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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 08-Set-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.26204 

Artigos

Configurações da cultura escolar militar: relações de significações com os jovens alunos

Configuraciones de la cultura de la escuela militar: relaciones de significados con estudiantes jovenes

Configurations of military school culture: relationships of meanings with young students

Configurations de la culture scolaire militaire: relations des significations avec les jeunes étudiants

Márcia Cristina Rodrigues da Silva Coffani1 
http://orcid.org/0000-0002-5008-3380

Cleomar Ferreira Gomes2 
http://orcid.org/0000-0003-0451-1011

1Professora Doutora em Educação – UFMT, atua na Faculdade de Educação Física – UFMT, Professora Orientadora do Mestrado Profissional em Educação Física, leciona as disciplinas de Estágios e Práticas Curriculares no Ensino Médio.

2Professor Doutor em Educação – UFMT, atua na Faculdade de Educação Física – UFMT, Professor Orientador do Mestrado Profissional em Educação Física e do Programa de Pós Graduação Mestrado e Doutorado em Educação – UFMT, leciona as disciplinas de Teoria e Prática do Jogo e Educação Física e Ludicidade, Líder do Grupo de Pesquisa Corporeidade e Ludicidade.


Resumo

O artigo apresenta as configurações da cultura escolar de uma escola civil militar que atende ao Ensino Médio, em Cuiabá-MT. É um estudo qualitativo e descritivo que teve como instrumentos de pesquisa fontes documentais, observações e entrevistas semiestruturadas. As discussões têm assento na socioantropologia sobre os desafios da escola e do Ensino Médio ao atender as juventudes; como a cultura escolar lida com a diversidade juvenil; como o projeto pedagógico se vincula aos contextos de vida dos alunos. Compreendeu-se que os projetos de vida dos “jovens alunos” são marcados por incertezas em relação à proximidade com a adultez e a terminalidade dos estudos e a importância de investigações sobre as relações entre os jovens, a escola e o Ensino Médio.

Palavras-chave Cultura Escolar Militar; Jovens; Ensino Médio

Abstract

The article presents the configurations of the school culture of a civilian military school that serves high school, in Cuiabá-MT. It is a qualitative and descriptive study that had as research instruments documentary sources, observations and semi-structured interviews. The discussions are based on socio-anthropology on the challenges of school and high school when attending young people; how school culture deals with youth diversity; how the pedagogical project is linked to the students' life contexts. It was understood that the life projects of “young students” are marked by uncertainties in relation to their proximity to adulthood and the end of their studies and the importance of investigating the relationships between young people, school and high school.

Keywords Military School Culture; Youth; High school

Résumé

L'article présente les configurations de la culture scolaire d'une école militaire civile qui dessert le lycée, à Cuiabá-MT. Il s'agit d'une étude qualitative et descriptive qui avait pour instruments de recherche des sources documentaires, des observations et des entretiens semi-structurés. Les discussions sont basées sur la socio-anthropologie sur les défis de l'école et du lycée lors de la fréquentation des jeunes; comment la culture scolaire aborde la diversité des jeunes; comment le projet pédagogique est lié au contexte de vie des élèves. Il a été entendu que les projets de vie des «jeunes étudiants» sont marqués par des incertitudes quant à leur proximité avec l'âge adulte et la fin de leurs études et l'importance d'investiguer les relations entre les jeunes, l'école et le lycée.

Mots clés Culture des écoles militaires; Des jeunes; Lycée

Resumen

El artículo presenta las configuraciones de la cultura escolar de una escuela militar civil que sirve a la escuela secundaria, en Cuiabá-MT. Es un estudio cualitativo y descriptivo que tuvo como instrumentos de investigación fuentes documentales, observaciones y entrevistas semiestructuradas. Las discusiones se basan en la socioantropología sobre los desafíos de la escuela y la escuela secundaria cuando se atiende a jóvenes; cómo la cultura escolar trata con la diversidad juvenil; cómo se vincula el proyecto pedagógico con los contextos de vida de los estudiantes. Se entendió que los proyectos de vida de los "jóvenes estudiantes" están marcados por incertidumbres en relación con su proximidad a la edad adulta y el final de sus estudios y la importancia de investigar las relaciones entre los jóvenes, la escuela y la escuela secundaria.

Palabras clave Cultura de la escuela militar; Gente joven; Escuela secundaria

Introdução

Este artigo apresenta reflexões sobre as configurações da cultura escolar de uma escola civil militar (ECM) que atende “jovens alunos” do Ensino Médio, em Cuiabá-MT, que nos revelaram cerceamentos, tolerâncias e (re)construções em que emergem lugares de expressões de modos e culturas juvenis no cotidiano da escola que, ao considerar a singularidade do projeto formativo da escola militar, indicam o desafio do Ensino Médio: produzir um processo significativo de aprendizagens em sintonia com as condições juvenis na contemporaneidade.

Imaginário social: de juventudes às juventudes

A história política e social brasileira é marcada por movimentos e mobilizações juvenis em contestação aos estados políticos e econômicos de desigualdade social do país, como: o Movimento dos Jovens Abolicionistas, situado no período de 1870 a 1880, que antecede à Proclamação da República no Brasil; o Movimento da Semana da Arte Moderna, em 1922; o Movimento Tenentista, do qual resultou a formação do Partido Comunista, que se iniciou no final da “República Velha”, com auge no período de 1918 a 1930; a organização dos jovens estudantes resultando na fundação da União Nacional dos Estudantes – UNE, em 1937 –, a qual teve muitos dos seus membros perseguidos, torturados e mortos durante a Ditadura Militar de 1964; mais recentemente, os “Caras Pintadas” e as mobilizações sociais de 2013, antecedentes à Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014.

