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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília ene./dic 2020  Epub 02-Oct-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.33042 

Artigos

Uma história das mobilizações das medidas no contexto das finalidades de Desenho

Una historia de la movilización de medidas en el contexto de los propósitos del Diseño

A history of the mobilization of measures in the context of Design purposes

Deoclecia de Andrade Trindade1 
http://orcid.org/0000-0003-1171-5610

Marcos Denilson Guimarães2 
http://orcid.org/0000-0002-9967-4624

1Doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos, SP. Professora do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Sergipe, Campus São Cristóvão, SE. Pesquisadora do GHEMAT-Brasil.

2Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos, SP. Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Federal do Maranhão, Campus Bacanga, São Luís, MA. Pesquisador do GHEMAT-Brasil.


Resumo

Sob a perspectiva da história da educação matemática, este texto apresenta os resultados de um estudo que teve como questão norteadora discutir como as medidas podem ter sido mobilizadas no contexto das finalidades de ensino de Desenho para o curso primário paulista, no período de 1890-1950. Para isso, tomaram-se como base para análise os programas de ensino de São Paulo promulgados à época e os resultados apresentados pelas pesquisas de Guimarães (2017) e Trindade (2018). Nesse sentido, orientaram a análise os referenciais teórico-metodológicos da história cultural. Pelo exame, a mobilização das medidas ligada ao contexto das finalidades de ensino de Desenho, de modo a garantir a representação de desenhos geométricos e/ou do natural, se dava prioritariamente e implicitamente com ênfase numa medida intuitiva, conferida e associada ao desenvolvimento de habilidades manual e visual, seja ligada à reprodução de figuras geométricas, seja à cópia de modelos da natureza e/ou manufaturados.

Palavras-chave Medidas; Finalidades de ensino; Ensino de Desenho; História da Educação

Resumen

Desde la perspectiva de la historia de la educación matemática, este texto presenta los resultados de un estudio que tuvo como pregunta orientadora para discutir cómo las medidas pueden haberse movilizado en el contexto de los propósitos de enseñanza del Dibujo para el curso primario en São Paulo, en el período comprendido entre 1890 y 1950. Para eso, los programas de enseñanza de São Paulo se promulgaron en ese momento y los resultados presentados por las investigaciónes de Guimarães (2017) y Trindade (2018) se tomaron como base para el análisis. En este sentido, el análisis guió las referencias teóricas y metodológicas de la historia cultural. A través del examen, a la movilización das medidas vinculadas al contexto de los propósitos de enseñanza del Dibujo, a fin de garantizar la representación de dibujos geométricos y/o naturales, e implícitamente con énfasis en una medida intuitiva, conferida y asociada con el desarrollo de las habilidades manuales y visuales deben estar vinculadas a la reproducción de figuras geométricas, ya sea para copiar de modelos de la naturaleza y/o fabricados.

Palabras clave Medidas; Propósitos de enseñanza; Enseñanza de Dibujo; Historia de la Educación

Abstract

From the perspective of the history of mathematics education, this text presents the results of a study that discussed how the measures may have been mobilized in the context of the purposes of teaching drawing for the primary course in São Paulo, in the period from 1890 to 1950. For that, the teaching programs of São Paulo promulgated at the time and the results of researches conducted by Guimarães (2017) and Trindade (2018) were taken as basis for analysis. In this sense, the analysis was guided by the theoretical and methodological references from cultural history. After the examination, we can say that the mobilization of measures associated to the context of the purposes of teaching drawing, in order to guarantee the representation of geometric and/or natural drawings, was given priority and implicitly with emphasis on an intuitive measure, conferred and associated with the development of manual and visual skills related to the reproduction of geometric figures, or to the copying of nature and/or manufactured models.

Keywords Measures; Teaching purposes; Drawing Teaching; Education history

Introdução

Na perspectiva de investigar os saberes matemáticos e a matemática escolar a partir dos documentos, este texto dedica-se a apresentar uma discussão, no âmbito da História da educação matemática, a respeito das medidas e das finalidades para o ensino de Desenho no curso primário paulista, compreendido o marco cronológico de 1890 a 1949/50. O enredo aqui apresentado tem como base inicial de discussão os resultados de duas pesquisas de doutorado, uma intitulada “Por que ensinar Desenho no curso primário? Um estudo sobre as suas finalidades (1829-1950)”, de autoria de Guimarães (2017) e outra denominada “As artes de medir: saberes matemáticos na escola primária de São Paulo, 1890-1950”, escrita por Trindade (2018).

A pesquisa de Guimarães (2017) buscou investigar quais transformações sofreram as finalidades de ensino do Desenho no curso primário paulista, entre os anos de 1829 a 1950. Como resultado, o autor constatou que, ao ensino do Desenho, foram atribuídas diferentes finalidades que se transformaram ao longo do tempo. Entre permanências e rupturas, o ensino do Desenho no curso primário constituiu-se como fruto de um processo notadamente marcado pela apropriação de discursos, sobretudo internacionais.

O estudo de Trindade (2018) enveredou pela caracterização das medidas enquanto um saber que fora mobilizado nas matérias Aritmética, Geometria e do próprio Desenho. A autora também quis identificar quais finalidades de ensino puderam ser lidas dessas mobilizações, a partir das orientações para a escola primária de São Paulo, no período compreendido entre 1890 e 1950. Entre os resultados, a autora evidenciou que esse saber cumpria diferentes mobilizações e finalidades, denominadas por artes de medir.

Pelo que se apresenta, destaca-se que, embora as referidas pesquisas tenham considerado objetivos distintos, apresentaram elementos de interseção. Elas tomaram a matéria Desenho, a escola primária paulista, as finalidades de ensino e os programas de ensino de São Paulo, em algum momento da produção. Além de considerarem referencial teórico-metodológico comum: História Cultural (Chartier, 1990/2002), Cultura escolar (Julia, 2001) e História das disciplinas escolares e estudo sobre as finalidades (Chervel, 1990). Base essa também assumida para este escrito.

