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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 04-Set-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.24711 

Artigos

O ócio criativo e suas perspectivas na educação

El entorno creativo y sus perspectivas en la educación

The creative environment and its perspectives in education

L’environnement créatif et ses perspectives dans l’éducation

1Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade La Salle - Canoas/RS. Possui o Ensino Médio na modalidade normal (Magistério), com habilitação para atuar como educador nas áreas de Educação Infantil e Séries Iniciais (2014); Graduação em Teologia pela Universidade La Salle - Canoas/ RS (2017); e Especialização em Docência no Ensino Superior: Práxis Educativa pela Universidade La Salle - Canoas/RS (2019). Bolsista CAPES e integrante do Núcleo de Estudos sobre Tecnologias na Educação - NETE/UNILASALLE/CNPq.

2Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2012). Professora da Universidade La Salle - UNILASALLE, Canoas, atua na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa Culturas, Linguagens e Tecnologias na Educação. Líder do Núcleo de Estudos sobre Tecnologias na Educação (NETE/CNPq), com financiamento do CNPq e do Programa Pesquisador Gaúcho, da FAPERGS.


Resumo

O trabalho objetiva discutir a ideia de ócio criativo de Domenico de Masi (2000; 2017; 2020) na tentativa de compreender hermeneuticamente suas perspectivas e desdobramentos na educação. O ócio criativo engloba três dimensões: trabalhar para produzir riquezas e aprender com o outro; estudar para criar novos conhecimentos e brincar para gerar o bem-estar. A partir dos debates suscitados com as interfaces formativas do ócio criativo, propomos questionar e construir pontes criativas ao desenvolvimento da globalidade humana. Concluímos que a educação precisa promover a experiência do ócio criativo, na perspectiva das metáforas e metamorfoses do processo de formar-se no tempo livre, visto que o processo do conhecimento implica reconhecer o potencial recriador dos sujeitos.

Palavras-chave Ócio criativo; De Masi; Educação

Resumen

El estudio tiene como objetivo discutir la idea de ocio creativo de Domenico de Masi (2000; 2017; 2020), en un intento de entender hermeneuicamente sus perspectivas y desarrollos en la educación. La ociosidad creativa abarca tres dimensiones: trabajar para producir riquezas y aprender de la otra; estudiar para crear nuevos conocimientos; y jugar para generar bienestar. A partir de los debates planteados con las interfaces formativas de ocio creativo, proponemos cuestionar y construir puentes creativos para el desarrollo de la globalización humana. Concluimos que la educación necesita promover la experiencia de ocio creativo, desde la perspectiva de las metamorfosis del proceso de formación en tiempo libre, ya que el proceso de conocimiento implica reconocer el potencial recreador del sujeto.

Palabras clave Ocio creativo; De Masi; Estudios

Abstract

The work aims to discuss the idea of creative idleness of Domenico de Masi (2000; 2017; 2020), in an attempt to hermeneutically understand his perspectives and developments in education. Creative idleness encompasses three dimensions: working to produce riches and learning from the other; study to create new knowledge; and play to generate well-being. From the debates raised with the formative interfaces of creative idleness, we propose to question and build creative bridges to the development of human globality. We conclude that education needs to promote the experience of creative idleness, from the perspective of the metamorphoses of the process of forming in free time, since the process of knowledge implies recognizing the potential recreator of the subject.

Keywords Creative leisure; De Masi; Education

Résumé

L’ouvrage vise à discuter de l’idée d’oisiveté créative de Domenico de Masi (2000; 2017; 2020), dans une tentative de comprendre ses perspectives et ses développements dans l’éducation. L’oisiveté créative englobe trois dimensions: travailler à produire des richesses et apprendre de l’autre; étudier pour créer de nouvelles connaissances; et jouer pour générer le bien-être. Des débats soulevés avec les interfaces formatives de l’oisiveté créative, nous proposons de questionner et de construire des ponts créatifs pour le développement de la globalité humaine. Nous concluons que l’éducation doit promouvoir l’expérience de l’oisiveté créative, du point de vue des métamorphoses du processus de formation en temps libre, puisque le processus de connaissance implique la reconnaissance du recréateur potentiel du sujet.

Mots clés Loisirs créatifs; De Masi; Enseignement

Considerações iniciais

O ócio é o começo e o fim de toda e qualquer atividade. (Aristóteles)

O ócio criativo ganha destaque diante das ambiguidades, desorientações, confrontos, bifurcações e controvérsias da contemporaneidade, cuja lógica do trabalho exclui o tempo para o ócio e a felicidade dos espaços escolares (De Masi, 2000). A preocupação em vincular as interfaces do ócio criativo e da educação já foi pauta de discussões no século passado, visto que a sociedade, com base na lógica do capital, conduziu a desarticulação entre corpo e mente, o trabalho manual em detrimento do trabalho intelectual, assim como a urgência das tecnologias virtuais e o tempo livre. “Para Aristóteles, a preguiça ou ócio é o princípio do universo. É uma coisa preferível ao trabalho, e é, sem dúvida, o fim de todo trabalho” (Huizinga, 2004, p. 180). Os processos educacionais, que são constituídas por pessoas, precisam compreender a importância do encontro, das relações, da fantasia, do lazer, da alegria, dos afetos, da curiosidade, do (re)inventar e ousar saber, como forma de qualificação criativa ao questionamento dos conhecimentos amparados na neutralidade, conformismo e no triunfo da economia unidimensional (egoísta e competitiva do mercado). A educação, em qualquer modalidade de ensino, precisa construir comunidades de aprendizagem apoiadas no ócio criativo (inclusive enquanto teletrabalho), mas empenhada nas vantagens para a saúde, democracia, economia e para as tecnologias flexíveis, na possibilidade de possuir mais tempo para o exercício do ócio criativo - capacidade humana para dar um sentido ao tempo de trabalho (para administrar mais o tempo próprio e superar as desorientações).