Estas são memórias latentes, que permeiam o imaginário social, e, em comum, alimentam modos e representações sobre jovens e juventudes no Brasil. Como também são lembradas com muito saudosismo por aqueles que afirmam estarmos diante de um estado de crise apocalíptica, divulgado em mídias, em função de uma geração pretensamente desinteressada pela política.

A construção sociológica do estatuto de juventude na contemporaneidade expressa seu enquadramento, como categoria social tramada em contextos sociais e históricos (Pais, 1990; Margulis & Urresti, 1996; Levi & Schmitt, 1996; Groppo 2004; Melucci, 2007; Peralva, 2007), o que perpassa pela discussão da incredulidade de uma determinação universal de faixa etária, para as diversas sociedades e as fases da vida, que não perceba os condicionantes sociais de transição para vida adulta. Há que se considerar que são intermediadas pelas marcações simbólicas sobre o que é ser jovem, que não se restringem à determinação de uma faixa etária específica, assentando-se no critério sociocultural.

Há uma complexidade arbitrária inerente aos demarcadores cronológicos, que delimitam etapas de vida para conceder ou negar direitos à determinada faixa etária ao se basearem unicamente na idade. Parece certo afirmar que a especificação de uma faixa etária “[…] não tem caráter absoluto e universal. É um produto da interpretação das instituições das sociedades sobre a sua própria dinâmica” (Groppo, 2004, p. 11). O que faz aceitar que a realidade da juventude não pode ser tratada como uma realização da ordem da natureza, mas da ordem do social e, portanto, uma criação histórica, não um invariante universal (Groppo, 2004). A juventude representa uma condição transitória, mais apropriadamente “[…] os indivíduos não pertencem a grupos etários, eles os atravessam” (Levi & Schmitt, 1996, p. 9).

A demarcação histórica do que vem a ser juventude revela uma construção social, objeto de conflitos e negociações. “Na sociedade contemporânea, de fato, a juventude não é mais somente uma condição biológica mas uma definição cultural” (Melucci, 2007, p. 36). É no exercício das espacialidades e das temporalidades da vida cotidiana que “[…] os sujeitos constroem o sentido do seu agir e no qual experimentam as oportunidades e os limites da ação” (Melucci, 2005, p. 29), o que rejeita os cortes de funções e delimitações etárias produzidas pela modernidade.

Groppo (2004, p. 10) avalia que, apesar do reconhecimento da adolescência e juventude como direitos tenha contribuído para “[…] aumentar o grau de civilidade e bem-estar de indivíduos e coletividades, o ponto de vista legal ainda deixa de lado muito da complexidade e diversidade assumidas pela condição juvenil”.

Abramo (1997) conceitua que condição juvenil se revela como o modo como uma sociedade significa esta fase do ciclo da vida, o que inclui uma dimensão histórica, geracional e uma diversidade de condições sociais (classe, gênero, etnia, etc.) sob as quais o jovem vive sua juventude.

Os estudos sociológicos de Pais (1990) sobre a juventude a reconhecem como uma fase de transição do ciclo de vida, categoria social e plural, que demanda, para sua investigação, a compreensão da relação dos jovens com as gerações anteriores e suas aproximações, hibridismos e distanciamentos entre jovens de uma mesma geração. Diferenças que se expressam em suas socialidades, subjetividades e marcadores sociais como gênero, sexualidade, consumo, estrato social, parentalidade, incivilidades, usos de tecnologias de informação e comunicação, grupos de convivência, projetos de vida, entre outros.

Inspirado neste aporte teórico e metodológico, este artigo apresenta reflexões produzidas sobre as configurações da cultura escolar de uma escola civil militar (ECM), que atende “jovens alunos” do Ensino Médio em Cuiabá-MT, com base no estudo investigativo sobre as redes de significações tramadas entre os “jovens alunos” e o projeto de escola civil militar de Ensino Médio.

Metodologia

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa – UFMT e registrado na Plataforma Brasil/CONEP sob o nº. CAAE 03256312.5.0000.5541 se caracteriza pela abordagem qualitativa, de perspectiva etnográfica, portanto descritiva, sobre a cultura escolar de uma unidade de ensino civil pública, de regime disciplinar militar, denominada de ECM, que oferece a proposta de Ensino Médio Inovador (PROEMI/MEC/BRASIL), em Cuiabá-MT.

Envolveu-se a análise de fontes documentais relacionadas aos aspectos históricos e pedagógicos como o Projeto Pedagógico, Regimento Disciplinar, Planos de Ensino das disciplinas do Ensino Médio ofertadas no período vespertino às turmas de primeiro, segundo e terceiro no ano letivo de 2015, Agenda do Aluno, entre outros; observações do cotidiano escolar dos “jovens alunos” do Ensino Médio, com a descrição da apropriação dos espaços e tempos escolares em diário de campo ilustrado por fotografias; entrevistas semiestruturadas com 12 “jovens alunos” voluntários e autorizados pelo TCLE assinado pelos responsáveis (06 meninas e 06 meninos, sendo 04 alunos de cada ano do Ensino Médio, na faixa etária de 15 a 17 anos), identificados por codinomes formados a partir da letra inicial do nome do aluno em sequência a turma de ensino, a identificação de gênero e idade. As entrevistas giraram em torno dos seguintes temas: o engajamento dos jovens em ações de mobilização social; como os “jovens alunos” percebem seus destinos, se preparam para isso, como enxergam a escola e como a escola parece enxergá-los na contemporaneidade; o projeto de escola jovem hegemônico correlacionando com/sem a escuta sensível das redes de socialidades e culturas juvenis presentes na escola de Ensino Médio; as práticas ordinárias (in)visíveis que revelam as identificações, negociações, situações de consenso e conflitos juvenis que se formam no espaço e tempo da escola e que revelaram muito das juventudes ali presentes.