Segundo Chartier (1990/2002), “a história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (Chartier, 1990/2002, pp. 16-17). Noutras palavras, produzir uma história tem a ver com interpretar uma realidade social nos diferentes momentos em que foi lida, percebida e reproduzida pelos distintos modos de ver dos sujeitos. Desta maneira, ao pensar na produção deste texto, os saberes matemáticos e suas finalidades são vistos como fatos históricos da realidade a ser conhecida.

No campo de pesquisa que é a História da educação matemática (Valente, 2013), nos valemos da perspectiva que considera a existência de uma cultura dentro do ambiente escolar - a cultura escolar. Julia (2001), por exemplo, entende que tanto o conjunto de normas quanto o conjunto de práticas, coordenadas às finalidades que regem a escola, podem variar segundo as épocas. Dito de outro modo, a cultura escolar pode ser definida como,

[…] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). (Julia, 2001, p. 10, grifos do autor)

Ambos os trabalhos (Guimarães, 2017; Trindade, 2018), ao considerar o estudo das finalidades de ensino, tomaram os estudos de Chervel (1990) como referência, especificamente, seu texto com expressiva circulação pelo Brasil - “História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa”. Importante ressaltar que Chervel (1990) classifica as finalidades de ensino [1] em: de objetivo (ou teórica) e real. Enquanto as finalidades de objetivo, mesmo que possam enganar, geralmente são aquelas prescritivas nos textos oficiais e na legislação, as quais se referem a um fim teórico, pois ainda não concerne à realidade; a “definição das finalidades reais da escola passa pela resposta à questão: porque a escola ensina o que ensina?” (Chervel, 1990, p. 190).

Ao propor como tarefa a discussão das finalidades que correspondem ao ensino, com base em Chervel (1990), a primeira documentação que se apresenta ao historiador são os textos oficiais programáticos, circulares, as leis, os decretos, acordos, instruções e circulares, programas de ensino etc. Quando se trata do estudo das finalidades, a exploração deste corpus é o ponto de partida. E com isso, este estudo inicial tem como resultado uma primeira leitura das finalidades de ensino, neste caso as ditas teóricas.

Dessa maneira, ao considerar as referidas pesquisas no âmbito stricto sensu, esse texto toma como elemento de aproximação, a ambas as produções, uma questão norteadora: como as medidas são mobilizadas no contexto das finalidades de ensino lidas para a matéria de Desenho da escola primária paulista, durante o período examinado?

À vista dessa questão geral, outras interrogações tornam-se pertinentes ao debate, as quais são tomadas para subdividir esse texto em duas partes. A primeira, destina-se a discutir quais modalidades de desenho eram propostas para os primeiros anos escolares e quais finalidades de ensino foram lidas em relação a essa matéria, entre os anos de 1890 a 1950. E num segundo momento, a reflexão é direcionada para o debate acerca do entendimento de como as medidas puderam ser mobilizadas no âmbito do ensino de Desenho [2] para a escola primária paulista, no período estudado.

Modalidades de desenho e suas finalidades de ensino entre os anos de 1890 e 1950

Os primórdios da história didática do Desenho, segundo Trinchão (2008), reportam-se a três períodos importantes da história educacional mundial: as ideias pedagógicas de Comenius (1592-1670) e Rousseau (1712-1778); as ideias didáticas de Pestalozzi (1746-1827); e o método francês de ensino mútuo de Francoeur. A demarcação desse período iniciou-se na segunda metade do século XVII e acabou se expandindo na primeira metade do século XIX, com a organização dos elementos básicos do desenho, o desenho linear, lançado em 1819, no limiar da institucionalização do ensino público francês.

Ao fazer este apanhado histórico, Trinchão (2008) marca claramente a posição sobre como esses sujeitos defendiam a relação existente entre educação e desenho. Naquelas épocas, encarado como um meio de aprimoramento dos sentidos, suas finalidades de ensino variaram desde o aperfeiçoamento da visão e da mente à sua utilidade na percepção das formas geométricas.

Neste contexto, alguns historiadores (Nascimento, 1999; Zuin, 2001; Machado, 2012) da educação/educação matemática assinalam que a origem do desenho enquanto disciplina escolar no Brasil se deveu às Academias Militares que, na “arte da guerra”, impulsionaram o aparecimento e o aperfeiçoamento das primeiras armas de fogo, bem como intensificaram a construção de fortificações que protegiam dos ataques de possíveis inimigos. Todavia, logo após a Independência, em 1822, o ensino desse saber foi gradativamente se deslocando do âmbito da formação militar para a esfera pública, no bojo de criação das primeiras Escolas Normais brasileiras, dos Liceus Provinciais e do Colégio Pedro II. Os professores militares convocados para o ensino nessas outras instituições acabaram difundindo a escolarização técnico-militar desenvolvida nas Academias em que eram formados (Machado, 2016).

Já no âmbito de criação e funcionamento das primeiras escolas primárias ou de primeiras letras da Província do Rio de Janeiro, Guimarães (2017) aponta que o ensino de Desenho foi notoriamente marcado por um forte quadro de instabilidade, em que ora estava previsto como matéria obrigatória, ora era entendido como matéria optativa nos documentos oficiais que estruturavam e organizavam essas escolas. Segundo esse pesquisador, esse vai e vem instável pode ser justificado pelo difícil processo de institucionalização das primeiras escolas normais do País que, no período de 1827 a 1890, pautadas nos moldes medíocres de escolas primárias, não passaram além de ensaios rudimentares e mal sucedidos (Tanuri, 2000). Isso fez com que a formação profissional fosse acometida, culminado na quase inexistência de professores qualificados para o seu ensino e das demais matérias que integravam o currículo.

