e efetivamente profissionalizar-se, o que demanda tempo, empenho e aprendizado. Falamos, portanto, da constituição da profissionalidade docente – de natureza complexa, não é apenas uma questão individual, mas uma construção social, que se dá nos contextos de trabalho e envolve comportamentos, conhecimentos, atitudes e valores desse professor (Ambrosetti & Almeida, 2009).

No relato de Bia está claro esse envolvimento com o social. Ela conta que, após concluir a graduação, não se percebia professora:

Foi assim, eu terminei a Pedagogia, eu fiz concurso e passei. Então não caía a ficha que eu era professora. Na minha cabeça eu não me apropriei dessa profissão professora. Todo mundo falava: “você é professora, você é professora”, mas eu não conseguia me ver ainda professora. (Bia, EN, 2018, grifos das autoras)

Aqui nos encontramos com o conceito de excedente de visão discutido por Bakhtin (1997), em que esse movimento de deslocamento de papéis e de percepção pessoal só se torna possível a partir do olhar das outras pessoas. Bia precisou que outra pessoa lhe dissesse que ela não era mais aluna, mas sim professora.

Com efeito, também para Contreras (2012), o desenvolvimento do autoconhecimento envolve ver-se a partir de diversos pontos de vista ou experiências de relacionamento com as pessoas. O depoimento de Claudia (EN, 2018) nos ajuda a materializar essa ideia:

Quando eu comecei a trabalhar na Escola Renascer [escola particular de Educação Infantil] e teve reunião de pais. […] Aí teve a primeira reunião de pais, ela [a diretora] falando para os pais: “Então agora a gente vai passar as atividades, mas se você tiver dúvida, fala comigo ou com a Professora Claudia”. Aí eu fiquei olhando para ela e pensando assim: “Professora Claudia”. Olha só, dela falar foi que caiu a ficha para mim, não posso mais me esconder, agora eu sou a responsável por esta turma e ouvir isso… Nossa, eu adorei, porque é uma coisa que eu sempre gostei, eu gosto de tudo que envolve escola, aí eu a ouvi falar “a Professora Claudia”. Ali pensei: aqui é o meu lugar mesmo. (Grifos das autoras)

Esse momento foi crucial na trajetória de Cláudia; a enunciação da diretora lhe confere o status de professora; agora ela não é mais estudante e se encontra naquele lugar, na escola, como professora. Para ela, a prática docente envolve responsabilidade pelo processo de aprendizagem dos alunos. O início na profissão é um encontro consigo mesma, mas agora com novas responsabilidades. Quem sou neste novo momento de vida? Essa questão coloca o sujeito frente a um processo de autoconhecimento que envolve o novo papel. Assumir esse papel é acompanhado por novos desafios, um sentimento de descoberta, e por um novo repertório de atividades, que envolvem saberes diversos.

Os excertos que até agora lemos evidenciam ser a profissionalidade docente uma construção derivada da vivência do professor. E, nesse processo de aprendizagem docente, a teoria favorece a consciência crítica sobre a prática, e a experiência vai aprimorando as formas de assumir o papel profissional e de refletir sobre a teoria. Os primeiros anos como docente constituem um período de aprendizado, marcado pela necessidade de enfrentamento de desafios e inseguranças e requer uma rede de apoio em que as práticas possam ser discutidas e partilhadas (Ambrosetti & Almeida, 2009).

Ter essa percepção da formação da profissionalidade no decorrer do exercício docente implica também conhecer a natureza dessa profissionalidade. Contreras (2012) aponta para três dimensões da profissionalidade: a obrigação moral diz respeito às questões éticas que envolvem o trabalho como professor; o compromisso com a comunidade faz da profissão docente uma responsabilidade que se assume publicamente e que não acontece de forma isolada; e a competência profissional articula os saberes técnicos com a habilidade de desempenho.

Nóvoa (1995b) amplia essa análise e acrescenta que a identidade profissional é um espaço de ser e de estar na profissão, um lugar de lutas e de conflitos, de apropriação da própria história pessoal e profissional. Roldão (2005), por sua vez, reitera que a profissionalidade é um processo que se desenrola ao longo de toda a vida do professor. Um encontro com as novas realidades, com o espaço escolar, a ocupação deste espaço assumindo um novo papel, agora de professor. São diversas novidades para esta pessoa que está iniciando a carreira docente e seus aprendizados na nova profissão. Esse era o movimento vivido por Claudia, também experimentado por muitos de seus colegas iniciantes na profissão docente.