O processo de análise dos achados de pesquisa buscou integrar “o olhar, o ouvir e o escrever” (Oliveira, 2000), de forma que permitisse apreender os fenômenos sociais, textualizando-os em sua trivialidade do cotidiano, inscrevendo-os numa proposição de foro narrativo dialógico e epistemicamente relativista, ao empregar a “triangulação” de dados em perspectiva socioantropológica.

Análise de Dados

O Ensino Médio da ECM

O modus operandi da ECM expressa de fato que essa é uma unidade do sistema de ensino da Polícia Militar de Mato Grosso (PMMT). Como a formação dos agentes policiais ocorre num contexto hierárquico e disciplinar, que ensina ao corpo o controle dos ímpetos da natureza do homem, isto se mostra também na proposta de educação para os filhos de militares ou demais, que celebram as tradições e os valores cívicos com a intenção de controle social a partir do inculcar do espírito de disciplina (Durkheim, 1899/2008).

A análise documental dos aspectos históricos, institucionais, pedagógicos e curriculares indicou o projeto político e pedagógico de civilidade, moralidade e cidadania subjacente ao regime disciplinar militar, ilustrado pela Figura 1:

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 22 de junho de 2015.

Figura 1 Imagem Geral do Corpo de Alunos do Ensino Médio da ECM, em Cuiabá-MT 

Compreender a cultura escolar de um colégio de regime disciplinar militar a partir da pesquisa do/no cotidiano, incluindo os sentidos pedagógicos que seus agentes de ensino atribuem à sua rotina, marcada pela ritualização de práticas educativas, que impregnam no corpo do aluno um modo de ser, estar e conviver com o “outro”, e que contribuem para o educar do corpo e das sensibilidades, não poderia ser concretizada sem que enfatizasse: o papel político e coercitivo das Forças Armadas Militares e Policiais na Constituição dos Estados Modernos, a partir dos séculos XVIII e na consolidação política, territorial e social da República Brasileira, no século XIX.

Nascimento (2009) conclui que a passagem do século XIX para o XX é marcada pela defesa da doutrina nacionalista, pela difusão e massificação do sentimento de identidade nacional. A escola era um importante espaço para a concretização desse código nacionalista, ao assumir um importante papel na reforma dos costumes e na educação do corpo para servir à família e à pátria.

Viu-se na escola uma possibilidade de estreitamento de laços entre a sociedade civil e o regime disciplinar militar. Esse papel é desempenhado pelos Colégios Militares no Brasil, que parecem resguardar o desejo de desempenhar uma educação de fins civilizatórios baseados na hierarquia e disciplina, que alimentam o imaginário social sobre a excelência de ensino desenvolvida nestas instituições escolares. Esses fatos podem ser apontados como componentes do processo político e social que permitiu o surgimento dos Colégios Militares no Brasil, que buscam formar “o bom homem”, “o bom filho”, “o bom cidadão”.

A ECM é uma instituição hierarquizada e disciplinada, fundamentada pelo princípio da racionalização das funções de mando e subordinação, organizada em direção, subdireção e coordenação pedagógica geral e por período e corpo de aluno (conjunto de militares que prestam serviços na escola, principalmente, cuidam do ensino das práticas cívicas e militares e da disciplina dos alunos). Assume a feição de uma organização burocrática, na qual as relações sociais e pedagógicas são reguladas pela hierarquia funcional. Foi possível compreender que fundamentalmente o cotidiano é marcado por relações hierárquicas e disciplinadoras, exemplificado pelas carteiras enfileiradas e alinhadas, nos rituais “Entrar em Forma”, entre outros. Esses fatos do cotidiano da ECM não permitem diferenciá-la completamente da escola civil, pois muitas práticas se aproximam.

Mesmo no recreio há o exercício da disciplina, o que assegura que “[…] os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam” (Foucault, 1975/2009, p. 165). Isto possibilita o controle mais efetivo dos alunos, que não ficam fora das salas de aulas, que são expressamente proibidos, de transitar pelas dependências do colégio, durante o horário de aula.

A escolha da ECM pela proposta de Ensino Médio Inovador nos fez duvidar da ideia reproduzida no imaginário social de arcadismo retrógrado, cientificista e moralista do ensino militar. Há uma vontade pelo exercício de uma plataforma de ensino de qualidade, que tome como mote o contexto democrático e as necessidades sociais, políticas e educacionais do seu tempo. Sem desprezar o sentido simbólico da proposta de regime disciplinar militar, que é caracterizada por normas e formalismos que expressam uma relação hierarquizada entre o instituinte e o instituído.

Tem-se procurado atender à proposta de Ensino Médio Inovador com oficinas temáticas, com periodicidade mensal, oferecidas pelos professores civis ou militares que atuam na escola, e outros convidados, sobre: “Educação em Direitos Humanos e Mídias Sociais”; “Design Ecológico”; “Canto e Percussão – Canjon”; “Danças Típicas Hispânicas”, “Leitura e Recital de Poemas” e “Jogos de Mesa”, “Capoeira”, entre outras. Não foi possível perceber se a definição dos temas das oficinas pedagógicas contemplou as opiniões dos “jovens alunos”, quer dizer, seus interesses, percepções, dúvidas e preferências culturais, artísticas, esportivas, estéticas, entre outras. O que pode ser um fator gerador de forte empatia, consequentemente, de aprendizagens significativas.

A Proposta de Ensino Médio Inovador, organizada em Oficinas Temáticas, permite romper com a rotina disciplinadora de espaços e horários, provocando uma mudança na relação entre o “jovem aluno” e a escola.

A capoeira é oferecida voluntariamente como oficina temática aos alunos por um mestre da comunidade externa. Assim, a ECM busca valorizar os conhecimentos e práticas culturais silenciadas, que outrora eram consideradas interditas e marginalizantes, pois não representavam o ideário educativo de modernidade e civilidade. Sua presença é a expressão de que as relações culturais não são relações idílicas (Candau, 2011), mas produzidas historicamente.

