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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília ene./dic 2020  Epub 01-Sep-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.31908 

Artigos

Disputas pela escola pública: contribuições históricas para pensar o trabalho docente

Disputas por la escuela pública: contribuciones históricas para pensar en el trabajo de docente

Disputes for the public school: historic contributions to think about teaching work

Différends sur l’école publique: contributions historiques à la réflexion sur travail d’enseignement

Deise Ramos da Rocha1 
http://orcid.org/0000-0002-5608-9425

Álvaro Luiz Moreira Hypolito2 
http://orcid.org/0000-0003-1487-0413

1Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Pesquisadora do CEPE/UFPel - Centro de Estudos em Políticas Educativas, e do GEPFAPe/UnB - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Formação e Atuação de Professores.

2Doutor (PhD) em Curriculum and Instruction na Universidade de Wisconsin - Madison. Professor Titular da Universidade Federal de Pelotas. Atualmente é o Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação. Coordenador do CEPE - Centro de Estudos em Políticas Educativas da UFPel.


Resumo

Neste ensaio propomos compreender os sentidos do trabalho docente constituídos na historicidade dos embates por um projeto hegemônico de educação pública escolar. Realizamos buscas epistemológicas nas correntes filosóficas que embasam a escola moderna, analisando multideterminantes históricas que fomentam sentidos da escola pública, e possibilidades de sentidos para o trabalho docente. Concluímos que o humanismo tradicional cristão estabelece sentido centrado no conhecimento orientado pela igreja; o humanismo moderno forma sentido ambivalente entre a profissionalização e a vocação; e o humanismo neoliberal empenha ao professor a mediação da autoaprendizagem, ocasionando a perda de sentidos.

Palavras-chave Defesa da Escola Pública; Projeto de Escola; Trabalho docente; Sentido do trabalho docente

Resumen

En este ensayo proponemos comprender los sentidos del trabajo docente constituido en la historicidad de los enfrentamientos por un proyecto hegemónico de educación en escuelas públicas. Realizamos búsquedas epistemológicas en las corrientes filosóficas que apoyan la escuela moderna, analizando multideterminantes históricos que fomentan los sentidos de la escuela pública y las posibilidades de los sentidos para el trabajo docente. Concluimos que el humanismo cristiano tradicional establece un sentido centrado en el conocimiento orientado por la iglesia; el humanismo moderno forma un sentido ambivalente entre profesionalización y vocación; y el humanismo neoliberal involucra al maestro para mediar en el autoaprendizaje, causando pérdida de sentido.

Palabras clave Defensa de La escuela pública; Proyecto escolar; Trabajo docente; Sentido del trabajo docente

Abstract

In this article we propose to understand the meanings of the teaching work constituted in the historicity of the clashes by a hegemonic project of public school education. We carry out epistemological searches in the philosophical currents that support the modern school, analyzing historical multideterminants that foster public school meanings, and possibilities of sense for teaching work. We conclude that traditional Christian humanism makes sense centered on church-oriented knowledge; modern humanism forms an ambivalent sense between professionalization and vocation; and neoliberal humanism engages the teacher to mediate self-learning, causing loss of sense.

Keywords Defense of public school; School Project; Teaching work; Meaning of teaching work

Résumé

Dans cet essai, nous proposons de comprendre lo sens du travail pédagogique constitué dans l'historicité des affrontements par un projet hégémonique de l'enseignement scolaire public. Nous avons réalisé recherche épistémologique dans lês courants philosophiques qui soutiennent une école moderne, analysant les multidéterminants historiques qui faire la signification des écoles publiques et les possibilités de sens pour l’enseignement. Nous concluons cet humanisme chrétien établit sens centralisé en connaissance orienté vers l’église ; l'humanisme moderne forme un sens ambivalent entre professionnalisation et vocation; et l’humanisme néolibéral influence l’enseignant la médiation de l’auto apprentissage, conduisant à une perte de sens.

