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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 10-Set-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.32636 

Artigos

O reconhecimento de existências lésbicas e a lesbofobia no ensino superior

Reconocimiento de la existencia de lesbianas y lesbofobia en la educación superior

Recognition of the existence of lesbians and lesbophobia in higher education

1Professor da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, possui doutorado em Psicologia e residência pós-doutoral em Educação, ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Participante do Grupo de Pesquisa Caleidoscópio/UFOP, com investigações na área de gênero e sexualidades na Educação.

2Egressa do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, possui mestrado em Educação pela mesma universidade. Participante do Grupo de Pesquisa Caleidoscópio/UFOP, com investigações na área de gênero e sexualidades na Educação.


Resumo

Este artigo resultou de uma pesquisa de mestrado que investigou a lesbofobia no ensino superior. Os dados foram produzidos por um levantamento bibliográfico sobre o tema, pela participação em grupos afins à questão e por entrevistas narrativas com mulheres universitárias que se identificam como lésbicas ou bissexuais. Os diálogos teóricos se deram com autoras do campo das lesbianidades numa perspectiva pós-estruturalista. Percebemos que na universidade os processos de reconhecimento das experiências lésbicas e da lesbofobia são precários, indicando ser preciso questionar sobre os limites de uma educação que se propõe democrática, participativa e não heteronormativa.

Palavras-chave Lesbianidades; Lesbofobia; Ensino Superior; Educação

Resumen

Este artículo resultó de una investigación de maestría que investigó la lesbofobia en la educación superior. Los datos fueron producidos por una encuesta bibliográfica sobre el tema, por la participación en grupos relacionados con el tema y por entrevistas narrativas con mujeres universitarias que se identifican como lesbianas o bisexuales. Diálogos teóricos tuvieron lugar con autores del campo de las lesbianas en una perspectiva postestructuralista. Percibimos que en la universidad, los procesos de reconocimiento de las experiencias lésbicas y la lesfobofia son precarios, lo que indica que es necesario cuestionar los límites de una educación que se proponga ser democrática, participativa y no heteronormativa.

Palabras clave Lesbianidades; Lesbofobia; Educación Superior; Heteronormatividad

Abstract

This article resulted from a master's research that investigated lesbophobia in higher education. The data were produced by a bibliographic survey on the theme, by participation in groups related to the issue and by narrative interviews with university women who identify themselves as lesbian or bisexual. Theoretical dialogues took place with authors from the field of lesbians in a post-structuralist perspective. We perceive that in the university, the processes of recognition of lesbian experiences and lesbophobia are precarious, indicating that it is necessary to question the limits of an education that proposes itself to be democratic, participatory, and not heteronormative.

Keywords Lesbianities; Lesbophobia; Higher Education; Heteronormativity

Introdução

O presente artigo foi produzido a partir de uma pesquisa de mestrado e teve como objetivo analisar a lesbofobia no ensino superior. Para isto, elaboramos um levantamento bibliográfico sobre o tema, realizamos participação em grupos que discutiam a temática na universidade e produzimos entrevistas narrativas com mulheres lésbicas e bissexuais. O contexto da pesquisa de campo foi a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), escolhida considerando sua proximidade com o Programa de Pós-graduação em que foi desenvolvida a pesquisa e as possibilidades de diálogo já existentes entre pesquisadores e a universidade em questão. Todos os procedimentos foram submetidos e aprovados pelo Comitê de Ética e seguiu devidamente o desenho metodológico proposto.

Partimos da consideração de que o conhecimento pode ser um agente de transformação contra qualquer tipo de preconceito, portanto, pesquisar a lesbofobia e as formas de reconhecimento das lesbianidades pode ser de grande importância no cenário atual. Investigar essas questões nos auxilia na compreensão do dispositivo da heteronormatividade, bem como indica que sua (re)produção nesse espaço se liga a determinadas formas de violência e de subalternização. É importante destacar que a diversidade sexual tem se constituído em um importante debate nas práticas pedagógicas (Oliveira Júnior et al., 2018). Nesse contexto, o debate sobre as lesbianidades, por vezes, não é tomado como centralidade das produções acadêmicas que dizem das sexualidades e do gênero, se comparado ao enfoque que outras categorias sexuais têm recebido. Algumas autoras corroboram essa afirmação (Braga, 2019; Lahni & Auad, 2019; Lima, 2016) e sustentam a necessidade de visibilizar a discussão desse tema, seja na ciência, na educação e/ou na universidade de modo específico.

Nesse sentido, compreendemos que essa pesquisa se dá em meio a um cenário contraditório de avanços e retrocessos no reconhecimento de LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, intersex, agêneros, assexuados e mais) no Brasil. Podemos afirmar que é inegável um aprofundamento de diversos debates do gênero e das sexualidades na sociedade brasileira. As questões relacionadas a esse grupo têm conseguido avanços nas políticas públicas, em pesquisas acadêmicas, nas políticas de direitos humanos etc. Estes têm sido mobilizados principalmente pelas lutas dos movimentos sociais. Todavia, isso ocorre em um quadro de recrudescimento de posições marcadas por uma ostensiva antigênero articulada nacional e internacionalmente (Prado & Correa, 2018), indicando que o reconhecimento dos direitos de LGBTQIA+ ainda não estão consensuados socialmente.