Refletiu-se o quanto a realidade é marcada por contraditórios, rejeitando as abstrações generalizantes, ao retratarmos um ambiente educativo militar, que elege a hierarquia e a disciplina como fundamentos filosóficos de sua pedagogia de formação do aluno, como, também, uma educação preocupada em abrir o seu currículo para inserção de outras possibilidades de produção e experiências corporais, que eram proibidas em função do julgamento preconceituoso e moralizante de uma sociedade.

A capoeira é um indício que se tem buscado estabelecer diálogo com a comunidade em que se insere a ECM a partir da leitura dos anseios dos “jovens alunos”, ao possibilitar as vivências de práticas culturais tradicionais que, no início do século, foram alvo de repreensão policial - além de promover a valorização desse conhecimento como socialmente válido para formação do “jovem aluno”.

As observações do recreio registraram o exercício de poderes que se produzem e intercruzam nas relações entre os diferentes sujeitos (in)visibilizados, e que se organizam, distribuem e esquadrinham as ações, os espaços e os tempos escolares. No cerne da questão, está a disciplina, conceituada por Foucault (1975/2009), como uma tecnologia de poder que fabrica o indivíduo.

Há um feixe de relações de poder que interpela e legitima a escola civil e militar, e que se multiplica e invade outras esferas da vida social do “jovem aluno”, que foi identificada no Regulamento Disciplinar (Mato Grosso, 2015), presente na “Agenda do Aluno”, contendo a classificação de atos como transgressões disciplinares, que incluem a vida do aluno extramuros escolares como:

Art. 23 – Usar o uniforme ou o nome do Colégio em ambiente estranho ao mesmo, sem estar para isto autorizado.

[…]

Art. 43 – Denegrir o nome do CPMT ou de qualquer de seus membros através de procedimentos desrespeitosos, seja por meio virtual ou outros.

[…]

Art. 48 – Ter atitudes ou relações comportamentais incompatíveis com os padrões do Colégio.

Art. 49 – Se envolver em rixa, agredir física ou moralmente integrante da comunidade escolar ou qualquer outra pessoa.

[…]

Art. 53 – Comparecer uniformizado a locais de jogos eletrônicos, jogos de azar, apostas e outros afins.

Art. 54 – Manter contato físico que denote envolvimento de cunho amoroso (namoro, beijos, etc.) quando devidamente uniformizado, dentro do Colégio ou fora dele.

Art. 55 – Pichar ou causar qualquer poluição visual ou sonora dentro e nas proximidades do colégio.

[…]

Art. 59 – Desrespeitar os símbolos nacionais.

Art. 60 – Quando uniformizado, incentivar ou participar de qualquer comportamento que fira a postura e compostura determinada de acordo com o regimento do colégio, incluindo manifestações públicas seja dentro ou fora do ambiente escolar.

Art. 61 – Utilizar indevidamente o uniforme decomposto em ambiente externo.

Controle, Disciplina e Hierarquia são os instrumentos que ensinam ao “jovem aluno” que o indivíduo precisa regular a sua conduta em favor da rede social da qual faz parte, o que se baseia num processo civilizatório (Elias, 1939/1994).

Ao incluir os atos dos alunos fora do ambiente escolar, se perpetua a continuidade e o adensamento do poder disciplinador, que age para além do espaço escolar, repreendendo comportamentos incivilizados na esfera pública ou privada.

Há a invasão do espaço íntimo e privado da vida do aluno, que, mesmo fora do espaço da escola, assume a máscara de aluno da ECM, prolongando-se as fronteiras de pertença ao regime disciplinar militar.

O poder disciplinador e as funções a ele atribuídas se multiplicam para além do espaço e tempo escolar, de forma que não há a vacância do poder disciplinador, que investe sobre a vida social do aluno.

O “jovem aluno” da ECM

Os “jovens alunos” são nascidos em Cuiabá ou Várzea Grande, moradores da região da “Grande Morada da Serra”, como CPA I, III e IV, Nova Conquista, Primeiro de Março, Altos da Glória, localidade na qual se localiza a escola. Também há alunos de bairros muito distantes, como Praerinho, Bela Marina, Renascer, Jardim Imperial e Santa Terezinha, que, mesmo com tantas outras escolas mais próximas, optaram pela ECM.

Os extratos de falas dos “jovens alunos” revelam há quanto tempo estudam e como conseguiram vagas para estudar na ECM:

Esse ano (2015). Não fiz seletivo. Meu tio veio aqui e fez a minha inscrição. Ai, eu já consegui a minha vaga. (Y – Primeiro A – F – 15 anos).

Três. Esse ano faz 3. Eu vim para cá no oitavo ano. Eu vim transferido porque as provas são para o sétimo ano. As outras séries podem ser transferido, mas tem que ter a indicação de algum militar para poder conseguir a vaga. Tenho a minha prima que veio aqui me indicar. Ela veio aqui, deu o meu nome. Ela é sargento, eu acho. E aí, eu consegui a vaga. (O – Primeiro D – M – 15 anos).

Estudo desde 2011, sétimo ano. Há 5 anos que estudo. (R – Primeiro D – M – 16 anos).

Vim para cá o ano passado (2014). Eu reprovei no primeiro ano. Vim no nono ano. Eu não fiz prova. Não, indicou. A minha vó conheceu uma mulher que conhecia o Coronel. (L – Primeiro E – M – 16 anos).

Faz 6 anos. Sim (seletivo de vagas). (M – Terceiro A – F – 17 anos).

É condição obrigatória para seleção o aluno ter concluído ou estar cursando o 6º ano para matricular-se no 7º ano do Ensino Fundamental II, e ter 12 anos incompletos no ato da matrícula. Pais (2009, p. 372) explica que, ainda na contemporaneidade, a idade é uma forma social e cultural de legitimar “[…] o acesso dos indivíduos a direitos e deveres político-jurídicos, aparece como um importante marco de passagem de uma a outra fase da vida”, neste caso, da transição entre a infância e a juventude. Apesar dos estudos sobre gerações e os ciclos de vida indicarem um claro esbatimento das fronteiras que separam as diferentes gerações.