Destaca-se que a volta a esse passado longínquo não teve a intenção de revisitá-lo por completo, tendo em vista tratar-se de um objetivo fora de propósito. Essa retomada é posta de modo a cimentar a posição de que essas ideias podem ter sido apropriadas em discursos científicos e educacionais que compuseram o cenário brasileiro na virada do século XIX para o XX. Em outros termos, foi a partir desses pedagogos, citados por Trinchão (2008), que as propostas didáticas para o ensino de Desenho que se seguiram possam ter sido recriadas/apropriadas, trazendo consigo alguns desses princípios e fundamentos como base para as propostas didáticas que alicerçaram o curso primário brasileiro.

Mas para o que interessa a esse texto foi com a criação dos primeiros grupos escolares de São Paulo, surgidos no corpo das leis em 1893, e oficialmente implantados em 1894, que as escolas primárias republicanas foram colocando em circulação um modelo de escolas seriadas, regidas pela figura única do professor e baseadas no método de ensino intuitivo. Houve com isso uma reordenação dos tempos e espaços escolares, bem como uma nova apresentação de programas de ensino, os quais passaram a informar sobre o trabalho que o professor deveria exercer em sala de aula, constituindo-se como um norteador das práticas e dos saberes que deveria ensinar.

Com base em Trindade (2018), diferentes formas foram propostas para o ensino de Desenho. De uma leitura aos programas de ensino de São Paulo, a autora, ao questionar as fontes sobre quais coisas e objetos desenhar, constatou recorrências de modalidades distintas de desenho com conteúdos de ensino como: figuras geométricas, ao citar “Triângulo: construção de triângulo retângulo, do triângulo isósceles, do triângulo equilátero” (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 1894); elementos da natureza, com expressões como “Desenho de animais, plantas, folhas, flores, paisagens etc” (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 1905); objetos manufaturados, ao apresentar “jarra de água e caneca; prato com fatias de melão […] bandeja de copos; vidro, cálice e colher […]” (São Paulo, 1941, p. 58); e desenhos de cenas e ilustração, ao expor “desenho livre com assunto sugerido: a) de cenas; b) de assuntos relativos aos estudos” (São Paulo, 1951, p. 16).

A partir destas prescrições, sobre essas formas de desenhos localizadas cronologicamente nos programas de ensino, Trindade (2018) então sistematizou um esquema, posto na figura a seguir.

Fonte: Trindade (2018)

Figura 1 Tipos de desenhos propostos por programa de ensino 

Mediante a figura, como destaca Trindade (2018), observa-se que, ao longo dos programas, as propostas foram alteradas. Constata-se que as propostas se reconfiguram de tempos em tempos. De caráter geral e num exame cronológico, nota-se que, em 1894, a prioridade se concentrava nos desenhos de formas geométricas; em 1905 e 1918, tem-se, além de referências a desenho de modelos geométricos postos ao 3º. e 4º. anos, a sugestão de um novo formato de desenho, de elementos da natureza, como frutas, flores, animais e paisagens. Em 1921, além de observar incidências a esses elementos da natureza, aparecem pela primeira vez prescrições de desenhos de objetos manufaturados, considerados aqui com aqueles que faziam menção a artefatos produzidos pelo homem, como cadeira, casas, igrejas etc.

Em 1925, os elementos da natureza, os objetos manufaturados de linhas simples se mantêm e as representações de formas geométricas voltam a aparecer; entretanto, em 1934, elas novamente desaparecem, embora sejam mencionadas composições decorativas com elementos geométricos aplicadas ao adorno de superfícies planas e espaciais, assim como desenhos de ilustração. Por fim, em 1949/50, esse programa retoma as formas da natureza, mas também prescreve pela primeira vez um novo conteúdo de desenho, que se remete a desenhar uma cena sobre algum conto ouvido ou lido, histórias e/ou situações relacionadas à vida. Ademais, mantém-se o proposto em 1934 e retoma-se o desenho de formas geométricas, como linhas, triângulos, quadriláteros etc. Vale ressaltar que, no primeiro ano do programa de 1949/50, há prescrições de diferentes tipos de desenhos, porém não há especificidades de quais objetos seriam desenhados.

Ao acentuarmos essas diferenças, percebe-se que o ensino de Desenho passou por muitas transformações. Uma das hipóteses que justificam essas mudanças são as vagas pedagógicas [3] , que foram sendo instauradas em cada momento histórico, modificando, assim, o estatuto epistemológico e didático de ensinar esses conteúdos. Uma forma de dar sentido a “O quê?” e também a "Como ensinar Desenho?” era através das finalidades e do modo de organização do seu ensino, sejam eles com base em princípios elementares ou rudimentares (Guimarães, 2017). Ademais, pondera-se desta análise que, de um ensino pautado no desenho de formas, figuras e objetos geométricos, como o exposto no programa de 1894, passamos a presenciar um ponto de inflexão na passagem do século XIX para o início do século XX.

Ao mudar a questão feita aos programas de ensino, e tomar o conselho de Chervel (1990) de que a pedagogia não age como lubrificante, mas é parte constituinte do saber, e então indagar aos programas sobre quais saberes (conteúdo + pedagogia) de desenho podem ser identificados nos programas de ensino, constata-se um conjunto de diferentes modalidades: desenho geométrico, desenho do natural, desenho decorativo, desenho de memória etc, que se apresentavam em períodos, o que permitiu a construção do esquema a seguir.

Fonte: elaborada pelos autores a partir dos programas de ensino de São Paulo (1894-1950).

Figura 2 Modalidades de desenhos distribuídos por programa (1894-1949/50) 

Quando analisado em seus detalhes, e considerando as diferentes vagas pedagógicas de cada época, esse quadro destaca, além de um aumento gradativo no número de modalidades de desenho e permanências por períodos específicos (como o caso do desenho de imaginação e memória que ingressa em 1921 e permaneceu até os programas de 1949/50), uma relação intrínseca com as suas finalidades de ensino, as quais foram alteradas e, significativamente, ampliadas ao longo do tempo.