No contexto contemporâneo, a criatividade é uma das categorias de referência socioeducacional, especialmente pela perspectiva de estímulo à construção de novos (re)conhecimentos, capaz de dar à luz as criações no mundo da vida. A criatividade nasce através de um trabalho coletivo e aperfeiçoado, por meio da comunicação aberta e (inter)subjetiva, gerando inspiração intelectual na relação com a alteridade, de uma intensidade imaginativa da criação (na tradição remete ao divino, de algo que imita a liberdade divina) de um projeto em (re)criação de algo radicalmente novo da experiência viva (Benjamin, 2006). De Masi (2000, p. 147) entende que o tempo livre é “um traço que caracteriza a nova sociedade, e quanto mais a natureza de um trabalho se limita à mera execução e puro esforço, mais ele se priva da dimensão lúdica e cognoscitiva”, visto que o trabalho assumiu um modo de dominação, desorientação e subordinação inclusive da família, do estudo e do tempo livre.

A partir dos preceitos apresentados pelo pensador, apresentamos a problemática de pesquisa: Quais elementos o ócio criativo apresenta aos processos educativos para estimular o desenvolvimento da globalidade dos sujeitos por meio de ações criativas? O estudo de bases hermenêuticas está ancorado na interpretação e compreensão da temática no campo socioeducacional, lançando novos olhares sobre a criatividade enquanto uma forma de dar o exemplo e inspirar os processos pedagógicos e científicos, pois é lendo e citando autores que lançamos oportunidades para que os estudantes queiram também ler e aprender, ou seja, queiram produzir e pensar novos sentidos e práticas para a abertura aos outros (nas diferentes formas de perceber o mundo) enquanto propósito para a transformação no ato de sair a zona de conforto. A hermenêutica implica buscar a compreensão, constituindo um ato infindável de reinterpretação da realidade, questionando e trazendo novos elementos para uma educação que consiga reconciliar o trabalho, o estudo e o jogo. A hermenêutica busca a reflexão crítica em perspectiva criativa sobre aquilo que vemos, criando uma cultura imersa em diferentes tradições e experiências enquanto movimento para nos (re)conhecer a partir das experiências criativas no mundo (Hermann, 2003). Esta arte de ensinar a compreensão das condições humanas revela que “a experiência educativa se alimenta da linguagem vivida no diálogo, que dá possibilidades para o homem constituir-se a si mesmo” (Hermann, 2003, p. 92).

Partimos do pressuposto de que é indispensável (re)pensar uma educação orientada para a expressão criativa, no sentido de projetar e recriar os conhecimentos, enquanto desafio à (re)elaboração conjunta, numa sociedade conflituosa, desorientada, fragmentada e impessoal. Nesse texto, defendemos a educação voltada para a expressão criativa como algo incompatível com a incomunicabilidade, a estabilidade, a linearidade e a comodidade por meio da mera receptividade, pois compreendemos que para compreender as profundas transformações na contemporaneidade precisamos abordar as mudanças nos ambientes promotores de criatividade, ganhando destaque o campo da educação. Desta forma, o estudo está estruturado da seguinte forma: na primeira seção articulamos uma contextualização sobre a criatividade com autores referência na área, principalmente com Alencar (1993; 1996); Weschesler (2002) e Martínez (2000; 2007) em diálogo com De Masi (2000; 2017; 2020) sobre a criatividade no ócio criativo. Em seguida, abordamos a criatividade e o ócio criativo e seus desdobramentos na educação dialogando com Arendt (1995); Freire (2002; 2005); Adorno e Horkheimer (1985); Martínez (2000; 2007); Alencar (1996) e De Masi (2000; 2017).

Criatividade: perspectivas e desdobramentos

Como este trabalho foi escrito[?]: degrau por degrau, à medida que o acaso oferecia um estreito ponto de apoio, e sempre como alguém escala alturas perigosas e que em momento algum deve olhar em volta a fim de não sentir vertigem (mas também para reservar para o fim toda majestade do panorama que se lhe oferecerá). (Benjamin, 2006, p. 503-503)[1]

Tudo indica que os processos criativos de reelaboração escrita, emotiva, sensível e narrativos que envolvem o repensar no mundo do conhecimento, são atos de coragem e criação, assim como espaços de liberdade, de transformação e de força hermenêutica. De acordo com Alencar (1993, p. 4), “a etimologia da palavra criatividade está relacionada com o termo criar, do latim creare, que significa dar existência, sair do nada, estabelecer relações até então não estabelecidas pelo universo do indivíduo, visando determinados fins”. A história da criatividade tem origem no mito equivocado da criatividade enquanto atributo divino de alguns gênios isolados, de ideias súbitas e de talento inato. Entretanto, “a mais antiga das concepções sobre a criatividade provém da crença de que esse processo ocorre por inspiração divina. Essa noção vem do pouco conhecimento sobre o pensamento humano e, assim sendo, tudo que não era explicável era atribuído aos deuses” (Weschesler, 2002, p. 26). Há diversas conceituações em voga que confluem para a lógica de que a “criatividade implica emergência de um produto novo, seja uma ideia ou invenção original, seja a reelaboração e aperfeiçoamento de produtos ou ideias já existentes” (Alencar, 1993, p. 15). Para Martínez (2000, p. 53), “os problemas terminológicos são abundantes; há mais de 400 acepções diferentes do termo, além da utilização de palavras com significados similares”, dentre elas, a originalidade, o pensar criativo, a genialidade, a inventividade e o descobrimento. Contudo, “existe certo consenso em admitir que a criatividade pressuponha uma pessoa que, em determinadas condições e por intermédio de um processo, elabora um produto que é, pelo menos em alguma medida, novo e valioso” (Martínez, 2000, p. 9).