Para Abramovay (2013, p. 230) o senso comum ainda compartilha as fronteiras da “juventude” como “[…] um ciclo ou a um quase não ciclo de vida, definido mais por uma passagem entre a infância e a condição de adulto”. Nesta fase, inegavelmente, se “[…] produziriam singulares mudanças biológicas e psicológicas, derivando em formas de ser e estar na sociedade e de reagir ou de se inserir nas culturas modeladas pelos adultos” (Abramovay, 2013, p. 230).

Abramovay (2013) explica que são usados cortes de idades para situar empiricamente quem são os jovens, que variam historicamente e por país, como também, por agências voltadas para políticas sociais:

No Brasil, desde 2005, com a criação da Secretaria Nacional de Políticas de Juventude e do Conselho Nacional de Juventude, tal intervalo foi ampliado para compreender a população de 15 a 29 anos, considerando o aumento, nos dias de hoje, do tempo dedicado à formação escolar e profissional das gerações jovens, sua permanência com as famílias de origem, assim como as dificuldades para se conseguir o primeiro emprego (Abramovay, 2013, p. 230-231).

A escolha pela prestação de atendimento educacional aos alunos em fase inicial da adolescência, em escolas que assumem o regime disciplinar militar, está calcado na importância do fortalecimento da formação escolar, com a qualificação da preparação do aluno para enfrentamento do mundo do trabalho ou passagem e prosseguimento dos estudos a nível superior. Nessa fase, o sujeito deixa paulatinamente “o mundo de criança” para adentrar “o mundo da juventude”, assim, estabelece com maior intensidade e autonomia relações sociais exteriores ao mundo da família, o que provoca muitos temores em pais e familiares. É isto que nos parece fundamentar a escolha por uma escola com um público seleto, assim contribuindo para que se tenha um maior controle sobre o círculo de amizades, situações de convívio social desenvolvidas fora do convívio familiar e uma formação escolar baseada na hierarquia e disciplina para moldar os comportamentos e valores sociais no indivíduo.

Para Durkheim (1899/2008), essa passagem do círculo familiar “íntimo e privado” para uma convivência social “múltipla e pública” se apresenta como um marco divisório entre as infâncias, um momento que exige a educação moral do ser. Nesta passagem, se interpõe o problema da educação moral, o qual Durkheim (1899/2008, p. 34) concebe que “[…] ao contrário da opinião muito difundida de que a educação moral deveria competir à família, acredito que o papel da escola na educação é e deve ser da mais alta importância”. E, que encontra na escola lugar propício, ou seja, a escola tomada como “centro de cultura moral”, implementada pela cultura escolar da ECM.

Os “jovens alunos” apontaram que não são jovens trabalhadores e que se dedicam integralmente a rotina de estudos amparados pelas suas famílias. O ponto de partida dos alunos que frequentam a ECM pode contrastar com a realidade de diversos alunos de camadas sociais populares.

Parece não haver um incentivo direto dessas famílias para que esses alunos se iniciem na vida economicamente ativa, mantendo-os em uma espécie moratória, o que não está desconectado da cobrança para que terminem seus estudos com condições de acessar o mundo do trabalho e o Ensino Superior com sucesso.

Os pais, os avós, os tios e as famílias são provedoras econômicas desses “jovens alunos” e, em contrapartida, há a expectativa de um futuro de recompensas com as conquistas vindouras com a realização profissional na fase adulta, que possa contribuir para melhoria da estratificação social e econômica da família. A escola seria uma agência social que pode garantir um futuro promissor social e economicamente desses jovens, cujo imperativo é ser alguém no futuro.

Isso não autoriza afirmar de que se tratam de famílias economicamente privilegiadas, pois os alunos são, em muitos casos, filhos ou descendentes, diretos ou indiretos, de militares estaduais de baixa patente.

Apesar dos motivos para fundação de colégios militares expressar uma luta pela validade de interesses de castas, ou seja, de um grupo específico na condução da coisa pública, a realidade social, marcada por diversas formas de desigualdade social e econômica, move uma parcela de famílias em busca de uma escola que diz se basear em parâmetros éticos, referendados na democracia, cidadania e civismo, por assim acreditarem melhor atender a formação de seus filhos.

As famílias buscam vaga por estarem convictas da qualidade de ensino e por se tratar de uma instituição educativa, que, aos “olhos” dos pais e familiares, é mais segura, organizada e disciplinada. Ensino, Disciplina, Organização e Segurança são os elementos que animam o imaginário social e atribuem prestígio social à ECM. Expressões de fundo heroico, que irrigam o imaginário das famílias, sobretudo, daquelas que concebem a escola como uma instituição de formação para o trabalho, que pode garantir aos seus filhos uma melhor profissão ou um melhor emprego, o que está atrelado à renda financeira.

Os estudos de Maffesoli (2001, p. 75) abordam a importância do imaginário na construção da realidade, descrito como “[…] o estado de espírito que caracteriza um povo. Não se trata de algo simplesmente racional, sociológico ou psicológico, pois carrega também algo de imponderável, um certo mistério da criação ou da transfiguração”.

A materialidade do imaginário de prestígio social da cultura escolar militar se mostra pela prática jurídica, que envolve a oficialização do Termo de Compromisso de Pais e Responsáveis Legais (TCPRL) para confirmação de vaga. O documento dá concretude ao imaginário social de uma escola rígida e séria – que de fato é. Esse é o instrumento legal que assegura ao regime disciplinar militar e que parece incutir nas famílias a confiança necessária sobre a validade atemporal do ensino militar.