Mots clés Défense de l’école publique; Projet scolaire; Travail d'enseignement; Sens du travail d'enseignement

A escola, como espaço propositivo para as transformações sociais, implica em si sentidos políticos e pedagógicos, construídos por signos e significados historicamente localizados. Neste ensaio, nos propomos compreender os sentidos do trabalho docente constituídos na historicidade dos embates por um projeto hegemônico de educação pública escolar. Chegar nessa compreensão envolve ter que fazer uma busca epistemológica, de conceitos, perspectivas, correntes filosóficas e paradigmas que vão constituindo a escola moderna ao longo da história. Logo, este trabalho tem a intenção de captar multideterminantes históricos, que medeiam processos e fomentam os sentidos da escola pública contemporânea, assim como algumas possibilidades do sentido construído para o trabalho docente.

Iremos, assim, realizar um debate filosófico sobre os paradigmas sociais que permeiam o pensamento pedagógico na constituição de um projeto de escola pública, no debate da função dessa instituição, do professor, e na captura da função que define o trabalho docente e possíveis relações com o sentido do trabalho. Nossa premissa é de que o trabalho vai constituindo um projeto de educação pública, e que um projeto de sociedade institui esse trabalho, e estabelecendo a concretude das relações dessa sociedade pensada (ou idealizada), a partir da materialidade dos fenômenos, da realidade em que a sociedade vive em sua época.

As diversas correntes filosóficas e os paradigmas sociais vão se constituindo e se estabelecendo também nessas relações, e entre si, entre disputas que ora ocupam a posição contra-hegemônica, ora tornam-se hegemônicas, mesclando e adentrando na formação da escola pública. A partir disso, podemos estabelecer, como ponto de partida para esse debate, que a história da escola pública moderna e contemporânea é também a história dos professores e das professoras, do trabalhador docente e do papel social que ocupa na marginalidade da sociedade ocidental, sobretudo, a brasileira.

Caminhos metodológicos

Este ensaio foi constituído a partir da leitura investigativa na bibliografia utilizada em três disciplinas ofertadas em cursos acadêmicos de mestrado e doutorado, durante o ano de 2017. A saber, são estas “Paradigmas Sociais da Educação”, “Estudos do Currículo”, ambas ofertadas pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, e “Pensamento Pedagógico Contemporâneo da Educação”, ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília.

O estudo bibliográfico foi realizado em torno do objetivo deste artigo, fazendo o movimento de primeiro apanhar o todo do real e concreto com que acontece a historicidade da educação moderna influente no Brasil. Posteriormente, cunhando um quadro comparativo sobre a função social da escola e do professor, categorizando quem organiza a estrutura escolar, qual é a centralidade da educação e do ensino, como se concebe a relação da escola com a comunidade, quais sentidos políticos da educação e da escola podem ser provocados, em que condições acontecem a oferta do ensino e do trabalho escolar, e qual o sentido político que poder tomar para o trabalho docente.

A bibliografia utilizada está baseada em estudiosos desses períodos históricos – dentre outros, Alves (2006), Araújo (2009), Cambi (2002), Enguita (1989, 1991), Frigotto (2018), Moreira e Silva (2018), Saviani (2008; 2013; 2018); e Suchodolski (2004); e ainda dos textos de Apple (1995; 2006), Dewey (1933/1959), Durkheim (2014), Gramsci (1968/1995), Hall (2019), Löwy (1985/2017), Marx e Engels (2009) e Vigotski (1987/2008; 1931/2016) – e nos serve para compreender os sentidos constituídos sobre trabalho docente no movimento histórico da educação pública. No entanto, devido às limitações do artigo, citamos tais estudos para indicar quais são algumas de nossas referências, mas não iremos tratar especificamente do movimento histórico já abordado em seus escritos e nem o que o referencial teórico traz detalhadamente.