As características das transições da sociedade industrial, de meados do séc. XVIII ao séc. XX, para a pós-industrial em que vivemos geraram reviravoltas tecnológicas e um agrupamento de trabalhadores assalariados nas fábricas de produção em larga escala, assim como uma segmentação da vida das pessoas para atender aos setores da racionalização do trabalho. A aplicação das ciências nas diferentes instâncias organizacionais do trabalho e a ruptura total entre o ambiente que se vive e o espaço de trabalho afetou a escolarização das classes trabalhadoras. Dessa forma, na sociedade pós-industrial, os produtos dos trabalhos são procedentes das transformações tecnológicas, das ciências e das artes, representando os elementos de maior rentabilidade pelo trabalho. Daí a relevância de uma formação educativa voltada para a criatividade, que consiste na ação dialética e reconciliadora da imaginação com o sentido educativo e a concretude da vida. “A reflexão de Domenico De Masi continua nessa direção, até encontrar-se com a nossa hipótese de que cada vez mais o trabalho se aproxima de um jogo, enquanto se faz como atividade criativa, predominantemente intelectual” (Albornoz, 2009, p. 92).

Para Arendt (1995, p. 16-17), “[…] o labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a sua espécie. O trabalho e seu produto, o artefato humano, apresentam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano”. Se, de um lado, o trabalho é vínculo de sociabilidade para o sujeito se reconhecer e ser reconhecido no mundo, associado à capacidade continuada de aprender e gerar conhecimento por meio da iniciativa e da solidariedade, por outro, na sociedade capitalista, “labor significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana” (Arendt, 1995, p. 94). Em vista da compreensão dos novos tempos, tomar consciência desses paradoxos é o que mobiliza a ação pedagógica para lutar contra o trabalho alienado, superficial, vazio e sem sentido, em vista da reconciliação entre trabalho e tempo livre para o exercício do ócio criativo. Na verdade, a única globalização que estaria a serviço do sujeito é a compreensão, a solidariedade intelectual e moral de uma formação voltada para um trabalho interdisciplinar e integrado com as necessidades de valorização e melhoria da vida.

Essa análise apresenta diferentes contornos pois a vida média das pessoas na contemporaneidade, se comparada com a média de vida daqueles que nos precederam, sofreu uma mudança considerável graças ao progresso tecnológico, permitindo produzir mais com menos esforço braçal, por meio das capacidades intelectuais e da expressão criativa dos sujeitos. Temos presente diversas complexidades ao reconhecermos os elementos basilares da contemporaneidade, assim como ocorreu na mudança da sociedade rural e braçal (pré-industrial) para a industrial, com os novos modos de organizar a vida social e o trabalho. Isso faz com que seja necessário reconsiderar as técnicas e os alicerces do trabalho caracterizados também pela diminuição da carga horária e pelo teletrabalho (entra em voga a educação remota). Na verdade, diante de uma sociedade do espetáculo intensivo e da superexposição midiática, as pessoas estão trabalhando ainda mais (De Masi, 2020)[2]. Quando os espaços presenciais das aulas passam para os espaços virtuais inúmeras mudanças ocorrem. Além disso, a reprodutibilidade técnica, pois a figura de autoridade do professor é posta em xeque nos espaços das mídias (exemplo disso é o Google Classroom que permite o apoio técnico ao professor, por invasões institucionais consentidas), assim como a sua criatividade fica circunscrita e é gerada por competências cruzadas entre professor, estudantes e inteligências artificiais.

Para criar um tempo melhor em meio às mudanças repentinas, precisamos caminhar urgentemente para o estímulo e a exploração da criatividade, visto que “existem milhares de volumes que tratam do torno e da linha de montagem, mas pouquíssimos estudos sobre o trabalho criativo. É um tipo de pesquisa que ainda gera perplexidade” (De Masi, 2000, p. 139). O autor reforça ainda que “a forma de organizar o trabalho intelectual, sobretudo quando é criativo, é um campo ainda pouco explorado. Para a organização do trabalho físico existem imensas bibliotecas” (De Masi, 2000, p. 139). De Masi (2020) fala da importância do tempo livre dedicado à formação e lança os seguintes questionamentos: Como evitar a depressão e o tédio? Como crescer intelectualmente? A paz ou a violência vão aumentar? A diferença será determinada pelo nosso nível de cultura ou de curiosidade intelectual. Ocorrerá, portanto, que teremos mais tempo livre, a partir de hoje, do que o tempo de trabalho. De Masi (2000; 2020) aponta algumas pistas e novas sínteses em face aos condicionamentos e regulamentações que governam as reflexões científicas e que precisam da expressão criativa para dar conta de estabelecer o equilíbrio entre os sujeitos e os aparatos do trabalho. De acordo com o próprio autor, “hoje precisamos de muita criatividade para satisfazer as infinitas necessidades sofisticadas do mercado, não podemos mais contar só com os raros e únicos gênios. Devemos dar vida a inúmeros grupos criativos” (De Masi, 2000, p. 188). Esse potencial criativo está “ligado à capacidade de acolher e de elaborar estímulos do que aos recursos disponíveis, ou mesmo à ressonância que o encontro de duas ou três pessoas criativas pode produzir, quando se estimulam intelectual e reciprocamente com suas ideias” (De Masi, 2000, p. 143).