A proposta de regime disciplinar militar é assegurada pelo TCPRL ao esclarecer aos pais e alunos de que se tem uma proposta de ensino com ênfase numa pedagogia convencional e militar, que se importa com o comedimento de desvios de comportamento, o cumprimento irrestrito e inquestionável das regras disciplinares e que ensina aos alunos o “dever-ser”, exemplificado pelo uso de uniformes obrigatórios, cumprimento de horários, participação em reuniões de pais e outras ações que colaborem com a assunção de um padrão de conduta de civilidade e moralidade, que se constituem em símbolos de refinamento das maneiras. O que faz concordar com Elias (1939/1994), quando ele afirma que não existe atitude natural no homem.

É por meio do TCPRL que se faz um pacto com o aluno e suas famílias, ao esclarecer que a cultura escolar militar é marcada pela hierarquia e disciplina, havendo a responsabilidade das famílias em acompanhar a rotina de estudos dos filhos, incluindo as tarefas escolares e demais trabalhos extraescolares, entre outros.

Algo que se constitui em alvo de intensas críticas é a previsão de Transferência Educativa no Regulamento Disciplinar (Mato Grosso, 2015) da ECM, caso o aluno não se encaixe no perfil estudantil exigido, que é de um aluno disciplinado, ordeiro e estudioso. O procedimento é efetuado nos casos em que há o descumprimento do TCPRL, com o cometimento de falta mesmo que esta seja de natureza leve, que pela sua natureza e circunstância, afetam a instituição e o aprendizado do aluno.

A tradição do ensino militar se perpetua entre as famílias, quando os seus filhos, em diferentes idades e anos escolares, dão prosseguimento e terminalidade aos seus estudos nesta escola. Assim informaram os “jovens alunos” em entrevista:

Bom, é … Eu já queria estudar aqui. E ai, a minha mãe deixou, ai ela pediu para o meu tio. (Y – Primeiro A – F – 15 anos).

Quem escolheu não foi eu…foi meus pais. Isso, não queria. Reprovei por muita bagunça, e não gosta de tarefa não, preguiçoso. Agora tá de boa. Mais rígido. (L – Primeiro E – M – 16 anos).

É toda minha família, já tem o costume de querer estudar o Tiradentes. Minha irmãs, meus primos. Tudinho. (L – Segundo C – M – 16 anos).

Meu pai também é militar. (V – Terceiro B – M – 17 anos)

Diferente do que se possa imaginar, a ECM é por vezes procurada por pais que, diante do comportamento impróprio e insucesso escolar do filho, esperam ali encontrar uma opção educacional capaz de promover o sucesso da aprendizagem aliado à construção moral do filho, conforme o PPP da escola.

Há uma relação temporalmente mais duradoura do que comumente se verifica com as demais escolas de Ensino Médio, pois, a maioria dos alunos inicia seus estudos na ECM ainda no Ensino Fundamental (07 alunos). E ainda um quantitativo expressivo de “jovens alunos” transfere seus estudos para ECM no primeiro ano do Ensino Médio, quando a preocupação com o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a decisão de uma futura carreira militar, o cursar do Ensino Superior, se tornam preocupações prioritárias das agendas juvenis.

O fato de oferecer um ambiente escolar “livre” de violência ou de “ações de delinquência juvenil” que possam influenciar os rumos da vida pessoal de seus filhos e desestimular o seu envolvimento com atividades menos produtivas, ilegais ou amorais – como criminalidade, prostituição e exploração sexual, drogadição, gravidez precoce, desregramento social e amoral –, e que se constituem em preocupações em relação ao envolvimento da juventude com delitos criminosos (Abramovay, 2013), pareceram ser motivos determinantes para a procura de vaga na ECM.

Abramo (1997, p. 30) localiza nos anos de 1950 a ideia corrente de que “[…] a juventude aparece ela mesma como uma categoria social potencialmente delinquente, por sua própria condição etária”, sendo que a busca de soluções se fez pela “[…] prescrição de uma série de medidas educativas e de controle para assegurar a contenção dessa delinquência”. O que se mantém latente no imaginário das famílias e que marca a construção social a respeito da juventude no Brasil, motivando a procura pela ECM como “a escola mais segura para seus filhos”.

A delinquência juvenil assombra a escola de regime disciplinar militar, o remédio é a ofensiva de uma moral rigorosa, que aparta o sujeito moral dos delinquentes, educando-o para repressão dos vícios e comportamentos inadequados. Investe-se sobre o agir moralmente (Durkheim, 1899/2008).

As discussões de Maffesoli (1981) sobre “poder”, “potência” e “violência totalitária, anômica e banal” pautaram as reflexões sobre como a escola, instância do “poder”, homogeneíza ou extirpa as formas de “potência”, as expressões do “querer-viver” dos “jovens alunos” ao não reconhecer as formas plurais de socialidades, por conseguinte, de culturas juvenis em seu cotidiano.

Na ECM, espera-se encontrar uma escola pacificada, em que a violência escolar e o tráfico de drogas sejam coibidos, permitindo um ambiente de maior segurança aos alunos. A escola de regime disciplinar militar incorpora um clima de austeridade e retidão que inibe coercitivamente a desordem, e que, assim, tenta manter seus alunos longe e a salvo da “cultura da rua”, o que inclui a participação em gangues e atos ilícitos, bem como a contingência de modos e estilos de ser jovem que identificam as culturas juvenis.

Abramovay (2013, p. 238) alerta para os riscos dessa perspectiva:

[…] retirar da escola a condição de produtora de violência não dá conta da complexidade da problemática, pois a violência na escola é um fenômeno múltiplo, com muitas facetas, que assume determinados contornos em consequência de práticas inerentes aos estabelecimentos escolares e ao sistema de ensino, bem como às relações sociais nas escolas.