A constituição dos sentidos e significados

A educação é uma atividade humana e tem em si uma proposta política orientadora e construtora de um projeto de sociedade. Esses fatores constroem formas de pensamentos reveladores e fomentadores da consciência. Entretanto, assim como a consciência, a realidade é que constrói o pensamento. Pautado nas literaturas marxistas da psicologia em Vigotski (1987/2008), da linguística em Bakhtin (2014) e da filosofia em Gramsci (1968/1995; 1999/2006), que contribuem para o entendimento da constituição do sentido, compreendemos que o pensamento pertence a um sistema ideológico, orientado por leis e pela moral, influenciando na composição de uma consciência social (Marx & Engels, 2009). O sentido de outrem não é composto por si apenas. Está formulado por uma série de significados localizados no tempo e espaço, e resultantes das relações de produção social: fala do sujeito, por exemplo, revela não apenas o “si” individual, mas, também, o “si” coletivo, a classe a que pertence, a ideologia em que se orienta, a função social e o projeto de escola para qual trabalha, entre outras condicionantes.

O sentido da escola vai sendo constituído por multideterminantes vivas na teoria que embasa e orienta o trabalho docente, e pelas mediações de diversos fatores sociais inerentes à escola como instituição social e campo econômico-político de disputa entre classes. O confronto e a disputa de consciência são vivos nesse espaço e a todo o momento realiza o movimento dialético na constituição de um sentido de escola. A construção subjetiva e dialética dos sentidos é concebida a partir de uma base hegemônica de um pensamento dirigente, ligado a uma classe, estabelecido entre relações consensuais ou coercitivas (Gramsci, 1999/2006). Não é constituído de forma harmônica, mas é uma relação conflitante por estar presente em uma série de valores políticos, ideológicos, culturais, econômicos e sociais.

As concepções expostas nas teorias da educação não são formuladas ao acaso, e, por isto, sua inferência no pensamento social (no senso comum ou filosoficamente pensado) sobre a educação não se constitui ao acaso. Por estar ligada a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, determinado por uma força/orientação política. A concepção de mundo e os sentidos se relacionam e implicam em ações dos indivíduos, que avaliam as diferentes formas de ver o mundo mediante a realidade cotidiana.

A função social docente no limbo das disputas por um projeto de sociedade hegemônico

Ao observarmos o percurso histórico dos paradigmas sociais que vão surgindo na sociedade entre as correntes filosóficas, formando o pensamento orgânico – seja a partir de ideais já dominantes, seja como alternativa, assumindo perspectiva inicial contra-hegemônica – esses vão relacionando-se diretamente com as forças produtivas e com as relações de produção econômica, social, política. Estabelece-se, assim, uma relação mediada entre as correntes filosóficas científicas, políticas, econômicas com o trabalho. O trabalho, em sua essência ontológica, vai, então, se estabelecendo de acordo com as necessidades criadas pela sociedade, e as relações de produção envoltas com as transformações na história. Desta forma, o trabalho na relação objetiva-subjetiva aos sujeitos, passa inferências em seus sentidos e significados.

Podemos observar, que, na história da humanidade, sobretudo no tempo demarcado da transição da Idade Média para a Modernidade, chegando à Contemporaneidade há modificações profundas que modificam a morfologia do trabalho e seu modo de organização cotidiana relacionadas com o formato econômico, político, social e cultural. Há uma relação dialética entre o princípio do trabalho como ontológico, na lógica em que os seres humanos modificam a natureza e são por ela modificados. Logo, há uma transformação da filosofia do pensamento orgânico político-social, que modifica seres humanos e a sociedade. Como afirma Cambi (2002), a história está em movimento, vivo, em que o presente está sob influência das ações da humanidade, que constituem o agora. Entender o passado, perfazer a reconstrução do processo se torna um movimento condicionante para entender a constituição objetiva-subjetiva do trabalho docente.

Nesse caráter, chamando a atenção para o cuidado de manter o pensamento entre o movimento da objetividade e subjetividade, interferindo no formato de um projeto de sociedade, seja este projeto dominante, revolucionário, alternativo e/ou vigente, que estabelece princípios e elementos orientadores às ações dos homens e mulheres em relação social. A escola pública surge e se modifica com o objetivo de estear a organicidade social desses projetos em vigência, em disputa e em modificações a todo o momento. Todo projeto educativo institucional está imbricado e relacionado a um projeto de sociedade. Assim, estabelecem-se relações intrínsecas ao trabalho docente.

