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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 25-Set-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.30573 

Artigos

Saberes docentes para o Outro na atuação do educador-bacharel na educação superior

La enseñanza del conocimiento para el Otro en el rol del educador-licenciado en la educación superior

Teaching knowledge for the Other in the role of the educator-bachelor in higher education

Enseigner les connaissances pour l'Autre dans le rôle de l'éducateur-bachelier dans l'enseignement supérieur

Conceicão de Maria Pinheiro Barros1 
http://orcid.org/0000-0002-4515-5829

Ana Maria Iorio Dias2 
http://orcid.org/0000-0001-8896-6966

Jacques Therrien3 
http://orcid.org/0000-0001-5458-365X

1Doutorado em Educação (2017). Professora Adjunta. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Secretariado Executivo (GEPES). Tem experiência na área de Educação, desenvolve pesquisas científicas, atuando principalmente nos seguintes temas: Desenvolvimento e formação docente, Educação Superior, Educação em Secretariado, Responsabilidade Social Universitária e Organizacional, Políticas Públicas para Educação Superior, Assessoria e Gestão Organizacional e Secretarial.

2Doutorado em Educação (1998) e pós-Doutorado em Educação (2009). Professora Associada 4 (aposentada). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Currículos Específicos para Níveis e Tipos de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: currículo e inovação; formação e desenvolvimento profissional docentes; ensino e aprendizagem; oralidade, leitura e escrita.

3Doutorado em Educação (1979) e pós-doutorado (Canadá, 1992 e Espanha, 2007). É Pesquisador Sênior do CNPq e Líder do Grupo de Pesquisa 'Saber e Prática Social do Educador'. Pesquisa, sobretudo, sobre o Saber Docente - temas: pedagogia, formação docente, trabalho docente, epistemologia da prática docente, racionalidade pedagógica, aprendizagem, educação no campo e política educacional.


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar os saberes docentes articulados na atuação do educador-bacharel, na perspectiva da ética da alteridade radical. Foi realizada uma pesquisa qualitativa e descritiva, tendo como universo 37 educadores-bacharéis que atuam em uma universidade pública do Nordeste brasileiro. Concluiu-se que a constituição do educador-bacharel para a educação superior necessita alinhar-se aos saberes docentes para a relação educador-educando e uma atuação que posicione o educando no cerne do processo educativo, por meio da valorização deste com suas diferenças, necessidades, dificuldades e anseios.

Palavras-chave Saberes docentes; Ética da alteridade; Educador-bacharel

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar los saberes docentes articulados en la actuación del educador-bachiller, en la perspectiva de la ética de la alteridad radical. Se realizó una investigación cualitativa y descriptiva, teniendo como universo 37 educadores-bachilleres que actúan en una universidad pública del Nordeste. Se concluyó que la constitución del educador-bachiller para la educación superior necesita alinearse a los saberes docentes para la relación entre educador y educando. Esto implica una actuación que sitúe al educando en el centro del proceso educativo, por medio de la valorización del educando con sus diferencias, necesidades, dificultades y anhelos.

Palabras clave Saberes docentes; Ética de la alteridad; Educador-bachiller

Abstract

This article aims to analyse the teacher’s knowledge articulated in the acting to the educator-bachelor, in the perspective of the ethics of the radical alterity. A qualitative and descriptive investigation articulated in the acting universe 37 educators-bachelor who work at a public university in the Brazilian Northeast. It was concluded that the constitution of the educator-bachelor for higher education needs to align itself with the teaching knowledge for the relationship between educator-teaching and an action that positions teaching at the heart of the educational process, through the appreciation of the teaching with their differences, needs, difficulties and yearnings.

Keywords Teaching knowledge; Ethics of otherness; Educator-bachelor

Résumé

Cet article vise à analyser les connaissances pédagogiques articulées dans la performance de l'éducateur-bachelier, sous l'angle de l'éthique de l'altérité radicale. Une recherche qualitative et descriptive a été menée, ayant pour univers 37 éducateurs-bacheliers qui travaillent dans une université publique du nord-est du Brésil. Il a été conclu que la constitution de l'éducateur-bachelier pour l'enseignement supérieur doit s'aligner sur les connaissances pédagogiques pour la relation éducateur-étudiant et une action qui place l'étudiant au cœur du processus éducatif, en valorisant l'étudiant avec ses différences, besoins, difficultés et désirs.

Mots clés Enseignement des connaissances; Ethique de l'altérité; Éducatrice de baccalauréat

Introdução

A docência universitária tem sido enfoque de reflexões sobre os saberes necessários ao professor. Incluímos no centro deste debate a discussão acerca da alteridade, com base na reflexão de que a docência universitária se confirma como área de atuação para o bacharel. As universidades “[…] têm seu corpo docente composto de um conjunto de profissionais de diferentes áreas que, em sua maioria, não tiveram formação inicial ou continuada para o exercício da profissão” (Pimenta & Anastasiou, 2014, p. 25). A universidade não se limita aos processos de ensino e aprendizagem, mas é responsável pela formação de profissionais e cidadãos por meio da concretude da tríade entre ensino, pesquisa e extensão de maneira articulada. A consolidação dessa trilogia requer a perspectiva de uma educação, em sentido amplo, mediante o seu papel social e a atuação do professor universitário na perspectiva de educador (Barros, 2017).

Concordamos com a ideia de que há diferenciação entre ser professor e ser educador à luz de teóricos como Alves (1980) e Freire (1996). Ao indagar onde estarão os educadores, Alves (1980, p. 11) argumenta que “professores, há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação”. Freire (1996, p. 169) complementa que “antes de ser professor, este tem que ser um educador e para isso tem que agir de forma digna dos seus conceitos e interesses […]”. Com efeito, o docente universitário pode ser considerado “educador”, sem, no entanto, desconsiderar a profissão de professor.