Com efeito, ao conhecermos as histórias de professores que participaram da pesquisa, a alternância das memórias de aluno para o papel de professor foi se apresentando e, junto com essas imagens, situações de tensões e conflitos se evidenciaram. A expectativa sobre sua vida profissional e sobre o início na carreira é posta nos depoimentos de forma clara, para que dela possamos saber.

Bia, por exemplo, relata que, ao concluir a graduação, foi aprovada em um concurso público para professora na rede municipal de ensino da cidade onde reside.

Aí, quando eu passei para Educação Infantil, no concurso, e fui no dia da atribuição e peguei uma sala, o Infantil 3, que estava disponível. Peguei uma sala com crianças de 3 anos e meio, então eu peguei uma turminha boa que estava vindo da creche, essas crianças que já tinham o convívio, só que eram indisciplinadas, apesar da idade, e peguei essa sala. Então, assim, o primeiro momento foi (pausa) eu pensar: “é isso que eu quero?”. Quando eu cheguei na escola, primeiro é que todo mundo que te vê fala: “Essa é nova, né?”. A pessoa já não te dá crédito nenhum. (Bia, EN, 2018, grifos das autoras)

A oportunidade de começar a atuar como professora concursada e assumir uma sala de educação infantil é narrada por Bia inicialmente com uma expectativa positiva, pois entendia que, por terem passado pela creche, as crianças de sua primeira turma conseguiriam integrar-se e socializar-se sem grandes dificuldades. Na sequência, entretanto, a fala de Bia é invadida por uma preocupação, ao constatar serem crianças indisciplinadas (e podemos questionar: o que são crianças indisciplinadas com 3 anos de idade?). Essa situação a leva a refletir se esse era o tipo de trabalho que desejava assumir. Não bastassem as primeiras tensões com a turma, o encontro com os outros professores é cercado de julgamento e não de apoio. Ela continua sua narrativa:

Quando eu cheguei já foi assim, não foi muito bom, porque eu não tive uma recepção das pessoas chegarem e me mostrarem onde estavam as coisas, me informarem. Por mais que eu fizesse o estágio ali, eu não sabia onde estavam as coisas. Apenas só falaram: “Lanche é tal hora, entrada é tal hora, saída é tal hora”. Me deram a lista das crianças e depois que foi falado você tem que fazer isso e você tem que fazer aquilo. Mas, quando eu entrei a primeira vez e recebi as crianças, que foi o dia de adaptação, então assim, dá aquele frio, dá aquela vontade de falar: “Gente, acho que eu estou no lugar errado, deixa eu ir embora”. Eram 20 alunos, de 3 anos e meio a 4 e eram alunos bastante arteiros, bastante indisciplinados, já vinham alunos que não gostavam de sentar em roda, queriam brincar o tempo todo e não deixavam você falar um minuto. (Bia, EN, 2018, grifos das autoras)

A professora iniciante, ao ver-se em um espaço novo, com colegas que não a recepcionaram da forma como ela esperava, não tendo recebido as orientações pedagógicas suficientes para lhe dar respaldo e segurança para o exercício da atividade profissional, cogitou se estaria de fato preparada para continuar na profissão. Bia sentia-se fora de seu contexto; tudo lhe era muito tenso.

A tensão parece ser nota constante no exercício inicial da profissão docente. Vilela também deixa ver esse sentimento, ao revelar como foram para ele os primeiros contatos com a profissão. Sua oportunidade inicial como docente foi em um projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A dificuldade reportada por ele é que os alunos do curso ou tinham idade acima da sua faixa etária ou muito próxima a sua, o que causava questionamento sobre a profissionalidade desse jovem professor no exercício da docência.