A produção do conhecimento, com as separações internacionais do poder capital e do trabalho exercido, causa um desencadeamento desigual, pois algumas nações são mais estimuladas às artes de fazer já na Educação Infantil enquanto os países subdesenvolvidos apenas incorporam modismos do capital mercadológico colonizado por superpotências econômicas. Esse esquema manifesta que a criatividade tem se constituído em uma das maiores capacidades de poder das nações desenvolvidas, que são potencializadas pela educação em contratos internacionais (acordo MEC/USAID é o mais conhecido). Tais indícios revelam que é necessária uma transformação que passa pela educação como uma prática de expressão da cultura e formação social, já que, no século XXI, as nações terão mais poder se souberem coordenar ações criativas para o melhoramento dos processos educativos.

Na obra Ócio criativo, De Masi elabora seu pensar sobre a criatividade orientada para a construção de uma sociedade do tempo livre e do trabalho à expressão da criatividade, além de questões como o declínio de ideologias tradicionais e das instâncias culturais. Há um descontentamento com as perspectivas que negligenciam a criatividade, visto que “estamos habituados a desempenhar funções repetitivas como se fôssemos máquinas e é necessário um grande esforço para aprender uma atividade criativa, digna de um ser humano” (De Masi, 2000, p. 21). De Masi (2000, p. 11) explica que, “em síntese, o ócio pode ser muito bom, mas somente se nos colocamos de acordo com o sentido da palavra. Para os gregos, por exemplo, tinha uma conotação estritamente física: trabalho era tudo aquilo que fazia suar, com exceção do esporte”. O cidadão que exercia atividades não físicas voltadas à política, ao estudo, à poesia e à filosofia, por exemplo, eram ociosas e dignas de expressões superioras - as capacidades intelectuais.

De Masi (2000) manifesta grande descontentamento com o modelo de sociedade criada pelo ocidente, mas principalmente, dos Estados Unidos, que estão demasiadamente voltados para a idolatria do trabalho com poder competitivo, fazendo com que a expressão da criatividade seja ofuscada e desumanizada. Na esfera do trabalho, as funções mais monótonas podem ser repassadas às tecnologias, restando mais tempo para exercer a capacidade cognitivista de um corpo quieto e uma mente irrequieta. Exige, portanto, que “as máquinas trabalharão num ritmo sempre mais acelerado, mas os seres humanos terão sempre mais tempo para refletir e para bolar ideais. Mas só quem é capaz de […] inventar e patentear a ideia antes dos outros, adquirirá o direito de receber royalties” (De Masi, 2000, p. 124).

Ele destaca ainda que as empresas seriam mais criativas e produtivas e, consequentemente, “os trabalhadores teriam mais tempo disponível para a vida pessoal, revitalizariam seus relacionamentos com a família, com o bairro, com a cultura, alimentariam a própria criatividade” (De Masi, 2000, p. 110). Na contemporaneidade, sucesso e capacidade criativa terão os sujeitos que conseguirem libertar-se da concepção tradicional de trabalho enquanto obrigação (destituído de boa vontade e dedicação), investindo nessa tríplice criação, ou seja: “da atividade física para a intelectual, da atividade intelectual de tipo repetitivo à atividade intelectual criativa, do trabalho-labuta nitidamente separado do tempo livre e do estudo ao ‘ócio criativo’, no qual estudo, trabalho e jogo acabam coincidindo cada vez mais” (De Masi, 2000, p. 10). Nessa linha de raciocínio, “o coração desta sociedade é a informação, o tempo livre e a criatividade, não só científica, mas também estética. […] se eu tivesse que dar um outro nome a esta sociedade, a chamaria de criativa, mas também de estética” (De Masi 2000, p. 79). Esta dimensão está associada ao campo das artes, do belo e de tudo o que possui uma sensibilidade e um sentido autocompreensivo da concretude no ato de conhecer.

A manifestação do ato criativo, seja numa fala, num jantar, num jogo de atividades intelectuais, é apreciado quando é possível estabelecer uma vida formativa voltada para as expressões da criatividade dos sujeitos, produzindo novos sentidos e pensando novas práticas. De Masi (2000, p. 83) declara que se tivesse que definir a contemporaneidade a referia de sociedade criativa, já que “nenhuma outra época teve um número tão grande de pessoas com cargos criativos: em laboratórios científicos e artísticos, nas redações dos jornais, equipes televisivas e cinematográficas, etc. São milhares e milhares de pessoas”. Ora, no desenrolar da história da humanidade, o estímulo para a dimensão criativa, como uma história das invenções, baseada no inovar, tem sido aniquilado na simples reprodução produtiva, com pouco destaque para se tornar inventiva, criativa e repleta de curiosidade para a transformação do mundo do trabalho. Em meio a isso, nos chama a atenção a perspectiva de que se as mudanças sempre aconteceram, poucas vezes foram direcionadas à autoconfiança, autorrespeito e autoestima de professores e estudantes para potencializar suas capacidades de (re)criação de conhecimentos, resolvendo problemas e situações concretas que exigem criatividade para a transformação de si em contato com o outro. Acerca da educação de crianças e jovens, De Masi (2000, p. 170) compreende que “uma formação ética permanece intacta, mas o princípio utilitarista de uma competitividade destrutiva deveria dar lugar a um princípio baseado na solidariedade de estímulos criativos”. Dito isso, o trabalho precisa ser revigorado não como algo opressor e penoso, mas na forma de um prazer estimulante de descobrir diferentes mundos, com atividades ligadas ao tempo livre, aos cuidados estético-expressivos e às interações criativas.