Nesta linha de pensamento, Barros (2017) aborda o educador-bacharel-áltero como aquele que se preocupa com o educando enquanto Outro, na perspectiva da alteridade, numa relação ética entre educador(Eu)-educando(Outro). Nossa discussão possui em seu cerne a relação com o Outro [1] , neste caso, o educando, e considera a relevância da relação educador(Eu)-educando(Outro). Freire (1987) ensina que o professor pode apresentar-se como opressor e o estudante como oprimido. Para o citado autor, a pedagogia deve ter como objetivo a liberdade, a fim de possibilitar novas perspectivas, com fundamento na diversidade cultural de cada aluno. A atuação entre educador(Eu)-educando(Outro) pode ocasionar marcas que, provavelmente, o seguirão no decorrer de sua vida. Argumenta-se que todo educador marca suas características individuais em seus educandos.

Desenvolvemos esta discussão desde a abertura a uma relação com o Outro em sua alteridade, tendo como fundamento a filosofia levinasiana, que defende o respeito ao Outro em sua total diferença e que deve subsistir em sua total alteridade, não sendo reduzido ao Mesmo (Lévinas, 2010). Buscamos responder ao seguinte questionamento: quais são os saberes docentes para a alteridade articulados na atuação do educador-bacharel? Pressupomos a relevância de se incluir, na formação pedagógica do educador-bacharel, a alteridade, considerando o educando como Outro do educador.

Este artigo objetiva analisar os saberes docentes articulados na atuação do educador-bacharel, na perspectiva da ética da alteridade radical. Ancorados nas proposições levinasianas, consideramos as relações entre educador(Eu) e educando(Outro) para encontrar elementos que subsidiem um construto acerca dos saberes docentes para a alteridade. A relação sugerida entre o educador e a ética é entendida como uma convocação à responsabilidade por meio do encontro com o Outro. Esta investigação contribui para ampliar a discussão sobre o tema, bem como para a definição de novos conceitos sobre os saberes docentes na prática do bacharel como educador. Os resultados ora discutidos são um desdobramento da prática da ética da alteridade radical na atuação do educador-bacharel, com origem nos discursos dos sujeitos participantes desta investigação.

Referencial teórico

Saberes docentes na educação superior

O debate sobre o bacharel que se torna educador universitário perpassa proposições que abrangem a constituição de saberes fundamentais à sua atuação. “Saberes pedagógicos são aqueles que provêm da formação docente e do exercício da docência […]” (D’Ávila & Leal, 2015, p. 471). Os conhecimentos estabelecidos na formação do educador devem ser estabelecidos de acordo com o tipo de educação almejado para os educandos (Saviani, 1996).

Freire (1996) destaca os saberes para a prática educativo-crítica, com base nos seguintes eixos: não há docência sem discência; ensinar não é transferir conhecimento; e ensinar é uma especificidade humana. Saviani (1996) apresenta cinco saberes que constituem a dinâmica educativa: saber atitudinal; saber crítico-contextual; saberes específicos; saber pedagógico; e saber didático-curricular.

Nóvoa (2003) considera que, na inovação educacional, existe propensão à valorização da associação dos professores (saber da experiência) com os especialistas pedagógicos (saber da Pedagogia); em tempo de conservantismo, a correlação acontece entre o saber da experiência (professores) e o saber da disciplina (especialistas dos distintos domínios do conhecimento).

Na compreensão de Pimenta (2012), os princípios docentes classificam-se em: saberes da experiência; saberes da área do conhecimento específico; saberes pedagógicos; e saberes didáticos. Gauthier et al. (2013) destacam os saberes disciplinares que se referem aos conhecimentos gerados por pesquisadores das diversas áreas de conhecimento. Ratificando a concepção de Tardif (2013), Gauthier et al. (2013) sublinham os conhecimentos experienciais, os quais são elaborados mediante a própria profissão docente de maneira individual. Essa percepção sobre os conhecimentos da experiência concorda com a ideia de Tardif (2013). Na perspectiva de Saviani (1996) “[…] não nos parece pertinente em nossa categorização falar em “saberes da experiência” como um tipo de saber ao lado dos demais […]” (Saviani, 1996, p. 151). Tal linha de pensamento argumenta que o saber experiencial perpassa os demais saberes fundamentais para a formação do educador, não sendo necessário classificá-lo como um tipo de conhecimento. Gauthier et al. (2013) consideram a importância de que os conhecimentos construídos por intermédio da experiência sejam confirmados e transmitidos para a sociedade com o intuito de colaborarem para a constituição da teoria pedagógica.

No contexto da educação superior, emerge no cerne da questão a ausência de formação pedagógica para os bacharéis que atuam como professores universitários. Consideramos que os conhecimentos para a docência se inserem em uma ampla conjuntura e não devem ser circunscritos à concepção de um saber específico, mas como um conjunto complexo de elementos que se inter-relacionam. Percebemos uma inquietação nas temáticas estudadas na educação acerca dos saberes necessários ao professor refletidas numa diversidade de teorias, as quais convergem na ideia de que os saberes de uma área específica não abrangem o trabalho pedagógico, de maneira que propõem a transformação das aprendizagens específicas do educador em metodologias pedagógicas que oportunizem a elaboração de novos conhecimentos por parte do educando.

A ética levinasiana: o educador (Eu) e o educando (Outro)

Incluímos nessa discussão a alteridade, pois na subjetividade da interligação entre educador (Eu) – educando (Outro) precisam ser desenvolvidos conhecimentos que oportunizem ao educando a construção de ideias mantendo as diferenças, numa relação ética. Relação essa que requer do educador(Eu) uma responsabilidade pelo educando(Outro) em sua alteridade absoluta (Barros et al., 2019, Barros, 2017).

A teoria levinasiana faz um chamado à ética que coloca o Outro em primeiro lugar na relação com o Eu. A alteridade, desde Lévinas, entretanto, ultrapassa a ideia de diferente. Estende-se a um Outro que não pode ser assimilado, mas é permanentemente Outro. Quem é o Outro, na teoria levinasiana? Lévinas (1980, 1982) apresenta como Outro aquele com quem nos relacionamos, representado pelo estrangeiro ou a viúva, por exemplo. Refere-se a um Outro que invoca o Eu a uma responsabilidade intransferível.

