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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 16-Set-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.29703 

Artigos

Potencialidades e limites político-educativos das mobilizações no Brasil: desafios de tradução

Potencialidades y límites político-educativos de movilizaciones en Brasil: desafíos de traducción

Political educational potentials and limits of mobilizations in Brazil: translation challenges

Les potentialités et les limites politiques-éducatifs des mobilisations au Brésil: les défis de traduction

1Doutor em História social pela PUC/SP. Pós-doutorado em educação intercultural pela UFSC. Professor e pesquisador na Faculdade de Educação e no PPGEDU da Universidade de Passo Fundo. Líder do grupo de pesquisa no CNPq: “Movimentos sociais populares, estado e políticas públicas”.

3Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF) onde atua como professor de Sociologia. Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da UPF. Participa do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq: “Movimentos sociais populares, estado e políticas públicas”.

4Doutorando em educação pela Universidade de Passo Fundo; orientador educacional no curso de Ensino Médio no Centro de Ensino Médio Integrado UPF. Participa do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq: “Movimentos sociais populares, estado e políticas públicas”.


Resumo

O artigo de natureza bibliográfica analisa os desafios para traduzir as potencialidades e os riscos políticos e educativos das mobilizações sociais na contemporaneidade brasileira. O desafio é como traduzir as potencialidades e os limites das mobilizações sociais, suas reivindicações, formatos e propostas políticas. O artigo faz uma reflexão sobre as novas formas de mobilização social; constrói um diagnóstico da diversidade de expressões; aprofunda questões epistêmicas, entre as quais, o conceito de tradução; e reafirma a tese de que as mobilizações de 2013 a 2016 são complexas do ponto de vista analítico, bem como das potencialidades e dos riscos políticos e educativos.

Palavras-chave Mobilizações sociais; Pluralidade; Tradução; Contexto político

Resumen

El artículo de tipo bibliográfico analiza los desafíos para traducir las potencialidades y los riesgos políticos y educativos de las movilizaciones sociales en la contemporaneidad brasileña. El desafío es cómo traducir las potencialidades y los límites de las movilizaciones sociales, sus reivindicaciones, formatos y propuestas políticas. El artículo reflexiona sobre las nuevas formas de movilización social; construye un diagnóstico de la diversidad de expresiones; profundiza las cuestiones epistemológicas, incluido el concepto de traducción; y reafirma la tesis de que las movilizaciones de 2013 al 2016 son complejas desde el punto de vista analítico, así como de las potencialidades y los riesgos políticos y educativos.

Palabras clave Movilizaciones sociales; Pluralidad; Traducción; Contexto político

Abstract

The aim of the current bibliographic article is to analyze challenges to the process of translating the political educational potentials and risks of social mobilizations in contemporary Brazil. Finding the best way to translate the potential and limits of social mobilizations, as well as their demands, shapes and political propositions, is a challenging task. The article addresses new forms of social mobilization; builds the diagnosis of diversity of expressions; makes an in-depth analysis of epistemic issues such as the concept of translation; and reinforces the hypothesis that mobilizations carried out from 2013 to 2016 were complex if one takes into consideration political educational potential and risks, based on the analytical perspective.

Keywords Social mobilizations; Plurality; Translation; Political Context

Résumé

Le but de cet article bibliographique est celui d’analyser les défis de la traduction des potentialités et des risques politiques-éducatifs des mobilisations sociales à l’époque contemporaine brésilienne. Le défi est celui de savoir comment traduire les potentialités et les limites des mobilisations sociales, leurs demandes, leurs formats et leurs propositions politiques. L’article réfléchit aux nouvelles formes de mobilisation sociale; il construit un diagnostic de la diversité des expressions ; il approfondit les enjeux épistémiques tels que le concept de traduction ; et il réaffirme la thèse selon laquelle les mobilisations menées de 2013 à 2016 étaient complexes du point de vue analytique, ainsi que du point de vue des potentialités et des risques politiques-éducatifs.

Mots clés Mobilisations sociales; Pluralité; Traduction; Contexte Politique

Considerações introdutórias

Intencionamos analisar, no presente artigo, as potencialidades e os limites políticos e educativos das mobilizações sociais na contemporaneidade brasileira, particularmente as emergentes de 2013 a 2016. Essa tarefa é desafiadora na medida em que precisa dar conta de questões complexas, entre as quais: como avançar qualitativamente em uma análise das mobilizações imediatas e das múltiplas pautas presentes que envolvem interesses antagônicos, inclusive afrontam o Estado democrático de Direito? Quais referenciais e pressupostos epistêmicos permitem traduzir as potencialidades e os riscos presentes nessas mobilizações? O que distingue as manifestações atuais das formas tradicionais de mobilização capitaneadas por partidos, sindicatos, movimentos sociais clássicos e demais organizações sociais?

As novas formas de mobilização social exigem a elaboração de conceitos que permitam traduzir as potencialidades e os riscos presentes nas suas complexas configurações. Nesse contexto, o conceito de tradução permite, conforme reflexões de Boaventura de Sousa Santos (2008b, p. 95), dar inteligibilidade às diversas formas de expressão, de mobilização e reivindicação social. Ele define tradução como “um procedimento capaz de dar inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a sua identidade”. Essa perspectiva é ainda mais desafiadora na medida em que os processos imediatos estão em curso, além da complexidade de atores envolvidos e da pluralidade de pautas.

