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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 21-Set-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.30958 

Artigos

Do tornar-se professor à criação nos processos de formação em saúde: um estudo biografemático

Del tornarse profesor hasta la creación en los procesos de formación en salud: un estudio biografemático

From becoming a professor to creating in training processes in healthcare: a biographemic study

Du devenir professeur à la création dans des processus de formacion en santé: une étude biographématique

Emília Carvalho Leitão Biato1 
http://orcid.org/0000-0002-4358-4558

Luiza Tessmann2 
http://orcid.org/0000-0002-7157-164X

Claudia Maffini Griboski3 
http://orcid.org/0000-0002-5203-7927

Dayde Lane Mendonça da Silva4 
http://orcid.org/0000-0001-5653-7411

1Doutora em educação, professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB), docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação/Modalidade Profissional e do Departamento de Odontologia. Participa do Núcleo de Pesquisa Escrileituras da Diferença (UFRGS) e do Grupo de Estudos sobre Formação e Integração ensino-serviço-comunidade (GEFIESCO/UnB). Atua a partir dos referenciais da filosofia da diferença, com os temas formação profissional e educação em saúde.

2Estudante de graduação do curso de Farmácia - Universidade de Brasília (UnB) - Faculdade de Ciências da Saúde, Departamento de Farmácia – Brasília. Participa do Grupo de Estudos sobre Formação e Integração ensino-serviço-comunidade (GEFIESCO/UnB).

3Doutora em Educação e professora do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-graduação em Educação/Modalidade Profissional. É integrante dos Grupos de Pesquisa: GEPAES; GEFIESCO e REDE UNIVERSITAS/DF.

4Doutora em Ciências Biológicas, gerente de Ensino e Pesquisa do Hospital Universitário de Brasília (HUB-UnB/Ebserh) e professora adjunta do Departamento de Farmácia da Faculdade de Ciências da Saúde (FS/UnB). Orientadora no Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva. Integra o GEFIESCO e atua principalmente nos seguintes temas: Assistência Farmacêutica, Farmácia Clínica e Formação em Saúde.


Resumo

Este estudo toma processos de formação em saúde com o objetivo de analisar características da docência e seus efeitos nos espaços educacionais. Foram utilizadas conversas com professores dos cursos de educação superior da área. Lançou-se mão de um método de pesquisa denominado Biografema, uma estratégia que valoriza dobras da vida com a obra, em movimento de tornar-se o que se é. Os dados produzidos apontam para as relações da docência com a pesquisa, desta com aspectos do vivido e com transformações desejadas. Destaca-se a possibilidade de fortalecer discussões a partir de uma didática baseada na filosofia da diferença, como caminho para que professores e alunos assumam estilos singulares.

Palavras-chave Biografema; Educação em saúde; Educação superior; Estilos de docência

Resumen

Este estudio evalua criticamente procesos de formación en salud. Tiene como objetivo levantar y analisar características de la enseñanza y sus efectos en los espacios del aula. Se han utilizado entrevistas con professores de los cursos de este campo. Se ha elegido un método de investigación llamado Biografema, una estrategia que valoriza la vida grafada, como un pliegue de vida y obra, en movimiento hasta uno volverse lo que es. Los dados producidos apuntan a las relaciones entre enseñanza y investigación y entre esta última y los aspectos de lo vivido y las transformaciones deseadas. Se resalta la posibilidad de fortalecer les discusiones a partir de una uma didática basada en la filosofía de la diferencia, como un camino para que profesores y estudiantes de salud asuman estilos singulares.

Palabras clave Biografema; Educación en salud; Educación superior; Estilos de enseñanza

Abstract

This study critically examines training processes in healthcare. Its goal is to identify and analyze characteristics of teaching practices and their effects on classrooms. Several interviews with professors from the field were taken into consideration. We have employed a research method called Biographeme, a strategy that values life in its written form, as a folding of life and work in a movement towards becoming what one is. The data points to the relations between teaching and research, as well as between research and aspects of what one has experienced and the transformations that one wishes. We highlight the possibility of reinforcing the debate from the perspective of a didactic based upon a philosophy of difference, as a path through which professors and students may assume singular styles.

Keywords Biographeme; Training in health care; Higher education; Teaching styles

Résumé

Cette étude porte un regard critique sur les processus de formation en santé. Son but est de repérer et analyser les caractéristiques de l’enseignement et leurs effets sur les espaces de la salle de classe. Des entretiens avec des professeurs dans le domaine de la santé ont été employés à cette fin. On adopte une méthode de recherche nommée Biographème, une stratégie qui met en valeur la vie par écrit, comme un plissement de vie et ouvre, en mouvement vers le devenir de ce que l’on est. Les données pointent vers les relations entre l’enseignement et la recherche et entre celle-ci et les aspects du vécu et des transformations souhaitées. On souligne la possibilité de renforcer les discussions à partir d’une didactique basée sur une philosophie de la différence, en tant que voie pour que les professeurs et les étudiants en santé embrassent des styles singuliers.