Nos tempos abertos globalmente e dinâmicos da prática, “a identidade depende cada vez mais daquilo que aprendemos, da nossa formação, da nossa capacidade de produzir ideias, do nosso modo de viver o tempo livre, do nosso estilo e da nossa sensibilidade estética” (De Masi, 2000, p. 171). Contudo, parece que estamos fadados a realizar ações cansativas e repetitivas, principalmente com as máquinas, ilustrando um trabalho que, longe de explorar a natureza, agora autoexplora o próprio sujeito em sua energia vital, ou seja, é capaz de doar o próprio tempo livre ao avanço do capitalismo. De Masi (2000, p. 168) apresenta a perspectiva de fantasia medíocre e concretude medíocre, ao mencionar:

[…] o burocrata é só concreto, quem se alimenta de veleidades é um sonhador. É uma síntese que pode acontecer entre uma fantasia medíocre e uma concretude medíocre, e neste caso a criatividade obtida é muito baixa. Ou pode acontecer entre uma forte fantasia e uma forte concretude: é quando a criatividade que se obtém é genial.

Nessa abordagem, De Masi (2000, p. 102) compreende que “[…] conquistado o que é racional, podemos voltar a valorizar sem temor também a esfera emotiva […], racionalidade e concretude [que] são os ingredientes da criatividade. A racionalidade nos permite executar bem as nossas tarefas, mas sem emotividade não se cria nada de novo”. O ócio criativo possibilita que os sujeitos se expressem pela arte, em que a gênese potencializa a imaginação humana, contribuindo para o aumento do bem-estar e do trabalho prazeroso (dando o melhor de si), propiciando a ascensão da capacidade criativa para a criação de novas ideias. Assim, o ócio possui outros aspectos, na perspectiva de dedicar mais tempo aos momentos de (re)criação, diálogo e ação (Habowski & Conte, 2019). Nessa perspectiva, coisa nenhuma se constituiu na ociosidade, mas se constitui através do ócio criativo, que requer também saber dar uma pausa no caminhar da vida, com a finalidade de refletir sobre ela e (re)organizá-la com novas projeções, ideias, atitudes, visto que “a experiência de mudança estimula por sua vez a criatividade” (De Masi, 2000, p. 104). Tal processo supõe compreender melhor a si próprio e suas relações intersubjetivas, sendo elemento imprescindível para o despertar criativo e educativo, pois “mudar de lugar estimula a criatividade, até mesmo quando os lugares visitados não são muito diferentes daqueles com que estamos acostumados” (De Masi, 2000, p. 104). Torna-se um momento de (re)organização dos saberes e de revisão dos projetos de vida, afinal, “quanto mais uma organização é capaz de estabelecer um ambiente propício à criatividade, mais eficiente ela é” (De Masi, 2000, p. 115).

Nesse ponto, De Masi (2000) constata que quando se trabalha com momentos de tempo livre, as pessoas realizam menos atividades braçais e trabalham mais com o cérebro, com as contradições reflexivas estabelecidas nas relações com os outros de sentido formativo e vital. Supomos que as atividades cognitivistas são as atividades tidas como criativas e dificilmente podem ser copiadas de modo sempre igual, pois estão associadas às experiências miméticas (metáforas vivas e criativas) e são potencializadas com os encontros intersubjetivos e ressignificadas ao longo da história (Benjamin, 2006). De modo semelhante, De Masi (2000) chama a atenção para a existência de conflitos entre burocratas, que têm medo da inovação do mercado e os criativos, que têm medo do imobilismo. Há novos entendimentos sobre o trabalho, tendo em vista que o próprio obrar-se humano muda inclusive as pessoas, mas, diante da sociedade tecnológica é necessário redefinir as organizações que trabalham com os saberes para que os profissionais possuam maior espaço de tempo de (re)criações criativas, desencadeando novas abordagens histórico-culturais, o que requer a curiosidade, a capacidade de projetar, imaginar, sentir e de agir rumo a uma formação ampliada.

O ócio criativo possibilita a capacidade ao sujeito de coligar o lazer, o trabalho e a diversão com a prática do aprender permanente, com a finalidade de viver mais satisfeito pessoal e profissionalmente, colocando sentidos naquilo que realiza por meio da capacidade criativa. É também no divertimento e no bom-humor que a criança ou o adulto pode manifestar a dimensão criativa, tornando-se uma personalidade integral. De Masi (2000, p. 160) argumenta que “a principal característica da atividade criativa é que ela praticamente não se distingue do jogo e do aprendizado”. Todavia, na sociedade apresentada como industrial estamos habituados a exercer funções mecânicas e repetitivas, o que costuma originar o tédio no trabalho cotidiano. Mas, seria possível converter um trabalho entediante em ócio criativo? De acordo com De Masi (2000, p. 161), isso seria possível “preenchendo o tempo com ações escolhidas por vontade própria em vez daquelas que se faz por coação, como o trabalho de escritório ou na linha de montagem”. O acesso ao mundo concreto pela linguagem, bem como o pensar por metáforas vivas desperta os trabalhos “do poeta, do cientista, do estudioso, do amante de xadrez ou de quem adora o computador, o alpinismo ou o voluntariado” e pode favorecer a criatividade (De Masi, 2000, p. 161). Educar é sempre um ato de coragem e uma ação criativa, é desenvolver um projeto humano, um obrar-se, em termos de ação ética, estética e política.

Como apontado até aqui, trata-se de um pensar crítico e de um agir dialógico enquanto possibilidade para promover aprendizagens evolutivas e coletivas, (re)construindo valores e práticas, visto que a socialização humana só pode ser bem-sucedida sob condições de liberdade criativa e cooperativa. Disso tudo, não existe interpretação criativa desconectada do mundo em que vivemos e que podemos aguçar a curiosidade, as dúvidas e os desafios, apontando repercussões e (re)construções em uma ação conjunta de maneira atraente e rigorosa. Para Freire (2005, p. 72), “na criatividade se estimula a reflexão e a ação verdadeira dos homens sobre a realidade, respondem à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora”. Nesse cenário, todos somos sujeitos de transformação no processo de ensino via criatividade, na perspectiva de gerar práticas mais próximas da realidade concreta e da promoção de uma reconstrução crítico-reflexiva sobre os problemas educativos. O talento criativo não é um privilégio para algumas pessoas ou algo reproduzido por classes sociais, pois todos nós temos. Contudo, são poucas as pessoas que se debruçam sobre o devir formativo, deixando fluir a imaginação e a dimensão da ludicidade, a maioria abandona o potencial da criatividade e acaba direcionando seus esforços para o fazer repetitivo e empobrecido de vida.