Na contemporaneidade, coexistem múltiplas expressões de grupos e movimentos sociais, realidade que complexifica um diagnóstico mais alargado, profundo e capaz de traduzir de modo satisfatório a riqueza e os limites das experiências emergentes. O avanço tecnológico e a democratização desses recursos criam situações novas que são de difícil avaliação sobre seus alcances e implicações subjetivas e sociais. Nesse contexto, as reflexões de Giddens contribuem para pensar as transformações em curso e seus impactos nas subjetividades. A esse respeito, pondera que “a modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta os aspectos mais pessoais de nossa existência” (Giddens, 2002, p. 9).

As tecnologias desempenham, nessas transformações, um papel fundamental na reorganização de tempos e espaços, produzindo mecanismos de desencaixe que, segundo o autor, “deslocam as relações sociais de seus lugares específicos, recombinando-as através de grandes distâncias no tempo e no espaço” (2002, p. 10). Esse dinamismo extremo, diz Giddens, impacta nos ritmos das mudanças sociais que, além de serem mais rápidas, são amplas e afetam profundamente as “práticas sociais e modos de comportamento preexistentes” (2002, p. 22). Mesmo sendo esse diagnóstico pertinente, é preciso ponderar que muitas das pautas presentes nas mobilizações no Brasil de 2013 a 2016 nada têm de novo na medida em que propugnam por retrocessos políticos, entre os quais, a volta da ditadura militar.

O reordenamento de espaços e tempos provocado pelas tecnologias de rede cria condições para a emergência de pautas novas, por vezes próprias de grupos locais, mas que podem ganhar repercussões políticas e sociais globais, como é o caso dos abaixo-assinados. Temas em pauta são, por vezes, locais, mas recebem, via assinatura eletrônica, apoio internacional.

As transformações que vêm ocorrendo em diferentes contextos no século XXI criam condições para a emergência de novos atores sociais, impactando sobre os movimentos sociais clássicos, que passam a conviver com uma infinidade de outras formas de mobilização. A grande diferença das mobilizações atuais é que elas nem sempre possuem pautas bem configuradas, ou seja, são, de um modo geral, diversas e plurais, complexificando qualquer esforço analítico sobre suas potencialidades e limites políticos e educativos. Além disso, tendem a ser mais imediatas e pouco discutidas em espaços públicos. Isso não significa dizer que elas ocorram espontaneamente.

Nesse novo cenário aprofunda-se um paradoxo: as mobilizações tornam-se muito mais ágeis, mas, ao mesmo tempo, mais frágeis em suas elaborações políticas e estratégias de ação. Por isso, apresentam mais riscos na medida em que as pautas não são discutidas publicamente, podendo resultar em intervenções pouco qualificadas, gerando decepções e pessimismo, caso os resultados sejam frustrantes. Nesse sentido, corre-se riscos políticos e educativos. É muito difícil promover processos educativos emancipadores na ausência de espaços efetivamente formativos e republicanos. O espaço deixa de ser educativo para tornar-se um locus privilegiado de mobilização, mas muito pouco de reflexão e de confronto entre posições divergentes. Assim, em curtos intervalos de tempo, milhões de pessoas ocupam as ruas e se dissipam com a mesma velocidade.

Mobilizações sociais na contemporaneidade brasileira

Diagnosticar elementos que caracterizam as mobilizações na contemporaneidade brasileira não é tarefa simples. Elas apresentam configurações complexas e plurais que dificultam uma análise mais objetiva dos alvos de críticas, as reivindicações presentes, as propostas de ação e as estratégias políticas. Por isso são distintas dos movimentos sociais clássicos na medida em que esses possuem pautas objetivas, alvos definidos das críticas e consciência das resistências, bem como das propostas de ação política.

Mesmo que as mobilizações sociais tenham conquistado expressivos espaços na atualidade, os movimentos sociais clássicos ainda continuam tendo protagonismo fundamental. No entanto, vêm sendo abalados por fatores estruturais, como a expansão neoliberal que radicalizou o individualismo, impactando fortemente em organizações que dependem de ações coletivas. Mais do que isso, o neoliberalismo exacerba a meritocracia amparada num discurso que prima pela ascensão social via iniciativa individual, como observam Souza (2015; 2016a; 2017) e Bourdieu (2011; 2018).

As manifestações ocorridas no Brasil de 2013 a 2016 são emblemáticas dessas novas formas de mobilização e estão a exigir novos referenciais de análise. Elas incluem demandas difusas, utilizam recursos tecnológicos em larga escala para mobilizar e organizar comícios e passeatas, projetam líderes que ascendem de forma meteórica, assim como desaparecem na mesma velocidade. Várias organizações até então desconhecidas ou com pouca visibilidade, como o “Movimento Brasil Livre”, “Vem pra Rua”, “Revoltados Online”, “Endireita Brasil”, “Cansei”, conforme Rocha (2018, pp. 50-52), ganharam projeções importantes nas mobilizações, especialmente a partir de 2015, na defesa do impeachment da presidente Dilma Rousseff.