Mots clés Biographème; Formation en santé; Enseignement supérieur; Styles d’enseignement

Introdução

A retomada crítica das bases teórico-práticas que conduzem os processos de ensinar e aprender em saúde parece relevante no trabalho de formar os profissionais da área, especialmente no que se tem repetido automaticamente, sem reflexão acerca do que é efetivo ou não.

Os cursos da área de saúde articulam elementos bastante técnicos, que são necessários ao exercício profissional. O trabalho na área envolve desde instâncias de gestão e de educação na saúde até a relação direta com a população, para oferecer-lhes a atenção devida. Os professores lidam com a responsabilidade de formar profissionais capazes de atuar na atenção à saúde e na educação permanente em saúde. Portanto, é notável a importância de que estes professores desenvolvam capacidades das áreas de saúde e de Educação.

Nesse sentido, tem-se interesse em reconhecer os modos como essa integração de áreas ocorre no exercício de ensinar e aprender, considerando a existência de espaços de criação, crítica e inovação, provocação ao pensamento e à investigação — articulação entre docência e pesquisa —, entre outros elementos relevantes no contexto da formação e da atuação do profissional.

Circula, na literatura recente, o debate acerca da necessidade da profissionalização do professor, uma vez que as práticas de docência universitária têm instigado matérias de pensamento, até mesmo em movimento de autocrítica por parte dos próprios profissionais das universidades (Corrêa & Ribeiro, 2013). Nesse sentido, Pimenta e Anastasiou (2014, p. 77) apresentam “o caráter dinâmico da profissão docente, como prática social”, que se insere em constantes retomadas dos sentidos da profissão e em revisão das tradições, permitindo inovações. Assim, o professor passa por um percurso de formação profissional, e também toma, em todo tempo, a docência como fonte de seu tornar-se docente. Os acontecimentos de sala de aula, a didática, os efeitos dos encontros esculpem seu constante vir a ser (Nietzsche, 1888/1995).

Parece relevante valorizar a contação dos percursos formativos, o senso comum e as experiências escolares, como elementos da dieta que conduz ao tornar-se professor, que é um processo — sempre inacabado — de constituição de si (Nietzsche, 1888/1995). Os dias mais alegres e as noites mais escuras, “as azeitonas e as tormentas são parte de nós mesmos: também a bolsa e o jornal” (Nietzsche, 1880) servem de substrato na alimentação dos instintos que formam o nosso corpo. Assim, conjuntos de instintos (forças) tomam a palavra, assumindo uma determinada configuração no processo de individuação. No entanto, essa configuração já se prepara para ser refeita, a depender de novas vivências, que servirão de alimento a outros instintos.

Ainda que não escolhamos o que vamos vivenciar, lançamos invenções em nossas situações de vida, nutrindo instintos e estabelecendo o contínuo vir a ser, como estilos de individuação, ao que Viesenteiner (2009, p. 118) afirma: “cada vivência constrói a roupagem própria de cada pessoa, absolutamente única e individual”. São singulares e percorrem o corpo, constituindo estilos únicos.

Considerando esses processos na vida e na obra do professor, questiona-se: há possibilidades de desenvolver o ensino em saúde, de forma criativa e inovadora? Há entraves a gestos de superação de modelos educacionais tradicionais? É possível afirmar o caráter artístico, expansivo e inaugural do fazer docente, como uma escritura singular — como quem escreve em meio a textos institucionais, os ocupa e transforma? Que elementos vivenciais constituíram e continuam oferecendo substrato aos contínuos processos de tornar-se docente na área da saúde?

À pesquisa interessa, justamente, tomar esses processos, como ocorrem e seus efeitos em professores da educação superior em saúde. Faz um exercício de desnaturalização das práticas docentes, tomando, como referência, o que é vivido pelos seus atores — suas experiências e impressões acerca do preparo e das práticas docentes, de suas matérias-vida: como se dão a ver e fazer no espaço e tempo da aprendizagem, do curso e da universidade.

Portanto, este estudo acessa os estilos de docência, com o objetivo de levantar e analisar as características dos professores em relação aos movimentos constituidores de sua arte de ensinar. São elementos vividos — desde a escolha profissional, passando tanto pelos percursos formais e quanto pelos acontecimentos diários — que alimentam e compõem suas formas de fazer docente e seus processos de ensinar e aprender nos cursos da área da saúde de uma instituição pública de educação superior.

Trata-se de um recorte de uma pesquisa mais ampla, que se propõe a observar a efetivação do currículo e da didática em processos de ensino e aprendizagem, a partir do que está proposto nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), nos projetos pedagógicos dos cursos, e do que podemos encontrar nos discursos de professores e estudantes da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília.

Este recorte observa conversas com professores, pela via do método biografemático, que se põe a destacar elementos do vivido que ocupam uma quina, como dobra — em associação com sua obra. São rastros, pistas, com potência de suscitar, da arte de estilo, reflexões sobre a docência em saúde.