Uma situação de indisciplina que aconteceu em minha sala de aula e que eu contornei e depois parei para pensar e teria outras maneiras de contornar, mas foi extremamente complicado, no momento foi uma questão de uma conversação exacerbada e eu pedia e falava e nada. Então a conversação começou a tomar um palavreado não condizente e eu peguei e simplesmente joguei o livro em cima da mesa. Isso de noite, as duas últimas aulas de Matemática, todo mundo cansado, a galera trabalhava e era um EJA, então eu tinha lá pessoas muito velhas e pessoas muito novas e as que me davam problema eram as muito novas e como minha diferença de idade era mais ou menos, tinha aquela coisa, “moleque me dando aula”. (Vilela, EN, 2018, grifos das autoras)

O que mais incomodou o professor Vilela na condução da turma foi o excesso de conversa entre os alunos. O interessante é que, quando narra suas experiências como aluno no ensino fundamental, esse mesmo comportamento de “falar muito” é descrito como uma de suas características de aluno.

Algumas falas da professora eu lembro muito bem. Ela sempre falava que eu era um bom aluno, que eu tinha capacidade, mas que eu tinha que parar de conversar um pouco, porque eu falava demais (risos). Tanto é que, por duas vezes, minha mãe foi chamada na escola, em função dessa conversação exacerbada. Foi engraçado que depois que eu comecei a fazer Pedagogia eu realmente vi que, às vezes, na maioria das vezes, não é tão culpa do aluno assim quanto a gente pensa, mas, tem que se regrar também (pausa). (Vilela, EN, 2018, grifos das autoras)

Agora, como professor, alguns comportamentos do aluno são vistos como indisciplina e surgem as dúvidas sobre como conduzir essas questões em uma sala de aula. Huberman (1992, p. 39) aponta que “a distância entre os ideais e as realidades quotidianas da sala de aula, a fragmentação do trabalho, a dificuldade em fazer face simultaneamente, à relação pedagógica e à transmissão de conhecimentos” envolvem o professor iniciante.

Embora em situação diversa e por razões diferentes das de Vilela, a experiência da recém-formada Ana, como professora eventual, foi também difícil. Ela relata um momento de dificuldade neste processo de aprendizado da docência:

O momento que foi difícil, foi no 3.º ano, que eu comecei a passar na lousa, eu lembro (pausa). E as crianças que não escrevem, a criança que não faz? Eu pensei: “e agora como que eu vou fazer? Um faz e o outro não faz”, então eu dei jogos. O que eu fiz, eu vi que tinha um armário aberto e pensei: “vou ver o que tem”. Um aluno veio e me falou: "professora eu não sei escrever”, eu falei assim: “letra de mão você não sabe?”, e ele respondeu: “Não”. E eu disse para ele: “Então eu vou colocar de forma”. Ele falou de novo, “Mas eu também não sei”. Eu pensei: “eu não vou deixar a criança sem fazer nada”. Eu dei um quebra-cabeça para um, tinha uns jogos silábicos lá que alguns alunos já sabiam, então eu vi que já sabiam escrever, mas tinham dificuldade. Dei jogos, porque eu falei: “o que eu vou fazer?”. Não tinha uma auxiliar na sala para acompanhar, não sabia se as crianças tinham laudo ou não. Ninguém me orientou em nada, mas daí eu registrei tudo e depois passei na coordenação, porque a professora estava de licença. (Ana, EN, 2018, grifos das autoras)

Para Ana, “passar lição na lousa” parece ser uma prática docente naturalizada, raramente questionada pelos professores, se esse é o caminho para a aprendizagem do aluno; entretanto, considera um compromisso de o professor atender a todos os alunos, ainda que lhe faltem informações e condições para isso. É perceptível uma queixa sobre a falta de condições de trabalho e de orientação por parte da direção e da coordenação, o que evidencia que o professor iniciante precisa assumir sozinho suas responsabilidades na escola, sem apoio: é colocado em uma sala de aula sem conhecimento algum do nível de desenvolvimento de seus alunos e sem saber fazer qualquer diagnóstico de seus alunos, nem mesmo para poder planejar suas aulas.

Não obstante, Day (2004) considera que, embora falte aos professores o conhecimento necessário para assumir, sozinhos, uma sala de aula, eles têm consciência do desafio que enfrentam nos contextos sociais em que ensinam e acreditam que podem fazer a diferença na aprendizagem e no aproveitamento escolar de seus alunos. Por isso, é comum recorrerem a lembranças de seus próprios professores para valer-se, em sua prática docente inicial, dos aspectos que julgam ter sido positivos para a aprendizagem.