O imaginário social das famílias que têm seus filhos na ECM parece compartilhar a ideia de ordem, organização e padronização no interior destas instituições de ensino militar, que buscam manter esses princípios como sua obrigação primordial, tomados como elementos frutíferos no combate à violência, que possibilitariam impedir que seus filhos se envolvessem em ações violentas e criminosas na fase adulta.

Na ECM há uma postura mantenedora da ordem assumida cotidianamente nas diferentes ações pedagógicas e no trato com o aluno, sendo os componentes maiores deste imaginário da ordem: a hierarquia e a disciplina. Esses são princípios do sistema de ensino militar que são reconhecidamente valorizados pelos alunos, pais e familiares, ao informar os motivos pela escolha dessa escola:

Aqui é disciplinado e também é uma escola boa. (L – Primeiro E – CMT – M – 16 anos).

Sim, por causa que eu acho que…, que a educação daqui é boa. Os professores são bons. (L – Segundo D – CMT – F – 15 anos).

Ah! Pela qualidade de ensino, porque é uma escola disciplinada. Que eu gosto! (V – Terceiro B – CMT – M – 17 anos).

Os “jovens alunos” parecem compartilhar o ideário educativo fundamentado nos princípios de hierarquia e disciplina como dimensões significativas na produção de bons valores para vida, que se expressam ou são aprendidos pela disciplina.

Com base em Maffesoli (1981), não se percebeu no cotidiano da ECM atos de violência anômica ou banal. É incidente a dimensão da violência totalitária, monopólio da ECM, que, na dimensão institucional, goza de uma representação social de prestígio e respeito na comunidade cuiabana. Dotada de um poder moral que tem sido perpetuado a cada ano letivo a partir da celebração de seus ritos pedagógicos – como as aulas de Instrução Militar, compostas de marchas e evoluções – que impelem a maneira como o aluno deve agir, não apenas como um aluno, mas como membro de um determinado grupo social. Podemos percebê-los metaforicamente como um espelho para que os alunos possam se mirar, e que neutraliza ou homogeneíza as formas subterrâneas de potência “querer-viver junto” dos alunos.

O compartilhar de um modo de agir e interagir específicos, ritualizados, acreditados e repetidos diariamente, é o que permite que se assegure as condições para que isso continue a existir, a perdurar e a secularizar.

Trata-se de uma formação que valoriza o orgulho de ser militar, exalta a tradição, tem como lemas “Saber, Honra e Disciplina”, em busca da superação dos limites pessoais para alcançar a vitória, tal como preconiza a letra da canção da ECM, na qual, os versos não são construídos apenas para rimar, mas versam sobre ordenamentos dos quais emana uma consciência coletiva, a que todos parecem se subordinar:

Orgulho Militar; Por tradição sempre em primeiro lugar; O nosso lema é disciplina e saber; E avançar com garra para vencer. (Refrão da Canção ECM)

No cotidiano da ECM esses valores se materializam pela organização diária do “Entrar em Forma”, nas Aulas de Instrução Militar, na ação dos alunos “Xerifes”, Graduados e Fiscais, que aceitam exercer a função de controladores de seus pares e o comando e liderança da tropa, entre tantas outras práticas culturais.

Foucault (1975/2009, p. 169) considera que a vigilância hierárquica é “[…] um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar”. Registra ainda que, houve o mesmo “[…] movimento na reorganização do ensino elementar; especificação da vigilância e integração à relação pedagógica” (Foucault, 1975/2009, p. 169) com o incremento da organização dos controles em sala de aula, por meio da escolha dos melhores alunos que assumem as funções de “[…] intendentes, observadores, monitores, repetidores, recitadores de orações, oficiais de escrita, recebedores de tinta, capelães e visitadores” (Foucault, 1975/2009, p. 169).

As notas históricas sobre a fundação dos Colégios Militares no Brasil e, em específico, a ECM, elevada à categoria de unidade de ensino pré-militar pela PMMT, leva a compreender que os sentidos simbólicos de suas ações e ordenamentos disciplinares não podem ser substituídos aleatoriamente ou simplesmente eliminados, por que desempenham um importante papel na orientação da ação da sua concepção de formação social, seja de um futuro militar ou membro da sociedade que se deseja como um todo; ou, tão só entendidos como práticas meramente burocráticas e antidemocráticas.

Socialidades e dinâmicas culturais juvenis na ECM

As investigações sobre o cotidiano da cultura escolar militar revelaram o projeto de civilidade, moralidade e cidadania que justifica o modus operandi dessa escola, se processando por meio de diversos projetos e ações comunitárias e solidárias, com o engajamento social dos alunos e famílias e o empenho em se aproximar da realidade social.

No plano das socialidades, a ECM incentiva a participação dos “jovens alunos” em diversos campeonatos esportivos juvenis de Futebol e Tae Kwon Do. Há inúmeras visitas e aulas de campo, que permitem “oxigenar” a rotina da ECM. Valoriza-se o desenvolvimento de comemorações cívicas. Além do intenso envolvimento dos alunos com a Banda de Música, que, tal como a banda oficial da PMMT, se apresenta em atos solenes públicos em Cuiabá.

Os “jovens alunos” valorizam esses projetos, que são desenvolvidos em horário extracurricular, de forma que a escola se abre aos finais de semana:

A gente fala com o sub Ferreira, ele fala o instrumento que a gente vai tocar, e a gente treina no sábado, ensaio no sábado. Toca no desfile (7 de setembro). Às vezes, a gente viaja para outra cidade para desfilar, tocar. (E – Primeiro F – F – 16 anos).

Apesar da ECM ser uma instituição escolar que ordinariamente investe na hierarquia e disciplina nos modos de lidar com as juventudes que a frequentam, há um conjunto de ações que permitem aos jovens viverem o tempo da juventude, organizadas em:

Bastante. Hum…Tem Festa Junina. Tem comemorações do Dia dos Pais e das Mães. Feira Cultural. Show de Talentos. E, o Baile do Terceiro Ano, no final do ano, só. E, as Olímpiadas. (E – Primeiro F – F – 16 anos).