Fundamentação teórica

Do professor

Masetto (2003) aponta para a necessidade de formação específica para a docência na educação superior, bem como para situações em que o foco do desenvolvimento do professor dá-se na pesquisa na sua área de formação, fazendo com que as reflexões acerca dos processos de ensino-aprendizagem fiquem em segundo plano.

Corrêa & Ribeiro (2013) afirmam que muitos professores do ensino superior não têm dimensão da importância e necessidade dessa preparação para o ensino. Mostram-se convictos de que o conhecimento específico adquirido ao longo da carreira, em conjunto com o exercício de atividade profissional, possa ser o bastante para garantir boa execução da tarefa de professor. No entanto, dominar o conhecimento a ser ensinado “supõe mais do que uma apropriação enciclopédica” (Corrêa & Ribeiro, 2013, p. 80), uma vez que a educação se configura como um conjunto de experiências associadas — professores e alunos — que extrapola muito os sistemas prontos de interpretação de conteúdos (Corazza, 2017).

No sentido de evitar que os professores sejam apenas transmissores de conteúdos, a serem passivamente recebidos pelos estudantes, torna-se relevante assumir a dinâmica do tornar-se professor, processo que inclui saberes pedagógicos associados aos saberes da área e aos da experiência docente.

Libâneo (2013) entende a Pedagogia como ciência da Educação, composta por um conjunto de estudos que permite, aos professores, o esclarecimento do fenômeno educativo e sua compreensão global. Nesse contexto, a Didática investiga condições, modos de realização da instrução e do ensino, assim como seus fundamentos.

Na maioria dos casos, os professores exercitam saberes e, muitas vezes, têm êxito no que fazem, mas não são produtores de conhecimento sobre a profissão (Ribeiro & Cunha, 2010). Com essa falta de preparo para o processo de ensino, os professores não incorporam elementos pedagógicos fundamentais à aprendizagem, como planejamento, metodologia e estratégias didáticas, além do contato entre professor e aluno (Corrêa & Ribeiro, 2013).

No entanto, mesmo em nome da renovação de sistemas educacionais vigentes, os processos preparatórios para a atuação como professor podem, eles mesmos, estabelecer “modelizações confinantes” (Corazza, 2017, p. 206), repletos de passos e normas de como deve ser o professor e de julgamentos acerca do que se fixam como bons modos de ensinar e aprender. Acabam perpetuando, de outro modo, uma educação pronta e dogmática, com pouquíssimas frestas à produção autoral da aula.

O desafio parece estar, justamente, em garantir que o professor avance em relação às capacidades reconhecidamente necessárias ao fazer docente, sem, no entanto, encerrá-lo em modelos dados. Nesse aspecto, Corazza (2013) discute a autopoiese como invenção de si mesmo — do professor —, em superação de palavras-feitas, naturalizações e clichês que possam habitar o universo formativo no ensino superior em saúde.

Da arte de estilo

Pegamos emprestado de Nietzsche (1888/1995), a expressão arte de estilo. Trata-se de tomar-se em mãos, ter a sabedoria de não se quer diferente, de assumir sua potência artistadora: “há em mim muitas possibilidades de estilo — a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs” (Nietzsche, 1888/1995, p. 99).

Seria um movimento redutor olharmos para um professor de forma generalizada, como se fosse possível moldar, em seu corpo, o ideal do formador de profissionais de saúde. Seria ingenuidade olhar para a aula como se bastasse entrar na sala e colocar nela o que se deseja. O professor traz o que estudou, as suas experiências de profissional da saúde, de acadêmico e de docente, o projeto pedagógico do curso, as normas curriculares, o plano de ensino, os livros, os artigos, a aula do modo como preparou. Por tudo isso e por tantos outros fatores, o professor encontra, cada uma de suas aulas, cheia de dados, verdades, costumes, forças: uma aula cheia (Corazza, 2012).

O professor não é e nem encontra, frente à aula, uma folha em branco. No entanto, parece haver, aí, um espaço-tempo a ser trabalhado, como brechas à produção artística. Importa olhar para os movimentos de criação de si — como arte de estilo — em relação às práticas que efetivam o currículo na aula, no encontro com o aluno e com as situações institucionais.

Não se pode negar que o professor, ao se aproximar dos livros e textos referentes ao assunto a ser trabalhado em aula, lida com línguas heterogêneas: as vozes dos autores que lê; de seus outros estudos e experiências; a língua de cada aluno, a quem toma como auditório; das populações, dos serviços de saúde. Instaura-se, neste imbricado, um exercício de articulação de saberes e não saberes, na composição da aula, do professor e do estudante.