Reflexividade e a formação do professor

Os depoimentos aqui reportados certamente informam que o cotidiano é, de fato, como pondera Pais (2007), um terreno de reflexividades, que envolve uma referência a algo, colocando-se como parte desse algo. Neste processo, apresentam-se dois tipos de reflexividade: a reflexividade impositiva orientada pelo passado, como norma social; e a reflexividade transformadora, orientada para o futuro, capaz de proporcionar o protagonismo do indivíduo em sua relação com o social.

A possibilidade de reflexividade transformadora será tanto mais socialmente emancipatória quanto mais protagonizada por grupos sociais sujeitos a algum tipo de denominação ou exploração: por exemplo, jovens que procuram afirmar a sua identidade por meio de culturas performativas e estéticas; ou, ainda, mulheres que, no campo profissional, manifestam a sua vontade de ser reconhecidas pelo que fazem. (Pais, 2007, p. 43)

Ao ir se percebendo docente, os encontros com os professores do passado acabam atuando como um repertório do que se espera de um professor, que fica impregnado nas lembranças e do qual o professor iniciante tenta se aproximar: “Você não é só a professora da sala de aula, você acaba sendo a orientadora também da família, porque você acaba percebendo coisas que a mãe não está tendo tempo de perceber” (Bia, EN, 2018, grifos das autoras).

O professor que apoia, que acolhe e orienta é uma imagem construída por Bia como referência de bom professor e aparece várias vezes em suas narrativas. A responsabilidade assumida como professora é vista na fala de Bia (EN, 2018): “Você tem que saber o que os seus alunos estão precisando naquele momento. Você vai aplicar conforme o que está acontecendo ali”.

Bia apropria-se de uma resposta do que a sociedade espera da professora, confundindo ou fundindo o que acredita que seja o papel da professora e o que é o papel da mãe, do qual ela possui domínio pela experiência. Pais (2007, p. 27) aponta que “o desenvolvimento do eu depende sempre do domínio das respostas apropriadas às expectativas dos outros”. A resposta de Bia talvez preencha uma lacuna que ela, como mãe, gostaria de ver atendida quando buscava respostas para as dificuldades de aprendizagem que sua filha mais nova teve no processo de alfabetização. É claro também nessa fala um discurso que perpassa os cotidianos escolares: “trabalhar de acordo com as necessidades dos alunos”. Sem dúvida, o professor sempre precisa partir do ponto em que seus alunos se encontram, mas sua responsabilidade profissional é promover avanços no desenvolvimento deles.

Para Pais (2007), as convenções do cotidiano colocam o indivíduo diante de uma realidade normativa que reflete na forma de viver do indivíduo. “Então é assim, você se depara quando você trabalha em um lugar que tem muitas pessoas mais velhas de profissão, você se depara muito com esses questionamentos, principalmente você que veio de uma faculdade EaD, a distância, barata” (Bia, EN, 2018, grifos das autoras).

Há, na fala de Bia, uma busca por ocupar seu lugar como professora. Neste adentrar no novo espaço profissional, procura aceitação e reconhecimento de que, mesmo iniciante na carreira, possui conhecimentos que a habilitam para a docência. Portanto, cabe aqui considerar a proposição de Pais (2007, p. 30) de que “são os outros que falam de mim sem que eu saiba, que me objetivam encerrando-me numa imagem que é mais real do que a realidade de quem sou”. A professora Bia precisa provar a si e aos outros que ela não aceita a imagem imposta por alguns colegas sobre uma possível limitação de seu potencial educativo, por ter realizado Pedagogia EaD. No entanto, ela mesma fala em tom pejorativo do curso que realizou nessa modalidade, um curso “barato”. Na sequência de sua fala, porém, Bia tenta qualificar a sua formação.