Trata-se de um ato de reconciliação e revalorização da criatividade na vida social, cujos processos sensíveis reencontram a sua interdependência epistemológica, seu horizonte aberto e seu lugar no espaço público. Isso é possível a partir do momento em que se integram novos modos de sensibilidade criativa, por meio de uma educação problematizadora e (auto)crítica para pensar a realidade, o diverso e a pluralidade humana, suscitando uma reconstrução de saberes na dinamicidade vital, num esforço persistente de experimentar outros conhecimentos por livre vontade de descobrir o mundo.

Criatividade e ócio criativo: interação da linguagem e do trabalho?

Ao olharmos para a história, vamos perceber que a dimensão criativa tem sido subestimada e ignorada por uma concepção de educação, que visa a transmissão de conteúdos, em escala produtiva de ensinamentos, fazendo pouca questão de manter pungente a curiosidade dos sujeitos sobre os conhecimentos sensíveis ou a exploração de avanços de desenvolvimento imediato com o outro e a valorização das diferenças humanas. De acordo com Martínez (2007, p. 54), em decorrência da “complexidade do cenário mundial, os problemas socioeconômicos a serem resolvidos, o impressionante desenvolvimento da tecnologia e as incertezas do futuro são alguns dos fatores que justificam a valorização da criatividade e da inovação no momento atual”. Contudo, a criatividade e suas ressonâncias na sociedade vão além da sua aplicação no exercício do trabalho, tornando-se necessário considerar principalmente as interações dialéticas que são construídas nos processos de ensino e de aprendizagem por meio da linguagem. Criatividade implica também ter o desejo de saber, no sentido de articular as condições de possibilidade para a (re)construção de conhecimentos, transformando e manifestando a criatividade no trabalho pedagógico e aprimorando as concepções já existentes.

Destacamos que, na falta de criatividade, geram-se indiferenças, intolerâncias, homogeneizações oriundas de mecanismos ideológicos da indústria cultural e que repercutem nos distintas modos de violência simbólica e fragmentação da sociedade (Adorno & Horkheimer, 1985). A economia e as demandas mercadológicas, em contínuas mudanças, demandam que as pessoas sejam mais criativas, de forma especial nesse momento histórico, que é marcado pela intensa competição nas produções no trabalho. Os dualismos entre qualidade e quantidade, assim como os antagonismos entre teoria e prática, experiências científicas e do mundo da vida, só perpetuam o discurso da eficácia falaciosa, da desigualdade estrutural, da injustiça social e da inovação econômica. Sob essa ótica, a criatividade recebe destaque pela potência engenhosa e rápida de disposições metafóricas para os aprimoramentos humanos sobre as próprias existências, tendo em vista as incertezas do futuro pelas aceleradas transformações e pelos problemas comportamentais que surgem constantemente.

Hoje, existem diversas significações para a criatividade, de modo que algumas delas consideram os elementos sociais, outras as questões psicológicas, filosóficas e educacionais em suas interconexões com as ciências cognitivas. Até pouco tempo atrás, os discursos eram de que o aprimoramento da expressão criativa era orientado pelos aspectos sociais e econômicos de um conjunto de princípios perpassados pela herança familiar. Entretanto, como sabemos, tais elementos não são garantidores do aprimoramento da criatividade, que necessita ser desencadeado através de um trabalho cooperativo e aperfeiçoado com a linguagem e no trabalho com o outro, na provocação recíproca para a (re)criação de sentidos e significados concretos. De Masi (2000), preocupado com as dimensões epistemológicas da criatividade insere a seguinte indagação: Portanto, o que é a criatividade? Em que consiste? E responde dizendo que “consiste em um processo mental e prático, ainda bastante misterioso, graças ao qual uma só pessoa ou um grupo, depois de ter pensado algumas ideias novas e fantasiosas, consegue também realizá-las concretamente” (De Masi, 2000, p. 188). É por isso que a atividade criadora acompanha um sentimento de paixão pelo conhecimento, inscrita entre a tensão e a alegria de aprender algo desconhecido, uma síntese dialética entre as capacidades de fantasia e a concretude da experiência formativa que só pode ser apreensível pela mediação da linguagem e do trabalho educativo.

Posto que “a criatividade implica a novidade; porém não é suficiente para se considerar um processo criativo” (Martínez, 2000, p. 71). Em outras palavras, “a criatividade, para mim, não é só ter ideias, mas saber realizá-las: é unir fantasia e concretude” (De Mais, 2000, p. 188). Proveniente de uma conjuntura histórico-cultural, ela nasce como uma força de idealização educativa e formativa (Paideia) que capacita as pessoas a alcançar novas projeções criativas com o outro. Ao olharmos para a literatura ao longo da história encontramos pessoas que hoje são consideradas notadamente criativas (majoritariamente homens), que estão ligadas às áreas das ciências ou das artes, como podemos destacar Newton, Darwin, Galileu, Picasso, Da Vinci. Na tentativa de articular a discussão com uma visão mais global e democrática para a formulação de um entendimento sobre a criatividade, como algo inerente ao obrar humano, destacamos as palavras de Alencar (1996, p. 29):

A criatividade não se manifesta apenas nas produções artísticas e trabalhos de inventores e cientistas. Ela assume as mais diversas formas e permeia, em maior ou menor extensão, as distintas atividades, podendo se manifestar em diferentes níveis e contextos […]. Todos esses mitos estão profundamente enraizados em nossa consciência e presentes em nosso meio. Eles necessitam ser derrubados e desfeitos, de tal forma que os vastos recursos criativos inerentes a cada pessoa possam ser reconhecidos e utilizados em prol do indivíduo e da sociedade.