Ao se embasar um projeto que organiza as atividades e o trabalho da escola, para o ato de instruir, ensinar, formar, educar, são definidas funções para a instituição escolar, que determinam uma função para o exercício da atividade docente. A função assumida para a escola (ou pela escola) e para o docente está diretamente relacionada com o projeto de escola pensado. Há uma organicidade filosófica e política pensada para o exercício pedagógico e o trabalho de ensinar. A partir de tais ideias expostas, podemos observar que o projeto de escola é produtor e é produzido pelo trabalho docente, que reforça as relações entre a objetividade e a subjetividade com o seu princípio ontológico.

Há uma relação dialética no movimento histórico, que se materializa em diferentes pensamentos difusos na sociedade, e que define a função docente na história da escola moderna, assim como na escola pública contemporânea. A função docente perpassa pela transição dos tempos, é marcada pelas épocas, acontecimentos, engendrados por paradigmas sociais, entre as formas de produção econômica vigentes e as relações produtivas sociais (Silva, 2015). A função docente, tal qual conseguimos conceituar hoje, é formada e transformada na história. Ela não está dada. Ela é e está em constituição e acompanha o movimento da história da sociedade e as disputas de projeto de sociedade.

Constituições históricas para os sentidos do trabalho docente

Pensar na forma em que vai se constituindo a função do trabalhador docente, e, portanto, o próprio trabalho docente no contexto histórico da constituição da própria escola pública até o formato como o conhecemos na atualidade, percebemos que o sentido – político – é também ocasionado pelo processo histórico contextualizado. É preciso temporalizar esse trabalhador da atividade de educar, ensinar e instruir para entender como é constituído o sentido do trabalho.

O sentido atribuído (ou a falta deste) ao trabalho, hoje, pode e está relacionado às veemências do processo de transição da Idade Média para a Idade Moderna. Os pensamentos pedagógicos e políticos atravessam a história, recriam-se, adaptam-se, contextualizam-se na transição e na disputa entre projetos de sociedade para vir a ser ou continuar hegemônicos. O trabalho docente vai se transformando junto à própria transformação do sentido do trabalho na sociedade moderna – entre princípios constituídos no humanismo tradicional cristão e humanismo moderno, relacionando-se com uma função estritamente ligada à religiosidade e/ou ao estado moderno, formando o ser bondoso, caridoso e adaptativo ou próprio para o desenvolvimento moderno.

São entoantes que se tornam signos constituídos a partir dos paradigmas sociais vigentes, geradores de significados e sentidos, atribuídos como a qualidade e a perfeição que todo indivíduo deve atingir, cooperando para o bem de um projeto de sociedade em disputa. O que queremos dizer é que os paradigmas sociais são importantes para o modo interpretativo com que a sociedade lida para a organização (ou organizações) do modo de pensar as relações econômicas, políticas, sociais, e a inferência na cultura, entre a relação objetiva-subjetiva dos indivíduos/sujeitos.

Na medida em que a sociedade vai se desenvolvendo e reestruturando as formas de organização da educação escolar, a centralidade dessa organicidade de concessão passa da igreja para o estado, com foco no desenvolvimento da sociedade, do conhecimento, e, portanto, da ciência e da economia. A propriedade privada vai tomando outros sentidos para a organização e manutenção de poder social, político e econômico, menos oligárquica e mais liberal/republicana. A educação escolar vai se afastando da comunidade paroquial, e se aproximando do projeto liberal que pensa noutra objetividade de organicidade social.

Contraditoriamente, o projeto de escola vai se expandindo para projetos mais próximos das classes menos favorecidas e marginalizadas. O magistério controlado pela Igreja tem pretensões mais liberais e profissionais. O projeto de escola próximo à comunidade, mas organizado centralmente pelos princípios e estrutura da Igreja Católica, é uma não garantia da escola como um espaço público, gratuito e popular, de fato, e, portanto, elitista. Negros e mulheres, por exemplo, tinham acesso restrito e condicionado pelos efeitos dos sistemas escravagista e patriarcal. Sabe-se, por exemplo, que o processo de feminização e proletarização do trabalho docente são fenômenos importantes para a expansão da escola pública. O distanciamento das comunidades locais e a transferência do controle para o Estado (processo de funcionarização) é um movimento contraditório, já que a educação vinha sendo planeada sob a lente da elite para a elite, e, portanto, estava longe de ser democrática e popular.