Hoje o que eu percebo na minha linha de trabalho é o quanto é discriminado o EaD. Na minha profissão eu percebo muito isso, eu percebo na fala assim: “Ah, porque, hoje em dia, é só fazer uma faculdade de Pedagogia online que está aí dando aula”. Eu percebo isso nos meus colegas. Eu trabalho na Educação Infantil e lá as professoras já estão há muito tempo, quase se aposentando, então as professoras têm a visão da coisa rápida, mal feita, porque foi feita rápida, é o mais barato e não é bem assim, porque igual eu falo: “gente, vai da postura da pessoa, todo mundo aqui fez faculdade e se presencial ou não, vai do seu interesse da pessoa, tem gente que não vai na aula, paga trabalho, paga TCC, paga tudo”. Eu falo por mim, eu defendo o que eu fiz porque para mim foi bom. Eu não tive base nenhuma antes, eu não fiz magistério, eu não tenho nenhuma base, então o que eu tenho hoje e com o que eu trabalho é o que eu fiz, é o meu ensino e eu saí da faculdade e já consegui passar no concurso porque era bem atual. (Bia, EN, 2018, grifos das autoras)

A desvalorização do professor que realizou a graduação EaD pode ser observada nesta narrativa como algo internalizado por aqueles que fizeram um curso presencial – uma tentativa de estabelecer comparações e marcos sobre o modo como se forma um bom professor. Por outro lado, a aluna Bia relata que concluiu o curso e conseguiu ser aprovada em um concurso público, deixando-nos claro que ela possuía a teoria para realizar uma prova de conhecimentos, mas sente-se insegura com relação ao repertório relacionado à prática diária do professor.

Vilela também narra suas percepções sobre a receptividade dos colegas e da instituição à chegada de uma nova pessoa na equipe, um professor iniciante.

Nunca foi verbalizado, mas eu sabia nas entrelinhas que realmente era aquilo. As falas dela [da coordenadora] eram para me dizer o tempo todo que o meu trabalho não estava sendo suficiente, quando, na minha visão, eu não estava e não estou recebendo, até hoje, subsídios para fazer um trabalho 100%. Hoje meu trabalho está em 70%, tudo que está sendo pedido eu estou fazendo, mas poderia ser muito melhor, se, por exemplo, eu tivesse um tempo de sentar com a minha coordenação e falasse: “vamos lá, como é que faz isso daqui, você pode me dar um modelo, você pode exemplificar? Isso que eu fiz desta maneira está certo? Está errado?”. (Vilela, EN, 2018, grifos das autoras)

O tempo é a medida do movimento, seu ritmo, seu tom, sua qualidade, mas também temos nosso próprio ritmo: “aquele que é próprio do nosso sentir, onde nos afinamos ou não com outros ritmos internos (consigo mesma/o) e os externos (os outros/ as coisas/ a natureza)” (Pineau, 2003, p. 13).

A ausência de orientação pedagógica aparece novamente nas narrativas como um aspecto negativo na atuação profissional. Defendemos que essa orientação da coordenação não é esperada apenas por professores iniciantes, pois é preciso um acompanhamento constante, que dê condições para que os objetivos pedagógicos sejam alcançados.

Os cursos de Pedagogia despertam o aluno para um tempo de descobertas sobre a sala de aula e para o que é ser professor. Abreu (2017, p. 117) considera este momento um “desvelamento do lugar da formação, não somente nas ditas quatro paredes das salas de aula, mas em todos os espaços, como grávidos que estão desse tempo, ou dessa sucessão de momentos”. Após gestar-se como professor, todo encontro com o novo profissional é um encontro com um novo eu, que passa a ocupar novos espaços, antes apenas idealizados.

Para Marcelo (2009, p. 20), “os primeiros anos de docência são fundamentais para assegurar um professorado motivado, implicado e comprometido com a sua profissão”. A experiência profissional é um processo de construção profissional em meio a uma relação de pertencimento. Nesse processo, os professores se definem a si mesmos e aos outros (Marcelo, 2009). Uma construção que se dá com o tempo de atuação na docência e que pode ser influenciada pela escola, pelos contextos políticos, pelo conhecimento sobre os componentes curriculares que ministram, pelas metodologias utilizadas para ensinar e pelas experiências passadas.

