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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília ene./dic 2020  Epub 08-Sep-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.32148 

Artigos

“O Menino e o Mundo”: significados de escolares acerca das desigualdades sociais

“El niño y el mundo”: significados de los escolares sobre las desigualdades sociales

“Boy and the World”: schoolchildren's meanings about social inequalities

Matheus Sousa de Macena1 
http://orcid.org/0000-0003-0806-5346

Letícia Dultra de Faro Menezes2 
http://orcid.org/0000-0003-1907-3157

Franklyn Jeferson Costa de Oliveira3 
http://orcid.org/0000-0002-3580-0302

Lívia de Melo Barros4 
http://orcid.org/0000-0002-6549-8888

1Mestrando em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar na Universidade de Brasília e graduado em Psicologia pela Universidade Tiradentes. Grupos de Pesquisa "Educação, Cultura e Desenvolvimento Humano" e "Pensamento e Cultura".

2Graduada em Psicologia pela Universidade Tiradentes. Residente de Psicologia do Programa de Residência Multiprofissional em Terapia Intensiva da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Grupo de Pesquisa "Educação, Cultura e Desenvolvimento Humano".

3Graduando em Psicologia na Universidade Tiradentes. Grupo de Pesquisa "Educação, Cultura e Desenvolvimento Humano".

4Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes. Grupo de Pesquisa "Educação, Cultura e Desenvolvimento Humano".


Resumo

A pesquisa foi feita com crianças escolares das zonas urbana e rural. O objetivo foi analisar os significados produzidos por elas acerca das desigualdades sociais mediadas pelo filme “O Menino e o Mundo”, a partir da Psicologia Histórico-Cultural. Através das transcrições e dos mapas de significados, percebeu-se que o modo como os significados são construídos e expressos pelas crianças está relacionado aos cenários socioeducacionais em que elas estão inseridas, especialmente sobre situações de opressão e de vulnerabilidade. O cinema facilita esse processo de mediação de sentidos, e os processos criadores devem ser explorados nas escolas, como um meio de superação das disparidades sociais.

Palavras-chave Desigualdade social; Cinema; Psicologia Histórico-Cultural; Crianças

Resumen

La investigación se realizó con niños de zonas urbanas y rurales. El objetivo fue analizar los significados producidos por ellos sobre las desigualdades sociales, mediadas por la película "O Menino e o Mundo", de la Psicología Histórico-Cultural. A través de las transcripciones y los mapas de significados nos dimos cuenta de que la forma en que los significados son construidos y expresados por los niños está relacionada con los contextos socioeducativos, sobre todo en situaciones de opresión y vulnerabilidad. El cine facilita este proceso de mediación de significados y los procesos creativos deben ser explorados en las escuelas como una forma de superar las disparidades sociales.

Palabras clave Desigualdad Social; Cine; Psicología histórico-cultural; Niños

Abstract

This research has been conducted on schoolchildren from rural and urban areas. The aim was analyzing the meanings they ascribed in the face of the social inequalities presented in the movie “O Menino e o Mundo” through the lens of Cultural-Historical Psychology. By means of their transcripts and maps of meanings, the research revealed that the way children constructed and expressed meanings is related to the socio-educational context they are in, especially situations of oppression and vulnerability. Cinema avails this meaning mediation process and creative processes must be explored at school as a means of overcoming social disparity.

Keywords Social Inequality; Cinema; Historic-cultural psychology; Children

Introdução [1]

A desigualdade social tem se agravado no cenário mundial, provocada pelo crescente acúmulo de riquezas e pela perpetuação dos processos de exploração (Barboza, 2018). Nesse contexto, o bem-estar coletivo sofre interferência de problemas sociais complexos, entre os quais destaca-se a coação pelo lucro e pela rentabilidade imediata, ocasionando-se problemas oriundos da sobreposição dos interesses financeiros de grupos privilegiados sobre os direitos individuais e coletivos (Reis, 2016).

No presente estudo, objetivou-se analisar os significados produzidos por grupos de crianças escolares das zonas urbana e rural acerca das desigualdades socioeconômicas mediadas pelo filme “O Menino e o Mundo”. Especificamente, buscou-se identificar os elementos imagéticos mais observados pelas crianças; comparar os significados construídos por cada grupo escolar; e identificar os conceitos-chave do filme apresentados pelos estudantes.

Desse modo, como instrumento da pesquisa foi escolhido o filme “O Menino e o Mundo”, animação brasileira dirigida por Alê Abreu e lançada em 2013. Colorida, sonora e com duração de 80 minutos, a obra não possui diálogos em sua narrativa, então seus sons se restringem a efeitos e música. Trata-se da história de Cuca, um menino que mora no campo e que decide partir num trem em busca de seu pai após ele sair à procura de trabalho. Nessa trajetória, o garoto segue um rapaz e acaba descobrindo um mundo de desigualdades, exploração e diversas formas de violência (Abreu, 2013).

A animação escolhida apresenta situações presentes na realidade brasileira ao longo de sua história. Existem cerca de 2,7 milhões de crianças e adolescentes trabalhando no Brasil, de acordo com a última atualização da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2016). No território brasileiro, há 5,1 milhões de domicílios em aglomerados subnormais (IBGE, 2020), chamados popularmente de “favelas”.

Outro problema abordado no filme é o êxodo rural que vem ocorrendo ao longo das décadas, marcado por jovens da área rural que migram para as cidades devido a limitações socioeconômicas, o que promoveu o surgimento de novos aglomerados subnormais (Rodrigues et al., 2020). Logo, pode-se dizer que as desigualdades socioeconômicas fazem parte das interações cotidianas das crianças, mas pouco se estuda sobre as percepções delas acerca desse fenômeno (Elenbaas & Killen, 2018).