Na medida em que a centralidade vai passando para os princípios e estrutura do estado moderno, vai-se ampliando, e expande o acesso à escola pública para camadas mais amplas da sociedade condicionado a fatores históricos ligados às demandas do mercado. A escola não deixa de ser elitista logo que o estado moderno passa a organizar a educação pública. Tal mudança na realidade histórica também está ligada às lutas sociais com pautas classistas, raciais e de gênero, e não somente às demandas do mercado. O público que passa a ser professor também se torna diversificado: primeiro por origem de classe e gênero, posteriormente, por etnia/raça, posição política, etc.

Essas condições vão alterando o sentido do trabalho docente: a ambivalência entre a profissionalidade e a função servil vocacionada coadunam com a função social da escola em lidar com o conhecimento e com o vínculo religioso – o que mantém o sentido de estar próximo da comunidade, mas também como instituição do estado. Essa ambivalência entre função e sentido provoca um processo histórico que condiciona as professoras a não terem o mesmo prestígio social que os professores homens obtinham frente às elites dominantes – ora aristocracia, ora burguesia.

De certa forma, e em certas condições, possibilita criar o prestígio entre a classe trabalhadora, mas ainda insuficiente para manter um vínculo com a comunidade. As relações de classe e a meritocracia são condicionantes, inclusive importantes para essa condição: na sociedade em que o mérito se torna um paradigma importante e o estudo condiciona sentidos sociais de ascensão não só social, mas econômica, o vínculo com a classe trabalhadora se torna mal visto, socialmente, por estar imbricado com sentidos relacionados à estagnação social, contraditórios com o mérito de se esforçar por suas próprias capacidades e de superação da condição de classe trabalhadora.

No entanto, na modernidade, a docência permanece com um sentido ligado à cientificidade do conhecimento. Sua função e sentido do trabalho estão diretamente relacionados ao conhecimento e à função de ensinar, e a escola como lugar do ensino-aprendizagem e da relação com o conhecimento. Esse ponto é importante para o sentido do trabalho: mesmo condicionado à ambivalência entre a profissionalização e a vocação, a figura do professor é considerada como titular do conhecimento e como responsável pelo ensino desses conhecimentos. Essa relação é intrínseca para o próprio sentido político estabelecido entre professor e trabalho. O que queremos afirmar é que esse é um fenômeno que fortalece um sentido da docência, não no formato conjuntural que temos hoje, mas como formato mais perene para a escola e para a figura do professor na modernidade e na transição desta para a contemporaneidade, até meados do início do século XX.

É importante salientar nesse processo que a feminização e a proletarização do trabalho docente descentraliza a organização do trabalho pedagógico, sistematiza o trabalho docente sobre as séries e idades com que o professor venha a lidar, gerando, na história da docência uma hierarquia institucional, que hierarquiza o próprio conhecimento entre o ensino primário (destinado ao ensino a crianças, e atribuído a mulheres como função similar à função feminina naturalizada na sociedade patriarcal, relacionadas às atividades domésticas) e ensino secundário (destinado a homens em um primeiro momento, mas, que, no decorrer dos processos históricos, ainda se divide por área de conhecimento, na medida em que mulheres vão se formando para lecionar disciplinas da área de humanas, enquanto que aos homens é condicionado o ensino das ciências da natureza e matemática). Esta hierarquia aparece inclusive nos formatos de contrato, de carreira e de salário. São fatores que fortalecem as justificativas com base nas atribuições vocacionais para manter o trabalho das professoras sob baixos salários, assim como a exigência de uma formação elementar para o exercício da docência.