Larrosa Bondía (2002, p. 25) define que a experiência – e também o sujeito da experiência – “tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade e sua ocasião”. O professor iniciante vai se encontrando com suas características pessoais, com a realidade da escola, a relação com os colegas e se expondo, na tentativa de tornar-se parte desse espaço. Ao longo da vida profissional, o professor vai atribuindo sentido ao que acontece.

Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos passa. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. (Larrosa Bondía, 2002, p. 27)

Esses sentidos que o recém-graduado vai atribuindo e impregnando ao professor em constituição colocam em evidência a prática profissional. As tensões, as angústias e as inseguranças estarão presentes e fazem parte do aprendizado profissional, e os pares, os colegas de trabalho, são vistos pelos ingressantes como possibilidade de apoio e de troca de saberes práticos.

Não adianta, as minhas frustrações, as minhas angústias de sala de aula só vou conseguir ter uma clareza disso tudo com o outro, não vou conseguir em livro. Eu posso ter as teorias todas, mas eu posso chegar na sala de aula e não conseguir aplicá-las, porque vai ser a minha angústia ali, então a hora que eu falar: “Fulana, sabe aqui, eu dei uma atividade assim e eu não consegui atingir o resultado” e você vai falar: “Bia, olha, na minha turma eu apliquei dessa maneira e o resultado foi diferente”. Isso é aprendizado. (Bia, EN,2018, grifos das autoras)

A formação docente se compõe em uma relação de avanços e recuos, um processo que envolve o saber, o conhecimento e a identidade pessoal (Nóvoa, 1995a). Bia narra sua percepção e frustração, ao reconhecer que não estava preparada para assumir-se como docente e ao constatar a importância da troca entre os pares nesse processo de adequação à profissão. Tornar-se professor não é tarefa isolada, apesar de individual, pois só é possível ser realizada no coletivo, no contato com o outro, na imagem construída de si e dos outros. Não há professor sem aluno, o eu não existe sem um outro. Na construção de seu repertório de saberes e de interações com os outros, o professor também terá marcas em seu processo de apropriação do espaço e de constituição de sua imagem profissional.

Monteiro (2003, p. 239), ao discorrer sobre a formação do professor, considera que essa formação acontece

como uma aprendizagem plural e complexa, formada pelo conjunto de conhecimentos, crenças, valores, provenientes de vários contextos e circunstâncias entrelaçados às diversas experiências e interações vividas pelos sujeitos nas suas histórias pessoais e profissionais que se prolonga por toda a vida profissional.

Esse processo precisa ser permeado pela reflexividade do professor, e as entrevistas narrativas abrem possibilidades para refletir sobre a trajetória de formação e profissional e para identificar as vivências que, de fato, se transformaram em experiências, porque tocaram e transformaram o sujeito da reflexão (Larrosa Bondía, 2002). No entanto, esse processo é sempre marcado por tensões, seja na formação inicial, seja na continuada. Esse é o foco da próxima seção.

As primeiras vivências como docente

Ao concluir a graduação, o agora professor se depara com novas expectativas e novas vivências. Questionados sobre este momento e sobre seu preparo para assumir os desafios da nova profissão, os entrevistados foram unânimes em dizer que não se consideravam preparados.

Não estar pronto para o exercício docente é uma peça que não se encaixa, quando tentamos relacionar o curso de graduação com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Pedagogia. O artigo 5.º das DCN determina que o curso de formação de professores deve assegurar o processo emancipatório e permanente,

bem como […] a especificidade do trabalho docente, que conduz à práxis como expressão da articulação entre teoria e prática e à exigência de que se leve em conta a realidade dos ambientes das instituições educativas da educação básica e da profissão (Conselho Nacional de Educação [CNE], 2015, p. 6).

Determina ainda, no artigo 13, parágrafo 3.º, que “deverá ser garantida, ao longo do processo, efetiva e concomitante relação entre teoria e prática, ambas fornecendo elementos básicos para o desenvolvimento dos conhecimentos e habilidades necessários à docência” (CNE, 2015, p. 11). Se olharmos para um atendimento pleno a estas questões apontadas nas DCN, poderíamos supor que o profissional saia preparado do curso para o exercício profissional. No entanto, sabemos que isso não acontece. A graduação é apenas uma etapa da formação, que precisa ser vista como um continuum.