Umas sim…A Festa Junina acontece no Comando Geral e as Olímpiadas é lá no Verdinho (estádio próximo da escola). (E – Primeiro F – F – 16 anos).

As Olímpiadas Escolares ocupam, na voz dos “jovens alunos”, um tempo e espaço privilegiado entre os eventos da escola, pois, se configuram como um evento pedagógico e esportivo sob a responsabilidade dos professores de Educação Física, mas em que há o envolvimento do corpo docente e dos alunos em ações solidárias.

É nestes momentos festivos, esportivos e culturais que os alunos podem se despedir da máscara de aluno militar para assumir sua condição juvenil. Rompe-se com a homogeneização dos uniformes e posturas corporais contidas, para que o corpo possa mostrar a sua face mais faceira, brincante. Para Maffesoli (1996), prevalece o lado sombra em que predomina a pluralidade.

Não há, no cotidiano ordinário da ECM, espaços físicos ou situações específicas de encontro e interação social dos alunos sem o olhar vigilante do poder disciplinador – que cerceia o desejo de “estar junto” dos “jovens alunos” –, que pudesse favorecer a formação de teias de relações com agrupamentos despojados dos regramentos morais e disciplinadores.

São interditadas as expressões de modos e artefatos próprios da cultura juvenil, como a presença de violões e mesas de ping pong no interior da escola. O que atinge também a correria, a algazarra, as risadas altas, os abraços coletivos, as “selfs” em grupo ou individualmente, mesmo no horário de recreio.

Durante o recreio, os “jovens alunos” ocupam e circulam pelo pátio interno descoberto, ou ocupam as mesas do refeitório. Sempre vigiados pelos policiais militares que aplicam ronda constante para observar o ir e vir dos alunos. Formam-se grupos de amigos, criando redes e formas de socialidades dentro do permitido.

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 22 de junho de 2015.

Figura 2 Alunos do EM em Recreio no pátio interno descoberto da ECM, em Cuiabá-MT 

O Regulamento Disciplinar (Mato Grosso, 2015, grifo nosso) classifica como transgressão disciplinar, de natureza grave, a ação de “Art. 41 - Utilizar aparelhos sonoros portáteis, de telefonia celular, instrumentos de música e/ou similares, salvo no horário de intervalo”. É proibido ainda “Art. 6 - Fazer ou provocar excessivo barulho em qualquer dependência do colégio”, considerado uma transgressão disciplinar leve. Como uma transgressão disciplinar de natureza média, o fato de “Art. 12 - Trazer para o colégio brinquedos, instrumentos musicais, ou quaisquer objetos similares, quando não autorizado pela Divisão de Ensino ou Divisão Disciplinar” (Mato Grosso, 2015). Diante das diversas proibições, resta aos alunos caminharem pelo pátio descoberto, sem seus celulares, num estado de liberdade vigiada.

A Biblioteca Escolar é um local muito (re)visitado pelos alunos no recreio, que de passagem ou estabelecidos nas mesas de estudo, usufruem desse espaço para produzirem as suas socialidades e reforçar laços sociais e de partilha do comum, que os aproxima enquanto jovens (Maffesoli, 1987; Pais, 1990).

Configura-se num refúgio ao olhar disciplinador utilizado para estudos, produção de trabalhos em grupos e para conversas entre amigos sobre as expectativas futuras, que são angústias típicas da sua condição juvenil durante o tempo do recreio. As rodas de conversas tratam de carreiras profissionais futuras, ENEM, vestibulares, alguns alunos fazem o anúncio de entrada no mercado de trabalho após o término do Ensino Médio concomitante ao cursinho pré-vestibular, esportes, intrigas e desentendimentos entre namorados, lançamentos de filmes, fatos do mundo das celebridades midiáticas, entre outros. É um espaço que permite aos alunos se reunirem para além de estudar, compartilhar com seus colegas de sala as suas indecisões, ouvir seus pares e viver sua condição juvenil.

Conclusões

Ressalta-se a importância de investigações no campo da sociologia da juventude no Brasil para intensificar as reflexões sobre as relações entre os “jovens alunos”, a escola e o Ensino Médio, sobretudo nesse espaço e tempo em que a sociedade brasileira é interpelada por mais uma promessa de Reforma do Ensino Médio brasileiro.

O estudo descritivo da cultura escolar militar nos fez suspeitar que a tão falada e promissora Reforma do Ensino Médio se esgota tão somente na crença de que a ampliação de carga horária de estudos é o elemento central que irá garantir o sucesso escolar dos jovens, sem que, com isso, se invista na revisão das práticas e do currículo.

Os itinerários da cultura escolar militar descritos concordam sobre a relação problemática entre demanda, oferta e atendimento das expectativas dos “jovens alunos” à escolarização, independentemente do modelo filosófico e pedagógico assumido por diferentes escolas, que são tensionados pela representação do “vir a ser adulto”.

Os usos de espaços e tempos pelos “jovens alunos”, a partir do acompanhar do cotidiano da ECM, revelaram (re)configurações da cultura escolar, o que permitiu sinalizar os projetos de vida dos “jovens alunos” marcados por inseguranças e incertezas em relação à proximidade da transição da juventude para adultez – o que justifica a importância de estudos que possam dialogar com os diversos projetos de jovens que compõem a escola, compreendendo-os na sua condição de jovens, nas suas diferenças, que se constituem a partir da trajetória histórica de vida de cada um, que produz visões de mundo, valores, sentimentos, emoções e comportamentos bastantes peculiares.

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Recebido: 15 de Julho de 2019; Aceito: 23 de Junho de 2020

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