Assim, a criatividade parte do mundo social e das produções humanas e serve para estimular a sensação e a percepção das potencialidades e capacidades humanas. Evidencia-se que a criatividade não possui apenas um conceito, pois traz diferentes entendimentos que precisam ser atualizados constantemente como uma área empírico-analítico de conhecimentos científicos e contextos de significação pelos sentidos dessa abordagem humana na atualidade. Nessa diversidade de conceitos, a criatividade se justifica na possibilidade de criação de algo novo, seja uma ideia correlacionada ou uma invenção original ou recriadora de conceitos já existentes. Apesar de haver uma necessidade para o aprimoramento da criatividade num mundo tecnológico, no âmbito escolar brasileiro não ocorreu até agora um avanço expressivo com as tecnologias digitais nas práticas pedagógicas. Na realidade, esta não tem constituído uma das inquietações das escolas, pois, na maioria delas, aperfeiçoa-se apenas materialmente e instrumentalmente, mas dando ênfase à repetição de antigas tecnologias em outras roupagens.

Para despertar a criatividade e a autenticidade humana, é importante considerar a conjuntura cultural e social dos estudantes e professores, almejando assim suscitar uma educação menos passiva e tecnicista, tornando-a mais ativa, libertária e humanizadora para gerar um clima que propicie a expressão criativa. Freire (2005, p. 83) aponta que a educação libertadora ou problematizadora parte da pergunta, “[…] se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras de homens e mulheres sobre a realidade, responde a sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora”. Mais do que isso, Freire (2005) indica para olhar com suspeita e cautela para as tecnologias modernas, no sentido de não tornar a escola um ambiente objetivado, sem diálogo, sem sentido ou configurada em um abstracionismo pedagógico, em que os educandos são compreendidos como receptores passivos para depositar informações, embaraçando as capacidades criativas.

A educação que potencializa a criatividade necessita estar aberta ao inusitado, ao (re)aprender constante como condição para o diálogo e para resolver os problemas do próprio cotidiano, de maneira a evitar o empobrecimento das experiências pedagógicas, por ações coercitivas de autoridade pedagógica que prorrogam falsos universais científicos. As compreensões fragmentadas, ingênuas e superficiais da realização de testes escolares, por exemplo, sem a expressão do potencial criativo atuam para uma educação que adestra os elementos da criatividade dos educandos, pois a escrita de respostas acabadas e decoradas impossibilita as relações de interdependência à ação criativa. Diante disso, os processos pedagógicos de educar precisam estimular o sentido reconstrutivo dos conhecimentos para aguçar ideias e ações inventivas, viabilizando a problematização da realidade e das aprendizagens de reconhecimento social. Entretanto, parece que as potencialidades criativas do pensar na diversidade de forças continuam a ser sabotadas nos espaços de ensino, e isso se reflete desde a apresentação de conhecimentos sem a abertura ao diálogo, reduzindo os momentos de interação lúdica, desinteressada, livre e de expressão solidária. Na verdade,

[…] com a mudança dos valores, devem mudar também os métodos pedagógicos adequados à sua transmissão, [visto que para educar estudantes para obter] dinheiro e poder adotava-se uma pedagogia que premiava o egoísmo, a hierarquia e a agressividade, para educar os jovens para os valores emergentes, os métodos a serem usados deverão valorizar mais o diálogo, o estudo, a solidariedade e a criatividade. (De Masi, 2000, p. 178-179)

A contemporaneidade é caracterizada pelo uso das tecnologias em múltiplas instâncias sociais e por sujeitos diferentes, o que também acaba gerando nos âmbitos formativos o produtivismo homogeneizador atrelado a demandas burocráticas de professores, que aderem à ação coercitiva de controle permanente e burocratização das atividades. O trabalho pedagógico conduzido por coerções, burocratizações e submissões não é compatível com uma ação educativa (re)criadora. Desse modo, os institutos formativos necessitam estimular a imaginação humana traçando linhas de ação que interliguem os sujeitos, formando narrativas significativas e dependentes da relação com a práxis. De fato, para estimular a criatividade, o professor “precisa de vínculos, de desafios, não de barreiras burocráticas” (De Masi, 2017, p. 144). A educação compromissada com a formação de educandos capazes de refletir, imaginar e recriar com autonomia precisa criar provocações distintas para jogar e aprender com os problemas da vida cotidiana, articulando conhecimentos e as tecnologias digitais como dispositivos à aprendizagem crítica, criativa e interdependente. De Masi (2000, p. 190) entende que “educar um jovem ou um executivo para a criatividade hoje significa ajudá-lo a identificar sua vocação autêntica, ensiná-lo a escolher os parceiros adequados, a encontrar ou criar um contexto mais propício à criatividade”, estimulando a criatividade e o fluir das reconstruções do conhecimento.

Diante de uma sociedade fluída e líquida, de informações desencontradas e fragmentadas (Bauman, 2001), o resultado é a polarização de opiniões e a dificuldade de fazer relações entre as coisas, cabendo à educação a tarefa do uso criativo dos saberes, que pode ser alcançado pelo diálogo vivo que produz motivações, orientações e sensibilizações aos conhecimentos diferentes. A sensação de incompletude e a percepção de superficialidade do mundo requer a busca do conhecimento na educação e a ruptura com as certezas positivistas como algo fechado, modelado e estanque. Além disso, a perspectiva da criatividade deveria voltar-se ao reconhecimento da importância da ação criadora e da compreensão de mundo (de princípios epistemológicos e sociais), das emoções e do desenvolvimento das capacidades humanas face às mudanças para recriar as dimensões criativas no espaço educativo (Habowski & Conte, 2018).