Este espaço de atuação docente parece abrir-lhe oportunidade de superar qualquer engessamento a que possa ter se submetido, e propor fluxos de invenção e coabitação de linguagens (Barthes, 1973/1987), multiplicando os sentidos do que estuda-lê-ensina-aprende, na prática de aula. É claro que há diretrizes curriculares e um perfil do egresso que se deseja formar. É sabido, também, dos elementos que compõem a matriz curricular e as ementas das disciplinas. No entanto, essas referências não precisam se tornar fôrmas, com intenção de moldar estudantes e reduzir os diferentes perfis de aprendizagem.

O conceito de espaçamento de Derrida (Santiago, 1976, p. 33) parece contribuir para arejar as normas com as quais professores e estudantes lidam. Ele propõe “o espaçamento (como) a produção dos intervalos, sem os quais os termos “plenos” não significariam”. Nos entremeios da Ciência da Educação, do funcionamento do currículo, dos espaços e das horas aula, podem ser encontradas aberturas que potencializem e alarguem todos esses elementos. O espaçamento pode funcionar como oportunidade de produção de conhecimento novo, de novos métodos, pois pode ser preenchido com elementos criadores.

A sala de aula e os cenários de práticas de saúde tornam-se espaços artísticos de constituição de si. Se entendemos que um “trabalhador da saúde não deve agir no sentido de formar rebanhos, precisamos formá-lo fora do cativeiro”, conforme afirma Biato (2015, p. 163).

Busca-se, nesse sentido, a formação de protagonistas — professor e aluno — para o desempenho de seus papéis, simultaneamente ao seu próprio tornar-se. Trata-se de criar maneiras de agir em saúde, de forma eficiente à nossa população, enquanto cria-se a si mesmo, como professor, estudante e como profissional de saúde, com a multiplicidade de realizarem-se estilos singulares. Mesmo encontrando a aula cheia, plena de significações, de padrões e de clichês (Corazza, 2012), o professor pode assinar sua própria aula, no encontro com seus alunos: cria personagens e performances, veste máscaras, ensaia discursos novos sobre os mesmos conhecimentos e produz conhecimento novo a partir das palavras antigas.

Método

Meyer e Paraíso (2012) discutem os processos metodológicos de estudos que operam com o pensamento nietzschiano ou de caráter multicultural, pós estruturalistas, pensamento da diferença, entre outros referenciais que têm embasado as Ciências Humanas e a interface dessas com as ciências da saúde. As autoras reconhecem que não foi propósito de autores como Nietzsche, Deleuze e Derrida, a definição de passos direcionados à observação de fenômenos ou métodos de pesquisa. No entanto, ao tomarmos seus pressupostos e apoiarmos o rigor teórico de nossos estudos em suas perspectivas, criamos a necessidade da construção de métodos de pesquisa que lhes sejam correspondentes, tendo em vista a coerência e a fundamentação adequada. Reconhecemos que estes pressupostos mobilizam o pensamento e demandam esforços “de invenção e ressignificação” (Meyer, & Paraíso, 2012, p. 23) dos percursos de pesquisa.

Neste estudo, a opção pelo pensamento de influência nietzschiana nos posiciona diante da necessidade de romper com qualquer proposta metodológica que seja “fechada, dedutiva ou indutiva” (Adorno, 1954/2003, p. 25), assumindo um ensaio de aproximação às criações do vivido — expressos nos textos resultantes das conversas — de modo também autoral.

Tomam-se, como objetos de estudo, rastros do vivido, com o pressuposto de que a vida está imbricada na obra, pois as duas dimensões (vida e obra) se retroalimentam (Adó, 2015). Assim, com tudo que os dizeres dos professores podem não apresentar clareza e nitidez, desejou-se recolher, de quem experimenta o fazer docente, elementos que pudessem ampliar a discussão e provocar o pensamento. “Clarice Lispector escreve: Eu não sou autobiográfica. Sou bio… Escrevemos a todo momento nossa própria vida acontecendo em composição com o mundo” (Costa, 2011, p. 83).

O termo Biografema, usado por Roland Barthes, é experimentado como método de intervenção e de investigação (Corazza, 2010; Schwantz, 2015; Bandeira, 2014; Gonçalves, 2012). Funciona como proposta de pergunta pelos detalhes da vida que parecem insignificantes e corriqueiros, mas que podem apresentar potências de pensamento e experimentação. Articulam-se, nesse sentido, ficção e realidade, como faces complementares e indiscerníveis de uma mesma moeda. Assim, a pesquisa biografemática busca encontrar elementos do vivido e do imaginado, em pontos de conexão.

Nesse processo, o pesquisador é também um escritor, à medida em que destaca peças da vida e as partilha; trabalha no sentido de transformar detalhes insignificantes (que não tinham significação prévia) em signos de escrita, justamente por seu potencial de encantar e disparar um texto. Buscam-se as conexões entre ficção e realidade, entre o imaginado e a biografia, reconhecendo que essas conexões se expressam por linhas móveis e imprecisas (Corazza et al., 2019).