No contexto universitário isso não é diferente, este pode ser compreendido como um território de disputas, que ora (re)produz cenas de violência lgbtfóbica, o que fortalece o modelo heteronormativo, ora avança no enfrentamento desta com normativas institucionais, projetos e eventos para a diversidade. Pode-se definir a heteronormatividade como uma matriz orientada pelas normas de gênero, isto é, pelo dimorfismo sexual, pela heterossexualidade compulsória e pelo privilégio do masculino (Butler, 2018). Pode-se compreender a lesbofobia como um dispositivo dinâmico da heteronormatividade que opera com a finalidade de intimidar, humilhar, praticar ou estimular violências contra mulheres pelo fato de serem identificadas como lésbicas e/ou bissexuais (Peres et al., 2018).

A vivência acadêmica da mulher lésbica, mesmo que se assemelhe em certos aspectos a outras identidades ou não identidades, são existências únicas e singulares. Assim sendo, vale ressaltar a importância de se ouvir essas mulheres e refletirmos sobre o espaço universitário enquanto contexto de formação pessoal e acadêmica. Essas mulheres convivem na escola, bem como na universidade, com a invisibilidade de sua sexualidade, com o apagamento da lesbofobia e com a hipervisibilização lésbica quando transita pelas masculinidades. Tais violências ocorrem em maior e menor grau de complexidade, desde os olhares constrangedores até os impedimentos de uma existência mais livre. Em relação às lésbicas, temos os “estupros corretivos” (Campos & Moretti-Pires, 2018) como violência perpetrada até mesmo por familiares com o suposto objetivo de forçar a mulher a retornar à heterossexualidade.

Optamos por contextualizar o cenário da universidade estendendo-o a alguns locais que entendemos ser suas extensões, como as repúblicas e outros locais de interação que estão diretamente ligados à universidade e ao seu público. Nesse sentido, compreendemos que estes ambientes revelam também cenas de discriminação e resistência, visibilidade e invisibilidade, jogos de poder que atravessam as relações e dizem das lesbianidades no contexto universitário.

Esta pesquisa contou com a colaboração de três universitárias lésbicas e/ou bissexuais que realizam a graduação na UFOP. A partir de suas narrativas, analisamos como se configura a lesbofobia na universidade, em um cenário que se pressupõe heteronormativo (Braga, 2019; Lima, 2016). A entrevista narrativa, segundo Moura e Nacarato (2017), precisa observar alguns quesitos.

Busca romper com a rigidez imposta pelas entrevistas estruturadas e/ou semiestruturadas e permite identificar as estruturas sociais que moldam as experiências; tem sido utilizado por pesquisas em diferentes áreas do conhecimento e, em particular, por estudos que tomam as histórias de vida como foco de análise, pela sua dinâmica própria de geração de textos narrativos (2017, p. 16).

Na entrevista narrativa, existem outras questões a serem observadas, conforme aponta Muylaert et al. (2014). Segundo estes, geralmente, deve-se elaborar uma pergunta geradora permitindo uma direção do relato orientado por quem narra, evitando interrupções ou questões que não se constituam a partir de quem narra. Também assinalam que, após as pessoas entrevistadas encerrarem seus relatos, serem perguntadas se desejam complementar alguma informação, quem entrevista, caso necessite perguntar algo, não deveria sair dos temas e assuntos apresentados na narrativa. Na presente pesquisa, a questão geradora foi proposta como segue:

Gostaria que inicialmente você se autoidentificasse quanto a sua sexualidade e depois, você me contasse sobre o seu processo de escolarização, destacando as situações de discriminação, preconceito e violência (relacionadas à lesbofobia) que você possa ter vivenciado nos espaços educacionais da Universidade Federal de Ouro Preto. Por último, gostaria de saber se você tem conhecimento sobre algum projeto, programa, grupo, pessoa, norma institucional direcionada aos sujeitos LGBTI+ que favoreçam e/ou garantam a sua permanência na Universidade (questão geradora da pesquisa).

Ademais o estudo se orientou por debates de teóricas feministas, autoras que compreendem a heterossexualidade compulsória para além de uma norma social, como uma política de dominação dos homens sobre as mulheres, como um dispositivo de opressão das mulheres. Na primeira parte deste artigo, propomos uma discussão sobre a existência lésbica localizada no cenário educacional. Tratamos assim de compreender essa categoria na ciência e a articulamos ao campo educacional. Posteriormente, elaboramos como as graduandas lésbicas e/ou bissexuais, através de suas narrativas, se localizam e (re)existem no espaço universitário. Por fim, trazemos algumas considerações finais acerca das configurações lesbofóbicas na universidade, mas, certamente, debates que não se findam no presente trabalho.

A produção de reconhecimento das lesbianidades

Para pensar sobre as lesbianidades no contexto educacional e como se dá a trajetória acadêmica da mulher lésbica, é preciso, antes, compreendermos como a categoria lésbica tem sido produzida em um emaranhado de questionamentos sobre seu entendimento enquanto corpo político, identitário e social.

Compreendemos, assim como Rich (2010) e Wittig (1992; 2006), que a heterossexualidade, característica importante sobre os debates do patriarcado, para além de uma norma social, é uma política de dominação dos homens sobre as mulheres. Nesse segmento, a lesbianidade é vista como uma estratégia de libertação das mulheres, que vai contra o patriarcado.