Em consonância com tais problemáticas, infere-se que a linguagem cinematográfica tem se afinado gradativamente com os processos pedagógicos críticos construídos a partir das reflexões sobre temas e problemas pertinentes à realidade concreta (Pires & Silva, 2014). Nesse sentido, apreciar o cinema como um instrumento denota que a tarefa de contar histórias com imagens, sons e movimentos pode operar na esfera da consciência do sujeito e no âmbito sócio-político-cultural, configurando-se como um instrumento de intervenção, de pesquisa, de comunicação e de educação (Marcello & Fischer, 2011).

Assim, considerando-se o cinema enquanto agente transmissor de informações e facilitador de processos de conscientização, atenta-se para a necessidade de ir de encontro às leituras superficiais sobre a sociedade complexa e desigual, perpassando pelas dimensões econômicas, sociais, existenciais e políticas, contempladas tanto na camada material quanto na simbólica (Borges & Amaral, 2015). Tais fenômenos orientam o desenvolvimento humano e permitem elucidar como o sujeito compreende o mundo (Carmo et al., 2017).

Os dados da pesquisa foram analisados na perspectiva do desenvolvimento da Psicologia Histórico-Cultural, bem como de seus antecedentes e subsequentes. Nessa vertente da Psicologia, os significados são criados mentalmente por cada pessoa e influenciados pelo contexto, sendo preciso entender como são produzidos e como funcionam (Valsiner, 2016). Nesse âmbito, o contexto escolar emerge como um espaço que favorece esse entendimento histórico-cultural, pois permite que as crianças criem novos conceitos e significados acerca do mundo através das interações com o professor e com colegas, bem como (a depender da complexidade implicada no processo de ensino-aprendizagem) pode estimular e orientar os processos criadores (Vigotski, 1930/2018). Ainda, vale dizer que a escola é um lugar potencialmente interativo, e as interações que compõem a experiência real do sujeito constituem a imaginação e suas combinações dos elementos individuais e externos (Jovchelovitch, 2014).

Método

Contexto de Pesquisa

Escola A: instituição da rede estadual localizada num assentamento de um povoado no interior do estado de Sergipe. A escola foi fundada sob reivindicações do Movimento Sem Terra (MST) e, atualmente, conta com poucos colaboradores e recursos destinados à infraestrutura. Para a reprodução do filme, utilizaram-se equipamentos de som e de projeção cedidos pela escola, os quais inicialmente apresentaram limitações quanto ao volume do som e ao ambiente, pois a projeção demandava o fechamento das cortinas, aumentando-se o calor no ambiente.

Escola B: instituição da rede estadual situada num bairro da zona sul da cidade de Aracaju-SE, o qual enfrenta elevados níveis de violência e de precariedade nos serviços de educação e saúde. Para a exibição do filme, utilizou-se a sala de informática da escola, que continha um aparelho de TV.

Escola C: instituição que surgiu sob a estrutura de um curso de matérias isoladas e, no ano de 2005, tornou-se uma escola particular. Com quantitativo significativo de aprovações em vestibulares, a instituição possui material didático exclusivo e desenvolve atividades ligadas a artes, esportes e robótica. Para a reprodução do filme, utilizou-se a sala de aula em que a turma estava, que continha computador, projetor e caixa de som.

As direções das três escolas informaram, no momento da assinatura da autorização da pesquisa, que o filme escolhido nunca havia sido exibido na escola para as turmas escolhidas para a realização do estudo.

Participantes

A construção dos dados da pesquisa ocorreu em três momentos, cada um com um grupo focal formado por alunos do 5º ou 6º ano do Ensino Fundamental de uma das escolas participantes: uma escola da rede pública localizada na zona rural do interior de Sergipe (Escola A); uma escola da rede pública localizada na cidade de Aracaju (Escola B); e um colégio da rede privada também localizado na cidade de Aracaju (Escola C). Em cada escola, formou-se um grupo com crianças de 10 a 12 anos de idade.

As escolas A e C tiveram 11 participantes na pesquisa, enquanto a Escola B teve 10. Inicialmente, o planejamento envolvia 11 participantes para cada escola. Ainda assim, o número de participantes esteve dentro dos apontamentos da literatura com relação ao número ideal de participantes para um grupo focal, que, em geral, é de seis a 15, devendo ser escolhida uma quantidade que permita a participação efetiva dos participantes e uma discussão produtiva (Trad, 2009).

Instrumentos e Procedimentos

Em cada escola, foi exibido o filme “O Menino e o Mundo” e, logo após, foi formado um grupo focal para a construção dos dados por meio das percepções que os estudantes tiveram da obra. O uso de grupos focais facilita a emersão de significados, porque permite observar os movimentos interativos no momento da pesquisa e visualizar a “intersubjetividade, as relações entre sujeitos, objetos e o mundo social, além das múltiplas relações entre saberes distintos” (Nóbrega et al., 2016, p. 440).

Inicialmente, foi perguntado às crianças o que elas acharam da obra em geral e dos personagens, como também quais as semelhanças que elas viam entre o filme e as suas próprias vidas. Por último, reproduziram-se novamente quatro cenas curtas (cada uma com quase um minuto de duração) do filme. A cada cena, foi realizada uma discussão no grupo sobre os significados emergentes. O processo foi realizado por uma dupla de autores (que variou a cada escola), tanto para a reprodução do filme e das cenas como na interação com as crianças participantes. Na Escola A, os pesquisadores foram apresentados pela professora da turma, enquanto que, nas escolas B e C, a apresentação foi feita pelas psicólogas que integravam a respectiva equipe institucional.