Claudia e Bia narram como se sentiram, ao concluir o curso de graduação e revelam sua percepção de estar ou não preparadas para iniciar a carreira docente.

Não. De jeito nenhum. Nossa, eu saí do curso e a primeira coisa que eu falei para minha mãe foi: “mãe eu acho que eu não sei nada”, e ela falou assim: “como assim você não sabe nada, quatro anos e você não sabe nada?”. E eu fiquei: “será que eu estou preparada mesmo para assumir uma sala?”. Mas eu acho que é a mesma coisa do começo do curso, aquela insegurança de “será que vai dar certo?”. (Claudia, EN, 2018, grifos das autoras)

A narrativa de Claudia aponta para uma questão muito pessoal, uma insegurança movida pelo novo, pelo desconhecimento de como será o cotidiano profissional. Diferentemente, o relato de Bia traz à tona o aprendizado pela prática profissional e pelas trocas com os colegas de profissão.

Não, eu acho que o curso não prepara, eu acho que o que te prepara é o ambiente de trabalho. O que te prepara são as experiências com o outro. O que te prepara é que, se hoje eu dei a minha aula e ainda eu posso compartilhar com a minha amiga o que aconteceu e ela compartilhar comigo o que aconteceu na aula dela, a gente vai crescendo uma com a outra. Eu acho que isso é o que prepara você. (Bia, EN, 2018, grifos das autoras)

Ou seja, a formação ocorre na interação com os outros: os professores do curso, os colegas estudantes, os pares da escola, os alunos, a comunidade, a gestão escolar. Aprendemos e nos desenvolvemos com e pelo outro. Concluir a graduação não é sinal de finalização do processo de formação do professor; o cotidiano escolar, a prática docente, a participação em ações de formação continuada integram esse processo contínuo e dinâmico, no qual “o professor direciona sua formação a partir das exigências postas pela sua atividade profissional” (Oliveira, 2003, p.23). O ambiente escolar favorece a significação das teorias estudadas ao longo do curso, o que faz parte do processo de integrá-las ao exercício da profissão, sem negá-las. Talvez esse seja o maior desafio na formação docente. Esse tipo de enunciação: “a teoria na prática é outra”, tão comum entre os professores, revela o quanto a formação não possibilitou a reflexividade para compreender que não existe prática sem teoria, nem teoria sem prática; elas são indissociáveis.

Nas falas dos entrevistados manifestam-se tensões sobre a formação e sobre a forma como ela é vista pela sociedade e como eles mesmos percebem esse processo. Para Oliveira (2010, p. 138), “as tensões são manifestadas, nos discursos, pelas contradições, rupturas e dilemas constituídos por conta do espaço – isolamento – que separa as categorias de discursos, os discursos historicamente consolidados na prática pedagógica e um novo discurso”.

Ana, numa postura crítica, relata sua percepção ao concluir a graduação, apontando para a necessidade da formação continuada, pois a aprendizagem é ao longo da vida; e a formação acadêmica é apenas o início, como afirma Ana:

O curso preparou, mas a gente precisa sempre mais. Não posso pensar assim, o curso me preparou, me preparou sim para começar. Para começar me preparou sim, mas hoje eu vejo que a gente não tem como parar. Foi um bom preparo para o começo, mas a gente não deve parar. (ANA, EN, 2018, grifos das autoras)

Para Imbernón (2010, p. 79), a formação do professor deve permitir

uma visão crítica do ensino, para se analisar a postura e os imaginários de cada um frente ao ensino e à aprendizagem, que estimule o confronto de preferências e valores e na qual prevaleça o encontro, a reflexão entre pares sobre o que se faz como elemento fundamental na relação entre pares na relação educacional.

Para Vilela, o que acontece é o distanciamento entre a teoria e a prática, deixando o graduado com a percepção de não estar preparado para o exercício docente.