Esses fatores meritocráticos são importantes para o desenvolvimento de mecanismos de controle do trabalho docente, sobretudo, na esfera global – por via do estado, e, pelo mercado na atualidade. Por exemplo, a utilização de avaliações de larga escala, as condicionantes formalizadas do sistema meritocrático que premia e rotula escolas com base nos resultados das avaliações, e que fortalecem o discurso do fracasso escolar.

As condicionantes relacionadas à vocação permitem, ainda, a manutenção de estruturas que mesmo não naturalizadas, adaptam-se a condições precárias de atuação profissional como processos de desvalorização dos profissionais docentes. São fatores que vão inferir no prestígio social sobre como o professor é visto (aferido por questões de classe), e que, em nossas hipóteses, sofre modificações sobre o seu sentido social. Nesse processo histórico de sentido do trabalho docente, o que podemos aferir, entre as hegemonias que estiveram e estão vigentes, é que a categoria docente, mesmo com todas as lutas e formas de resistência e organização, nunca obteve o controle como protagonista na definição de um projeto de educação e um projeto de escola pública, tampouco na definição de um projeto de sociedade, com interferências no pensamento pedagógico. O professorado sempre esteve no cerne das disputas de projetos como figura social importante, mas sempre sob uma estrutura hierárquica.

Mesmo na atualidade, com a atribuição profissional legal de constituir um projeto político-pedagógico para a instituição escolar em que vai atuar junto com seus pares, esse processo está carregado, de diversas maneiras, de burocracias que estagnam o processo de autonomia e interferem na relação entre a escola e a comunidade – como o que um projeto político-pedagógico pode conter ou não como documento legal, atribuições financeiras, requisitos curriculares e avaliações externas que devem ser cumpridas, carga horária docente, trabalho intensificado pelas diversas demandas sociais que adentram a escola, condições precárias de trabalho, metas externas e relacionadas a organismos internacionais, entre outras exigências que devem ser atendidas.

Nessas condições, tanto o trabalho docente, quanto o projeto de educação escolar estão condicionados a uma hegemonia e hierarquia econômica, cultural, política e social. Tais inferências, em nosso olhar, contribuem para que se mantenha o controle e a intensificação do trabalho docente, alterando o sentido desse trabalho – que perde crescentemente a relação política e pedagógica com o conhecimento, com a função social da escola, o que coopera, historicamente, para o afastamento da escola com a comunidade em que está localizada.

Recuperando os diversos movimentos históricos e os diversos projetos de sociedade que adentram à escola, em meio às condições concretas da realidade que as instituições vivem hoje, sobretudo, as que atendem a comunidades localizadas em áreas de fragilidade socioeconômica, a crise da escola pública vivenciada na contemporaneidade, vincula-se também às crises no sentido de ser professor/a. A crise ou a perda do sentido do trabalho docente está condicionada à crise da função social da escola e do professorado, sobretudo, na perda do controle sobre o conhecimento escolar, com o aumento da responsabilização sobre o desempenho da educação escolar, com o ônus atribuído ao trabalho docente. Isso ocorre sob circunstâncias provocadas pelos paradigmas da aprendizagem e do pragmatismo (a verdade direcionada para a prática útil ao cotidiano).

Na lógica desses paradigmas, a escola se depara com exigências para a formação de um novo tipo de homem e mulher para o seu tempo, mas também de exigências de formação de mão de obra para o mercado de trabalho. Na medida em que a escola se expande em direção à universalidade da oferta de educação, depara-se e tem que lidar com públicos que carregam consigo a concreticidade das desigualdades sociais provocadas pelo capitalismo ao longo dos séculos XIX e XX. Na passagem da modernidade para a contemporaneidade a função da escola foi-se modificando, com a diminuição da centralidade da relação entre a comunidade e o conhecimento, e foi-se atribuindo a esta relação um caráter mais assistencialista (Libâneo, 2012) – com menor investimento em profissionais com estudo, formação e dedicação para lidar com os diversos tipos de demandas da escola (profissionais da saúde, da assistência social, e da assistência psicológica, etc.).