Para observar biografemas — de vida e ficção — foram realizadas conversas com 12 professores dos cursos de Enfermagem, Farmácia, Nutrição, Odontologia e Saúde Coletiva da Universidade de Brasília. Foram convidados três professores de cada curso da Faculdade e foram incluídos todos os que dispuseram tempo para participar da conversa com os pesquisadores.

Os diálogos tiveram um roteiro semiestruturado, foram gravados e transcritos. Esse trabalho foi submetido e aprovado em Comitê de Ética em Pesquisa, assumindo caráter sigiloso e todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e tiveram seus nomes ocultados. Dessa forma, foram escolhidos nomes fictícios para caracterizá-los.

O roteiro é dito como semiestruturado, pois foi utilizado um instrumento — com algumas ideias prévias — como norteador e, a partir deste e do próprio diálogo com cada um, foram surgindo algumas outras questões.

Neste instrumento, alguns tópicos direcionaram a conversa:

1) Exercitar e recuperar um pensamento de partida: neste item, buscou-se compreender o que o professor mobiliza e o que precisa mobilizar/aprender/operar em suas práticas docentes, bem como provocar a reflexão acerca de naturalizações que circulam no campo da saúde e no campo da educação superior.

2) Invenção de problemas: neste tópico, pretendeu-se identificar como o professor pensa, age e percebe a própria prática: apontar problemas experimentados no espaço da sala de aula e em outras atribuições inerentes ao ensino superior em saúde.

3) Interpretar a docência em saúde: neste item, intencionou-se observar o potencial de invenção de si, invenção da atuação com o outro, as características da performance do docente, com destaque à pergunta: há espaço para criação/inovação na educação superior em saúde?

Os textos elaborados a partir da transcrição das conversas foram analisados pelos pesquisadores, considerando que o produto analisado se configura como uma obra escrita em parceria dos pesquisadores com os docentes entrevistados, sendo que nem pesquisador nem pesquisados assumiram um caráter neutro, pois ambos se influenciaram na constituição dos dados de pesquisa. Buscou-se, na constituição e análise, o valor da vida grafada, os movimentos dos autores, tanto no que respeita ao tornar-se professor, quanto em relação aos efeitos singulares deste tornar-se em suas práticas de ensinar-aprender na área de saúde.

De acordo com Creswell (2014), nas pesquisas qualitativas, o que eventualmente não se aproveita em extensão — pois não há preocupação com as generalizações —, ganha-se em profundidade e compreensão, e os detalhes do que se observa abrem possibilidades de reflexões acerca de tantos outros acontecimentos.

Especificamente, foram adotados três, entre outros procedimentos norteadores da análise a partir do método biografemático:

1) Mobilizar palimpsestos, que funcionam como cortes histológicos (Barthes, 2003/2005). Ao se lançar mão de um gesto histológico, buscou-se fazer cortes nas escrituras, considerando que o biografema está para a biografia, assim como a fotografia está para a história. É um ponto, um detalhe, um objeto parcial. De modo semelhante à compreensão fisiológica dos tecidos biológicos, os cortes na obra escrita do outro parecem favorecer a comunicação do vivido, se considerarmos com Nietzsche que a arte tem a potência de comunicar ao outro as vivências do artista (Nietzsche, 1888/1995). Seriam palimpsestos, os gestos de anotar, marcar, isolar, tornar o texto descontínuo para, simultaneamente, estabelecer o fluxo escritor (Barthes, 2003/2005).

2) Indagar pelas forças. A noção nietzschiana de vontade de potência, propõe esta como forças que impulsionam o vivente à vida, em afirmação de si, em busca de expansão. Nesse sentido, o foco da pesquisa é, para além dos recortes do vivido (palimpsestos), a noção de conjunto de uma vida, considerando suas lacunas, seus vazios, suas forças, seus impulsos. Pergunta-se: que expressões de seus estilos de individuação são notáveis no texto? Que forças permeiam a escritura que se constitui?

3) “Escapar de códigos biográficos” (Corazza, 2010, p. 93). Neste aspecto, trata-se de evitar o estabelecimento de vínculos estagnados e de causa e efeito entre vida e obra; compreender que autor inventa a sua obra e esta também enseja sua vida. Ainda, o leitor também faz o texto agir e, portanto, os pesquisadores — leitores — assumem que não possuem neutralidade na análise dos resultados de pesquisa, uma vez que participam ativamente do diálogo, e elegem trechos a serem destacados nos textos produzidos. Ao tratar do vivido conforme as fantasias dos entrevistados e dos pesquisadores, ambos trazem, inevitavelmente, suas vivências, ao que a composição final se constitui em uma escrita compartilhada e inventada, em que tanto o pesquisado quanto o pesquisador atuam como coautores.