Todos os momentos com o grupo focal foram gravados por meio de um aparelho gravador de áudio, e os diálogos foram transcritos posteriormente. No momento de cada fala, a criança falava seu nome, de modo que fosse possível identificá-la na transcrição. Na transcrição, os nomes foram modificados, para preservar o anonimato.

Análise dos Dados

Com os dados transcritos, foi feita leitura repetitiva do material e do arcabouço teórico, identificando-se os temas na construção de um mapa de significados, com o propósito de expressar as dinâmicas entre os temas e os significados demonstrados nos dados da pesquisa. Isso porque, através do uso do mapa de significados, “é possível apresentar […] os principais resultados encontrados, permitindo a identificação dos temas, dos significados produzidos e das relações entre eles” (Silva & Borges, 2017, p. 253).

O mapa foi construído por meio das transcrições, cuja organização se deu a partir de dois momentos da pesquisa: significados sobre o filme em geral e significados sobre as cenas recortadas (trabalho no campo; trabalho na fábrica; periferia urbana; poder bélico). Verificaram-se os temas que apareciam com maior frequência dentro de cada grupo escolar, que foram: a relação afetiva com a obra, descrições concretas (resumos de cenas específicas ou da narrativa), ideias abstratas (por exemplo, a interpretação de que o protagonista dialoga com ele mesmo mais velho) e as correlações com o cenário sociocultural (por exemplo, a expressão do medo das favelas). Desse modo, foi possível assinalar os trechos e passagens transcritos que expressam os significados emergentes nas interações dentro de cada grupo escolar e também aqueles que perpassam por mais de um grupo, surgindo novas configurações dentro dos elementos do mapa. Assim, inferidas as significações presentes nos três campos e como estas se comunicam, iniciou-se a discussão teórica.

Questões Éticas

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Tiradentes (Aracaju-SE), sob o parecer nº 2.832.341, e foi conduzida de acordo com os padrões éticos exigidos.

A construção de dados só ocorreu após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por parte do responsável legal de cada participante.

Resultados e Discussão

Significados construídos acerca do filme

Discorre-se, neste subtópico, sobre as percepções apresentadas pelos discentes de cada escola acerca da obra fílmica e das temáticas abordadas em geral.

Eu entendi a parte que o menino tava com o cachorrinho mais o pai lá na parte do algodão. (Júlio, Escola A)

Eu entendi porque o menino tava lá no ponto lá, ele foi procurar o pai dele, ele tava com a mala. (Diana, Escola A)

Quando ele foi almoçar, ele tava se lembrando do pai dele […] ele tem saudade do pai. (Ravena, Escola A)

Ao se analisarem os discursos iniciais dos alunos da escola A, foram observadas descrições concretas das cenas do filme, com poucas interpretações abstratas da narrativa. Isso pode indicar uma experiência em que a linguagem assume a função de relembrar e de reunir elementos de alguma situação (neste caso, a visão da cena), expressando-os de forma objetiva sem generalizações ou abstrações (Luria, 2017).

Contudo, neste primeiro momento, percebeu-se, na narrativa de Ravena, o significado que ela atribui à atitude de Cuca de sair de casa, encarando-a como a expressão de uma saudade que ele sente do pai. O enfoque nessas dimensões sentimentais de Cuca revela um plano social reelaborado a partir da relação do sujeito com a obra (Vigotski, 1925/1999), na qual a interpretação de Ravena ocorre por meio da mediação semiótica, colocando suas experiências dentro da relação artística (Valsiner, 2016).

Quando questionados acerca das semelhanças entre o filme e suas realidades, as crianças da escola rural expressaram identificação com os momentos em que Cuca brincava com os animais, tomava banho de rio e subia em árvores, atividades mais comuns no campo, como pode ser apreendido dos relatos a seguir:

Eu tomo banho de rio, ele tava fazendo isso ali. (Robbie, Escola A)

Na hora que ele tava brincando com o cachorrinho. Eu também brinco com meu cachorro. (Julieta, Escola A)

Na hora que ele tava subindo nas árvores. Eu subo também. (Carlos, Escola A)

Os discursos das crianças, nessa temática, remetem às suas vivências passadas e a situações comumente presentes em sua rotina, sendo reflexos da identificação e da interação com as cenas fílmicas. As interpretações estabelecidas através dos filmes são decorrentes do processo de identificação por que o telespectador passa, processo esse em que dispõe de ações a fim de se posicionar dentro do enredo, vivenciar experiências retroativas e contemplar a história de cada personagem. O contexto fílmico proporciona extensa interação com o telespectador, sendo desenvolvidos significados e considerações singulares acerca da realidade e da trama fictícia (Borges, 2012).

Eu entendi que o pai dele tava em casa, e o pai dele saiu, aí ele sentiu saudade do pai. (Davi, Escola B)

Eu entendi que o pai dele foi embora, ele sentiu falta e foi atrás, e começou a trabalhar mais o pai. […] Eu entendi que ele quando ficava um pouquinho longe do pai ele ficava triste. (Sandy, Escola B)

Eu entendi que ele gostava muito de música. (Daphne, Escola B)

Analisando-se os discursos das crianças da Escola B, também foi percebida a predominância de descrições mais concretas acerca da obra. Assim como ocorrera na Escola A, foi atribuída a Cuca a interpretação de que ele sentia falta do pai e, por isso, resolveu procurá-lo, como pode-se perceber nos recortes das falas de Davi e de Sandy. O modo como as pessoas utilizam a linguagem e atribuem significados está intrinsecamente ligado às suas experiências e ideias (Luria, 2017). Dessa forma, as significações quanto ao filme são influenciadas pelo contexto em que as crianças se encontram, que, aqui, é o educacional.