Sobre o desenho geométrico, embora seja notável a partir da Figura 2 como uma permanência, a relação de proximidade entre o desenho e o ensino da matéria Geometria, observada no programa de 1894, não é a mesma vista nos programas subsequentes, isso porque, com a virada do século, a referência ao desenho geométrico é pontual, se remetendo ora à reprodução de grupos de modelos e sólidos geométricos, ora ao uso expressivo de instrumentos de precisão (como régua, compasso e esquadro) aplicado às noções de geometria prática.

Nesse âmbito, cabe mencionar que, relativo ao programa de 1894, a prática utilizada no ensino de desenho geométrico era sistemática e repetitiva, justificada pelo não uso identificado de instrumentos de precisão. Porém, nessa e em suas outras recorrências, tinham a forma geométrica como ponto de partida para a prática da observação e do traçado de figuras e objetos que ilustravam as noções aprendidas. Uma visível instrumentalização da mão baseada num aperfeiçoamento manual e, também, técnico.

Como sinalizado na Figura 2, diferentemente dos demais programas, nos quais o desenho geométrico se fez de forma pontual, mas explícita, no programa de 1934 encontram-se pistas de que ele tenha sido utilizado de modo implícito no esboço de composições decorativas a partir de elementos geométricos (3º e 4º anos). A sua utilização, nesse programa, consistiu em servir para formar barras, molduras, cercaduras, rosáceas e fundos diversos, que aplicados às composições decorativas, destacariam as superfícies quadrangulares, triangulares, circulares etc, constituindo-se como adornos e enfeites decorativos de bastante primor e detalhes técnicos. Uma interpretação conduzida pela observação naturalística, haja vista a busca pelos elementos copiados diretamente de nossa fauna ou flora. Tais composições eram também “aproveitadas como ornamentos dos trabalhos de agulha e dos objetos feitos nas aulas de trabalhos manuais” (São Paulo, 1941, p. 77).

Uma permanência nos programas do século XX se refere ao desenho do natural.Estudo desenvolvido por Frizzarini et al. (2015) aponta que discursos sobre como ensinar Desenho do natural foram sendo percebidos internacionalmente e nacionalmente, — em circulação pelas revistas paulistas de início do século XX —, passaram a ser incorporados no curso primário brasileiro, culminando com a sua adoção, a partir do programa de 1905. Diferentemente do desenho à mão livre, com tratamento exclusivo a partir do desenho geométrico, presente no programa de 1894, o ensino de Desenho do natural aproveitava-se das potencialidades infantis da criança, privilegiando o princípio da liberdade e potencializando a capacidade imaginativa desses alunos, que livremente desenhavam aquilo que mais lhes agradava os olhos, as mãos e a mente.

Como bem disse Guimarães (2017), o que se viu nos programas posteriores ao de 1894 foi uma defesa pelo método do natural, o qual se baseava em uma despretensão de rigor geométrico na execução dos desenhos, no qual a natureza oferecia elementos imprescindíveis para a representação de objetos fáceis, livres de regras e definições, prevalecendo assim o exercício do gosto próprio da criança e do desenvolvimento do sentido estético. Ao que tudo indica, além do reconhecimento de que desenhar ao natural era um conteúdo de ensino, era tido também como método de ensino imbricado a outras modalidades de saberes.

Com esse novo método de desenhar (método do natural), aparece também um subconjunto de nomenclaturas diferentes para o exercício do desenho. Como se pode visualizar na Figura 2, mais oito diferentes tipos de desenho foram encontrados. Agregados em blocos distintos, muitos deles acabam se repetindo em programas posteriores. Uma parte deles desaparece e outra ressurge com outros nomes.

Assim, o desenho decorativo/ornamental foi aqui tratado como aquele tipo de desenho baseado numa série de elementos diferentes, que podem ter sido repetidos por várias vezes, em formato de frisos ou molduras, e formados pelos arranjos de linhas, de pontos e formas geométricas. Esses desenhos eram, das muitas vezes citadas, utilizados para decorar o contorno dos próprios cadernos e trabalhos escolares dos alunos, as paredes de casa e utensílios pessoais, como toalhas e molduras de porta-retratos.

Já os desenhos de imaginação/memória fazem apelo ao uso da mente para a reprodução de objetos copiados do natural, os quais foram imaginados, esquematizados, observados e depois desenhados em seus traços principais. Outro tipo de desenho parecido com esse é o desenho considerado livre ou espontâneo, pelo qual as crianças livremente/espontaneamente exerciam a sua liberdade para executá-lo. Ademais, tratava-se de um desenho que ganha finalidade diferente a depender do ano, da série escolar etc. Tal finalidade vai desde servir de ilustração para os trabalhos escritos até ocupar as crianças em casa, isto é, fora do ambiente escolar. Especificamente sobre os desenhos livres, destaca o programa de 1925 que esse era “destinado a cultivar a imaginação e desenvolver o gosto artístico da criança, que deve ter inteira liberdade na representação do assunto dado - historieta, fábula, paisagem” (São Paulo, 1941, p. 29). Essa liberdade era, segundo D’Enfert (2016), uma das características principais desse método natural.

No que diz respeito aos desenhos ilustrativos ou explicativos, tratavam-se de desenhos que serviam de auxílio às outras matérias do curso, tais como geografia, história e ciências. Esses tipos de desenhos, também denominados de desenhos de interpretação de aulas (São Paulo, 1951), objetivavam traduzir, pelo recurso das imagens, as ideias desenvolvidas na composição escrita desses saberes. Todavia, coube a esses uma ressalva importante, conforme observado no programa de 1925: “não devem tomar muito tempo ao aluno, com prejuízo do exercício da redação” (São Paulo, 1941, p. 29). O desenho orientado e o desenho esquemático aparecem, com esses nomes, apenas no programa de 1949/50 (São Paulo, 1951). O primeiro destinado a garantir o treino da coordenação visomotora e o colorido na execução do traçado. E o segundo, usado para mostrar os esquemas (componentes) que compunham bonecos, animais, plantas e objetos.

