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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 05-Out-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.29207 

Artigos

Educação de jovens e adultos, aprendizagem e criatividade: um estudo de caso

Educación, aprendizaje y creatividad de jóvenes y adultos: un estudio de caso

Youth and adult education, learning and creativity: a case study

Éducation, apprentissage et créativité des jeunes et des adultes: une étude de cas

Isabella Kessler de Azambuja1 
http://orcid.org/0000-0002-0526-801X

Marlene Rozek2 
http://orcid.org/0000-0001-8740-6166

1Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), faz parte do grupo de pesquisa Formação Docente, Inclusão e Processos de Aprendizagem/CNPq (FIPA) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Processos Inclusivos (NEPAPI).

2Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Escola de Humanidades da PUCRS. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Aprendizagem e Processos Inclusivos (NEPAPI) na PUCRS.


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar como a criatividade é produzida e expressada nas produções subjetivas de um aluno da educação de jovens e adultos nos processos de aprendizagem. Procuramos compreender a educação de jovens e adultos nas suas idiossincrasias pedagógicas e culturais a partir da Teoria da Subjetividade de González Rey. Como metodologia, utilizamos a Metodologia Construtivo-Interpretativa. O caso discutido evidencia a importância da criatividade e da imaginação como funções de desenvolvimento subjetivo, relacionadas ao desenvolvimento de sentidos subjetivos de individualização e visão de futuro, em relação aos processos de aprendizagem em diferentes espaços.

Palavras-chave Aprendizagem; Constituição da subjetividade; Criatividade; Educação de Jovens e Adultos

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar cómo se produce y se expresa la creatividad en las producciones subjetivas de un estudiante de educación juvenil y de adultos en los procesos de aprendizaje. Buscamos comprender la educación de jóvenes y adultos en sus idiosincrasias pedagógicas y culturales desde la Teoría de la Subjetividad de González Rey. Como metodología, utilizamos la Metodología Constructiva-Interpretativa. El caso discutido destaca la importancia de la creatividad como función del desarrollo subjetivo, relacionada con el desarrollo de los sentidos subjetivos de individualización y visión de futuro, en relación con los procesos de aprendizaje en diferentes espacios.Palabras clave: Aprendizaje. Constitución de la subjetividad. La creatividad. Educación de jóvenes y adultos.

Palabras clave Aprendizaje; Constitución de la subjetividad; La creatividad; Educación de jóvenes y adultos

Abstract

This article aims to analyze how creativity is produced and expressed in the subjective productions of a student of youth and adult education in the learning processes. We seek to understand the education of youth and adults in their pedagogical and cultural idiosyncrasies from González Rey's Subjectivity Theory perspective. As a methodology, we use the Constructive-Interpretive Methodology. The case discussed highlights the importance of creativity and imagination as functions of subjective development, related to the development of subjective senses of individualization and future vision, in relation with the process of learning in different spaces.

Keywords Learning; Constitution of subjectivity; Creativity; Youth and Adult Education

Résumé

Cet article vise à analyser comment la créativité est produite et exprimée dans les productions subjectives d'un étudiant en éducation des jeunes et des adultes dans les processus d'apprentissage. Nous cherchons à comprendre l'éducation des jeunes et des adultes dans leurs particularités pédagogiques et culturelles à partir de la Théorie de la Subjectivité de González Rey. En tant que méthodologie, nous utilisons la Méthodologie Constructive-Interprétative. Le cas discuté souligne l'importance de la créativité et de l'imagination en tant que fonctions de développement subjectif, liées au développement de sens subjectifs d'individualisation et de vision future, en relation avec les processus d'apprentissage dans différents espaces.

Mots clés Apprentissage; Constitution de la subjectivité; La créativité; Éducation des Jeunes et des Adultes

Introdução

Aprender é uma ação de constante mudança, que ocorre durante toda a vida. Nesse sentido, a educação de jovens e adultos (EJA) se constrói como um espaço em que as histórias de vida e as aprendizagens informais dos alunos se apresentam com muito mais intensidade pela heterogeneidade de estudantes em uma sala de aula “em que não têm mais idade para estar”. Assim, a EJA contraria a institucionalização da aprendizagem, reforçando seu caráter informal e processual.

Este estudo, um recorte de dissertação de mestrado (Azambuja, 2019), tem por objetivo analisar como a criatividade é produzida e expressada nas produções subjetivas de um aluno da educação de jovens e adultos nos processos de aprendizagem; portanto, tem em seu centro, o próprio aluno da EJA e a sua constituição subjetiva. Assim, considera-se como parte integral dos processos de aprendizagem a trajetória histórica (individual e social) desse estudante que se coloca em uma posição socialmente tida como “subalterna”.