Muitas dessas demandas foram imputadas pelo modo de organização da escola pública que se relaciona de diversas formas com o modo de organização do trabalho nas fábricas, ao longo das mudanças e transformações do século XIX e XX. Nessa lógica, no processo mais recente em que se insere a utilização de novas tecnologias, sobretudo, tecnologias digitais, como exigência da formação do trabalhador, com inferência na formação e atuação do exercício pedagógico, muito mais relacionadas com o domínio do uso, com a aprendizagem, muito mais do que com o conhecimento sobre os processos relacionados à tecnologia, no sentido de permitir um movimento do senso comum para a consciência filosófica. O pragmatismo da aprendizagem, toma em si, características para atender às demandas desafiadoras da realidade mediada pelo mercado de trabalho do século XXI, e não centradas nas necessidades dos sujeitos.

A função do professor não somente se modifica ao longo da contemporaneidade, como acumula diversas concepções de sociedade e de sujeito, no projeto de educação que se insere hegemonicamente nas escolas públicas e que gira em torno das demandas do capitalismo. Tais modificações na função do trabalho docente resultam em um processo em que Moraes (2003) tece como a tese da desintelectualização do professor, com políticas de formação docente cada vez mais centrada na formação prática, colocando esta em oposição à teoria – caracterizando o que chamamos de paradigma pragmatista. Para a prática, está sendo exigida a disposição docente em improvisar, prever, conferir valores, realizar julgamentos fundamentados na eficácia e pertinência produtiva e prática, tácita às resoluções do cotidiano pelo indivíduo. A função docente, na contemporaneidade, vai se estruturado em torno de um projeto de educação difuso ao projeto hegemônico de sociedade para alimentar o mercado global.

Em síntese, é a função de formar certos tipos de trabalhadores para o mercado de trabalho – ao mesmo tempo polivalentes, especialistas e empreendedores, mas, também, situados em uma perspectiva maior de divisão social do trabalho; e ainda associada à permanente perspectiva de seres bons, dóceis e servis, agradecidos pelas oportunidades de trabalho, mergulhados na perspectiva humanista-cristã de vocação e servidão.

Essas contextualizações sintetizam-se nos estudos de Suchodolski (2004) que, ao fazer uma análise das grandes correntes filosóficas, entende a pedagogia da essência como a condutora pedagógica do humanismo tradicional cristão, configurada pela disciplina, ação externa para o interno e a heteronomia na formação dos indivíduos; e a pedagogia da existência, pautada na liberdade, na ação interna para externo e na autoeducação.

Para entender melhor a síntese do humanismo na contemporaneidade, utilizamos a ideia do autor, ao explicar as razões da pedagogia da existência, que ao tornar-se base da hegemonia global, não consegue concretizar os ideais da igualdade, liberdade e fraternidade a todos os indivíduos,

[…] não levava a uma concepção que procurasse transformar as condições existentes, nem a um ideal de vida individual ou social. A pedagogia moderna caracteriza-se quer por uma tendência para identificar a vida individual à educação, quer por tendência para defender as posições tradicionais da pedagogia da essência (Suchodolski, 2004, p. 95).

Pela conjuntura que ora tentamos expor, o projeto de escola da contemporaneidade, centrado no mercado, coopta ideais ligados aos direitos humanos e, ainda, às interferências político-religiosas, inatistas. Isso cai no que Suchodolski (2004, p. 98) chama de “erro histórico” ao tentar unificar tais concepções de mundo, sem levar em conta que, para isso, seria necessário modificar todo o modelo hegemônico vigente, portanto, romper com o capitalismo:

O pensamento pedagógico perde-se quando escolhe a pedagogia da existência, quando opta pela pedagogia da essência e quando tenta unir estes dois princípios em função das condições históricas e sociais existentes. A pedagogia devia ser simultaneamente pedagogia da existência e da essência, mas esta síntese exige certas condições que a sociedade burguesa não preenche, exige também que se criem perspectivas determinadas de elevação da vida cotidiana acima do nível atual.