A responsabilidade levinasiana excede o conceito de liberdade. O Eu não tem escolha, ele é incumbido pelo Outro a despeito de sua escolha, pois o Rosto o invoca ao oferecimento de respostas. O Rosto ultrapassa a visão dos traços físicos, possui um significado subjetivo de um olhar que procede do Outro e demanda uma resposta do Eu. A ética da alteridade radical critica a concepção de totalidade da filosofia ocidental ao restringir o Outro ao Mesmo, o que representa domínio (Martin, & Lepargneur, 2014) e evidencia a diversidade e a individualidade do ser, ao respeitar as diferenças e requerer que essas distinções permaneçam intocáveis. O Outro deve permanecer exatamente como ele se constitui, como diferente. Não se deve englobar o dissemelhante visando a adquirir poder sobre outrem. Não se admite a neutralização do ser com o intuito de compreendê-lo, o estrangeiro é infinitamente Outro. O Outro levinasiano “ […] não pode ser conceituado, mas permanece concreto. O Outro permanece sempre outro metafísico do qual o Eu necessita” (Martins & Lepargneur, 2014, p. 6).

Lévinas (1980, p. 31) discorda da ideia de “[…] redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do ser” e salvaguarda a posição inversa dos valores: o Outro precisa ser posicionado em primeiro lugar, o que institui o significado de alteridade radical em sua filosofia. Isso quer dizer que, na relação Eu-Outro, prevalece uma responsabilidade do Eu em relação a outrem, e tal responsabilidade é irrecusável.

A inter-relação entre o Eu e o Outro, como infinito, se estabelece no Rosto. A ideação de infinito emerge da aspiração insatisfeita, na incompletude do homem, desde um hiato a ser preenchido nessa relação: “O infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela idéia do Infinito, produz-se como Desejo” (Lévinas, 1988, p. 18). Dessa maneira, é impossível que haja o conhecimento total de outrem, pois “conhecer equivale a captar o ser a partir de nada ou a reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a alteridade" (Lévinas, 1980, p. 31).

Como infinito, outrem é ineglobável. O Eu não é capaz de compreendê-lo, totalizá-lo. O Outro se modifica, se transforma, mas permanece sempre Outro, embora o Eu careça de relacionamento com outrem, deve estar aberto ao diferente. “A alteridade envolve a não satisfação do desejo como motivação humana. Estamos sempre almejando algo, sempre haverá um objetivo a ser alcançado, incluindo-se, nessa procura de preenchimento, as relações interpessoais” (Barros et al., 2019, p. 760). O relacionamento com outrem é permanentemente “[…] relação com o excedente sempre exterior a totalidade, como se a totalidade objetiva não preenchesse a verdadeira medida do ser […]" (Lévinas, 1980, p. 11).

A inter-relação entre o Eu e o Outro pauta-se no entendimento de que em tempo algum seremos aptos a apreender o Outro em sua totalidade, de que o Outro se metamorfoseia, permanecendo eternamente Outro. Em contrapartida, há um reconhecimento do Eu acerca da importância em relacionar-se com o Outro, de que ele, o Eu, não é ser supremo e precisa considerar a alteridade ao relacionar-se com outrem.

É com fundamento nos conceitos levinasianos que propomos uma reflexão sobre os saberes docentes desde a ideia do educando enquanto Outro do educador, mediante a abertura ao educando (Outro) em suas singularidades que não podem ser reduzidas nos processos de ensino e aprendizagem. Essa é a discussão que viceja nessa pesquisa e nos impele à busca empírica por saberes docentes para a alteridade na educação superior.

Delineando o caminho investigativo

Utilizamos a abordagem qualitativa compreendida como um processo reflexivo por meio da análise da realidade e que utiliza métodos e técnicas para compreensão minuciosa do objeto investigativo (Oliveira, 2010). Quanto aos objetivos, essa pesquisa classifica-se como descritiva, pois analisa os fatos e “faz uma descrição detalhada da forma como se apresentam esses fatos e fenômenos, ou, mais precisamente, é uma análise em profundidade da realidade pesquisada” (Oliveira, 2010, p. 68).

O universo da pesquisa foi composto por 37 educadores-bacharéis que atuam em uma universidade pública do Nordeste. Para a seleção dos participantes, foram considerados os seguintes critérios: ser graduado na modalidade bacharelado; ter experiência mínima de cinco anos na docência universitária; atuar como docente universitário; ter disponibilidade; e aceitar a proposta da pesquisa.

A pesquisa empírica foi realizada em dois momentos. No primeiro momento, foi aplicado um questionário com o intuito de obter informações acerca dos saberes docentes articulados na atuação dos sujeitos. Este instrumento foi composto por quatro questões, abertas e fechadas, as quais abordaram os aspectos: relação com o educando; constituição de saberes docentes; e processo educativo. O questionário foi enviado por meio de correio eletrônico, com a utilização do software e ferramenta de pesquisa online denominado SurveyMonkey. [2]

Para a análise dos dados coletados por meio do questionário, recorremos à Análise de Conteúdo, seguindo as etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados (Bardin, 2009). A pré-análise foi realizada por meio da organização do material a ser interpretado a fim de torná-lo operacional e possibilitar a sistematização das ideias. Consistiu em um contato inicial com os questionários respondidos e a delimitação das respostas a serem analisadas. Na fase de exploração do material, foram definidas as categorias empíricas e desenvolveu-se a descrição analítica que se refere ao material textual coletado, submetido ao exame acurado. O tratamento dos resultados foi desenvolvido com suporte na condensação e no destaque de dados a serem analisados e, por conseguinte, incluíram-se inferências intuitivas, reflexivas e críticas.