Quando Daphne destaca as experiências musicais do personagem, revela-se um ato de regulação semiótica de seus sentidos e experiências (Valsiner, 2016), no qual, dentre todos os temas, conteúdos e formas presentes na narrativa fílmica, a musicalidade chamou-lhe mais atenção. A mediação semiótica é determinante do conhecimento que crianças possuem sobre o mundo (Jovchelovitch et al., 2013).

Quando questionados acerca das identificações, os escolares comentaram sobre experiências com a natureza, mas também com seus familiares:

O carnaval, as florzinha assim no chão, e também quando o pai dele quando ele tava do lado, meu cachorrinho quando fica do lado. (Sandy, Escola B)

No meio mostrou assim tanto vida real quando matou as árvores, assim era… Assim, que isso acontece muito também com o pai e a mãe. (Morgana, Escola B)

Quando o pai dele foi embora e ele ficou triste. (Patrick, Escola B)

Sandy e Morgana falam sobre acontecimentos do cotidiano, mas a primeira menciona também suas experiências pessoais. Já Patrick expressa uma lembrança entristecedora que viveu semelhante ao que acontecera com Cuca, quando o pai partiu. Sobre isso, Vigotski (1925/1999) afirma que os sentimentos se tornam pessoais quando o sujeito vivencia determinada obra artística, sem que as questões sociais sejam eliminadas, pois, no caso de Patrick, seus sentimentos estavam ligados a um acontecimento em seu contexto familiar.

[…] o pai foi embora para procurar emprego, eu não sei. Para conseguir sustentar eles, porque eles tinham pouca comida […] ele já estava adulto e estava lembrando das coisas quando ele ouvia a musiquinha que tinha as bolinhas coloridas.” (Elisa, Escola C)

Eu entendi que ele meio que estava contando a própria história, sabe? Ele começou a contar o que aconteceu com ele no começo e cada pessoa que ele ficava era ele […] (Juliana, Escola C)

[…] como aconteceu aquela chuva e ele se perdeu, eu não entendi muito. (Mike, Escola C)

[…] Na metade fiquei meio bugada com algumas coisas […] (Alice, Escola C)

Eu acho que quando ele aparece grande, é como […] se ele tivesse contando, relembrando, contando para quando ele era pequeno […] o grande vai contando pro pequenininho o que ele viveu ou vai viver.” (Juliana, Escola C)

[…] Cada “eu” que ele ficava, era o ‘eu’ velho dele, o ‘eu’ adulto dele. (Jonatas, Escola C)

O grupo da escola da rede privada, de modo geral, construiu significações sobre o filme que transcendem as descrições mais concretas, apresentando uma interpretação com maiores criações. Os participantes decifraram a obra como uma narrativa em que o Cuca relembra sua própria história, vendo o rapaz que ele acompanhava como sendo, na verdade, ele mesmo no futuro, trabalhando em diversos lugares após sair de casa.

É importante destacar que essas crianças estudam em uma instituição que possui mais recursos financeiros e maior diversidade de atividades, o que remete a Luria (2017) quando identificou que sujeitos, ao adquirirem maiores níveis educacionais e ao participarem de mais discussões sociais, transacionam mais rápido para o pensamento abstrato, que apresenta forma mais completa e complexa (Lavoura & Martins, 2017). Pode-se nitidamente perceber esse fenômeno no discurso de Jonatas, no modo como ele utiliza a palavra “eu” na forma de substantivo, e não enquanto um pronome pessoal. Apesar disso, Mike e Alice relataram que acharam a obra um pouco confusa e que não a entenderam totalmente.

Quando se discutiu sobre as identificações das crianças com o filme, os resultados também se apresentaram em uma configuração diferente, em comparação com as outras escolas:

[…] Assim, não muito com a minha vida, mas no geral com a vida de todos. O que eu achei parecido mesmo foram as cidades, as indústrias, as propagandas na TV […] (Elisa, Escola C)

Eu achei também que foi muito parecido o desmatamento, a poluição, a pobreza, as pessoas passando fome, o lixão, a favela, o carnaval, a novela, a ditadura, o carro naval, a guerra. (Luna, Escola C)

Diferentemente do que fora apresentado nas escolas públicas, na Escola C os alunos não relataram identificações com experiências e sensações vividas pelo personagem do filme. Pelo contrário, as semelhanças com as próprias vidas que eles identificaram dizem respeito a significados do cotidiano que são percebidos nas esferas do coletivo, permeados por componentes históricos, sociais e culturais. O modo como interpretam o mundo configura um fenômeno social oriundo das relações capitalistas (Conde & Alcubierre, 2018).

Fazendo-se um contraponto entre a escola rural e as urbanas (especialmente a instituição da rede privada), podem-se frisar as diferenças entre esses espaços: as cidades apresentam aspectos econômicos complexos - com maior circulação de bens e maior presença de tecnologias digitais - e relações sociais marcadas por uma maior frequência de encontros breves com pessoas desconhecidas do que ocorre na zona rural (Jukes et al., 2018). A partir disso, ao trazer ambas as realidades de uma maneira imbricada, a experiência cinematográfica pode pôr o sujeito numa posição ativa e crítica sobre o que vê (Borges, 2012).