As manifestações mobilizaram sujeitos distintos com interesses e reivindicações distintos. Assim, há uma diversidade de pautas com múltiplas cores, bandeiras e apelos, por vezes contraditórias, como a defesa da democracia participativa e a volta da ditadura militar. No entanto, é preciso observar que não há espontaneísmo nas mobilizações, como observa Jessé Souza na pesquisa que resultou na obra Radiografia do golpe: entenda porque você foi enganado (2016b). Nela o autor fundamenta a tese de que a grande mídia, especialmente a Rede Globo, provocou um radical deslocamento de pauta das primeiras manifestações, ocorridas em junho de 2013, focadas na redução do valor das passagens de transporte urbano e nas questões de mobilidade urbana, para as pautas posteriores, especialmente a questão da corrupção. Para Souza, em menos de duas semanas, o discurso passou da tarifa zero e da melhoria das condições de mobilidade urbana para a questão da corrupção, focado especialmente no Partido dos Trabalhadores, definido como “o partido mais corrupto da história”. Para Souza (2016b, p. 89), a rede Globo desempenhou um papel fundamental nesse deslocamento.

O que se chamou mais tarde ‘jornadas de junho’ começou como manifestação de alguns milhares de jovens contra o aumento das passagens de ônibus em diversas capitais brasileiras, com epicentro em São Paulo. No dia 10 de junho de 2013, aconteceu a primeira referência do Jornal Nacional às manifestações. Como toda referência inicial, ela foi negativa, enfatizando o ‘tumulto’, o prejuízo no trânsito e incômodo à população (grifos do autor).

Para Souza, a mudança de postura da Rede Globo, especialmente do Jornal Nacional, desloca o foco das manifestações de uma visão inicial negativa para uma perspectiva positiva de combate à corrupção: “A cobertura do dia 17 de junho mudou o panorama completamente. O protesto passou a ser definido como pacífico, e a bandeira brasileira se tornou seu símbolo” (2016b, p. 90). As manifestações passam a ser definidas como expressão democrática e não como causadoras de transtornos no trânsito, quebra de vidraças e depredações do patrimônio público, como tinha sido a divulgação feita na semana anterior. Nesse deslocamento, destacam-se símbolos como a bandeira brasileira, o hino nacional, a camisa da seleção, as caras pintadas. A pauta muda rapidamente e o combate à corrupção torna-se o tema aglutinador e mobilizador.

Um dos aspectos que chama atenção nesses processos é a rapidez com que novas pautas ganham evidência, novas lideranças são projetadas e representações sociais são produzidas, muitas delas falsas. Mais do que isso: discursos foram sendo produzidos para despartidarizar os articuladores, bem como os participantes e as reivindicações. A ideia de que as mobilizações eram apartidárias foi sistematicamente reproduzida. Esse fenômeno, segundo Castells (2018), é marcante na contemporaneidade. Sob o pretexto de que os representantes políticos não representam os anseios dos seus eleitores, ocorreram reações em muitos países. Essas manifestações, segundo o autor (2018, pp. 26-28), denunciam a ausência de legitimidade das instituições políticas, aumentando o descrédito da representação política e da própria democracia. “É assim que a crise de legitimidade democrática foi gerando um discurso do medo e uma prática política que propõe voltar ao início” (2018, pp. 37-38). Nesse cenário, surgem candidatos a cargos políticos de representação sem qualquer trajetória política, apresentando-se como antissistêmicos e gerencialistas, atraindo milhões de votos.

Um diagnóstico muito próximo desse feito por Castells é construído por Santos (2016, p. 120) ao identificar um problema que traduz como “patologia da representação”. Esse, por sua vez, transforma-se na patologia da participação: “os cidadãos se convencem de que seu voto não muda as coisas e, por isso, deixam de fazer esforço (por vezes, considerável) de votar; assim, surge o abstencionismo”. A descrença na eficácia do voto e no trabalho do representante para a melhoria da qualidade de vida do representado tende a produzir fenômenos absolutamente inesperados em termos eleitorais e pessoas sem trajetórias políticas efetivas acabam sendo eleitas.

Para Silva (2014), as mobilizações que ocorrem desde 2013 apresentam características muito peculiares em relação às experiências históricas anteriores. Diz que o movimento ‘Diretas já’, em 1984, e o ‘Fora Collor’, em 1992, tinham pontos de convergência bem definidos e as manifestações ocorriam a partir de pautas objetivas. As manifestações atuais, no entanto, diz Silva (2014, p. 10),

têm como característica a proliferação de pautas e de demandas, muitas delas diretamente vinculadas a especificidades locais. Assim, diversas pautas e/ou demandas ganhavam ou perdiam centralidade (e, no limite, desapareciam das manifestações) a depender do momento e do local sob observação.

Ainda segundo Silva (2014, p. 10), as manifestações recentes agregam públicos bem distintos daqueles dos movimentos sociais clássicos. Elas têm como característica o envolvimento de segmentos da população não vinculados aos tradicionais repertórios de contestação, bem como a participação massiva de pessoas não vinculadas às organizações sociais e políticas. A participação dessas pessoas expressa o desejo de serem ouvidas. Conforme dados apresentados por Castells (2018, p. 14), “mais de dois terços dos habitantes do planeta acham que os políticos não os representam, que os partidos (todos) priorizam os próprios interesses, que os parlamentares não são representativos e que os governantes são corruptos, injustos, burocráticos e opressivos”.