Desdobramentos finais…

Cientes dos limites do que nos propomos discutir neste ensaio, concluímos que a atitude criativa faz parte da produção aprendente, da pergunta que nos interpela e do habitar o mundo com os outros, conforme os contextos e as necessidades socioculturais. Além da transformação dos modos de vida alienados, um ato criativo pode ser de tal modo revolucionário no momento em que atualiza aquele que o precede, esboçando e reinventando uma nova totalidade e uma percepção de beleza completa. Ao provocar o debate sobre a criatividade como atitude formativa, científica e educativa, encontramos limitações referentes às ambiguidades e desafios comuns ao tema no contexto educacional, muitas vezes, de um trabalho desumanizante. É necessário compreender melhor a criatividade na educação, visto que ela é parte do processo de (re)conhecer e é interdependente das relações com a totalidade social, que resulta na recriação de ideias ou de renovação do próprio imaginário social. É nessa perspectiva que defendemos a criatividade nos processos de ensino e de aprendizagem como a condição de possibilidade de colocar em movimento as ideias e compartilhar experiências e diferentes visões de mundo, com as quais os sujeitos expressam a realidade.

A criatividade nos processos educativos brota de interpretações e compreensões reconstruídas e renovadas no movimento de (re)aprender com os outros. A perspectiva do ócio criativo reside no fato de que a contemporaneidade pertence aos sujeitos que conseguirem restaurar a dimensão do trabalho, não mais enquanto uma obrigação, mas apropriarem-se dele, na tentativa de associá-lo ao tempo livre, ao estudo e ao jogo necessário à criação. Como a sociedade contemporânea seria se os sujeitos ficassem mais preocupados em ter uma dedicação ao trabalho cotidiano, tendo o mesmo prazer e concentração que as crianças têm ao brincar? Em outras palavras, seria possível olhar o mundo (vigiado, controlado e banalizado pela indiferença em criar em função do competir) com a perspectiva de uma criança, construindo novas experiências e histórias, tendo no lixo da história um movimento de resistência? Tudo indica que as condições de possibilidade para o ato criador interdependem da capacidade de espantar-se, de despertar-se, de surpreender-se a cada dia, reinventando e investigando as próprias relações com o mundo, resistindo a ser indiferente ao outro e a permanecer numa existência fragmentária ou solitária de vida moderna.

O pensar e o jogar criativamente é uma das possibilidades para trabalhar e realizar uma leitura do mundo, em um exercício de reflexão e ação política, significando uma oportunidade para que estudantes e professores possam fazer experiências de recriar visões de mundo, adotando uma concepção relacional de ludicidade no trabalho cotidiano, de ócio criativo na educação. A criatividade, enquanto forma de reconstrução e criticidade, pode propiciar o jogo do diálogo, do trabalho coletivo e se configurar como uma ação de transformação social, disseminando valores emancipatórios ou, caso contrário, apenas serem seduzidos pelo consumo, sem problematização. Assim, compreendemos aqui que a racionalidade aprendente se forma com as experiências criativas de abertura ao outro que nos interpela, tendo o mundo da vida como horizonte dessa experiência tensa da reconstrução de conhecimentos, metamorfoseando e procurando manifestar o potencial criativo do ócio para não resultar em um quefazer de insensíveis (Freire, 2002). Os processos educacionais que não oferecem espaço à criatividade para formar criações com ousadia ou renovação constante estão entregues ao fracasso e a opacificação do olhar diferente, tornando-se um mero sistema educacional inquestionável, insensível e intraduzível.

O ócio criativo, na sua abordagem do tempo livre para a expressão do potencial criador, engrandece as atitudes e iniciativas dos próprios estudantes e professores, permitindo-lhes alcançar novas conquistas em jogo cooperativo e dinâmico de dizer a palavra e (re)reconstruir com os outros os saberes experienciados. A educação enquanto um sistema que é gerido por pessoas, e não apenas por questões financeiras e mercadológicas, necessita desenvolver a experiência do ócio criativo enquanto metáfora criativa presente nas expressões que projetam metamorfoses do aprender e do formar-se no tempo livre, consolidando a alegria do conhecimento na escola e fora dela. Contemporaneamente sabemos que tal metáfora se mostra rica à percepção de contextos socioculturais e interfere nos processos interpretativos, tendo nesse horizonte de expectativas o despertar da multiplicidade humana para a escuta, a comunicação e para sair da zona de conforto, no sentido de reconhecer o potencial criativo do olhar e do encontro com o outro. Seria possível, hoje, a mesclagem de espaços presentes/atuais e virtuais em prol da formação de outras características resultantes de metáforas vivas e criativas em uma relação de aprendizagem e reconhecimento mútuo?

Referências

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[1]A obra Passagens (Benjamin, 2006) apresenta uma escrita por excertos ou fragmentos sobre a teoria do conhecimento e do progresso (fenômeno moderno), bem como questões epistemológicas para uma crítica da cultura e da sociedade, por meio de anotações, citações e transcrições que Benjamin reuniu ao longo de sua vida e ordenadas em arquivos alfabéticos.

[2]Em conversas virtuais recentes, Domenico De Masi reforça que nenhum momento seria melhor para discutirmos nossa sociedade e como nos adaptaremos a tantas mudanças causadas pela pandemia. Entrevista intitulada IT ForOn Series com sociólogo Domenico De Masi, em 21 de abril de 2020. Disponível em: http://youtu.be/t3OW8RFEU08

Recebido: 07 de Maio de 2019; Aceito: 07 de Julho de 2020

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