Significados sobre as cenas

Como explicado no tópico sobre o método, após um debate geral sobre o filme, foram reproduzidas novamente quatro cenas, para que as crianças as comentassem especificamente. Os recortes da audiodescrição utilizados no trabalho foram feitos por Tavares e Carvalho (2014) e apresentados no Festival Animage.

Cena 1: Um Homem de ombro largo, usa chapéu de vaqueiro. O Rosto lembra uma caveira. Tem uma de haste capim na boca. Põe-se de frente dos carroceiros. Faz revista. Para em frente de cada um, olha nos olhos, examina. Uma Mulher com rugas na testa e chapéu pendurado nas costas. Um Homem olha para baixo. Uma senhora com rugas e olhar tristonho. O Homem para. O menino observa. O homem olha para a senhora e aponta para fora. Ela sai cabisbaixa com uma vara no ombro e uma trouxinha amarrada na ponta. Passa na frente do menino e do cão. Eles a acompanham com o olhar. A inspeção continua. O velho fica ereto. Levanta os ombros. O homem se aproxima. Fita-o. As Rugas da testa do velho tremem. O Homem passa. O velho prende a respiração e …(TOSSE). O Homem para e bate as esporas. O Menino e o cachorro na carroça. O Velho cabisbaixo puxa a carroça por entre paisagem de containers.

Ele estava no trabalho. Ele demitiu ele por que ele tava doente. (Marceline, Escola A)

Eu entendi aquela parte que ele demitiu a velhinha por que ela é muito baixa. (Ravena, Escola A)

As crianças da Escola A descreveram a cena como um processo de seleção de trabalhadores, em que o adoecimento e outras condições físicas podem acarretar uma demissão do trabalho.

Eu entendi que tinha um homem que era grande. […] E o homem queria colocar o pai dele pra trabalhar mais. (Lisa, Escola B)

[…] Ele estava muito cansado e o chefe não queria que ele ficasse doente. Aí quando ele virou as costas ele tossiu. (Flora, Escola B)

Eu entendi que o homem era forte, só que ele era menor do que todos e ele não tinha uma cara muito assim pra carregar peso, aí ele tinha que ganhar força. Mas aí ele tossiu e o patrão mandou embora. (Morgana, Escola B)

Na Escola B, as crianças comentaram as condições físicas necessárias para a realização do trabalho braçal. Lisa e Morgana enfatizaram o porte do homem que demitiu o personagem, remetendo à dimensão física como representação de poder sobre os demais.

[…] está tendo uma seleção de quem vai ficar ou quem não vai ficar para continuar trabalhando na coleta do algodão. E que ele fica tentando segurar a tosse dele, porque ele estava doente, e quando ele começa a tossir, ele é despedido e também pelo fato da senhorinha ter despedido por estar velha. (Helena, Escola C)

[…] o que Helena falou que ele estava doente e ele não queria demonstrar para não perder o emprego, então ele tentou segurar, mas não conseguiu. (Luna, Escola C)

Eu entendi que o chefe […] precisava dos mais fortes e mais saudáveis. […] Só que como ele estava doente, ele acabou tossindo e o chefe demitiu ele. (Elisa, Escola C)

[…] ele estava segurando a tosse para ele continuar no emprego, para ter uma vida melhor, só que ele acabou tossindo e foi demitido. (Carla, Escola C)

Os alunos da Escola C também discorreram sobre um processo de seleção dos trabalhadores para a colheita a partir da primeira cena reexibida, apontando que demonstrar qualquer condição de adoecimento ou fraqueza pode acarretar uma demissão do trabalho. Carla comentou sobre o emprego como uma forma de ter uma vida melhor, o que remete à ideia de que ir embora daquele serviço implicaria perder dinheiro.

Os diálogos apresentados pelos três grupos permitem inferir que, em todos eles, existe algum grau de consciência sobre processos de opressão no trabalho. No sistema econômico atual, as classes dominantes e proprietárias dos meios de produção possuem também o poder de dominar o proletariado (Marx & Engels, 1933/2007; Barboza, 2018). Nesse aspecto, a precarização do trabalho e a usurpação de direitos sociais, em geral, tornaram-se uma regra da sociedade contemporânea, sendo raras as exceções (Antunes & Praun, 2019).

Os três grupos expressam significados sobre as opressões relativas ao trabalho no âmbito capitalista, que é estruturado pela doação de si enquanto uma mercadoria a ser vendida (Conde & Alcubierre, 2018). Diante desse contexto, as obras artísticas podem influenciar significativamente a consciência social das pessoas (Vigotski, 1930/2018). A exposição e a discussão desses fenômenos podem provocar coletivamente o desejo de progresso, em que se imaginam coletivamente as mudanças sociais necessárias (Hawlina et al., 2020).

Cena 2: Avista trabalhadores colocando o algodão em uma esteira rolante movida a pedaladas, todos com um lenço sobre o nariz e a boca. O Algodão cai dentro de um funil e mais trabalhadores, com uma vara, socam o algodão para um funil menor. Muitos giram manivelas por onde sai o fio do algodão. Um ventilador desfaz a nuvenzinha do menino, que cai e sustenta-se em um fio de algodão. Ele desliza e pousa ao lado de um rapaz que tece manualmente os fios em tecido. O Menino observa. Corredor com uma fileira de teares manuais. Os tecidos em rolo são recolhidos por trabalhadores e colocados em um caminhão.