Resultados e discussão

Docência e pesquisa

Na graduação só tive uma disciplina de didática, a faculdade em si não me preparou para a docência […] até mesmo na especialização eu pude comprovar que o saber prático a gente só adquire na prática. (Roberto, Enfermagem)

[…] eu conversava muito com os meus professores, porque eu entrei no curso onde eu tinha sido aluna. (Érica, Nutrição)

No trecho destacado da entrevista com Roberto, assim como em outras falas, é perceptível a sensação de falta de preparo dos docentes para exercerem suas funções de ensino, pesquisa e extensão na formação dos estudantes de graduação e de pós-graduação, e que apenas no exercício da docência, é que aprendem realmente a lidar com os obstáculos do processo de ensino e de aprendizagem. A troca de experiências, por vezes, ocorre entre professores, de modo que, observando a maneira de outros professores mais experientes exercerem suas docências, os que estão iniciando a profissão podem adquirir conhecimentos para a sua própria prática.

É perceptível que, muitas vezes, o enfoque dos docentes universitários ocorre a partir dos saberes relativos à pesquisa já que os cursos de pós-graduação em saúde não enfatizam projetos pedagógicos e a formação para a docência. Isso, de certa forma, direciona os professores para que construam sua profissão com base na produção científica, afinal, esse tipo de atividade produtiva é também muito relevante (Libâneo, 2013), até mesmo para que o professor critique sua própria atuação. A pesquisa dedicada aos problemas de saúde da população brasileira parece ser fundamental para que o processo formativo possa constituir um aprender fazendo e intervindo na realidade do Sistema Único de Saúde, em seus programas, políticas e micropolítica, com valor ao potencial criativo de cada estudante, e suas manifestações no desempenho profissional (Teixeira, 2015; Batista & Gonçalves, 2011).

Eu fui treinada para ser pesquisadora […] eu não fui treinada para ser docente. Eu não sabia fazer um plano de aula. Eu não sabia o que era uma ementa […]. Na pós-graduação onde eu fiz, a gente não aprendeu absolutamente nada disso. (Débora, Farmácia)

[…] porque eu comecei a entender mais sobre pesquisa científica e isso é um eixo estruturante da docência também. (Roberto, Enfermagem)

A fala de Débora traz outra questão importante: a grande valorização da pesquisa no contexto acadêmico atual. O interesse e a habilidade na pesquisa permeiam a escolha pela profissão de professor, especialmente na educação superior. Dessa forma, a aprendizagem da docência e seu desenvolvimento são postos em segundo plano diante da perspectiva de ser pesquisador e de obter publicações científicas. Porém, no trecho de Roberto há uma reflexão relevante acerca do papel da pesquisa no desenvolvimento da prática de ensinar e aprender em saúde: a sala de aula instiga a investigação, ao mesmo tempo que a pesquisa traz elementos inovadores e provocadores do pensamento em aula.

Tanto Franco (2008) quanto Corazza (2013) discutem a importância da pesquisa na prática docente e sua inerência a esta. A matéria de pesquisa traz relevância e movimento à aula, permitindo a superação de reproduções acríticas de saberes congelados. Portanto, parece bastante estratégica a coabitação da pesquisa com os processos de ensino e aprendizagem, ampliando as possibilidades de criação por parte de professores e alunos.

O vivido, a constituição de si e a docência

[…] eu sempre quis ser professora. Porque essa coisa de ensinar é quase familiar, minha mãe é professora e acho que nasceu em casa, essa questão de ensinar. (Maria, Enfermagem)

Sempre tive muito interesse sobre pesquisa, e esse interesse foi o que fez com que eu fosse convidado para estar orientando trabalhos de conclusão de curso. (Roberto, Enfermagem)

Eu sempre quis ser professora. Quando eu estava na universidade, eu achava muito legal ser professora. (Débora, Farmácia)

Bom, isso sempre foi algo que aconteceu desde da época do colégio, sempre gostava muito de conversar e de tirar dúvida dos colegas, foi uma coisa que foi sendo semeada e, ao mesmo tempo, crescente, não é? (Adriana, Farmácia)

[…] a área da docência sempre foi uma opção para mim desde a época da graduação. Então eu já fiz a graduação pensando em depois fazer mestrado e doutorado para poder ser professora. (Nicole, Nutrição)

[…] você ter contato com quem está se formando, com quem está se preparando para se tornar um profissional é bastante instigante. (Gael, Odontologia)

Na fala de Maria, percebe-se que o contexto familiar pode influenciar, de maneira positiva, a escolha de uma profissão. Portanto, notam-se vivências que estabelecem certa familiaridade com momentos como a infância e a inspiração em outros professores, ainda mais quando se tem um exemplo de referência num ambiente de valor afetivo.

O interesse no campo da pesquisa também parece influenciar na escolha da carreira docente. Muitos docentes escolhem a profissão com enfoque no ensino como primeira opção e pela percepção de ter habilidades para desempenhar este papel: a constatação do potencial para exercer bem a função de professor impulsiona a querer mais e a assumir com mais dedicação esta atividade, como nota-se na expressão “uma coisa semeada… ao mesmo tempo crescente”.