No caso brasileiro, as pautas difusas e até contraditórias dão conta de uma pluralidade de subjetividades e distintos interesses em disputa que vão se explicitando no decorrer das mobilizações. A pesquisa realizada por Solano (2019, p. 310), em 16 de agosto de 2015, na manifestação contra o PT na Avenida Paulista, apresenta dados importantes para entender o quadro de descrença política: “96% dos manifestantes declararam que não estavam satisfeitos com o sistema político; 73% afirmaram não confiar nos políticos. O antipartidarismo e a rejeição do político tradicional apareciam com muita força”. Nessa mesma pesquisa, 56% concordavam total ou parcialmente que os problemas seriam resolvidos entregando o poder para alguém fora do jogo político; 64% para um juiz honesto; e 88% para um político honesto.

Como já observado, as mobilizações foram potencializadas pelas novas redes de comunicação que contribuíram para a configuração de pautas e a projeção de lideranças alicerçadas numa pretensa “autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade” (Castells, 2013, p. 134). Conecta, nesse caso, a cultura em rede com uma escolha individual que sustenta um modelo de organização horizontal e associa-se às múltiplas dinâmicas de práticas, de grupos e pertencimentos fluídos. Emergem em um mundo extremamente dinâmico que impacta nas relações sociais e na constituição das subjetividades (Giddens, 2002, p. 17-38).

As novas redes de comunicação ganham destaque não apenas pela inovação tecnológica, mas também pela forma como foram usadas na mobilização de pessoas que, historicamente, não participam de mobilizações político-sociais de natureza contestatória (sindicatos, partidos, organizações sociais). É fundamental entender o sentimento de pertencimento a que as redes sociais e as mobilizações possibilitam. Para Castells (2013, p. 129), as mobilizações ganham poder simbólico na medida em que aparentam proteção em relação aos adversários e aos perigos de manipulação e burocratização. “As pessoas só podem desafiar a dominação conectando-se entre si, compartilhando sua indignação, sentindo o companheirismo e construindo projetos alternativos para si próprios e para a sociedade como um todo” (2013, p. 134). As mobilizações atuais aparentam ser mais leves, sutis e com pertencimentos mais fluídos. Como observa Zîzêk (2013, p. 103), “o que a maioria dos manifestantes compartilha é um sentimento fluido de desconforto e descontentamento que sustenta e une demandas particulares”.

As mobilizações em diferentes países precisam ser analisadas numa perspectiva macrossocial de crise da democracia representativa que incide diretamente na política e estende-se para as demais instituições sociais. Aqui parece residir o problema desencadeador de uma série de outras questões que são, em geral, difíceis de serem identificadas objetivamente. É o que Castells (2018, p. 11) define como crise do modelo de democracia liberal, sustentada no respeito aos direitos básicos, incluindo os direitos políticos. Está em curso um rompimento desse consenso que, até então, vinha garantindo a mediação das relações sociais através de um sistema representativo e de instituições democráticas.

O distanciamento dos representantes em relação aos representados e dos governantes em relação aos governados é resultante de um conjunto de fatores, agravados pela globalização econômica desigual, que produziu uma democracia de baixa intensidade, conforme Santos (2016). O poder de lobbys e de grandes corporações sobre representantes políticos e gestores em todas as esferas não pode ser menosprezado. Os anseios dos eleitores são frustrados na medida em que os eleitos não cumprem as promessas feitas nas campanhas eleitorais. Uma boa análise dessa promiscuidade entre política e poder econômico pode ser encontrada na obra Deus tenha misericórdia dessa nação: biografia não autorizada de Eduardo Cunha (Jupiana & Otávio, 2019).

Além desses elementos, Castells destaca as contradições crescentes produzidas pelo modelo de globalização em curso. “Enquanto as elites triunfantes da globalização se proclamam cidadãos do mundo, amplos setores socais se entrincheiram nos espaços culturais nos quais se reconhecem e nos quais seu valor depende de sua comunidade, e não de sua conta bancária” (Castells, 2018, pp. 19-20). A globalização hegemônica tende a produzir um enfraquecimento do Estado-nação e um esvaziamento das identidades nacionais. Além disso, as crises econômicas ocorridas desde o final do século XX foram enfrentadas, em grande medida, com recursos financeiros advindos de impostos, especialmente para salvar o sistema financeiro, realidade que aprofundou o desemprego e reduziu recursos destinados ao crédito. Uma boa análise dessas questões é feita por Dowbor (2017).

Nesse contexto mais amplo de contradições, situa-se a cidade enquanto expressão micro de processos globais e condensa as contradições da estrutura capitalista, agravadas, atualmente, pela hegemonia neoliberal. O espaço urbano submete-se à financeirização do capital, tornando-se palco de conflitos e disputas entre empresas. Ao analisar os preparativos para a Copa do Mundo de 2014, Vainer (2013, p. 39) observa que “os monopólios para a concessão de serviços em áreas da cidade ferem os direitos do consumidor. As remoções forçadas de 200 a 250 mil pessoas nas cidades anfitriãs da Copa violam o direito à moradia e à cidade”. Nesse mesmo contexto, observa Iasi (2013, p. 41), “a cidade é a expressão das relações sociais de produção capitalista, sua materialização política e espacial que está na base da produção e reprodução do capital”.