Essa resistência feminina explicitada por Wittig e Rich é elaborada por Silva (2017) ao abordar a organização de lésbicas na política – termo adotado pela autora –, a LBL - Liga Brasileira de Lésbicas, uma rede feminista de mulheres lésbicas e bissexuais, que empodera mulheres e articula movimentos com o desafio de lesbianizar o mundo. Essa ação de lésbicas propõe, a partir de suas existências, confrontar a heterossexualidade compreendida como sistema político produtor da lesbofobia, conforme analisa Silva (2017). Esta também argumenta que, para além de amar outras mulheres, as lésbicas defendem esse amor, se arranjam e (re)inventam numa existência lésbica. Para ela, o corpo lésbico se expressa coletivo, produzido por um “conjunto de discursos e práticas que circunscreve e nomeia o ser lésbica política, declarando um jeito de ser, de se organizar e viver lésbica” (2017, p. 104). O corpo político das lésbicas viabiliza um continuum lésbico e indica as organizações das lésbicas como um espaço de saber e de práticas importantes para suas lutas. Rich (2010, p. 35) considera a existência lésbica e o continuum lésbico, que inclui “um conjunto de experiências de identificação da mulher”, como um vínculo contra a tirania masculina, como apoio prático e político, como a recusa de um modo compulsório de vida, um ato de resistência. A autora compreende uma sociedade em que a vida das mulheres seria organizada por mulheres, em suas práticas e seus afetos, na distribuição social de seus corpos. “Com isso entendemos que a heterossexualidade não é apenas uma orientação sexual, mas um modelo político que organiza as nossas vidas” (Colling & Nogueira, 2015, p. 182).

Para Silva (2017), lesbianizar é se organizar para o enfrentamento da lesbofobia, é construir um movimento de desestabilização do regime político construído acerca de uma única forma de existência, é desnaturalizar a heterossexualidade compulsória. Assim, lesbianizar a ciência é ato político, pois questiona o saber instituído. Neste segmento, e implicando a heterossexualidade compulsória ao modelo heteronormativo, observa-se a lesbofobia como um modo de expressão em que a mulher até pode ser lésbica ou bissexual, porém, não deve se identificar com os atributos ditos masculinos.

Compreendemos a lesbofobia como a estigmatização e invisibilização da sexualidade feminina, como o menosprezo e desdém em relação à sexualidade entre mulheres, que coloca essa relação no campo do impensável (Borrillo, 2010; Molinier & Welzer-Lang, 2009). Entendemos também que os constrangimentos, o não reconhecimento e os questionamentos de tal sexualidade, bem como o silenciamento e a hiperexposição da mulher lésbica, que levam ao rechaço, também são atos lesbofóbicos (Peres et al., 2018).

Os dispositivos de controle e produção da heteronormatividade, como a lesbofobia, são fortalecidos com a contínua reprodução de discursos que naturalizam e elaboram padronizações nos modos de existir e de se comportar. Assim, a mulher lésbica tem, comumente, a sua inteligibilidade e relação questionadas, e o seu reconhecimento, negado. As manifestações lesbofóbicas apresentam diferentes graus de complexidade, desde os olhares constrangedores até os impedimentos de uma existência mais livre.

Judith Butler (2017) nos auxilia a pensar sobre os limites e as possibilidades da inteligibilidade do sujeito diante de si, do outro e da comunidade, ainda que seja em processos marcados pela opacidade de uns e outros. A autora argumenta que há um regime de verdade que elabora um quadro de reconhecimento; este oferece normas para o ato de reconhecimento e, “é em relação a esse quadro que o reconhecimento acontece, ou que as normas que governam o reconhecimento são contestadas e transformadas” (2017, p. 35). Portanto, as normas que fiscalizam o gênero e as sexualidades não podem ser consideradas invariáveis, já que esta se dá numa relação que pode ser colocada em questão, bem como ocorre com os sujeitos LGBTQIA+, em que a possibilidade de seu reconhecimento excede as normas disponíveis, colocando-as em contestação e buscando sua transformação.

O Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil (Peres et al., 2018) destaca que, em 2017, foram registradas 54 mortes de lésbicas no Brasil, e se comparado ao ano 2014, há um aumento de 237% no número de casos. Em toda a história das pesquisas de lesbocídio no Brasil, esse representa o maior número de casos registrados. Referente a 2017, as estatísticas demonstram que o número de mortes de lésbicas não-feminilizadas é de 54% e de negras de 43%, sendo que 83% dos assassinos são do gênero masculino, enquanto 17% são do feminino. O único ano em que se registrou um maior número de mortes de lésbicas negras foi em 2014, em que 53% dos casos eram negras e 47%, brancas.

Além dos números expressivos de casos de mortes, é preciso considerar que as violências contra as dissidências sexuais se configuram de várias formas, seja eliminando, subalternizando ou invisibilizando suas existências. Essas expressões discriminatórias foram abordadas nas produções acadêmicas que tratam da relação entre lesbianidades e contexto educacional. A seguir, apresentamos algumas dessas discussões.

Maciel (2014) analisa processos de subjetivação de sete professoras lésbicas e como a lesbianidade se reflete nos seus modos de vivenciar a docência, sendo que a heteronormatividade se mostra como organizadora de seus corpos no ambiente escolar. As professoras revelaram cenas de discriminação entre os pares e entre professores/as e estudantes, o que causava grande mal estar nos momentos de convivência entre eles/as. Também destacaram que os meninos gays sofriam mais preconceitos no ambiente escolar do que as meninas. Tal fato pode ser compreendido pela posição subalternizada da mulher, o que favorece o preconceito contra a lésbica, pois fortalece a sua invisibilização. Isto nos remete às considerações de Maciel (2014). Segundo essa pesquisa, ainda que as ações discriminatórias sejam vistas com maior intensidade com os meninos gays, não se pode desconsiderar que o apagamento da mulher lésbica seja também um modo de violência.