Há uma marcação negativa em relação aos estudantes de EJA: sendo de uma classe específica, têm suas vidas agravadas pelo sistema neoliberal institucionalizado. Dessa forma, como coloca Oliveira (1999), a EJA se constitui não somente como um campo pedagógico específico, mas também como um campo cultural e etário idiossincrático e, por isso, também marginalizado. Os alunos da EJA são vistos como “evadidos, reprovados, defasados, alunos com problemas de frequência, de aprendizagem, não concluintes” (Arroyo, 2018, p. 23). Essa concepção, inclusive, é utilizada para pautar cortes em financiamentos públicos para a essa modalidade, como percebe-se no estado do Rio Grande do Sul.

As visões negativas em relação à EJA vêm fundadas em uma perspectiva de educação bancária (Freire, 1987), que seria caracterizada por uma relação vertical entre estudante e professor, cuja pretensão seria desenvolver indivíduos acomodados e com pouca visão crítica da sociedade. Portanto, todas as trajetórias que não se encaixam em uma linearidade esperada são rechaçadas. Freire (1987) apresenta o conceito de educação libertadora, que reconhece as potências e os entraves da trajetória de cada estudante. Dessa forma, o autor vê a educação como uma possibilidade de emancipação das classes mais baixas da opressão diária que sofrem do sistema capitalista. Através da educação, as classes tanto se apropriam da cultura letrada, que é necessária para modificar o sistema, quanto reconhecem as suas próprias trajetórias como constituintes da análise social. Dessa forma, o processo educativo não é um processo de transmissão simples de conhecimento, em que o professor é o detentor do saber e o aluno a tabula rasa, mas sim de construção honesta e horizontal entre todos os envolvidos no processo.

Educar, nas palavras de Freire (Freire & Betto, 2000), é vivenciar uma vitória com o estudante e não hierarquicamente sobre ele. Portanto, sendo um processo comunitário, tenta-se estabelecer um vínculo dialógico entre educador, educando e comunidade escolar. Bell Hooks (2013) advoga pela necessidade de uma comunidade de aprendizagem em que tanto a presença sensitiva e afetuosa dos colegas e do professor sejam reconhecidas como possuidores de saber. É inegável, deste modo, que a aprendizagem é uma atividade humana complexa que vai além da escola. Vygotsky (2008) discute a relação entre o desenvolvimento cognitivo do aluno e a interação social reforçando o processo de aprendizagem enquanto uma experiência social. Através de conceitos como a zona de desenvolvimento proximal, Vygostky (2008) também reforça a necessidade de considerarmos o conhecimento prévio do aluno enquanto base mínima para os avanços que a aprendizagem permite.

Mitjáns Martínez e González Rey (2017), em uma perspectiva cultural-histórica a partir das discussões soviéticas, compreendem a aprendizagem como um processo subjetivo. Nesse sentido, o sucesso, e principalmente o fracasso escolar de um indivíduo, não dizem respeito somente à possível incapacidade cognitiva ou física de realizar uma tarefa, mas também aos diversos motivos constituídos subjetivamente que o levaram a construir essas dificuldades (Oliveira, 2019). Em outras palavras, os estudantes de EJA têm trajetórias erráticas na escola não por incapacidade intelectual ou somente demandas de trabalho, mas sim por uma série de sentidos negativos, tanto individuais quanto sociais que se configuram nos estudos.

Para Mitjáns Martínez e González Rey (2017), a subjetividade é a produção simbólico-emocional da experiência. Dessa forma, González Rey (2013) advoga pelo conceito de sentido subjetivo, que seria a unidade mínima da subjetividade, sendo composta pelos elementos simbólicos e emocionais da experiência que, quando combinados, formam uma categoria qualitativamente diferente. No entanto, esses sentidos subjetivos não são estáticos, mas se articulam de uma forma fluída, criando as configurações subjetivas que, por sua vez, organizam a subjetividade (Goulart & González Rey, 2016). O valor heurístico desse conceito reside centralmente em quebrar com a relação externo-interno, em que o interno seria somente uma reação ao que acontece externamente, e não uma produção. Assim, a subjetividade, em linhas gerais, procura compreender e explicar as formas pelas quais vivemos a experiência de vida, através tanto da nossa trajetória individual quanto social e histórica. Portanto, a aprendizagem enquanto um processo subjetivo é uma função do indivíduo que se expressa em uma configuração subjetiva.