Na segunda etapa, a pesquisa teve o intuito de aprofundar a discussão a respeito do objeto de estudo. Por meio dos discursos dos sujeitos, foi desenvolvida a técnica de entrevista compreensiva. Participaram dessa fase 11 docentes-bacharéis que foram convidados por terem apontado características relacionadas à perspectiva da ética levinasiana em suas respostas ao questionário. A seguir, apresentamos o quadro dos sujeitos/educadores participantes da fase de entrevista.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Quadro 1 Sujeitos/Educadores 

A entrevista compreensiva considera a existência de “[…] uma dimensão improvisada, intransferível e em grande parte autoconstruída” (Cavalcanti, 2013, p. 7). Utilizamos como instrumento uma grade de temas que “é um simples guia para fazer os informantes falarem em torno de um tema, sendo que o seu ideal é estabelecer uma dinâmica de conversação mais rica do que a simples resposta às perguntas” (Kaufmann, 2013, pp. 74-75). Para a interpretação dos resultados obtidos por meio das entrevistas, foi aplicada a técnica de Análise Compreensiva do Discurso (Barros, 2017). O registro das informações coletadas nas entrevistas foi feito por meio de gravação de voz, seguida de elaboração da ficha de escuta e interpretação (Barros, 2017). Foi necessária uma escuta sensível e não a simples transcrição integral das respostas obtidas, visto que “a transcrição integral transforma a natureza do material de base que se torna texto escrito, mais concentrado na linguagem; o que é ideal para o tratamento simplificado dos dados […]” (Kaufmann, 2013, p. 123).

Discutindo os resultados: os saberes docentes para o Outro (educando) na atuação do educador-bacharel (Eu)

Os saberes docentes básicos articulados na atuação do educador-bacharel

Foram estabelecidos os saberes básicos articulados na prática educativa de docentes bacharéis no âmbito da universidade, os quais foram agrupados em quatro: saberes da experiência; saberes pedagógicos; saberes interpessoais; e saberes específicos. Para a identificação desses saberes, foi indagado aos participantes quais saberes pedagógicos podem contribuir para a sua prática educativa. Tais saberes referem-se às necessidades específicas de bacharéis que atuam na docência universitária. A constituição desses conhecimentos, segundo os participantes, ocorre por meio de erros e acertos e, muitas vezes, intuitivamente.

Tardif (2013) e Gauthier et al. (2013) argumentam que os diversos saberes compõem um reservatório no qual o professor busca respostas para as circunstâncias práticas do ensino. Os dados denotam preocupação dos participantes com relação aos saberes pedagógicos interpessoais (Tardif, 2013; Barros, 2017), muito embora não deixem de citar como necessário o domínio de saberes da experiência e específicos. Os saberes pedagógicos (Pimenta, 2012) ressaltados pelos docentes foram: conhecimentos didático-pedagógicos; teorias educacionais; legislação; e domínio da diversidade de linguagens educacionais. O saber ensinar requer o domínio do campo pedagógico; eis aqui um dos principais desafios do educador na educação superior: a atuação de professores que não tiveram, em sua formação, o campo pedagógico como possível área de trabalho.

A necessidade de desenvolver saberes pedagógicos para a atuação como educador emerge como fator crítico para a sua prática educacional, visto que a sua formação inicial, por ser voltada para o mundo do trabalho, não privilegia aspectos pedagógicos. Ao abordar os saberes pedagógicos necessários ao educador, Freire (1996) considera que a existência da docência requer o discente e, nessa relação, o ensino deve superar a visão “bancária” de transmissão de conteúdo “É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (Freire, 1996, p. 12).

Os educadores-bacharéis destacaram os saberes da experiência. A experiência do bacharel que atua como educador se distingue da proposição de Pimenta (2012), ao considerar os saberes da experiência como conhecimentos que o estudante possui em relação aos professores que fizeram parte da sua vida educacional, pois refere-se ao que acontece ou aconteceu na sua vivência profissional; é a experiência que se obtém durante o exercício de uma profissão específica. A definição de saberes da experiência no contexto do educador-bacharel aproxima-se da concepção de Tardif (2013), ao compreendê-los como a sabedoria adquirida na prática profissional. A constituição de tais saberes por parte do educador-bacharel ocorre, principalmente, pelo fato de que, normalmente ao ingressar na Universidade, o docente-bacharel leva consigo uma “bagagem” profissional adquirida no mundo do trabalho.

A ausência de competência profissional do professor o torna inseguro e desqualifica a sua autoridade e segurança (Freire, 1996). Embora os conhecimentos adquiridos na prática profissional contribuam para a atuação docente, no sentido de compartilhar exemplos vivenciais deste, permanece uma lacuna relativa à competência pedagógica que precisa ser considerada na formação para a docência universitária. Tal hiato foi percebido pelos participantes desta investigação, ao salientarem a carência de saberes pedagógicos.

Percebe-se, ainda, o predomínio de fatores relativos aos saberes interpessoais como uma preocupação do bacharel-educador, os quais se desenvolvem por meio da relação do educador (Eu) com o educando(Outro) e, portanto, de saberes sociais, intermediada pela responsabilidade e ética. Os participantes ressaltaram os seguintes saberes interpessoais: relações interpessoais com os educandos; abordagens direcionadas aos alunos; capacidade de observar as necessidades e dificuldades discentes; e experiência no tratamento de problemas que surgem em sala de aula. Para Tardif (2013), os saberes interpessoais referem-se à ideia do desenvolvimento do trabalho por meio da interação humana e questiona como essa interação interfere nos conhecimentos, na identidade, nas técnicas e na vida profissional. Para Lévinas (1982, p. 63), “na relação interpessoal, não se trata de pensar conjuntamente o eu e o outro, mas de estar diante”. Os saberes para o Outro na atuação do educador universitário, segundo Barros (2017, p. 154), são marcados por uma relação que ocorre no “[…] encontro do educador como Eu com os Outros educandos, os quais se mostram como Rostos em diversos momentos e que exigem um olhar diferenciado”.

Freire (1996) menciona que ensinar é uma especificidade humana que abrange generosidade. Ensinar exige comprometimento; a educação é uma maneira de intervir no mundo, ultrapassando os conhecimentos de conteúdos; exige a habilidade de saber escutar e a disponibilidade para o diálogo. A educação deve ter como prioridades a valorização dos aspectos inerentes ao ser humano e suas inter-relações para, concomitantemente a estes, promover a formação dos outros aspectos, incluindo-se a formação para o mundo do trabalho (Freire, 1996).