Por fim, têm-se os desenhos ditado e original/invenção. Pelo próprio nome, o desenho ditado se assemelha ao processo realizado na Língua Portuguesa, que é o ditado de palavras. Por conta da ausência de informações nos programas onde esse tipo de desenho aparece, entende-se aqui ter servido como um recurso utilizado na alfabetização escolar em desenho daquelas crianças. Isto é, uma forma utilizada de fazer com que elas associassem o significado da palavra com o desenho. Já o desenho original/invenção é uma forma original e inventiva do sujeito em processo de aprendizagem, um passo fundamental para a elaboração própria da criança.

Pelas análises aqui efetuadas, é possível concluir que, no traçado de um desenho do natural, era dada à criança a liberdade de desenhar aquilo que era observado na natureza, extraindo também dela elementos decorativos, ilustrativos, imaginativos etc, configurando-se como um método de observação, julgamento, imaginativo e espontâneo por excelência. Nisso, uma de suas finalidades era a representação da coisa ou objeto visto, isto é, do que era aparente aos olhos e ao alcance das mãos. Evidência notória de seu caráter concreto, o qual se baseava na observação direta da natureza, a sua principal fonte de conhecimento, a partir da escolha de desenhos reais e de formas vivas (D’Enfert, 2016).

Quando a psicologia da infância passou a intervir com o discurso de que a aprendizagem deveria levar em conta o caráter biológico e maturacional da criança, respeitando a sua idade biológica nesse processo, entendeu-se que a sua inteligência se desenvolvia por avanços graduais e por sucessivas graduações de dificuldades. Para Valente (2015, p. 365), as referências para o ensino deixaram de “encadear-se segundo a ordem lógica de organização do conteúdo matemático herdada de tempos anteriores. À ordem lógica deve sobrepor-se a psicológica”. Uma fase agora condicionada ao par fácil/difícil, e não mais pela díade simples/complexo. Explica-se.

No caso do ensino de Desenho, de fim puramente educativo e um excelente meio de expressão, a marcha que deveria ser seguida baseava-se na representação daquilo que impressionava os sentidos das crianças, manifestando assim um desejo próprio de esboçar desenhos de “objetos volumosos e de cores agradáveis, os animais domésticos, as pessoas que ama, as cenas familiares, enfim, tudo que é vivo, tudo o que é real” (São Paulo, 1941, p. 14). Percebe-se aí que o psicologicamente simples para a criança não era desenhar pontos e uma linha reta, mas sim, de forma livre e espontânea, era mais fácil desenhar rabiscos pessoais/individuais sobre aquilo que observava ao seu redor, na natureza. Tratava-se, portanto, de uma motivação que ocorria de dentro para fora, sem imposição de regras nem de conteúdo. A melhoria/perfeição gradual dos desenhos era questão de tempo, um fim último para o aprendizado desse saber, pois o que mais interessava não era “obter logo bons desenhos, porém conseguir o desenvolvimento das faculdades da criança” (São Paulo, 1941, p. 15).

Por assim presumir-se, o primeiro desenho informal, ausente de técnica e despretensioso de ser visto como uma arte, é mais uma expressão emocional da criança que propriamente uma ideia ou objeto rigoroso. O que é observado é um afastamento da lógica própria do conteúdo matemático e certo alinhamento àquela psicológica relativa aos alunos e às suas possibilidades (Valente, 2015). Essa ideia corrobora o fato de que por si só um objeto nunca é interessante. O interesse advém da disposição psicológica do indivíduo, aligeirado pela emoção e pelos impulsos instintivos (Lourenço Filho, 1930). Em suma, verifica-se que as leis psicológicas passaram a orientar as diretrizes do ensino e da educação das crianças, contribuindo assim para os novos rumos do ensino de Desenho.

Um quadro sinóptico dessa discussão pode ser visualizado a seguir.

Fonte: elaborado pelos autores a partir de Guimarães (2017).

Quadro 1 Finalidades de ensino de Desenho distribuídas por programas de ensino 

Portanto, por esse quadro sinóptico, é possível afirmar que, diferentemente da marcha adotada pelo método geométrico, cujo entendimento era de que as formas geométricas, consideradas elementares, eram as partes mais simples e acessíveis às crianças, nos programas seguintes, adotou-se o método do natural, o qual, satisfazendo uma necessidade inata da criança, baseava-se na experimentação e na atividade do aluno. Respeitando as condições de seu desenvolvimento, este método também pregava o ajuste à natureza da mentalidade infantil, interessando-se não pelas abstrações das formas geométricas, mas sim pelo desenho de objetos da natureza (Guimarães, 2017). Pode-se avançar em conclusões possíveis, a partir do referido trabalho, que os programas de ensino, com seu conjunto de saberes propostos, dão ênfase a diferentes modalidades de desenhos prescritos ao ensino, os quais caracterizam finalidades de ensino específicas para cada momento da história.

Como as medidas são identificadas/mobilizadas no contexto das finalidades de ensino do Desenho?

Diante do contexto apresentado, um conjunto de finalidades de ensino pôde ser associado à matéria Desenho. Finalidades essas que envolviam, a depender das modalidades de desenho prescritos para o seu ensino, o desenvolvimento, entre outros, do adestramento dos olhos e das mãos, da imaginação, da observação, da criatividade, do senso estético e da coordenação visual-motora. Assim, resta caracterizar como as medidas foram identificadas/mobilizadas neste cenário das finalidades?