Eu saí preparado da faculdade para fazer uma pesquisa sobre a área da Pedagogia, isso eu saí preparadíssimo … vejo que foi muito ensinado a pesquisar, a procurar e pouco ensinado a lidar com as situações cotidianas e isso falta, isso faz muita falta, porque é aí que o professor vai sofrer e digo mais, é aí que o professor novato vai entrar na sala de aula e vai sofrer uma síncope, uma depressão ou vai querer simplesmente abandonar a sala de aula, é isso que vai acontecer. (Vilela, EN, 2018, grifos das autoras)

Pesquisa desenvolvida por Marcelo (2009) aponta que há, nos discursos na sociedade, uma insatisfação com a capacidade de formação gerada pelas Instituições de Ensino Superior (IES) e com os profissionais que estão se graduando. O autor faz uma crítica à burocratização das IES e a um visível divórcio entre a teoria e a prática, além de uma excessiva fragmentação do conhecimento ensinado, o que tem fragilizado os cursos de graduação. Marcelo (2009) aponta como saída para esta situação a formação continuada. Nessa mesma perspectiva, Nóvoa (2007, p. 8) propõe novos modelos de organização da profissão:

Grande parte dos discursos torna-se irrealizável se a profissão continuar marcada por fortes tradições individualistas ou por rígidas regulações externas, designadamente burocráticas, que se têm acentuado nos últimos anos. Este paradoxo é bem conhecido dos historiadores: quanto mais se fala da autonomia dos professores mais a sua acção é controlada, por instâncias diversas, conduzindo a uma diminuição das suas margens de liberdade e de independência.

Os professores, em suas narrativas, apontam lacunas na formação, mas também reconhecem que a formação não se encerra com o final da graduação. As tensões marcam o início da profissão, principalmente pela falta de apoio da comunidade escolar e pela ausência de um trabalho coletivo na escola. Eles clamam por essa coletividade na escola. O docente iniciante precisaria ter um professor experiente ou gestor que o acolhesse e o fizesse sentir-se seguro para o exercício da profissão.

Considerações Finais

Ao nos colocarmos à escuta dos professores, fomo-nos encontrando com histórias que não são isoladas, tomados por uma sensação de que essas histórias se repetem e também fazem parte da história de formação de outros professores. As cidades, as regiões, as escolas são outras, as vivências são únicas, mas os enredos parecem se repetir.

Ao transitar de aluno a professor iniciante, há um confronto entre as expectativas que acompanharam o indivíduo durante o curso de graduação e o cenário real com o qual se depara, evidenciando que nem tudo o que ele esperava e idealizava será encontrado na escola. A percepção de não estar preparado para a atuação profissional se fortalece nas vozes dos participantes, e cabe-nos levar essa discussão para dentro das instituições de ensino superior que ofertam cursos de Pedagogia EaD, em busca de encontrar alternativas para superar essa distância entre a sala de aula da graduação e sala de aula em que o graduando irá exercer a função de professor. Práticas formativas reflexivas são essenciais para compreender que a formação acadêmica não dá conta de tudo o que o futuro professor necessita; a aprendizagem ocorre também no contexto de trabalho, na troca com os pares e no convívio com os alunos, de modo que a teoria se articule com a prática.

Assim, é necessário desenvolver uma postura crítica e investigativa do professor, sempre aberto a novas possibilidades de aprendizagem. Também é preciso ter em mente que nenhum curso de graduação é suficiente para construir um repertório de saberes para o exercício da profissão. Se as instituições formadoras possibilitarem essas práticas reflexivas, o egresso do curso de Pedagogia talvez lide com mais tranquilidade com as tensões que enfrenta no início da carreira.

Os depoentes denunciam a ausência de uma postura orientadora por parte da coordenação pedagógica da escola, que recebe o professor inexperiente, mas não tem uma ação específica para essa recepção. Talvez este seja um ponto a ser explorado em trabalhos futuros, em busca de conhecer as efetivas ações que coordenadores pedagógicos estão desenvolvendo com os professores iniciantes. Também acreditamos que essas dificuldades e a constatação de que o trabalho docente é solitário envolvem professores egressos de curso de Pedagogia em geral, e não apenas os de EaD. Enfim, a docência é marcada por uma prática solitária, pela ausência de trabalho coletivo na escola.

Referências

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[1]O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

[2]O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade, e os participantes assinaram o Termo de Consentimento.

[3]Em cada narrativa apresentada grifaremos as falas que emergiram e serão objeto de análise.

Recebido: 16 de Junho de 2020; Aceito: 18 de Agosto de 2020

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