A atuação docente localiza-se em um campo de formação onde se obtém o conhecimento teórico de conteúdos específicos de uma área a serem ensinados. No entanto, o educador universitário não pode ser visto como “[…] aquele que domina o conhecimento específico de sua área ou disciplina, mas que não necessariamente, sabe ensinar” (Almeida & Pimenta, 2011, pp. 24-25). A atuação desse profissional necessita articular conhecimento específico e pedagógico preocupando-se com as competências a serem desenvolvidas pelos educandos por meio das dimensões de ensino, pesquisa e extensão. O desejo e a disposição para aprender sempre, inclusive aquilo que se opõe ao nosso pensamento, devem ser o espírito atuante na atividade educacional.

Os saberes docentes para a alteridade na educação superior

E quais são os saberes docentes para a alteridade? A ética da alteridade radical ultrapassa a ideia do diferente. O Outro não é apenas o dissemelhante, mas sim o permanentemente Outro. O pensamento levinasiano critica o conceito de totalidade, como uma intenção equivocada da filosofia ocidental, que busca reduzir o Outro ao Mesmo, representação de domínio (Martins & Lepargneur, 2014). Ao totalizar o diferente, buscar assimilá-lo, o Eu é capaz de obter maior poder sobre o estranho, o estrangeiro, o Outro. Lévinas (1980) propõe uma nova maneira de pensar a Filosofia, rompendo com a ideia da ontologia como filosofia primeira, visto que a ontologia se institui em uma relação na qual o ser se sobrepõe ao ente, reduzindo o Outro à compreensão do Mesmo; neutraliza o ser para compreendê-lo, ou seja, trazer para si. Ao buscar conhecer totalmente uma pessoa, a sua alteridade é anulada. Ocorre, então, “[…] a redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do ser” (Lévinas, 1980, p. 31). Os antagonismos das relações entre o Mesmo e o Outro são solucionados por meio da redução do Outro ao Mesmo. Em contraposição a essa ideia, Lévinas (1980) defende a inversão dos termos, com base na metafísica que “[…] se realiza filosoficamente no tratamento do sentido da subjetividade humana. Na perspectiva da ética da alteridade, o Outro não é passível de compreensão e, portanto, não pode ser tomado para si” (Souza, 1999, p. 49).

Lévinas (1980) instaura, no cerne da reflexão filosófica, a ética como filosofia primeira e assim, desfaz a centralidade da ontologia, que é a busca pelo fundamento do ser, incluindo o humano como centro das discussões. Ao referir-se à alteridade em Lévinas, Martins e Lepargneur (2014, p. 6) interpretam que “a compreensão do Outro em Lévinas exige que o Outro continue sendo sempre o Outro e não “outro eu”. O Outro como alteridade não pode ser conceituado, mas permanece concreto. O Outro permanece sempre outro metafísico do qual o Eu necessita”. A ética da alteridade radical implica uma relação com o Outro, marcada pela responsabilidade do Mesmo de forma irrecusável.

E os saberes docentes para o Outro? Foram percebidas algumas características da alteridade nos discursos dos participantes, a saber: justiça; equidade; compromisso; seriedade; acolhida; humildade; respeito à pessoa do educando; respeito às diferenças do educando; respeito à liberdade do educando; acreditar no potencial do educando; atenção às dificuldades do educando; compreender o contexto social no qual o educando está inserido; formação do educando para a vida.

Na relação educador(Eu) - educando(Outro), destaca-se, como elo, a ética por meio de uma responsabilidade intransferível do Eu para com o Outro, com o surgimento dos terceiros (os Outros educandos); essa relação precisa ser pautada na justiça (Lévinas, 1982). As características da atuação dos participantes ressaltadas possuem relação com a ética da alteridade radical. Esses aspectos se inserem nos fundamentos da prática do educador-bacharel: responsabilidade, relação educador (Eu)-educando (Outro), alteridade radical e justiça, mediados pela ética como filosofia primeira (Lévinas, 1982), delineando os saberes necessários à prática do educador-bacharel (Barros, 2017). Os saberes para a alteridade são considerados como inacabados e infinitos, ou seja, essa concepção não significa apropriação e totalização do conhecimento. Trata-se de buscar sabedoria para relacionar-se com o educando(Outro), são saberes que se inter-relacionam, mediados pela ética e que ultrapassam os conhecimentos intelectuais.

Os participantes consideraram que buscam construir novos conhecimentos constantemente, possuem predisposição para a mudança. Os dados apontam que nenhum participante considera que possui toda a sapiência necessária para a sua atuação como educador. Isto significa que os educadores se percebem como profissionais inacabados, os quais não estão fechados para a busca contínua. Tais considerações corroboram o ponto de vista dessa investigação de que os saberes para o desempenho do educador-bacharel-áltero na universidade é um processo dinâmico, contínuo, fundamentando-se no conceito de inacabamento, conforme destaca Freire (1996, p. 22): “Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo á a maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento”.

Interpretando as palavras de Freire (1996), encontramos nas entrelinhas o significado do inacabamento do educador em sua atuação na busca por novas aprendizagens, outros modos de promover a educação e de contribuir para elaborar os conhecimentos dos seus educandos. Essa incompletude, intrínseca à natureza humana, não se aplica somente às formas pelas quais encaminha sua função de ensino, mas, principalmente, à sua relação com o educando(Outro), de repensar constantemente acerca de uma atuação fundamentada na relação-valorização do Outro. Freire (1996, p. 23) assevera que “a consciência do inacabamento entre nós, mulheres e homens, nos fez seres responsáveis, daí a eticidade de nossa presença no mundo”; acrescentamos a responsabilidade ética da presença do educador(Eu) ante a invocação do Rosto do educando (Outro). É nessa direção que os sujeitos “[…] aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos” (Freire, 1996, p. 35). Talvez essa incompletude, esse inacabamento, seja o motivo da busca não alcançada, pois o Outro é infinito e não pode ser objetivado.