Aí ele caiu e ele puxou a corda assim (gesticula), aí o homem era muito rápido trabalhando. Aí quando ele puxou a corda foi bem lentamente, bem devagarzinho os homens trabalhando […] acho que é na fábrica. (Karolina, Escola A)

Estava triste por que ele estava cansado e não deixavam ele parar para descansar. (Felícia, Escola A)

Eles estão trabalhando pesado. (Ariel, Escola A)

Inicialmente, a cena foi narrada de modo objetivo, e, ao final, Ariel e Felícia comentaram sobre as sensações que o personagem estava experienciando ao trabalhar na fábrica. Segundo elas, ele se sentia cansado, triste, trabalhando sob pressão para não parar a atividade.

Que eles tavam andando no algodão. Que eles tavam fazendo assim (gesticula) levando pro caminhão. E ficou jogando assim (gesticula). (Álvaro, Escola B)

Eu entendi que o pai dele tava sem aguentar, tava quase deixando […]. (Sandy, Escola B)

Nas escolas A e B, os alunos recorreram a gesticulações para narrarem o processo de trabalho na fábrica. Além disso, Sandy enfatizou - assim como as crianças da Escola A - o cansaço sentido pelo personagem devido à carga laboral intensa.

Eu entendi que eles estavam pegando o algodão e levando para de onde eles tiravam o algodão para a fábrica. (Elisa, Escola C)

[…] Aí está ele adolescente fabricando um pouco de tecido. (Ofélia, Escola C)

[…] Aí tinha um monte de gente trabalhando nesse tecido e quem fazia realmente o tecido, os outros só teavam, era ele no futuro. (Carla, Escola C)

Apesar da descrição da cena aparentemente semelhante àquelas realizadas pelos outros grupos, na Escola C nenhum dos alunos deu ênfase a sensações e sentimentos de algum dos personagens, colocando em evidência somente o processo de produção da fábrica. Outra diferença percebida foi a interpretação sobre quem era o rapaz trabalhando arduamente: na Escola B, os participantes disseram que era o pai de Cuca, enquanto que, na Escola C, partiram para um pensamento mais abstrato, voltado à ideia de que o rapaz é o menino numa versão mais velha.

Dessa forma, pode-se observar, a partir dos discursos dos estudantes das escolas públicas, que a vivência em um contexto desprivilegiado, caracterizado por condições de privação, molda o conteúdo e os processos do conhecimento social das crianças (Jovchelovitch et al., 2013), que, nesse contexto, com base nas suas vivências com pessoas que vivenciam o trabalho braçal, foram permeados pela ênfase nos sentimentos do personagem. Isso porque os sentimentos e os sentidos atribuídos pela criança são baseados no que ela conhece e as qualidades humanas são aprendidas histórica e socialmente (Mello, 2010), o que pode ser visualizado nas falas de Felícia, Ariel e Sandy, estudantes de escolas públicas e frequentadoras deum cenário de maior vulnerabilidade que direcionaram seus focos para o cansaço, a tristeza e a carga laboral narrados na cena.

Em contrapartida, os relatos dos alunos da escola particular apontam para o cenário industrial e para uma maior capacidade de abstração, decorrentes também das experiências passadas e do processo ativo de educação. Isso posto, persiste a divergência entre o processo de generalização daqueles que alcançaram a educação formal e o processo dos que ainda apresentam pensamentos oriundos de exercícios limitados. Ademais, não há, em nenhuma das fases do desenvolvimento socioeconômico e cultural, a manutenção dos recursos de abstração e de generalização, visto que estes são reflexos do ambiente cultural (Luria, 2017).

Cena 3: O Rapaz sobe uma escadaria do morro entre casebres com interior iluminado. Ele é alto, magro, usa uma camisa de malha laranja de mangas compridas e um gorro colorido. Lá embaixo, o menino aparece. Sobe as escadarias atrás do rapaz. Silhueta do rapaz e do menino subindo a escadaria entre os casebres. O Menino corre e ultrapassa o rapaz, que tem uma bolsa nas costas. Observa os barracos de portas abertas. Barraco com fachada de colagens de casais se acariciando. Detalhes de mulheres. De dentro do barraco, uma luz vermelha neon pisca. Barraco com fachada de colagem de asas de anjo, de dentro emana uma luz azul. Do próximo barraco, emana uma luz amarela. De dentro, jogam uma garrafa de cerveja no chão. O menino sobe a escadaria correndo. Ao fundo, janelas e portas dos barracos no morro, quadradinhos acessos. Lances de escada em zigue-zague. O Menino sobe lentamente. Cabisbaixo e exausto, senta em um degrau. O Rapaz segue subindo. Para e olha para o menino. Sobe com ele nos ombros. No céu, duas luas cheias, abaixo o morro iluminado. Silhueta do rapaz com o menino na corcunda. Aproxima-se de um casebre. Abre o cadeado da porta. Entra, acende a luz branca.

Aí o pai pegou e levou na ‘cacunda’, por que ele estava muito cansado. (..) de tanto passear. (Karolina, Escola A)

Trabalhar com a carrocinha cheia de algodão com o menino magricelo. (Luís, Escola A)

Outra vez, foi colocado em evidência o cansaço sentido por algum personagem, dessa vez por Cuca, que, segundo Karolina, estava cansado devido a muitos passeios que fez. Luís focou no cansaço sentido pelo rapaz, quando relembrou a cena em que ele, na plantação de algodão, carregava a carroça onde Cuca brincava.