Por um lado, o termo sempre se repete nas falas dos professores, trazendo uma dimensão temporal dos elementos que comparecem na vida com frequência e, portanto, exercem influências diretas no processo de constituição de si — incluindo suas escolhas e seus modos de desempenhar a função docente. Por outro, nota-se que as vivências assumem diversas formas, permitindo, assim a constituição singular de diferentes estilos de individuação, diversos modos de tornar-se professor. É como uma obra de arte lentamente tecida, com traços minuciosamente originais, que definem as marcas de seu autor, ainda que essas marcas possam ser provisórias.

Assim, a arte de estilo parece ser movimento singular, que inclui o que se deseja e se inventa para si mesmo, como movimento de quem afirma a própria vida, do modo como ela se torna possível. Nesse sentido, essa noção nietzschiana contribui para o reconhecimento da arte singular de tornar-se professor e da impossibilidade de generalizar a docência e suas práticas. Havendo múltiplas possibilidades poéticas em cada professor.Torna-se completamente irrelevante dizer da docência como entidade a ser estabelecida a todos que tomam, para si, essa profissão. As inspirações para o desempenho desse papel permeiam a vida com características únicas, expressando experiências e modos como essas são interpretadas e traduzidas em maneiras originais de ser professor.

Mudanças na prática docente

[…] acho que a gente sempre tem que se atualizar em relação às metodologias participativas para criar mecanismos para que o aluno possa se interessar mais a participar. (Gael, Odontologia)

[…] eu dou aula do jeito tradicional, que é com projetor de slides e usando o quadro. […] E é claro que eu acho que tem que melhorar, que essa questão das metodologias ativas, elas vieram para ficar. (Débora, Farmácia)

[…] tem de ter um preparo do professor, porque ninguém nasce como docente, ninguém já sabe como aplicar uma metodologia ativa. (Adriana, Farmácia)

[…] a construção da educação, ela não acontece somente pela boa vontade do professor, tem toda uma estrutura que precisa ser também melhorada. Eu acredito que trabalhar mais com essa questão das metodologias ativas é o caminho para a gente melhorar a educação. (Roberto, Enfermagem)

Os professores apontam, em certos momentos das conversas, para mudanças que julgam necessárias ao exercício da docência, como por exemplo, a necessidade real de que o aluno faça mais parte da aula, tenha mais interesse e seja mais envolvido. Compreendendo que, nos dias de hoje, se acessam informações de maneira bem mais rápida, apenas dar aulas expondo o conteúdo, sem que o estudante tenha chance de fazer parte desse processo, não é o bastante para formar um profissional de saúde com capacidade crítica e de reflexão. Inclusive as ponderações feitas pelos participantes fazem pensar acerca do valor atribuído aos conteúdos, que acabam por exercer certa autoridade no processo formativo, deixando pouco ou nenhuma brecha aos processos de criação no movimento de conhecer.

A necessidade por inserção de metodologias inovadoras e que ampliem o impulso ao pensamento em bases novas é crescente e vem sendo percebida pelas instituições e pelos professores. Dessa forma, políticas que promovam inovações curriculares se apresentam como cada vez mais relevantes no sentido do aprimoramento do processo educativo, tendo em vista a ampliação de sua efetividade. “Na escola, o professor é o grande intermediador desse trabalho, e ele tanto pode contribuir para a promoçãoo de autonomia dos alunos como para a manutenção de comportamentos de controle sobre os mesmos” (Berbel, 2011, p. 163).

De forma contundente, os entrevistados parecem fazer um movimento de autocrítica nesse sentido, demonstrando uma reflexão acerca de suas próprias práticas: o diálogo sobre do exercício docente impulsionou cada professor ao dizer quem sou, ao olhar para si mesmo, em observação dos limites e das possibilidades de seus modos de fazer.

Ao olharem para si e para as mudanças que vieram para ficar, os professores abrem o tema dos modelos que se apresentam em alternativa à educação tradicional. Se, por um lado, reconhece-se a necessidade de lançar mão de inovações nos processos educacionais, por outro, notam-se caminhos de fuga ao tradicional que apenas invertem um modelo centrado no professor por um modelo centrado no aluno, sem, no entanto, estabelecer novas bases conceituais para os processos em questão.

A adoção de metodologias ativas, por si só, não parece garantir a eficiência e a melhoria na formação em saúde, especialmente se as bases forem simplesmente técnicas, pois acabam por simplificar a didática e mecanizar as práticas de ensinar e aprender. No uso da metodologia ativa, altera-se o modo de construir o processo ensino-aprendizagem, sendo o estudante um sujeito ativo no desenvolvimento de suas capacidades, de maneira autônoma e participativa. Os textos das entrevistas apontam para a sensação de despreparo dos professores para enfrentar o desafio de criar novas formas de ensinar: sem compreenderem conceitos que fundamentam as novas práticas, os professores não se sentem seguros para realizar as mudanças, nem para escolher procedimentos a serem adotados diante das diferentes situações enfrentadas em sala de aula. E, ao receberem um modelo pronto — com sequências de passos e deveres — a ser colocado no lugar da tradição (do costume), pode ser que os professores se percebam confinados, incapazes e desinteressados em aderir às mudanças propostas.