De modo semelhante, Ribeiro (2018) investigou o tema das sexualidades com o auxílio de professores/as. Nesse caso, eles/as destacam que tal debate nunca havia sido tratado na escola. Em suas narrativas, surgiam contradições como: “eu nunca vi, mas ouvi falar de uma menina que beijou outra, mas eu não sei por que, eu não vi” (Ribeiro, 2018, p. 183). Nessa fala, é notado um jogo de visibilidade e invisibilidade. Na escola, não se trabalha o assunto ainda que seja evidente a presença de LGBTQIA+ nesse espaço; entre o dito e o não dito, reforçam-se apagamentos que afastam a temática das pautas escolares.

Corrobora esse cenário de invisibilização do debate das sexualidades, no contexto escolar, a pesquisa de Medeiros (2015). Ao investigar o que estudantes do Ensino Médio pensam, sabem e compreendem sobre as lesbianidades, o estudo viu que os espaços de reflexão para tal discussão na escola pouco ocorrem e, quando acontecem, são através de algumas atividades restritas a poucos(as) professores(as) interessados(as) pela temática. Na pesquisa, considera-se que isso revela certo conservadorismo da instituição e o silenciamento do debate. Além disso, as entrevistadas revelaram que se sentiam desmotivadas a agir frente a uma cena de discriminação lgbtfóbica, pois sabiam que nada seria feito ou que não teriam apoio.

Vianna e Cavaleiro (2015) consideram que a troca de carícias entre casais não-heterossexuais, nos espaços escolares, sofre maior vigilância; de um lado, disfarçado de cuidado; e de outro, indicando que a expressão de afeto não deve ser partilhada em público. As autoras consideram que isso coloca as identidades não-heterossexuais no lugar do privado, enquanto as heterossexuais desfrutam também dos espaços públicos. Elas destacam que a sexualidade não heteronormativa se torna um “problema” conforme sua visibilidade é requisitada.

A ausência de espaços de debate do gênero e das sexualidades foi notado tanto no ambiente escolar quanto familiar das entrevistadas de Medeiros (2015). Nessa pesquisa, buscou-se compreender as lesbianidades nos artefatos culturais, como nos filmes, reportagens, revistas de animes e mangás. A autora alerta que as jovens ainda estão em processo de construção de suas opiniões e entendimentos e esse processo é interpelado por uma instituição que auxilia a produção de suas subjetivações. Isto, para a autora, ocorre muitas vezes em meio ao silenciamento das diversidades e diferenças, o que acaba reforçando a heteronormatividade.

Mochi (2019) discute que, por vezes, a escola valoriza apenas um modelo familiar em detrimento de outros modelos familiares, como as famílias com mães lésbicas e/ou bissexuais. Nesse sentido, indica que a valorização de apenas um modelo familiar em prejuízo de outros coloca as crianças, filhas/os de famílias homoafetivas em um ‘não-lugar’, gerando discriminações e sentimento de não pertencimento. As autoras argumentam que é necessário colocar os múltiplos modelos como possibilidades, ou seja, fugir do modelo único e rígido. Ao valorizar a pluralidade, abre-se caminho para olhar as sexualidades e as diversas parentalidades como outras formas de existência, encarando as singularidades de cada família de modo positivo. Assim, a educação deveria estar aberta à diferença e fechada às manifestações machistas, homofóbicas, racistas, entre outras formas de preconceito (Oliveira Júnior et al., 2018).

Lima (2016) também chama a atenção para o apagamento e a invisibilização das lesbianidades durante a educação básica. Ao investigar as trajetórias escolares de mulheres lésbicas e bissexuais, destaca a falta de informações sobre a existência lésbica e a falta de reconhecimento dessas mulheres. Para a pesquisadora, em uma lógica binária, hegemônica no espaço escolar, ocorrem prejuízos à identificação de si própria como lésbica ou bissexual nos processos de subjetivação. Desse modo, com a fiscalização do afeto e a não valorização das diferenças, essas mulheres não se sentem confortáveis ou seguras para viver suas sexualidades plenamente nos ambientes escolares. As entrevistadas ainda narraram que o encontro com outras mulheres lésbicas só aconteceu no ensino superior, quando puderam se identificar e viver mais livres. Aqui, o cenário universitário se configura como um espaço de maior liberdade sexual.

Auad e Cordeiro (2018), em contrapartida a essa liberdade, discutem que o contexto universitário pode se configurar como um ‘não-lugar’ para as mulheres negras cotistas lésbicas e bissexuais, pois a universidade é um espaço que tradicionalmente não foi pensado para elas. Nesse caso, as autoras compreendem que este espaço privilegia o homem branco, heterossexual, cristão, urbano, de classe média alta. A universidade, historicamente, coloca a função de intelectuais aos homens, diferentemente do que ocorre com as mulheres, que têm suas trajetórias acadêmicas marcadas pela resistência.

As mulheres negras lésbicas são afetadas por desvantagens em consequência das discriminações de raça (ser negra), de gênero (ser mulher), de classe social (ser pobre), de moradia (residir em favelas ou áreas rurais afastadas), de idade (ser jovem ou idosa), podendo somar ainda a presença de alguma deficiência, entre outras características que podem colocá-las em condição de vulnerabilidade (Auad & Cordeiro, 2018, p. 202).

A presença dessas mulheres já se configura como de extrema importância na universidade, pois desestabiliza o regime de verdade que considera este como um ‘não-lugar’ para elas e possibilita outras formas de existências. As autoras consideram que, por um lado, a articulação das intersecções dos marcadores sociais delineia as desigualdades e injustiças sociais; por outro, potencializam e reconhecem outros modos de existir e resistir. Ainda afirmam que as Políticas Afirmativas oportunizam que a universidade se reinvente, como um espaço plural e mais democrático.