Ele saía de manhã e chegava de noite cansado, pra subir aquela escada ali. Aí quando chegava em casa tinha tudo de novo. (Sandy, Escola B)

Eu entendi que aonde eles foram era uma favela. (Paulo, Escola B)

O relato de Sandy também reflete o sentimento de cansaço do personagem Cuca. Em contrapartida, o discurso de Paulo destaca a identificação do contexto do agrupamento da favela, em decorrência das características visuais presentes na cena.

[…] estava o menininho e a versão adulta dele. […] estava indo para casa e ele estava acompanhando a versão adulta dele. Aí ele morava numa favela e ele estava vendo as coisas que tinha na favela. (Otávio, Escola C)

[…] ele estava seguindo […] pra casa dele que ficava numa favela. […] passou por uns bares lá e ele se sentiu um pouco assustado. (Elisa, Escola C)

Todos os escolares da Escola C abordaram o cenário da favela como o lar de Cuca, além de ressaltarem características presentes nesse espaço, como bares e o sentimento de medo. Otávio ainda reflete acerca da posição de Cuca enquanto sujeito, afirmando-o como o mesmo personagem na versão criança e adulta.

A partir dos relatos, observa-se que os estudantes da Escola A enfatizaram o sentimento de cansaço derivado das atividades do personagem Cuca, assim como os alunos da Escola B. Não obstante, estes últimos discentes e os da Escola C ampliaram a discussão ao apontarem o ambiente da favela, sendo mencionadas também características desse contexto pelos estudantes da Escola C. A carência de experiências vividas no contexto da favela é interpretada aqui como obstáculo para uma maior compreensão e para uma elaboração mais completa de novos significados referentes a esse espaço. Isso ocorre porque o desenvolvimento da identidade do indivíduo está vinculado a um conjunto de relações deste com a sociedade e seu território, que são os pilares para a existência social delineada através da conciliação entre as vivências e as representações elaboradas pelo sujeito (Bonfim & Correia, 2016).

Ao mesmo tempo, quando Elisa interpreta que Cuca estava assustado no ambiente, isso se relaciona com os significados construídos acerca das favelas, resultantes da separação destas em relação aos bairros mais ricos. O modo como se imagina a realidade tem um fundo sociocultural (Zittoun & Cerchia, 2013), e, a partir disso, as favelas são representadas negativamente como um espaço exclusivamente de violência, tristeza, invasões policiais, medo e luta constantes, o que é resultado da inércia do Estado subserviente ao capital (Jovchelovitch, 2014).

Cena 4: Do outro lado do trilho, descobre um batalhão de choque perfilado. Os soldados batem no escudo com um cassetete. Mais atrás, a banda marcial e os tanques de guerra. Muitas bolas pretas e cinzas flutuam sobre eles. Do lado esquerdo, no céu está o pássaro colorido. O desfile se aproxima. Do outro lado, as bolas pretas formam um pássaro com asas grandes. Os dois pássaros gigantes se bicam no ar. O Menino assiste enquanto se afasta. Os pássaros se atacam. O colorido é empurrado contra um prédio e cai. O preto grita. O colorido o bica. Os tanques de guerra atiram em direção ao pássaro colorido. Um Helicóptero dispara contra o pássaro. As pontas das asas do pássaro preto se transformam em canos de metralhadoras. O menino se assusta. O pássaro preto dispara e atinge o pássaro colorido. Um míssil também atinge o bico do pássaro. Ele cai de cabeça no chão, perfura o terreno, desaparece embaixo da terra branca. Bolinhas coloridas se dispersam.

Eu entendi que quando o povo tava tocando, aí ele ficou assustado, […] por que ele pensou que a águia ia pegar ele, para levar para bem longe, aí ele descobriu que os dois estavam brigando, ai ele ficou com mais medo ainda se um tiro desse pegasse nele. (Felícia, Escola A)

Eu entendi que eles estavam querendo matar esse pássaro aí. (Diana, Escola A)

Achei essa cena bem triste, eles mataram um pássaro tão bonito e deixaram o mais feio vivo. (Ariel, Escola A)

Felícia evidenciou os sentimentos de Cuca diante daquele cenário de guerra. A aluna interpretou que o menino se assustou com a banda tocando e ficou ainda mais amedrontado com a possibilidade de algum disparo acertá-lo. Diana e Ariel mencionam a briga entre os pássaros, colocando os animais como o foco da cena.

Eu entendi que ele tava com medo da situação. (Lisa, Escola B)

Ele tava muito impressionado com aquelas bandas aí depois ele ficou com medo daqueles animais gigantes lutando. (Tony, Escola B)

Tio, eu entendi que tinha dois pássaros grande, e ele tava com medo da sombra. O menininho tava com medo da sombra. (Paulo, Escola B)

Eu entendi que era uma guerra mundial. (Brenda, Escola B)

Assim como Felícia, na Escola B os alunos mencionaram o medo sentido por Cuca, atribuindo a motivação dessa emoção à briga ou à sombra que aparece na cena. A narrativa feita por todos é, mais uma vez, predominantemente descritiva. Contudo, Brenda expressa um pensamento abstrato, interpretando que os pássaros simbolizam uma guerra mundial.