Conforme Harvey (2014), na cidade reproduzem-se contradições de toda natureza: riqueza extremamente concentrada com a miséria; altos salários com o subemprego ou salários miseráveis; desempregados que dependem de transporte coletivo muitas vezes de péssima qualidade; carros de luxo convivendo com outros totalmente sucateados; alimento jogado no lixo ao mesmo tempo em que muitos passam fome. De modo geral, as condições de vida urbana vêm sendo precarizadas para uma grande parcela da população. A insegurança e a violência estão entre os principais problemas e atingem, principalmente, os mais indefesos. A taxa de homicídios cresceu 259% no Brasil entre 1980 e 2010, tendo como principal vítima o jovem negro e pobre, morador da periferia (Maricato, 2014, p. 21). O problema da mobilidade urbana é, sem dúvida, um dos grandes gargalos, sendo o desencadeador das manifestações de 2013. As consequências da ausência de mobilidade urbana são conhecidas: um enorme sacrifício para chegar ao trabalho e outro tanto para o retorno. Um terço da população da cidade de São Paulo gasta mais de três horas com deslocamento de casa até o trabalho, conforme dados de 2007.

As primeiras manifestações que ocorreram em 2013, no Brasil, pautam questões relativas às condições de vida urbana. Daí que as manifestações ocorridas em junho de 2013 sejam reveladoras da precarização das condições de vida na cidade. “Aqueles que acompanham ou estão engajados nas lutas urbanas sabem que, há muito tempo, multiplicavam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protestos, insatisfação e resistência” (Vainer, 2013, p. 36). O colorido das ruas que surpreendeu muitos, além de explicitar as contradições existentes, expressou o desejo daqueles que não querem apenas acessar o que a cidade oferece, mas também ter o direito de mudá-la. Essa questão é também analisada por Harvey (2013, p. 34):

O direito inalienável à cidade repousa sobre a capacidade de forçar a abertura de modo que o caldeirão da vida urbana possa se tornar o lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da vida urbana podem ser pensadas e da qual novas e menos danosas concepções de direitos possam ser construídas. O direito à cidade não é um presente. Ele tem de ser tomado pelo movimento político.

As manifestações de 2013 reivindicavam, inicialmente, tarifa zero no transporte público, mas ganham novas configurações com pautas de caráter conservador, bem como a participação de outros atores sociais. Temas como casamento gay, maioridade penal e imigrantes ganham destaque. Para Secco (2013, p. 74, grifo do autor), a direita participou de diferentes maneiras agindo de modo dúbio: “grupos neonazistas serviam para expulsar uma esquerda desprevenida, enquanto inocentes ‘cidadãos de bem’ de verde-amarelo aplaudiam”. Para Sakamoto (2013, p. 97), não é de estranhar que “nem todos os que foram às ruas eram exatamente progressistas”.

Grupos conservadores se organizaram na internet para pegar carona nos atos. Lá chegando, colocaram as mangas de fora com suas pautas paralelas. Na convocação do sétimo ato (no dia 20), após a revogação da tarifa, isso ficou bem evidente. Estavam aos milhares na Paulista e arredores, sendo uma ruidosa, chata e violenta minoria. Com um discurso superficial, que cola fácil, fez adeptos instantâneos. Parte usava verde-amarelo, lembrando os divertidos e emocionantes dias com os amigos em que se podem ver os jogos da Copa do Mundo.

O alvo de crítica dos grupos reacionários focava-se na representação política, mas também nas instituições partidárias, sindicais, no Parlamento, no Executivo e, em parte, no Judiciário. Segundo Sakamoto (2013, p. 98), as palavras de ordem reforçavam a inutilidade dos partidos políticos. Para o autor, muitos jovens que tomaram parte ativa nas manifestações assumiram um discurso compatível com sua indignação. O problema é que esses discursos tinham alvos e intenções que não ficaram explícitos no decorrer das manifestações e praticamente não foram pautados pela grande mídia conservadora. Ao contrário, a representação social de que as mobilizações eram apartidárias ganhou centralidade.

Cabe, ainda, destacar que nem todos os manifestantes tomaram parte das mobilizações desde o início, participando somente quando houve a convocação da greve geral por parte das centrais sindicais. Ao lado de movimentos sociais organizados e grupos da periferia, o dia 11 de julho de 2013 foi marcado por mobilizações de maior abrangência geográfica, porém, com menor número de participantes em termos absolutos. O confronto ideológico foi deflagrado e passou a ter uma forte conotação político-partidária. A polarização político-ideológica entre esquerda e direita deslocou o debate de questões importantes como as de gênero e de identidade étnico-racial. Grupos conservadores e reacionários de ultradireita incrementaram discursos raivosos, agressivos e homofóbicos, marginalizando, progressivamente, as pautas presentes nas primeiras mobilizações.

A crise de representatividade política é, certamente, uma das motivações que ajuda explicar as manifestações. A sistemática desqualificação da política e de políticos tem uma contribuição importante da grande mídia conservadora que continua pautando esse tema (Souza, 2016b). As redes sociais foram intensamente usadas pelos manifestantes para reproduzir e disseminar discursos produzidos pela mídia televisiva, impressa ou digital, muitas caracterizadas como fake news. Analistas como Secco (2013) e Lima (2013) dizem que a utilização das mídias sociais por parte dos jovens para a articulação dos protestos não garantiu visibilidade e nem a produção das pautas. Essas continuaram sendo produzidas pelos monopólios de comunicação (Secco, 2013, pp. 72-73). O que a conexão não garante, segundo Lima (2013, p. 90), é a visibilidade pública no espaço formador da opinião pública. Se as redes sociais dão nova dinâmica às mobilizações, “a mídia desempenha papel relevante na formação da opinião e na construção de visão de mundo das pessoas” (Cardoso & Gurgel, 2019, p. 82).