Assim, parece ser necessário abrir possibilidades de superação de práticas tradicionais, porém, não colocando outros imperativos no lugar dos anteriores, mas traçando “linhas de fuga” (Deleuze & Guattari, 1980/1996, p. 102), que se configurem como bases efetivamente novas, porque elaboradas, compreendidas e realizadas por cada professor, a seu modo.

Embora os professores tenham citado medidas de enfrentamento às formas de aula baseadas num modelo de transmissão-recepção, apresentando os limites dessas práticas, ainda parecem ter segurança nessa abordagem. Referem-se, ainda, a importância da adesão a metodologias ativas, ainda que não pareçam efetivamente identificar os traços da Psicologia Genética piagetiana em alguns princípios relacionados ao protagonismo do estudante na construção de seu conhecimento. Não referem, tampouco, a influência do Pragmatismo de John Dewey nas práticas problematizadoras de algumas das chamadas metodologias ativas. Destaca-se, ainda, que as referências de uma teoria educativa de base nas filosofias da diferença não parecem circular, nem mesmo como uma ideia solta, nos trechos destacados nesta pesquisa.

A didática artista da tradução, proposta de educação da diferença, lida, em primeiro lugar, com a vontade de potência do professor, como vontade de traduzir (Corazza, 2016). Uma vez que se assume o papel do professor como tradutor e entende-se a tradução como transcriação, há, em cada gesto de ensinar e aprender — em espaço de aula —, o a-traduzir, pois “consideramos a tradução como a estrutura ou a operadora central da docência e a principal tarefa dos professores: o seu dever-traduzir” (Nodari & Corazza, 2019, p. 3).

O a-traduzir diz do que não está dado, do que não há, do que não pode ser traduzido. Trata, portanto, do poético na atividade docente, de seus intraduzíveis, pois permanecem em posição do que está para ser traduzido.

Assim, os espaços de aula se apresentam plenos da possibilidade de pensamentos múltiplos e operam com o “traduzível-intraduzível’, pois…é próprio do traduzir também o a-traduzir, isto é, a abertura do não-sentido para um novo discurso” (Corazza, 2019, p. 9).

Essa potência tradutória funciona como vontade de potência, como um anseio pelo eterno retorno do mesmo. O eterno retorno diz da “absoluta e infinita repetição circular de todas as coisas, de um pensamento que é a mais elevada forma de afirmação que pode ser alcançada” (Marton, 2016, p. 212). Trata-se de educar os olhos para observarem as potências de sim, da autoria da aula que afirma a vida, tal como ela vem, ao mesmo tempo que a constitui biografematicamente.

Dos palimpsestos das falas dos professores, são notáveis expressões da vontade de escrever (Barthes, 2003/2005), como um anseio por efetivamente assinar o pé das páginas de suas aulas. Dispostos a partilhar e constituir conhecimento novo, de forma criadora e associada — com seus alunos — os docentes ainda parecem reconhecer que, em vários momentos, lhes falta coragem. Esse estudo nos fala dessa coragem para encarar a aula cheia criticamente, esvaziando-a de naturalizações e reescrevê-la, oferecendo-lhe seu estilo.

Considerações finais

Notou-se, neste estudo, que os temas abordados permitiram olhar biografematicamente para o objeto do estudo: características singulares de vida, que se associam e emaranham na constituição de estilos de docência. Assim, o conceito nietzschiano de arte de estilo chama aos processos inventivos do tornar-se: tornar-se profissional de saúde, tornar-se professor, tornar-se o que se é. E trata, em primeiro lugar, de obras de arte.

O Biografema, como escrita de si — de seus personagens e de suas fábulas — oportunizou a observação de interpretações, processos formativos, interesses, desejos de mudança e potências de criação dos professores, que efetivam a didática e o currículo em saúde.

A partir dessa abordagem biografemática, notou-se que os processos preparatórios e de exercício da docência parecem permeados da pesquisa, como fonte e alimento da aula e, simultaneamente, instigada por ela. As inovações são apresentadas como necessárias e relevantes, no entanto, não de forma esvaziada, incompreendida, nem como simples troca de modelos imperativos e sufocantes; os encontros de alunos e professores, habitados de sensações compartilhadas, em associação com conceitos constituídos, potencializam as práticas de pensar e instigam o surgimento de novos saberes e novos modos de ensinar e aprender. Nesse sentido, o estudo apresenta limites da prática docente e também potenciais de ampliação dos modos de fazer, com força ao caráter criador e artistador no processo de formação em saúde.

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Recebido: 16 de Abril de 2020; Aceito: 02 de Setembro de 2020

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