Braga (2019), em sua tese de doutorado, nos traz um outro extremo da discriminação lesbofóbica. Além de trazer elementos que constituem o apagamento da mulher lésbica, a pesquisa chama a atenção para os inúmeros modos de se viver as lesbianidades, que se transformam quando interligadas a outros elementos da diferença, como raça/etnia, geração, classe social e performatividades permeadas pelas características do feminino e masculino. Desse modo, reflete que não se pode apenas falar em ocultação, pois quando as lesbianidades se interseccionam a outros elementos da diferença, é possível que o sujeito seja colocado em exposição, em hipervisibilidade. A autora explica que a hipervisibilidade lésbica ocorre quando diz respeito à masculinidade feminina vivenciada pelas mulheres lésbicas que não performam a feminilidade.

Algo a ser destacado nesse jogo de invisibilidade e hipervisibilidade das mulheres lésbicas é a questão do “armário”; se por um lado, a imperceptibilidade, atrelada à heterossexualidade compulsória, as distanciam dos olhares estranhos, por outro, vivenciam a angústia do armário, do invisível, do não reconhecimento por seus grupos sociais. Já as hipervisíveis não possuem a “segurança” do armário, e a autora acrescenta que são notados maiores rechaço, violência e isolamento para essas mulheres, algo que acontece até mesmo diante de outras dissidentes que não desejam essa visibilidade (Braga, 2019).

Diante dos entendimentos acerca das lesbianidades no contexto educacional, elaborados pelas diversas autoras, compreendemos que a invisibilização desse debate na educação é uma problemática emergente. O imaginário sobre as lesbianidades se constituiu atravessado pelas experiências de reconhecimento e de lesbofobia na vida de certas mulheres. Assim, pelas narrativas de algumas delas, buscamos compreender como isso acontece num determinado espaço acadêmico.

As existências lésbicas na UFOP

O ato de narrar possibilita que as pessoas entrevistadas revisitem as experiências do passado no contato com suas próprias palavras e permitem o acesso a diversas interpretações de uma realidade social, relatos que não são encontrados em documentos (Moura & Nacarato, 2017; Muylaert et al., 2014). Essa compreensão e o caráter exploratório de nossa pesquisa levaram-nos a escolher a entrevista narrativa. Algumas das experiências narradas pelas colaboradoras dessa pesquisa serão analisadas a seguir. Nelas, foi possível aprofundar determinadas questões, como a persistência da lesbofobia e sua capacidade de causar prejuízos à vida lésbica.

Consideramos algumas categorias de análise que se destacaram nos trabalhos citados anteriormente, sendo a vigilância escolar (Medeiros, 2015; Vianna & Cavaleiro, 2015), a resistência e a desmotivação frente à discriminação lesbofóbica (Medeiros, 2015; Rich, 2010; Wittig, 1992; 2006), bem como a visibilidade e a hipervisibilidade lésbica (Braga, 2019).

Ana, Bia e Carla (nomes fictícios), narradoras de nossa pesquisa, são mulheres lésbicas e/ou bissexuais, graduandas na Universidade Federal de Ouro Preto. Na instituição, elas buscam formação educacional ao mesmo tempo que (re)existem nesse espaço. Vivenciam seus amores, descobrem suas sexualidades, se fortalecem enquanto mulheres e experimentam a contínua constituição de suas subjetividades. Observamos que as reticências, entre colchetes na transcrição, indicam um período de silêncio maior, seguido pela continuidade da frase. A mesma pontuação sem colchetes indica o mesmo fato, com a continuação de nova frase.

Eu sou lésbica […] a minha cidade é pequena e eu só tinha amigas bi… Eu passei muito tempo pensando que era bi por causa disso… É eu acho que é isso (Carla, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

Pra mim, sempre foi muito difícil essa ideia de gostar de uma mulher, de não fazer parte do padrão da sociedade, […] eu acho que um dos maiores preconceitos que eu enfrentei em relação à sociedade foi o preconceito comigo mesma, sabe… tipo… de eu/ de eu ter essa aceitação, porque … É […] era que/ eu me caracterizava como um monstro, sabe… Então, pra mim, foi muito difícil (Bia, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

Eu sou uma mulher cisgênero… é, eu sou bissexual […] aqui, em Ouro Preto, tendo (tinha) um relacionamento com uma pessoa do sexo masculino e me entendia enquanto hétero também… aí depois do fim desse relacionamento… é… Eu comecei a perceber que eu também gostava de meninas e isso não era um problema… não era um problema na minha cabeça […], mas […] eu ainda é… Eu ainda achava que não eram todos os espaços que eu podia é: ficar naturalmente com outra menina perto das pessoas que […] que fossem héteros e que tivessem aquela socialização também (Ana, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

As narrativas sobre as existências lésbicas e/ou bissexuais de nossas colaboradoras demonstram que vivenciaram e ainda vivem certos conflitos, seja pela pouca representatividade a que elas têm/tiveram acesso, seja pela própria experiência subjetiva de sua sexualidade. Isto se relaciona a um processo de reconhecimento (Butler, 2017) muitas vezes insuficiente para se posicionar socialmente, levando-as, muitas vezes, a viver dentro do armário. Observa-se que essas mulheres experimentam o amor entre mulheres de modo muito plural e como o espaço, as pessoas e os discursos que as cercam implicam na constituição de sua sexualidade e as localizam, nem sempre vivenciam sua sexualidade plenamente. Ainda que elas tenham descoberto novos prazeres na universidade, persiste a dúvida sobre a real identidade sexual e os espaços em que esse amor poderia existir.