As questões emergentes que desencadearam as mobilizações desde 2013 poderiam ser ampliadas. As contradições e os paradoxos dos governos Lula e Dilma para compor uma base política no Congresso Nacional, os limites das políticas sociais, o papel das grandes corporações econômicas, entre outras questões, precisam ser problematizadas. Nesse sentido, a obra de Mendes: “Vertigens de junho: os levantes de 2013 e a insistência de uma nova percepção” (2018) coloca em pauta várias questões que ampliam o debate sobre as motivações mobilizadoras. Algumas das teses discutidas pelo autor podem ser questionadas, mas é uma obra importante no contexto do tema em questão.

Pressupostos epistêmicos: desafios de tradução

No texto “Problemas no paraíso”, Zîzêk (2013, pp. 101-108) faz uma interessante análise das manifestações ocorridas nos anos últimos anos em vários países. No decorrer da discussão, afirma que “a luta pela interpretação dos protestos não é apenas epistemológica” (2013, p. 103). Essa posição é correta na medida em que há um reconhecimento da impossibilidade de reduzir as mobilizações sociais a um problema epistêmico. No entanto, a posição de Zîzêk reforça a ideia que há implicações epistêmicas na análise das mobilizações. Tentaremos argumentar em defesa da tese de que há, de fato, um desafio epistêmico que se desdobra numa dupla perspectiva: a) enquanto entendimento da complexidade de formas, pautas e propostas envolvidas nas manifestações, portanto, não existem explicações simplistas e lineares; b) enquanto análise crítica sobre as potencialidades e os riscos políticos e educativos presentes nessas novas formas de participação.

A reflexão epistêmica expressa sempre um esforço para estabelecer critérios e parâmetros que ajudem na compreensão de determinadas realidades e validem certos conhecimentos. Santos e Meneses (2010, p. 15) traduzem essa problemática afirmando que a epistemologia diz respeito a toda “noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido”. Com base nessa definição, concluem que, em uma perspectiva sociológica, não há “conhecimentos sem práticas e atores sociais”. Há, nessa compreensão, um problema que incide sobre as relações sociais que, por sua vez, remetem às formas de organização da sociedade e do poder.

A complexidade das mobilizações reside, como já observado, na pluralidade de sujeitos, pautas, objetivos, estratégias, recursos tecnológicos, táticas mobilizadoras etc. As explicações clássicas sobre os movimentos sociais são insuficientes para dar conta dos inúmeros elementos emergentes. Isso não significa dizer que as tradições clássicas, especialmente no âmbito da sociologia, não tenham mais sentido. Ao contrário, elas precisam ser reinterpretadas à luz dos novos fenômenos. O desafio epistêmico, nesse caso, está em como dar conta das realidades emergentes, fato que exige esforço e sensibilidade para apreender o que está emergindo, sem negar as influências das estruturas sociais e econômicas. Como observa Raymond Williams (2011), o emergente precisa ser compreendido em suas relações com o dominante e o residual. Tanto o dominante quanto o residual têm raízes no passado, sendo reproduzidos no tempo presente.

De certo modo, os processos vivenciados no passado já foram investigados, analisados e teorizados. A complexidade de um fenômeno emergente está no fato de que ele ainda não está suficientemente concluído e, por isso, é difícil de ser analisado. Nesse contexto, o emergente se expressa de forma caleidoscópica e, por estar em movimento, apresenta-se gelatinoso. Esse é o caso das recentes mobilizações sociais, não apenas no Brasil. Daí a necessidade de um duplo cuidado: avançar na construção qualitativa de diagnósticos sobre o que está ocorrendo, mas, também, avaliar criticamente as potencialidades e os riscos. Como são processos não concluídos, as reflexões também precisam ter um caráter de provisoriedade.

Toda manifestação emergente carrega elementos do passado que, conforme Benjamin (1994, p. 224), não se apresenta no tempo presente como imagem fixa, mas como um relampejar, ou seja, é breve e exige do investigador uma postura dinâmica na medida em que toda a experiência contém “algo misterioso” que somente é reconhecido através de um esforço dialético-hermenêutico. As manifestações de 2013 não podem ser compreendidas em si mesmas. Elas refletem contradições socioculturais, econômicas e políticas que transversalizam a formação e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Como observa Walter Benjamin (1994, pp. 22-232), a história e suas representações resultam de correlações de forças e disputas entre projetos, intenções e relações de poder.

A perspectiva dialética concebe a realidade como um todo estruturado e contraditório, postura que é muito diferente de uma visão totalizadora. As inter-relações entre as múltiplas dimensões que se evidenciam em um determinado fenômeno não são apreendidas de imediato. Ao contrário, resultam de processos que têm como mediação o trabalho investigativo. No pensamento dialético, diz Kosik (1985, p. 42), “o real é entendido e representado como um todo que não é apenas um conjunto de relações, fatos e processos, mas também sua criação, estrutura e gênese. Ao todo dialético pertence a criação do todo e a criação da unidade, a unidade das contradições e a sua gênese”.