Antes de adentrar nessa discussão, importante destacar que, ao olhar para as diferentes modalidades de desenho propostas nos diferentes programas de ensino examinados, decorre do trabalho de Trindade (2018) que, em relação à matéria Desenho, geralmente as medidas em suas unidades (de comprimento, área ou volume) não eram postas explicitamente como um saber de ensino. Em outras palavras, a autora identificou que, na matéria Desenho, não estava prescrito ensinar sobre medidas e suas unidades, como observado no tópico anterior, o foco se concentrava no ensino de diferentes modalidades de desenhos.

Todavia, foi possível perceber que, para desenhar alguns objetos, por exemplo, um quadrado, mesmo sem o uso de instrumentos, as medidas poderiam estar presentes implicitamente, dito isso porque um quadrado tem quatro lados e quatro ângulos com mesmos tamanho/medida.

Seguindo esse raciocínio de que as medidas poderiam ser mobilizadas, mesmo que não fosse um saber principal de ensino, Trindade (2018) destacou especificamente uma caracterização sobre a mobilização das medidas no desenho geométrico e no desenho do natural. O resultado apresentado pela autora pode ser sintetizado pelo quadro que segue:

Fonte: elaborado pelos autores a partir de Trindade (2018).

Quadro 2 Finalidades das medidas em Desenho 

Pelo que se constata a partir do quadro em questão, ao que se refere ao desenho geométrico, as medidas tinham como finalidade auxiliar na construção de desenhos relacionados à geometria e às suas formas. Nessa conjuntura, as medidas estariam associadas às características de cada figura geométrica. A outra relacionada ao desenho do natural sinaliza que sua finalidade esteve direcionada a auxiliar no senso de proporção dos olhos e das mãos para a construção de desenhos.

Sem intenção de resumir, esse cenário merece mais detalhes para compreensão.

Ao tomar o programa de 1894, que trata especificamente do desenho geométrico, cuja finalidade era desenvolver a instrumentalização das mãos e dos olhos, observa-se, à vista da finalidade, a prescrição da ordem de conteúdos: para o primeiro ano, noções de ponto, linha e ângulo; para o segundo ano, o estudo das figuras planas: triângulo, quadrado, retângulo, losango, eixo de simetria e estrelas; para o terceiro ano, o ensino sobre figuras planas curvas (circulares e ovais), tais como círculo e elipse; e para o quarto ano, a retomada do estudo das figuras planas, retas maiores que quatro lados: pentágonos, hexágonos e octógonos, e por fim, estava o ensaio de desenhos de perspectivas.

A ordem de conteúdos exposta demonstra que o ensino do desenho geométrico estava orientado, ao que parece, pela ordem da ciência, uma ideia racionalista que, de acordo com Trouvé (2008), coloca no centro de suas concepções os valores e ideais da Razão e do Saber.

A base racionalista considera que o elementar habita na abstração, e a razão e o saber são tomados como centro de suas ideias; seus princípios defendem os saberes científicos adaptados ao contexto escolar. Aproximações a esta interpretação remetem-se “à título de exemplo aos Elementos de Euclides, que contém uma cadeia de proposições irredutíveis que formam a base de fundamento da Geometria [enquanto ciência]” (Trouvé, 2008, p. 23, grifo do autor, tradução nossa).

Assim, nota-se que a ordem posta à matéria Desenho de 1894 aproxima-se das noções da ciência e considera o ponto, a reta, o plano, com a construção de um a um nessa ordem. A produção de desenhos de figuras planas é dada após serem construídas representações de linhas e ângulos, visto que esses elementos estão contidos nas figuras planas.

Outro aspecto que Trouvé (2008) auxilia a compreender se dá ao olhar a questão do método em relação à ordem dos conteúdos, isso porque “dependendo se procede do todo para a parte ou vice-versa, o método pode ser analítico ou sintético”, respectivamente (Trouvé, 2008, p. 30, tradução nossa). A matéria Desenho de 1894 nesses moldes, ao que parece, expõe o método sintético - isso porque se inicia com estudo da parte (ponto) e em processo de composição chega ao todo (desenho de perspectiva) por princípios abstratos. Importante expor que por se tratar de desenhos (representações de figuras num plano - papel), compreende-se que o todo em desenho seria a esboço de figuras tridimensionais em papel, neste caso, os desenhos de perspectivas.

A estrutura da matéria de seguir uma ordem sintética visa, como já mencionado, a um desenvolvimento de adestramento manual e visual para cumprir os esboços das figuras geométricas nessa ordem, com início pelo ponto e pelas linhas.

Mas como as medidas podem ser observadas nessa conjuntura? Parece plausível dizer que a mobilização das medidas seguia a ordem da matéria. Assim, esse estudo permite avançar e mencionar que, no caso do desenho geométrico de 1894, as medidas acompanhavam implicitamente a ordem de conteúdos e as construções das figuras geométricas dadas pelo método sintético.

De modo a exemplificar, no primeiro ano, ao tratar de ponto, linha e ângulos, nota-se a noção de medida de ângulo e medida de comprimento, haja vista estava prescrita “A divisão das linhas em meios, quartos, em terços. Ângulos: recto, agudo e obtuso” (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 1894). No segundo ano, as ideias de ângulos e medida de comprimento integram a construção de figuras planas retas, tais como diferentes triângulos (isósceles, equilátero e retângulo) e quadriláteros (quadrado, retângulo, losango). No terceiro ano, observa-se as medidas associadas à construção de figuras planas curvas - círculo, elipse e oval, por exemplo; associada às ideias de medida de raio e diâmetro; e no quarto ano, as figuras planas retas com mais que quatro lados (hexágono, octógono, etc) e o desenho de perspectiva em que, para sua reprodução, necessitava implicitamente das noções de lados de mesmas medidas e de ângulos.

Trindade (2018), em seu trabalho, definiu como uma medida intuitiva quando a avaliação de proporções e tamanhos na identificação e reprodução de formas era viabilizada pelo adestramento dos olhos e das mãos, sem uso de instrumentos de precisão para verificação. Desse modo, pode-se dizer que o desenho geométrico proposto em 1894 abordava uma medida intuitiva, associada ao método sintético da matéria.