A sabedoria para a relação educador(Eu) - educando(Outro) é infinita, não englobável, não totalizada. Não se trata do domínio intelectual, mas de uma busca por sabedoria, prudência e discernimento para oferecer respostas ao educando (Outro) visando a atender à invocação que emana do seu Rosto. Sabedoria para uma relação educador(Eu) - educando(Outro) mediante uma responsabilidade pelo educando(Eu), da alteridade radical e da justiça no encontro como acontecimento ético – sabedoria para o Outro. Os saberes docentes para a alteridade ultrapassam o conhecimento intelectual, o domínio de conceitos acabados, pois são, “[…] para além da sabedoria do conhecer, a sabedoria do amor ou a sabedoria à guisa do amor […], sabedoria que o rosto do outro homem ensina” (Lévinas, 2010, p. 255). São saberes para a acolhida ao educando(Outro), abertura ao diferente, resposta ao Rosto que o interpela à responsabilidade no seu caminho em direção à aprendizagem. Trata-se da busca infinita por sabedoria para amar o educando absolutamente Outro. Sabedoria que o Rosto do educando(Outro) ensina ao educador(Eu). Emergem os saberes docentes para a alteridade: responsabilidade; a relação educador(Eu) - educando (Outro); a alteridade radical; e justiça.

Os saberes relacionados à responsabilidade referem-se ao compromisso, à seriedade, à compreensão do contexto social no qual o processo educativo se desenvolve e à incumbência pela aprendizagem do educando(Outro). A articulação dos saberes para a responsabilidade na prática educativa poderá contribuir para a formação de profissionais conscientes de seus deveres como cidadãos. Acerca de como os participantes se sentem em relação à possibilidade de o educando não alcançar resultados positivos em seu processo de aprendizagem, destacamos:

[…] Já pensou, você chegar no final do semestre, você perceber que ninguém entendeu? […] Eu morro, eu fico mal, eu não durmo, eu só falto ficar doente. Eu, nossa! Porque a gente chega na sala de aula com objetivos bem claros, né? E quando eu saio da aula, eu já sei que essa aula não foi boa, né? A gente sabe. Não deu certo, aquilo não funcionou (Educadora 7).

Eu me sinto muito responsável, eu me cobro, até demais, com relação a isso, embora tenha vezes que eu note que não cabe mais a mim, que eu já fui até onde eu poderia ir […]. Mas eu tenho muita responsabilidade mesmo! Eu tenho muito receio, acho que pelo perfeccionismo de chegar e dizer: ah! Eu não aprendi nada. Às vezes até determinados conceitos, determinados assuntos que eu vejo que é fundamental em determinadas disciplinas, eu digo: pelo amor de Deus, vocês esqueçam o nome de vocês, mas não esqueçam disso porque isso é uma coisa que vocês vão levar pra vida (Educadora 8).

Essas reflexões confirmam que há um senso de responsabilidade em relação ao educando por parte dos participantes, no sentido levinasiano, o qual propõe que o Eu é responsável pelo Outro ainda que esta resposta deva lhe custar a vida (Lévinas, 1980, 1982, 1988). Para Lévinas (1982, p. 83), “[…] eu próprio sou responsável pela responsabilidade de outrem”. Os educadores-bacharéis-“álteros” indicaram que se preocupam em formar os educandos para a vida em sociedade como agente ativo e inovador. Essa ideia refere-se ao saber crítico-conceitual (Saviani, 1996) o qual se relaciona à capacidade de o educador compreender o contexto social no qual o processo educativo se desenvolve, para que seja capaz de formar os educandos para a vida em sociedade como agentes ativos e inovadores.

É necessário promover uma formação para a responsabilidade e ética levinasianas, visto que o desenvolvimento dessa ética nos futuros profissionais poderá contribuir para a constituição de uma cidadania pautada não somente em normas prescritas, mas, principalmente, na humanização. Nesse sentido, ser ativo e inovador significa reaver na sociedade uma ética de respeito e valorização ao próximo, superando a visão de que a individualidade deve prevalecer no ambiente de trabalho e nas diversas esferas sociais. A obrigatoriedade em oferecer respostas ao chamado do educando(Outro) está relacionada com a capacidade de compreender o contexto social no qual ocorre o processo educativo, ou seja, para responder a invocação do educando como Rosto que fala. “O rosto abre o discurso original, cuja primeira palavra é obrigação que não se permite evitar" (Martins & Lepargneur, 2014, p. 7). O educador(Eu) precisa olhá-lo no local onde ele está; isso significa usar lentes que ampliem a sua percepção sobre o educando(Outro) em sua individualidade, buscar entender o que o impede de se desenvolver, ou seja, não olhar contingencialmente para aquele momento.

Para assumir a responsabilidade pela aprendizagem do educando(Outro), se faz necessário um acompanhamento desse processo, requer desenvolver a capacidade de ouvir quando o Rosto do educando fala: “não me mate! Eu preciso de orientação! Eu quero aprender; eu preciso aprender!" Perceber essa fala é preciso mesmo quando o chamamento à responsabilidade é feito por meio do silêncio.

No que se refere à relação educador(Eu) - educando(Outro), percebemos que os participantes respeitam a total diferença do educando na condição de Outro. Isto exprime que os educadores-bacharéis-“álteros” não concebem a totalização do ser, não buscam assimilar o educando(Outro), o que o desvia da restrição do Outro ao Mesmo (Lévinas, 1980). Os respondentes revelaram que se responsabilizam pela aprendizagem e possuem um compromisso com o educando. A relação educador(Eu) - educando(Outro) se dá por meio da ética da alteridade radical, ou seja, o educando na qualidade de Outro do educador emerge como figura principal nessa relação, a qual se projeta na acolhida ao totalmente Outro. Pressupomos “[…] a colocação em suspensão das posições do "eu" e o acolhimento das posições do "Outro" (Alves & Ghiggi, 2012, p. 76). A Educadora 6 compreende que a alteridade radical na relação educador(Eu) – educando(Outro) significa “[…] ser inteiro, agora não é uma coisa fácil, não é uma coisa simples […] porque ser inteiro em uma relação com o Outro em que você participa da vida dele naquele momento […] e naquele momento a entrega é total” (Educadora 6).