Além disso, a transição da bissexualidade para a lesbianidade de Carla, bem como a tentativa de Bia em se manter nos padrões heteronormativos, de algum modo, as enquadrava parcialmente na heteronormatividade. Isto pode estar relacionado à busca por evitar possíveis represálias. Também se deve considerar que o momento de transições e/ou descobertas da própria sexualidade pode ser de confusão para elas, de aceitação e negação, algo que diz do reconhecimento de si e sua opacidade. Ainda notamos como a heteronormatividade pode se revelar muito brutal para alguns sujeitos, como foi para Bia, que enxergava sua sexualidade como uma monstruosidade, como algo a ser negado. Aqui podemos pensar como a lesbofobia prejudica o reconhecimento de si, e consequentemente, a saída do armário. A compreensão da lesbianidade como algo possível exige deslocamentos afetivos e a inteligibilidade do sujeito diante dele mesmo.

Na hora que eu me descobri, foi literalmente uma lâmpada que acendeu na minha cabeça e tudo que eu tinha passado anteriormente fez sentido todos os incômodos fizeram sentido e foi um alívio para mim (Carla, 2019, entrevista narrativa).

Nunca fiquei com outra menina perto das pessoas assim… Já tinha ficado com outras meninas, mas não perto de outras pessoas… É […] e quando aconteceu a primeira vez de outras pessoas estarem presentes e tudo mais… É […] eu não percebi uma forma de violência, mas eu percebia olhares diferentes… estranhos, né… Como se… Ah, ela […] tivesse… Agora ela gosta de meninas? E era isso mesmo (risos) (Ana, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

Carla viveu um relacionamento heterossexual durante a adolescência, “[…] eu tinha namorado um garoto e aquilo por um ano era um desconforto… eu não gostava dele desse jeito… Ele era um bom amigo, mas era um desconforto” (Carla, 2019, entrevista narrativa). Sua fala aponta que, ao se reconhecer lésbica, tudo fez sentido, os desconfortos foram, por fim, aliviados num possível sentimento de pertença, de reconhecimento de si própria. Já Ana, ao ficar com outra mulher em público, foi como se tivesse revelado algo que, até então, estava em sigilo: os olhares de estranhamento demonstram a lesbofobia de modo velado, e ainda que não se sentisse violentada, percebeu o questionamento sobre seu ‘novo’ modo de existência, de relacionar-se afetivamente.

De modo semelhante, Bia, ao chegar em Ouro Preto, destaca que não manifestou sua orientação sexual para as colegas de república/moradia; a insegurança sobre a possível rejeição levou-a a se questionar sobre sua sexualidade e modo de existência.

Eu numa cidade completamente desconhecida… não conheço/ não faço nem ideia de como as pessoas vão reagir… sem meus pais aqui… sem amigos, sem nada… então, como que eu vou abordar isso com elas? E acabou que eu não falei nada pra elas quando eu cheguei… Eu fiquei… Eu simplesmente me calei… Deixei pra lá… Ah vou viver aqui… Vou ver qual é que é… Às vezes, nem sou bissexual mesmo… Às vezes, eu gosto de homem… Às vezes, eu aprendo a gostar de homem (Bia, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

Bia passou por diversas experiências em sua república. Depois de certo tempo de convivência, assumiu sua sexualidade frente às colegas. Ela narrou algumas situações em que passou por constrangimentos e sentiu sua sexualidade discriminada. Ela indicou que a relação com as colegas de moradia foi alterada, sentindo um certo afastamento, em que as antigas brincadeiras e desabafos já não aconteciam da mesma forma. Cabe destacar que existe uma dificuldade em nomear a situação vivida como lesbofóbica, não acessando uma semântica que possibilitaria outras formas de resistência à heteronormatividade no espaço acadêmico.

Quando eu ia pras festas com elas, eu não conseguia ficar com mulheres, sabe… Eu só focava em homens porque eu queria provar pra mim que eu poderia gostar de homens… Eu precisava gostar de homens […] principalmente por estar numa casa que era heterossexual […] pra me encaixar no padrão delas… E isso era horrível, porque eu odeio ficar com homens (Bia, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

A narrativa de Bia demonstra a tentativa constante de se adequar aos padrões heterossexuais das colegas, e isso a fere profundamente. Para caber nesse padrão, nega o próprio desejo afetivo. A vontade de se encaixar no grupo acaba desmotivando-a a reafirmar sua sexualidade frente às pessoas. Também a desmotiva a enfrentar os comportamentos lesbofóbicos que a cercam em sua própria moradia estudantil. Ainda que questione as situações de medo, rejeição e de mudança no tratamento que as colegas têm para com ela, Bia parece depositar o erro/culpa em si mesma e contesta o seu modo de existir. Rich nos aponta, neste sentido, que:

A negação da realidade e da visibilidade da paixão das mulheres por outras mulheres, da escolha das mulheres por outras como suas aliadas, companheiras de vida e de comunidade, ao se obrigar que tais relações sejam dissimuladas e até desintegradas sob intensa pressão tem representado uma perda incalculável do poder de todas as mulheres em mudar as relações sociais entre os sexos e de cada uma de nós libertar (Rich, 2010, pp. 40-41).

A credibilidade da produção heteronormativa é tão consistente que impede as mulheres de viverem plenamente a sua sexualidade quando não nessa perspectiva. A heterossexualidade compulsória não só mina as relações entre mulheres, mas absorve a energia de lésbicas que se veem aprisionadas em uma vida dupla na tentativa de caber nos parâmetros aceitáveis, ou viver livremente na clandestinidade, isto é, no armário.