Em síntese, a estrutura organizativa da escola está estruturada sob a égide 1) do humanismo tradicional cristão, que orienta o campo educacional brasileiro, com força, até o início do século XX; 2) humanismo moderno, ascendente nas nações europeias a partir do século XIV, e que ganha força com a eclosão do iluminismo; e 3) a contemporaneidade, permeada pelas diversas composições de correntes filosóficas e políticas, com herança mais próxima do humanismo moderno, porém, moldada pelas novas composições do liberalismo e neoliberalismo. Nas três sínteses estruturais, apresentamos nossas teses sobre o sentido político do trabalho docente, pautada em cada uma delas.

Humanismo tradicional cristão:

- Quem organiza a estrutura escolar: a religião. No Brasil, a Igreja Católica, entre os carmelitas, oratorianos, franciscanos e, principalmente, os jesuítas. Controle condicionado à Igreja.

- Centralidade da educação e do ensino: filosofia e teologia

- Relação com a comunidade: projeto para a elite, orientação das famílias, conversão dos povos pagãos.

- Sentido político da educação e da escola: formar o indivíduo temente a uma divindade religiosa, bondoso, caridoso, gentil, culto e adaptativo.

- Condições de oferta de ensino e trabalho escolar: Igreja condiciona boas estruturas adaptativas ao público que atende.

- Função do professor: tutor, mentor, relaciona-se diretamente com o ensino e a educação do conhecimento.

- Sentido político do trabalho docente: centrado no conhecimento para um projeto de sociedade e da Igreja.

Humanismo moderno:

- Quem organiza a estrutura escolar: o estado moderno. Controle condicionado ao estado;

- Centralidade da educação e do ensino: conhecimento da ciência, da razão e da história;

- Relação com a comunidade: distanciada da comunidade, na medida em que se aproxima do estado moderno burguês;

- Sentido político da educação e da escola: formar o homem moderno e ativo a um papel social;

- Condições de oferta de ensino e trabalho escolar: o estado não condiciona estrutura uniforme. As estruturas que oferece são condicionadas ao perfil do público que atende;

- Função do professor: profissional funcionário/agente do estado;

- Sentido político do trabalho docente: ambivalente entre a profissionalização e a vocação, e centrado no conhecimento para um projeto de sociedade.

Humanismo neoliberal e contemporâneo:

- Quem organiza a estrutura escolar: estado globalizado (integrado ao mercado e aos organismos internacionais). Controle condicionado ao controle e às avaliações de larga escala;

- Centralidade da educação e do ensino: aprendizagem de habilidades e competências.

- Relação com a comunidade: intenção de ser pública e universalizada, mas é distanciada da comunidade;

- Sentido político da educação e da escola: formar um tipo de trabalhado;

- Condições de oferta de ensino e trabalho escolar: o estado não condiciona estrutura uniforme. As estruturas que oferece são condicionadas ao perfil do público que atende;

- Função do professor: quase que o único responsável pela educação, perde a função central do conhecimento. Animador, mediador da autoaprendizagem subjetiva;

- Sentido político do trabalho docente: esvaziamento, prolixidade ou perda de um sentido.

Considerações Finais

Sob a influência do humanismo moderno e das inferências do neoliberalismo, cria-se um paradoxo sobre a função social do professor que lida com princípios formativos da intelectualidade e dos papéis a serem exercidos na sociedade, entre o dual manual e o intelectual. Não cabe ao professor pensar nesse tipo ideal, mas lhe cabe a forma de pensar a execução desse projeto de sociedade e sistematização desse tipo ideal de trabalhador que o mercado requer.

Desta forma, compete-nos uma reflexão sobre o papel que o professor exerce socialmente: este é um indivíduo intelectual com as funções sensitivas, ou um indivíduo do trabalho pragmático, que apenas executa o projeto de sociedade? Não há respostas a serem dadas aqui, mas é uma pergunta que, inclusive, fundamenta as lutas atuais sobre o lugar e o papel do professor na sociedade contemporânea, inclusive, frente às lutas populares de valorização dos profissionais da educação.

Diante disso, nossa preocupação está centrada no sentido do trabalho docente e a relação com um sentido político da escola. A centralidade do nosso debate está em torno da preocupante perda do sentido da docência, não somente para os professores, mas também para a sociedade atual.

Referências

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Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 28 de Julho de 2020

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