Essa opinião foi complementada pela fala de outra participante, ao refletir que a alteridade radical tem o sentido de“[…] renunciar a si para escutar o Outro, né? […] eu ali aberta. Esse encontro que você tem com o Outro a partir do Rosto, que ele é vivo, as expressões são vivas e são socialmente compartilhadas” (Educadora 8). Ao ser responsável pelo educando(Outro), o educador(Eu) é convocado ao encontro face a face, em uma relação interpessoal na qual este encontra-se frente a frente com aquele que lhe faz um chamado a uma responsabilidade da qual não é possível esquivar-se (Lévinas, 1982).

Os participantes buscam acolher o educando por meio da abertura a outras concepções. Esse resultado concorre para a ética da alteridade, pois o educando como Rosto exige uma acolhida na qual a sua alteridade seja resguardada e essa abertura pode ocorrer por meio da interação responsável. Os respondentes indicaram que confiam na capacidade do educando. Essa opinião é ressaltada pela Educadora 9 ao mencionar que estimula “[…] o educando para uma potencialidade além do que ele percebe”. Em sua atuação, o educador-bacharel-“áltero” se afasta do modelo bancário de ensino (Freire, 1996), o qual busca totalizar outrem repassar informações como acabadas, prontas para o educando e favorecer a sua representação; o educando, na concepção levinasiana, é considerado Outro - infinito.

Para que seja possível pensar a relação educador(Eu) - educando(Outro) sob a ótica levinasiana, é necessária, em primeiro lugar, uma abertura do educador como Eu para a acolhida do educando totalmente Outro; uma acolhida na qual o educando(Outro) perceba que está sendo ouvido de fato; para tanto, o educador(Eu) necessita sair de si mesmo em direção a outrem, descer do pedestal do poder e do domínio do saber para acolher o educando(Outro). Isso só é factível se o educador(Eu) reconhecer que não é o centro do processo educativo, ao contrário, o Eu vem em segundo plano. É preciso, ainda, acreditar no potencial do educando e, além disso, possibilitar um ambiente educativo no qual este saiba que o educador confia em seu potencial, que ele - o educando - pode ir além.

Os saberes relativos à alteridade radical, que significa colocar o Outro em primeiro lugar (Lévinas, 1982), referem-se à busca por sabedoria que possibilite o respeito à pessoa do educando, acolhida às suas diferenças, colocando-o no centro do processo educativo. O educando(Outro) vem antes do educador(Eu), sempre está em primeiro lugar! Nesse texto, os saberes significam as características do educador(Eu) que segue ao encontro com o educando(Outro). Trata-se da sabedoria para o Outro, em um movimento de retirada do educador como Eu para dar lugar ao educando como Outro por meio do discernimento de que o educando(Outro) deve ser o centro dos processos de ensino e aprendizagem por intermédio da acolhida e da abertura à sua alteridade. Na compreensão de uma participante, a alteridade radical do educador significa:

[…] o educador se abandonar de si mesmo para se deparar com o Outro educando […] então seria essa preocupação que o educador tem com o seu aluno numa amplitude de ações na sala de aula. Toda vez que a gente vê esse termo radical […] algo que rompe com a normalidade seria a responsabilidade total […]. Acho que dentro do contexto de sala de aula, o professor tem que ser aberto a uma leitura da sala. Ele tem que ler a sala […] esse olhar do professor voltado a essa aproximação maior com o aluno, voltado mais para o relacionamento (Educadora 9).

Esse discurso retrata o papel do educador-bacharel-“áltero” em sala de aula. Evidencia a necessidade de olhar para o Outro em sua diferença e ter a sensibilidade de perceber o seu chamado, a invocação do educando como Rosto. Em sala de aula, pode significar perceber as lacunas relacionadas à sua aprendizagem, às suas dificuldades e responder ao educando, apontar caminhos para que ele seja capaz de formular o seu conhecimento; ou seja, “ser sensível à necessidade do Outro. Essa aprendizagem vai mudar na medida em que eu foco nele, dou prioridade a ele […]. A sua necessidade me faz repensar a minha forma de agir” (Educadora 6).

A acolhida às diferenças do educando foi considerada na atuação dos respondentes, corroborando Freire (1996) ao defender a posição segundo a qual o homem se desenvolve na disparidade, sobretudo no respeito a ela. Isto denota que os educadores-bacharéis participantes possuem uma forte inclinação para a alteridade. Quanto à atenção às dificuldades do educando, somente dois participantes informaram que “às vezes” observam este aspecto, enquanto a maioria destaca que observa “quase sempre” e “sempre”. Esse fato indica a presença de movimentos da ética da alteridade radical na atuação do educador-bacharel-“áltero” visto que, ao se preocupar com as dificuldades do educando, o educador está voltado para o oferecimento de respostas às necessidades do Outro.

O respeito à liberdade e à compreensão do contexto no qual o processo educativo se desenvolve, contudo, embora seja indicado pela maioria dos participantes, não se manifesta totalmente em sua atuação, pois alguns participantes informaram que somente “às vezes” observam esses aspectos. Nesse sentido, há uma ausência em relação à responsabilidade pela liberdade do educando(Outro). “A liberdade se apresenta, numa primeira análise, sob o aspecto duma vontade subtraída a toda influência” (Lévinas, 2010, p. 49). O respeito à pessoa do educando refere-se à não objetivação deste Outro, ou seja, não o transformar em um simples objeto que não possui a capacidade própria de formular pensamentos, reflexões e novos conhecimentos; não negar a sua capacidade de ir além, de ser infinito. Com isso, respeitar as suas diferenças, saber que ele é totalmente Outro e aceitá-lo com peculiaridades, opiniões, crenças e valores que podem ser divergentes. Desde a acolhida do educando em sua alteridade, situá-lo no cerne dos processos de ensino e aprendizagem. O educando como Outro levinasiano deve vir em primeiro lugar, antes mesmo do Eu, o educador.