Outra cena em que percebemos a desmotivação frente à discriminação é narrada por Carla. Esta, por não performatizar a feminilidade padrão atribuída às mulheres, vive cotidianamente sob olhares estranhos, constrangimentos que a perseguem, por exemplo, no uso do banheiro da universidade.

É […] pelo meu jeito de vestir e tudo mais… eu sinto muito é mais os olhares […] uma coisa que sempre me incomoda um pouco é a questão do uso do banheiro […] porque na hora que eu entro no banheiro feminino, […] principalmente […] se tem alguém lá/ é tanto que eu prefiro pegar os banheiros dos últimos corredores, que são o de professor que estão sempre vazios… Porque as pessoas me olham muito estranho… Sempre pensam que eu sou um garoto… Sou um pouco também de ignorar bastante os olhares (Carla, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

A desmotivação frente à discriminação de Carla pode ser retratada no ato de “ignorar” os olhares e se privar de usar os banheiros mais próximos ou que tenham maior movimento de alunas para se resguardar no banheiro das professoras. É pertinente analisar que esta ação foi, para ela, a melhor solução encontrada naquele momento para viver sua existência e enfrentar tais constrangimentos. Essas cenas retratam bem situações em que a lesbofobia precisa ser nomeada, pois é preciso que pensemos nos dispositivos que privam lésbicas de direitos básicos, como a utilização de um banheiro público.

Judith Butler (2018, p. 241) argumenta que “como estratégia de sobrevivência em sistemas compulsórios, o gênero é uma performance com consequências punitivas”. Nessa perspectiva, observa-se que, no sistema da heterossexualidade compulsória, os sujeitos são vistos como inteligíveis quando desempenham corretamente as atribuições de seu gênero, do contrário, são punidos. Desse ponto de vista, a performatividade de gênero de Carla é punida através de olhares questionadores, que colocam à prova o seu desempenho para performatizar a feminilidade imposta socialmente pelo discurso heteronormativo.

Vianna e Cavaleiro (2015) destacam uma espécie de cultura lgbtfóbica que pode ser observada nos mecanismos de interdição e controle estabelecidos nos espaços educacionais. Isso é refletido nos modos de silenciamento do corpo, assim, o ensino acontece em apenas uma via, que sem o retorno do questionamento, cada um sabe o seu lugar, seja ele imposto nas salas de aula, nas portas dos banheiros, nos olhares etc. (Medeiros, 2015).

Quando a gente chega aqui (UFOP), é um ambiente mais livre, mas… Não tanto… É um ambiente que ainda vai ter várias coisas pequenas e veladas e a pior delas é que você não vai questionar elas e você não vai falar, ninguém fala… Se um professor te olha estranho, se ele te falou alguma coisa, você não vai falar que ele te olhou estranho… Você não vai falar isso…Você não vai falar como você solta a mão da sua namorada toda vez que você entra dentro do prédio, por exemplo o prédio do ICEB… Eu não me sinto confortável aqui de andar/ aqui de mãos dadas com ela (Carla, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

Quando Carla narra a cena em que solta a mão de sua namorada toda vez que entra no prédio do ICEB (Instituo de Ciências Exatas e Biológicas), indica um mecanismo de controle social que conserva a ordem sexual. Borrillo (2010, p. 113) argumenta que:

A apropriação do espaço público é o sinal da desigualdade cotidiana em função da qual os homossexuais não podem manifestar abertamente sua afeição, e – quando chegam a superar esse olhar reprovador – eles não podem deixar de pensar que, no fundo, sua atitude é provocadora, militante ou exibicionista.

Por vezes, cenas comuns das relações afetivas, como dar as mãos, ou beijos, são reprovadas quando assumem a forma homossexual; de maneira oposta, quando assumem a forma heterossexual, são até incentivadas.

A universidade de uns e de outros/as tem pontos convergentes e divergentes, há a existência de diferentes territórios existenciais dentro da universidade e, compreendemos que, para além disso, esses acontecem como negociações existenciais que são políticas. O contexto universitário, em geral, é lgbtfóbico e heteronormativo, e notamos que, em alguns territórios desse contexto, essas negociações acontecem com maior reconhecimento. No ICEB, no DEART (Departamento de Artes Cênicas), a questão torna-se diferente. Observamos que isso também diz sobre o modo como a universidade produz diferentes espaços de trânsito para as sexualidades, todavia é de domínio público na UFOP que o DEART possui lógicas menos discriminatórias, debates mais abertos às sexualidades, sendo muitas vezes taxado por pessoas da comunidade acadêmica.

O ambiente que eu me sinto mais livre com a minha namorada é lá no DEART […] eles não se importam com a sua sexualidade, se você quer falar dela… ok… Eles vão te dar o espaço de fala, eles vão sentar e te escutar. Eu nunca sofri nenhum/ em nenhum momento lá… Nem sequer os olhares … Tanto que o banheiro de lá entra homem, entra mulher… Eles não têm essa questão de se eu entrar/ se eles entram no banheiro e me topam lá, eles não acham estranho (Carla, 2019, entrevista narrativa, grifos nossos).

Cabe notar que ICEB e DEART funcionam em prédios vizinhos, sendo que os estudantes utilizam uma cantina comum que fica no primeiro. Neste, os olhares de reprovação e estranhamento direcionados à Carla questionam a inteligibilidade de sua sexualidade, a colocam numa posição de constrangimento, fiscalizam seus gestos e comportamentos. O reconhecimento frente à comunidade universitária é tão importante quanto aquele frente às normas institucionais. É preciso considerar que a indiferença com que são tratadas cenas lesbofóbicas nesses espaços acaba reforçando a lesbofobia, encorajando os indivíduos a continuar (re)produzindo a heteronormatividade sem questionamentos.