Eu acho que era a luta entre a ditadura militar e a democracia. (Mike, Escola C)

Eu entendi que a fumacinha que saia da música, o preto estava tentando derrotar a parte, que era da indústria, e o colorido era a parte que, a natureza, que era colorido. (Renata, Escola C)

Eu entendi que o preto era formado pelo lado do mal e o colorido era formado pelo lado do bem. E eles meio que estavam lutando meio que pela alegria e o outro lado pela tristeza. E eles querem destruir a natureza e eles trapacearam. (Juliana, Escola C)

Diferentemente dos outros grupos, outra vez o grupo da Escola C não evidencia, em suas percepções, os sentimentos dos personagens. Mike traz significados acerca de aspectos políticos (ditadura militar e democracia), quando os interpreta como simbolicamente representados pelos pássaros. Juliana e Renata também fazem interpretações abstratas e com atribuições simbólicas: Renata menciona uma dicotomia entre a Indústria e a Natureza, na qual a Natureza acaba derrotada e destruída; já Juliana fala sobre a dicotomia entre o Bem e o Mal, discursando que a natureza é devastada quando o Mal vence.

Nos relatos dos grupos de estudantes das escolas A e B, houve prevalência de aspectos descritivos e relacionados a emoções e sentimentos dos personagens. Somente Brenda, da Escola B, e os alunos da Escola C discorreram sobre características mais abstratas e simbólicas da cena, significando os pássaros como intérpretes do âmbito político. Isso remete à ideia de que o pensamento empírico dos indivíduos apresenta ampla relevância no desenvolvimento do raciocínio lógico-formal, à medida que propicia o processo de abstração, exatidão e resolução quanto às concepções levantadas. Para além dessa perspectiva, entende-se a importância da modificação da vigente produção social, sendo preciso ampliar o entendimento do atual contexto e da natureza dos aspectos intrínsecos aos indivíduos (Rosa & Martins, 2017).

Ao atentar-se nas diferenças perceptivas acerca dos sentimentos dos personagens, infere-se também o desenvolvimento dialético entre cognição e afeto, que ocorre nas interações e se constitui enquanto produto cultural (Dominici et al., 2018). Sendo assim, as afetações e interpretações produzidas na mediação com o filme são diretamente influenciadas pelo contexto em que o sujeito está inserido. Pode-se perceber que a exposição do filme e a discussão podem contribuir para a consciência social, para o surgimento de novas reflexões e para a transição para o pensamento abstrato. Os significados expressos pelas crianças acerca da relação de poder e de dominação na cena evidenciam a necessidade de ampliação dessa consciência, partindo-se para práticas pedagógicas que contribuam com uma nova concepção de mundo. Para isso, é necessário que ocorram, nos espaços escolares, mais discussões coletivas acerca das disparidades sociais, como forma de os estudantes se apropriarem de funções abstratas da linguagem e do pensamento (Luria, 2017), bem como que as metodologias também sejam construídas e postas em prática de modo a demonstrarem o que as significações concretas trazem de conhecimento (Rosa & Martins, 2017). Paradoxalmente, tem-se observado um recuo em políticas públicas referentes à educação artística em espaços escolares e comunitários (Marques, 2019), o que diminui o contato das instituições públicas com o cinema e a arte em geral.

A arte está em constante vínculo com a realidade, relacionando-se com a vida e com as relações sociais vigentes, sendo ela um produto gerado a partir dos processos imaginativos do autor, com base em suas experiências anteriores (Vigotski, 1925/1999). É através da imaginação que são formulados novos significados sobre si e o mundo, o que possibilita a produção de novas obras e artefatos para a disseminação de visões transformadoras (Hawlina et al., 2020), fato esse que traz, em seu bojo, o cinema enquanto instrumento potencializador de novos significados.

A obra cinematográfica trabalhada com os alunos exibe os contrapontos dos espaços urbanos e rurais, cujas divisões do trabalho (comercial e agrícola; material e intelectual) já haviam sido explanadas por Marx e Engels (1933/2007), que associam essas divisões à exploração por parte das classes dominantes. Esse contexto gerador de disparidades impulsiona significados diversos sobre situações de desigualdades, uma vez que o contexto em que a criança se encontra servirá de base para suas ideias, sentimentos e hábitos morais (Mello, 2010) e para o surgimento dos potenciais criativos.

Por meio de tais processos, surgem novas ideias ou modos de atuação que direcionam o indivíduo para novos caminhos no mundo real (Zittoun & Cerchia, 2013). As crianças, em geral, possuem a capacidade imaginativa de criar, porém as disparidades de classes são determinantes de como essa capacidade é praticada, pois as classes privilegiadas têm mais condições e recursos necessários para a criação. Logo, existem condições socioculturais por trás dos atos imaginativos, um coeficiente social por trás das criações (Vigotski, 1930/2018). Isso é perceptível no modo como as crianças significam as cenas do filme, já que os escolares das instituições públicas têm maiores identificações com a obra e colocam-se no lugar dos personagens mais frequentemente, enquanto as que estudam na escola da rede privada interpretam a obra de forma mais complexa, uma vez que estão em uma realidade educacional com maiores oportunidades e contam com o uso de recursos artísticos no contexto escolar, como mencionado na descrição do contexto de pesquisa. Tal fato denuncia como as disparidades sociais presentes no cenário educacional brasileiro corroboram a manutenção de desigualdades socioeconômicas denunciadas pelo filme exibido, o que revela um sistema alicerçado na injustiça social.

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[1]Agradecimentos. Às crianças que participaram da pesquisa e expressaram suas formas de enxergar o mundo. Aos profissionais das escolas, que nos permitiram a realização da pesquisa e facilitaram o seu desenvolvimento. À Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (Fapitec), pelo apoio financeiro.

Recebido: 20 de Junho de 2020; Aceito: 20 de Agosto de 2020

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