Os saberes para a justiça ressaltados são: equidade, imparcialidade e igualdade. Os participantes ponderaram que agem de modo justo em relação aos outros educandos. Essa afirmação favorece a noção de justiça (Lévinas, 1982), pois os demais educandos chegam como terceiros do educando (Outro). Na perspectiva desse trabalho, os saberes necessários ao educador, como responsável pelo Outro (o educando), devem ser aplicados em seu cotidiano, de modo que a elaboração de conhecimentos seja desenvolvida por meio da criação de espaços educativos que proporcionem a formação de um profissional apto a intervir na sociedade, com suporte nos princípios da ética e da responsabilidade. Os educadores-bacharéis-“álteros” demonstraram intensa preocupação com a equidade em sua atuação. Sobre esse aspecto, foi indagado aos participantes como a justiça se desenvolve na sua atuação. Uma participante fez a seguinte consideração:

Por exemplo: seminário; tinha as notas e eram feitas em equipes; eu comecei a observar que era injusto porque alguns participavam diretamente na fala, mas outros participavam diretamente na pesquisa e na escrita, exatamente pelo perfil individual. Aí, o que é que eu faço agora? O seminário vale dez, cinco é de nota individual e cinco pontos é do coletivo. Porque aí não fica nem centrado no indivíduo e nem centrado no coletivo (Educadora 8).

Na proposição levinasiana, a necessidade de saberes para a justiça emerge com a chegada dos terceiros, ou seja, os outros educandos. Enquanto relação educador(Eu) - educando(Outro), não há com o que se preocupar, pois entre o educador(Eu) e o educando(Outro), este deve sempre vir em primeiro lugar. A questão é a chegada do terceiro (outro educando) ou dos terceiros (outros educandos). Ao envolver o terceiro sujeito, as decisões do educador(Eu) devem ser cuidadosas para que não haja nenhum tipo de injustiça.

Considerações finais

A pesquisa possibilitou a identificação de saberes básicos articulados à atuação do educador-bacharel no âmbito universitário. Tais conhecimentos foram agrupados em quatro categorias: saberes da experiência profissional; saberes pedagógicos; saberes interpessoais; e saberes específicos.

Os saberes da experiência referem-se à vivência do educador-bacharel em sua área de formação inicial, ou seja, os conhecimentos adquiridos em sua prática profissional. Consideramos a insuficiência da experiência prática de uma determinada profissão para a práxis educativa. Evidenciou-se a necessidade de desenvolvimento de saberes pedagógicos com foco em conhecimentos didático-pedagógicos, teorias educacionais, legislação educacional e domínio da diversidade de linguagens educacionais. Foram apontados os saberes interpessoais que norteiam a atividade do docente-bacharel na relação educador-bacharel(Eu) - educando(Outro). Os saberes específicos dizem respeito ao domínio e à atualização sobre temas específicos da área de atuação dos professores.

Ampliamos a discussão acerca dos conhecimentos necessários à docência na educação superior ao delinear os saberes docentes para a alteridade, por meio de um diálogo entre a filosofia levinasiana e as teorias da educação, a saber: saberes para a responsabilidade; saberes para a relação educador(Eu) - educando(Outro); saberes para a alteridade radical; e saberes para a justiça. Os saberes para a responsabilidade referem-se ao compromisso, à seriedade, compreensão do contexto social no qual o processo educativo se desenvolve, à responsabilidade pela aprendizagem do educando(Outro). Os saberes para a relação educador(Eu) - educando(Outro) requerem uma abertura do educador como Eu para a acolhida do educando totalmente Outro; acolhida às diferenças do educando(Outro), educando(Outro) situado no centro do processo educativo, respeito ao potencial do educando(Outro). Os saberes para a alteridade radical envolvem. respeito à pessoa do educando(Outro); respeito às diferenças do educando(Outro); o educando(Outro) como centro do processo educativo. Os saberes para a justiça: equidade; imparcialidade; e igualdade. A justiça surge com a chegada dos terceiros, os Outros educandos.

Consideramos haver uma incompletude em relação à aprendizagem do educador. Os conhecimentos a serem constituídos não se esgotam em conteúdos específicos, experiências profissionais, saberes científicos; impõe-se uma formação direcionada à relação ética entre educador(Eu) e educando(Outro). Emerge a necessidade de construção de saberes voltados para a relação entre educador(Eu) e educando(Outro), considerando a acolhida ao educando por meio da alteridade radical. Isso significa que o educando deve vir antes do educador; aquele é a pessoa mais importante nos processos de ensino e aprendizagem e este tem a obrigação de responder às suas necessidades no caminho em direção ao conhecimento.

A constituição do educador-bacharel-áltero para a educação superior necessita alinhar-se aos saberes docentes para a relação entre educador(Eu) e educando(Outro), de modo que a atuação daquele possibilite contribuir para o caminho deste na construção do conhecimento. Isso implica uma atuação na qual o educador se exclua do centro do processo educativo, posicionando o educando nesse “lugar”; ou seja, no cerne dos processos de ensino e aprendizagem, por meio de uma relação que valorize o educando com suas diferenças, necessidades, dificuldades, seus anseios e considerar os conhecimentos que traz para a sala de aula: seus saberes e suas experiências. Para tanto, a formação pedagógica necessária ao educador-bacharel-áltero inclui a alteridade, o olhar para o educando na posição de Outro.

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[1]A maioria dos textos levinasianos utiliza os termos Outro, Eu, Mesmo, Rosto com iniciais maiúsculas. Optamos por manter assim para dar ênfase a estes conceitos, com o intuito de distingui-los do uso comum.

[2]Disponível em: https://pt.surveymonkey.com

Recebido: 08 de Abril de 2020; Aceito: 23 de Setembro de 2020

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