Ana e Bia performatizam a feminilidade e acreditam que, por manterem a coerência entre o sexo e o gênero, esquivam-se de ataques lesbofóbicos.

Eu entendo que eu tenho mais privilégios sociais que outras pessoas, do que outras meninas lésbicas, por exemplo. Eu ainda […] performo muito a feminilidade, né… Eu deixei meu cabelo crescer de novo, mas isso são escolhas, assim, e ninguém tem que ser julgado (Ana, 2019, entrevista narrativa).

Eu até acho a minha vivência assim… Uma forma bem mais tranquila do que outras experiências que eu conheço, sabe… Aí eu fico até me perguntando… Cara… Será que tipo, isso me descaracteriza de alguma forma? (Bia, 2019, entrevista narrativa).

Ao narrar sobre seu corte de cabelo, Ana explicita o entendimento que se convencionou socialmente ao ideal de “mulher real” e os privilégios sociais que advém de estar em acordo com o que se espera nos padrões heteronormativos, quando comparado às mulheres lésbicas. Na perspectiva da heteronormatividade, a “mulher real” não é lésbica, mantém uma relação de coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo (Butler, 2018). Nesse caso, a mulher lésbica tem a sua sexualidade sempre colocada em dúvida no campo do impensável, ou como algo passageiro, tendo sua sexualidade invisibilizada. Borrillo (2010) afirma que tornar a sexualidade de mulheres lésbicas invisível está no âmago da violência lesbofóbica, nesse entendimento, compreende-se que uma relação afetivo-sexual sem um homem é insustentável.

Carla expressa que sua performatividade de gênero ‘denuncia’ sua orientação sexual. Ela relata que, mesmo sozinha, vivencia cotidianamente os olhares de estranhamento quanto a sua sexualidade e gênero. Já Ana e Bia não relataram situações de lesbofobia na universidade ou em suas extensões por simplesmente estarem nesses espaços, a não ser que estivessem relacionando-se afetivamente com outra mulher. Elas não reconhecem que a imposição do armário poderia ser considerado uma dimensão da lesbofobia.

Braga (2019) argumenta sobre esse jogo de (in)visibilidade, se por um lado, for imperceptível, atrelado à ideia de heterossexualidade compulsória, afasta as mulheres lésbicas de olhares estranhos; por outro, podem vivenciar a angústia do armário, do invisível, do não reconhecimento frente ao outro. Já as hipervisíveis não têm a “segurança” do armário, podendo sofrer mais ataques lesbofóbicos.

Por fim, consideramos que, mesmo que Ana e Bia não vivenciem olhares ou agressões mais incisivas no cotidiano universitário, isso não significa que a tolerância de suas sexualidades seja menos violenta. Enfim, a invisibilidade da sexualidade da mulher lésbica não é menos opressora.

Considerações finais

Ao final dessas análises, consideramos que a presença da mulher lésbica nos espaços educacionais promove, de um lado, a quebra de silenciamentos, e de outro, a conclusão de que, talvez, isso não garanta o debate das sexualidades nesses contextos. O jogo de (in)visibilização das lesbianidades revela as opressões vivenciadas por essas mulheres constantemente e ponderamos que as mulheres que transitam nas masculinidades podem sofrer maior exposição do que aquelas que performatizam o gênero de acordo com o modelo heteronormativo, podendo, por vezes, terem suas sexualidades subalternizadas e/ou invisibilizadas, o que não é menos opressor, nem indício de tolerância.

Compreendemos que a existência lésbica se dá em meio a um emaranhado de discussões, são mulheres que amam mulheres, são corpos políticos que (re)existem em espaços que também são políticos, e nesse contexto universitário, entendidos como um território de disputas, essas mulheres questionam a naturalização da heterossexualidade compulsória e escapam da dominação masculina (Rich, 2010). Quanto à lesbofobia, ponderamos que esse ato discriminatório e dispositivo da heteronormatividade exclui, classifica, apaga e subalterniza a mulher que escapa à dominação masculina, e mais, não reconhece e invisibiliza as sexualidades não heterossexuais.

Nesse contexto contraditório, observamos diálogos e silenciamentos, liberdade sexual e interdições da expressão de afeto em relacionamentos não heterossexuais. O que notamos foi uma universidade que não é unificada. Perguntamo-nos: será possível unificar uma universidade? Percebemos que, em alguns espaços, a diferença e o reconhecimento de pessoas LGBTQIA+ se dão de maneira mais fluída, sendo ainda poucos e bem delimitados os espaços em que essas pessoas podem circular livremente.

Portanto é relevante destacar que esse texto se encerra, mas os temas aqui debatidos devem continuar a ser aprofundados. Consideramos que alguns pontos devem, ainda, receber mais atenção, como a própria construção desse debate na produção científica e a necessidade de maior reconhecimento das vidas lésbicas na universidade. Por fim, consideramos que o reconhecimento das lesbianidades no espaço universitário, bem como na sociedade como um todo, um passo necessário ao enfrentamento da lesbofobia que humilha, violenta e/ou desconsidera corpos lésbicos. A ausência dos debates lésbicos na universidade não se constitui uma semântica necessária à ambiência democrática e participativa, essa defendida nas normativas e ideais de nossa sociedade.

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Recebido: 16 de Julho de 2020; Aceito: 31 de Agosto de 2020

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