Como dito anteriormente, o desenho geométrico prescrito em anos posteriores, em alguns casos, fazia menção ao uso de instrumentos; nesse caso, tinham-se meios e ferramentas para avaliar as formas quanto ao seu tamanho e suas proporções. O manuseio de régua e compasso assim garantia a exatidão das proporções e dos tamanhos. Nesse caso, havia uma mobilização de medidas garantida por uso de recurso, quando necessário, uma medida instrumentalizada.

Como dito em palavras supracitadas, com a virada do século, a geometria se desvincula do desenho (Leme da Silva, 2014) e o desenho do natural começa a se sobressair. Ao considerar para análise o programa de 1925, isto porque esse programa apresentava, em especial e diferentemente dos demais, mais detalhes sobre os conteúdos e as orientações para o ensino de Desenho, observa-se que a ordem dos conteúdos por ano escolar apresentava uma lógica que iniciava no primeiro ano com o ensino do desenho de coisas vivas e reais que impressionava os sentidos, tais como animais, pessoas e objetos volumosos. Sem rigor, apenas pelo gosto do desenho.

No segundo ano, além de algumas sugestões que tomavam também os desenhos livres e as composições decorativas, cada proposta de desenho deveria seguir a ordem: desenho do natural; desenho de memória/imaginação; e desenho de ornato/decorativo.

Dito de outro modo, primeiro propõe o ensino da cópia do natural, depois desenho de memória/imaginação, e então recomenda-se a realização de desenho de ornato e esse ciclo deveria ser seguido em cada conjunto de desenhos. As prescrições para os 3.º e o 4.º anos também seguiam essas orientações, em que cada conjunto de desenhos dados deveria seguir a sequência em questão.

As recomendações enfatizam o cuidado do mestre em conduzir as crianças em fases, de forma que de início observassem atentamente o modelo diante dos seus olhos antes de executá-lo, para que pudessem discernir as formas reais das formas aparentes. Nos quatro anos escolares apresenta-se um conjunto de elementos da natureza ou artefatos manufaturados, em que pelas recomendações, o desenho fosse feito à frente do objeto.

Mediante o ato de esboçar no papel elementos da natureza ou objetos manufaturados à mão livre, parece plausível pensar que as medidas, se mobilizadas, ficariam em segundo plano. Por exemplo, ao examinar as normativas para o primeiro ano, observa-se que

Por uma questão de método, o professor deverá escolher, para assunto do desenho do natural, modelos de contornos simples, de forma facil de apanhar, com ou sem linhas retas, de colorido bem definido e de tamanho tal, que as crianças possam esboça-los na mesma proporção. Satisfazem a essas condições, constituindo, por isso, magníficios modelos - as frutas da estação, as folhas e flores simples, as raizes, tuberosas, etc. (São Paulo, 1941, p. 15, grifos nossos).

Percebe-se, pelo grifo na citação posta, que a escolha dos modelos deveria ser de tamanho definido, de modo que as crianças os realizassem em proporção semelhante, mobilizando assim, uma medida intuitiva. Sobre a escolha dos modelos, recomendava-se “[…] que se apresente um só modelo para toda classe. Se é uma fruta, hortaliça, folha ou flor simples, que sejam bem visíveis à distância” (São Paulo, 1941, p. 28).

De acordo com Guimarães (2017, p. 143), sobre a normativa de 1925:

Constatamos, portanto, que a prática do desenho estava intrinsecamente ligada ao exercício do olho. Era mais uma de suas finalidades educar a vista das crianças de modo que elas conseguissem alcançar gradativamente uma representação mais aproximada do natural, do objeto real.

Posto dessa forma e sem esquecer, observa-se uma mobilização de medidas intuitivas ao ato de avaliar a proporção dos objetos expostos como modelos — elementos da natureza ou manufaturados. Conforme se prossegue para os anos escolares posteriores, mais perfeição é exigida, com o desenho não apenas de um objeto, mas de grupos de dois ou três: uma garrafa e uma pera; uma jarra, um copo e um cálice etc. E as medidas intuitivas são tomadas para comparar os objetos distintos. Como posto nas orientações do 3º ano.

A aproximação de objetos de tamanhos diversos obriga o aluno a avaliar as proporções entre uns e outros. Para medi-los e compará-los à distância, precisará o aluno aprender um processo comumente adotado pelos desenhistas, que, para esse fim utilizam o próprio lápis com que esboçam. (São Paulo, 1941, p. 42)

Que processo seria esse que os desenhistas faziam para medir e comparar os objetos? Uma passagem no programa responde:

Eis como se procede: alonga-se o braço, em todo o seu comprimento, na direção do objeto, segurando-se o lápis perpendicularmente ao raio visual. Fecha-se um dos olhos, faz-se coincidir a extremidade superior do lápis com o ponto mais elevado do objeto, e sem movê-lo desloca-se o polegar, até estacionar na direção de sua base. O comprimento marcado no lápis serve para comparar a dimensão desse objeto com as dos que figuram no conjunto, o que se faz, conservando-se sempre um dos olhos fechado e o braço estendido. De modo idêntico, aprecia-se a relação entre a largura dos objetos, virando-se o lápis no sentido horizontal e mantendo-o paralelo aos olhos. (São Paulo, 1941, p. 42)

O apresentado reforça que, para conferir as medidas dos objetos e comparar, assim como verificar a distância entre os objetos, o papel do olho e das mãos é fundamental. Como também notou Guimarães (2017, p. 168):

Aqui a educação do olho e da mão ocorria através da prática do chamado modelo copiado do natural. Neste caso, após ser apresentado, esboçado em partes no quadro-negro e apagado logo em seguida pelo professor, este ficava ao alcance dos olhos das crianças para que elas, a partir da observação, conseguissem alcançar gradativamente uma representação mais aproximada do natural, do objeto real.