As reflexões de Kosik instigam a pensar nas manifestações desde 2013 como fenômeno complexo que não é evidente por si mesmo e nem se dá a ver de modo imediato em suas estruturas mais profundas. Por isso, conclui o autor, “o pensamento dialético parte do pressuposto de que o conhecimento humano se processa num movimento em espiral, do qual cada início é abstrato e relativo” (1985, p. 41). As mobilizações têm sido apresentadas pela grande mídia como um todo estruturado e coeso. No entanto, ao adentrarmos as pautas, propostas, valores e projetos políticos, percebe-se um quadro extremamente complexo, plural e contraditório.

A compreensão das mobilizações com essas características traz duas implicações epistêmicas: a) a necessidade de ampliar o que é reconhecido como conhecimento válido; b) o desafio de entender o emergente em um contexto de longa duração, ou seja, a problemas estruturais que transversalizam a formação e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Os excluídos da história, como observa Michele Perrot (2017), tomam parte nas mobilizações e pautam questões como discriminação, racismo, feminicídio, exclusão socioeconômica, desigualdade de gênero, políticas sociais e de cotas, entre outras.

Ao mesmo tempo, grupos e classes sociais que não pautam essas questões ocuparam os mesmos espaços públicos e foram, progressivamente, assumindo uma posição hegemônica nas mobilizações. Como dar visibilidade aos anseios dos excluídos que estão presente nas manifestações? Aqui se situa um dos principais desafios: como dar visibilidade às pautas contraditórias que foram apresentadas ao público como sendo única? Para tanto, é necessário um esforço hermenêutico que permita reconhecer as experiências e os sujeitos que foram historicamente silenciados, distinguindo-os dos projetos e interesses das elites conservadoras (Souza, 2017), bem como daqueles da classe média (Souza, 2018).

Dois textos atuais que analisam a ascensão de grupos conservadores e reacionários no Brasil e levaram Bolsonaro à presidência ajudam compreender essas questões: o de Ângela Castro Gomes “A política brasileira em tempos de cólera” (2019, pp. 175-194); e o de Heloisa Murgel Starling “O passado que não passou” (2019, pp. 337-354). Não há como dar visibilidade às experiências passadas sem um enfrentamento dos discursos lineares, dogmáticos, fundamentalistas, abstratos e universalistas. Nesse contexto, pode-se referenciar o texto de Santos “A queda do Angelus novus: o fim da equação entre raízes e opções” (2008a, pp. 51-92), no qual faz uma crítica à razão dominante por sua incapacidade de reconhecer a pluralidade de experiências construídas por múltiplos sujeitos.

Santos faz uma discussão interessante sobre as diversas formas de expressão da razão. No texto: “Uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências” (2008b, pp. 93-135), destaca quatro formas de expressão da razão dominante: a razão impotente (que não se exercita porque se considera incapaz de qualquer coisa frente às determinações externas); a razão arrogante (que não sente a necessidade de pensar-se porque se imagina incondicionalmente livre); a razão metonímica (que reivindica ser a única forma de racionalidade e não se ocupa em investigar outras possibilidades) e a razão proléptica (que não se ocupa em pensar o futuro, pois julga que já sabe tudo em decorrência da evolução linear e natural).

Em contraposição a essas quatro formas de exclusão ou apatia, Santos propõe uma racionalidade cosmopolita que tem como função “expandir o presente e contrair o futuro” (2008b, p. 95). Que argumento sustenta essa posição? Ele afirma que, somente dessa forma, “é possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje” (2008b, p. 95). Para expandir o presente, Santos propõe a sociologia das ausências e, para contrair o futuro, a sociologia das emergências. O autor entende que existem inúmeras experiências que são desperdiçadas pela ação das classes dominantes, as limitações epistêmicas e as dificuldades de tradução, conceito que tem um papel relevante no âmbito da sua epistemologia. “Em vez de uma teoria geral, proponho o trabalho de tradução, um procedimento capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a sua identidade” (2008b, 95).

O trabalho de tradução tem de ampliar, segundo Santos (2008b, pp. 123-129), os horizontes epistêmicos visando a compreender tanto os saberes quanto as práticas e seus agentes. A tradução entre saberes assume uma forma de hermenêutica diatópica que “consiste no trabalho de interpretação entre duas ou mais culturas com vista a identificar preocupações isomórficas entre elas e as diferentes respostas que fornecem para elas” (2008b, p. 124). A tradução incide, também, sobre diferentes perspectivas de produção da sobrevivência e do desenvolvimento, mas também entre “concepções de sabedoria e diferentes visões de mundo” (2008b, p. 125). A hermenêutica diatópica, segundo Santos (2008b, p. 126), “parte da ideia de que todas as culturas são incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo confronto com outras culturas”.

Boa parte das mobilizações no Brasil, de 2013 a 2016, vai na direção oposta. Proliferam posturas fundamentalistas e dogmáticas que negam a pluralidade, a historicidade das práticas sociais, as múltiplas temporalidades presentes nos fenômenos, reforçam preconceitos, desigualdades e exclusões. Há uma tensão entre a afirmação de experiências e a negação das mesmas, principalmente quando as pautas tratam da diversidade de gênero, de desigualdades socioeconômicas, de justiça social e direitos humanos. O avanço de posturas autoritárias, xenofóbicas, misóginas e homofóbicas expressa uma profunda crise nos pressupostos democráticos. Pesquisas como as de Casara (2017) e de Levitsky e Ziblatt (2018) ajudam a compreender como, em nome da democracia, destroem-se pressupostos de um Estado democrático de Direito e a própria democracia.

Uma das dificuldades para compreender o alcance e os limites das mobilizações na contemporaneidade brasileira é a confluência de interesses abissalmente conflitantes que se mesclam. O conceito de abissal, segundo Santos, ajuda a compreender como as sociedades estabelecem linhas demarcatórias entre experiências reconhecidas como válidas e as que são excluídas como não válidas, ou seja, há uma “impossibilidade da copresença dos dois lados da linha” (Santos, 2010, p. 32).

Um dos desafios epistêmicos emergentes no contexto da análise em questão é como dar inteligibilidade (traduzir) as mobilizações que aglutinaram múltiplos sujeitos, diferentes pautas, mas que, progressivamente, ficaram limitadas ao problema da corrupção. Muitas das reivindicações foram simplesmente silenciadas, como as desigualdades sociais, a precarização dos direitos trabalhistas, a exclusão socioeconômica, as precárias condições de vida e de mobilização urbana, especialmente o custo do transporte, as questões de gênero, entre outras. A corrupção compreendida de um modo extremamente seletivo escamoteou problemas estruturais que reproduzem as desigualdades e exclusões, como é o caso da concentração de renda e riqueza e as discriminações de classe e de gênero. Nesse contexto, é imprescindível romper com a razão arrogante que toma conta de múltiplos discursos excludentes. Posturas totalizantes são inerentes à razão arrogante que, segundo Santos (2008b, p. 95), “não sente a necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar a sua própria liberdade”.

Considerações finais

No artigo, houve um esforço para evidenciar que o tema das mobilizações sociais na contemporaneidade, particularmente no Brasil de 2013 a 2016, é complexo e exige reflexões críticas para além daquilo que a mídia conversadora tratou como um fenômeno homogêneo, democrático e de combate à corrupção. Independente da relevância histórica, que é indiscutível, as manifestações congregaram múltiplas pautas, algumas das quais reacionárias em relação às questões de gênero, de intolerância para com a diversidade política, especialmente contra grupos progressistas, preconceituosa em relação a certas políticas sociais e seus beneficiários. Evidentemente que muitas das pautas em questão são expressão de desejos profundos de transformação política, de participação democrática, de denúncia contra as desigualdades socioeconômicas e das precárias condições de vida urbana. Diante dessa complexidade, é fundamental atentar para não cair em explicações simplistas, dogmáticas, lineares e deterministas.

Com base nas breves reflexões realizadas, fica evidente que as mobilizações sociais emergentes no Brasil desde 2013 desafiam a construção de referenciais que permitam apreender as contradições e coesões intrínsecas ao fenômeno, numa perspectiva de inter-relações múltiplas. Os desdobramentos das mobilizações com a pluralidade de pautas, interesses políticos e ideológicos em disputa, os valores morais e preconceitos, bem como a defesa de mudanças estruturais e de justiça social são questões que precisam ser abordadas criticamente.

Diferentemente das representações produzidas pela grande mídia conservadora sobre a existência de um movimento homogêneo, particularmente nas manifestações de junho de 2013, há uma heterogeneidade de sentimentos, motivações e interesses político-partidários. O tema que ganhou uma posição hegemônica foi o da luta anticorrupção. Sem desconsiderar a importância dessa pauta, é preciso prudência, visto que foram marginalizadas, progressivamente, outras questões relevantes, como a desigualdade socioeconômica, a educação, a discriminação de gênero e de classe social. Um trabalho investigativo crítico tem de evidenciar como muitas das representações que se tornaram hegemônicas são preconceituosas, incoerentes e parciais.

Um dos elementos que complexifica uma análise sobre as mobilizações é certamente a ausência de discussões efetivamente republicanas. Sem a qualificação de discussões públicas fica difícil pensar efetivamente em mudanças qualitativas. O fato é que em um curto espaço de tempo entre o início das manifestações em 2013 e o contexto que vivemos em 2020, muitas das questões simplesmente desapareceram, embora os problemas concretos, não. É o caso da corrupção. Para muitos dos participantes das mobilizações, as condições de vida certamente não mudaram. Nesse sentido, justifica-se a preocupação com os riscos políticos e educativos inerentes às manifestações que, de um lado, expressaram desejo de participação direta, o que é profundamente legítimo em uma democracia, mas, de outro, congregaram atores com intenções e projetos políticos totalmente antagônicos, muitos deles propondo a destituição de pressupostos e instituições democráticas e clamando pela volta da ditadura.

Mais que isso, impulsos xenofóbicos e autoritários em defesa da ditadura e da morte aos militantes LGBT, entre outras pautas, afrontam os direitos mais elementares da humanidade e da própria convivência democrática. Daí a necessidade de traduzir as potencialidades presentes, mas também, os riscos para a própria democracia.

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Recebido: 22 de Fevereiro de 2020; Aceito: 31 de Julho de 2020

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