No desenvolvimento do desenho do natural, neste caso com exposição de modelos, a medida intuitiva com finalidade de “auxiliar no senso de proporção para a construção de desenhos” se mantém e ganha uma relação interna com o exercício do olho e da mão, que desta forma pode reescrever a finalidade em: auxiliar no senso de proporção dos olhos e das mãos para a construção de desenhos.

Importante ressaltar, como posto anteriormente que, no caso do programa de 1925 para os 3º e 4º anos, além do desenho do natural, também se propõe o desenho geométrico, com sugestão de uso de instrumentos (régua, compasso e esquadro). “O desenho geométrico, de que trata o programa é o desenho executado com instrumentos (régua, compasso e esquadro), servindo de aplicação as noções de geometria prática e, consistindo no desenho de frisos, de ladrilhos e no desenho geometral” (São Paulo, 1941, p. 57).

Neste caso, parece recorrente mencionar que, inicialmente propõe-se que os alunos aprendam a medir com os olhos a realizar desenhos de elementos da natureza e objetos fabricados a partir de modelos: primeiro apenas um elemento e depois conjuntos de elementos, e depois, só assim, insere-se o uso de instrumentos de formas geométricas, o que resulta em duas etapas do ensino de desenhos, uma de reproduzir elementos da vida como plantas e artefatos, e a outra que concerne aos desenhos que combinam formas geométricas.

As mesmas ideias também podem ser observadas no programa de 1934 com o desenho do natural e o desenho geométrico. Em 1949/50, é decretado um novo programa, esse extenso e contínuo ao anterior, onde são mantidas as recomendações de desenhos: espontâneo, livre, natural, geométrico e de cenas.

Considerações finais

Como as medidas podem ter sido mobilizadas no contexto das finalidades de ensino de Desenho para escola primária paulista entre 1894-1950? Essa foi a questão que suscitou o debate deste texto. Ao tomar como base inicial de discussão as pesquisas de Guimarães (2017) e de Trindade (2018), pode-se dizer que o ensino de Desenho, com suas distintas modalidades, enveredou por diferentes finalidades, nas quais, as medidas, especificamente a medida intuitiva, foram mobilizadas.

Na modalidade priorizada no final do século XIX, o desenho geométrico sintético, cuja finalidade de ensino era desenvolver habilidade manual e visual mediado pela construção e reprodução de figuras geométricas, a medida/tamanho estava enraizada nas caracterizações e noções, seja de um quadrado, retângulo, losango, círculo ou atrelada às suas reproduções. Dessa forma, a exatidão de comprimento, de ângulo e de área exigida nas figuras geométricas era dada de forma intuitiva.

No que diz respeito ao desenho do natural proposto com a virada do século, cuja finalidade de ensino pautava-se no desenvolvimento da observação, da imaginação e do senso estético da criança, baseada na experimentação e atividade do aluno, também auxiliava na composição de desenhos decorativos, bem como nas aulas de outras disciplinas. As medidas intuitivas continuam a ser mobilizadas, mas sob outros preceitos. Nesse caso, as medidas integram o olhar e a mão para a reprodução mais próxima do real de diferentes objetos (elementos da natureza ou manufaturados).

Assim, vale frisar que a medida intuitiva associada ao desenho natural se concentra na intuição de olhar o objeto e manualmente reproduzi-lo. No desenho geométrico, a ênfase está no uso da medida intuitiva para a identificação e reprodução das formas geométricas. Além do mais, as figuras geométricas demandavam um rigor quanto às medidas, para que suas características específicas fossem mantidas, ou seja, o quadrado tivesse os quatro lados iguais e os quatro ângulos retos.

Porém, como visto, esse formato de desenho geométrico é alterado com a passagem para o século XX, a orientação de uso de instrumentos garantia a avaliação de proporções e tamanhos quando necessários, assim as propriedades das figuras geométricas ou modelos com aproximações à geometria eram garantidas. Nesse formato, uma mobilização de uma medida instrumentalizada era posta em cena.

Neste sentido, pode-se avançar em conclusões possíveis, a partir do referido trabalho, que os programas de ensino, com seu conjunto de conteúdos propostos, dão ênfase a diferentes modalidades de desenhos prescritos para o seu ensino, os quais caracterizam finalidades de ensino específicas para cada momento da história. E as medidas exerceram, assim, um papel importante no tratamento desse saber escolar.

Por fim, o que fica dessa discussão, como ponto de reflexão, é que o ato de medir para a escola primária paulista, ligada ao ensino de Desenho, ao que leva a crer, se dá prioritariamente e implicitamente com ênfase numa medida intuitiva, observada e relacionada ao desenvolvimento de habilidades manual e visual, sejam ligadas à reprodução de figuras geométricas no plano, sejam à cópia de modelos da natureza e/ou manufaturados.

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[1]Ao considerar a existência de finalidades de diferentes ordens, mas igualmente imperativas, Chervel (1990) destaca as finalidades de ensino escolar ou simplesmente educativas, definidas como aquelas intrínsecas à escola, mas que podem sofrer influência do contexto externo. Para sua identificação, faz-se necessário observar as práticas reais. Veja-se Pinto (2014).

[2]A título de elucidação, adota-se Desenho com letras iniciais maiúsculas para referenciar a matéria de ensino primário; já ao tratar de diferentes conteúdos escolares inseridos nessa matéria, toma-se desenho, com todas as letras em minúsculo.

[3]De acordo com o Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil (GHEMAT, 2016, p. 18-19, assume-se a expressão vaga pedagógica como sinônimo de movimentos, que são analisados, sobretudo, pelos historiadores da educação. No caso do período aqui considerado, dois movimentos tomaram destaque: o método intuitivo (final do século XIX e início do XX) e a Escola Nova (a partir dos anos de 1920 até meados de 1950).

Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 01 de Outubro de 2020

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