Os autores conceituam a subjetividade como atuante em dois espaços: o individual e o social. A subjetividade individual se relaciona à trajetória individual da pessoa; já a social se relaciona a grupos de pessoas, seja uma sala de aula, uma nação ou mesmo a sociedade capitalista. Esses dois espaços são recursivamente compostos, ou seja, a subjetividade individual compõe a subjetividade social, e vice-versa. Como exemplo, uma turma considerada indisciplinada na escola tem uma composição subjetiva que pode incentivar ou obstaculizar os processos de aprendizagem individuais dos alunos. Assim, a aprendizagem é um processo essencialmente localizado na tensão entre o individual e o social, ou seja, no processo relacional do indivíduo com o ambiente (Mitjáns Martínez & González Rey, 2017).

Desta maneira, os processos de aprendizagem dos alunos da EJA, seja antes ou depois da evasão, pouco têm a ver com a sua capacidade intelectual maior ou menor, mas sim com suas trajetórias de vida, tanto individual quanto social. Isso significa tirar uma carga negativa significativa da educação de jovens e adultos que, sendo vista como um “despejo” de todos os alunos “que não conseguiram”, é vista nas suas potências de transgressão do que está socialmente estipulado. Além disso, essas potências de transgressão são vistas e analisadas a partir da constituição subjetiva dos alunos da EJA em conjunto com todos os elementos de produção simbólica e emocional da vida que os constituem como alunos em uma sala de aula.

Portanto aprender, em suas dimensões múltiplas, complexas e recursivas, não comporta uma transmissão, mas sim uma construção de conhecimento. Esse aluno que está dentro de uma sala de aula é múltiplo em sua constituição, e essa multiplicidade se evidencia na ação de aprender. Em vista disso, estágios cognitivos diferentes se juntam aos processos subjetivos das histórias de vida dos estudantes para compor a diversidade de aprendizagens em uma sala de aula, em relação com os processos de institucionalização social. Dessa forma, reconhecer essa diversidade faz parte de reconhecer os alunos da EJA como protagonistas das suas próprias aprendizagens. Esses alunos criam, apesar dos processos de institucionalização e de negligência que são colocados como obstáculos para seu reconhecimento. É importante, à vista disso, percebermos esses alunos como sujeitos de direito (Arroyo, 2018) e, além disso, como sujeitos criadores, o que perpassa compreender como e em quais espaços eles criam.

González Rey (2013) advoga pela categoria de sujeito que determina um estado da subjetividade (não essencialmente do indivíduo) localizado historicamente (tanto individual quanto socialmente) que se debate entre as formas de sujeitamento, procurando produzir sentidos próprios que o caracterizem em sua individualidade. Essa categoria é importante para pensar os alunos da EJA, pois reforça a capacidade criadora do indivíduo, apesar das forças institucionalizantes a que são submetidos. Pensar em voltar a estudar, apesar da demanda de emprego, família e sociedade, pensar em se colocar em um lugar novamente de aluno, mas agora “fora do tempo”, podem se caracterizar como ações com produção de sentidos subjetivos relacionados à condição de sujeito. Dessa forma, os alunos trabalhadores, pais e mães de uma sala de educação de jovens e adultos são vistos em sua potencialidade de contrariar as diversas formas de institucionalização, sendo percebidos e reconhecidos em suas lutas diárias dentro da sala de aula para além de uma atitude paternalista ou assistencialista.

A capacidade criadora, aqui conceituada como criatividade (Mitjáns Martínez, 1997), tampouco se relaciona a uma visão meritocrática, mas sim subjetiva; ou seja, não é relacionada à capacidade, ao esforço, dom ou à divindade, mas sim à constituição e aos recursos subjetivos do indivíduo. A criatividade é compreendida como a expressão da ação de ruptura do indivíduo como sujeito em determinados espaços sociais (Mitjáns Martínez, 1997). Nessa perspectiva, a construção de caminhos subjetivos alternativos aos obstáculos vivenciados e à responsabilização por eles poderiam se qualificar como “ser criativo”. Assim, a criatividade se relaciona mais aos valores que a criação tem para o sujeito que cria e menos aos valores de mercado ou artísticos. Perceber a ligação entre um conteúdo das aulas de ciência e a prática profissional como eletricista, ou ainda voltar para a sala de aula depois de trinta anos pode ter um valor de criação e reconhecimento para o indivíduo e, portanto, se caracterizar como uma ação criativa.

O valor heurístico dessa conceituação de criatividade para a EJA se relaciona à possibilidade de reconhecer o estudante na sala de aula nas suas potências criadoras. A possibilidade de ultrapassar as dificuldades e provocar uma ruptura são, também, expressões de um grau de criatividade e implicação na atividade. A partir dessa concepção, é possível reconhecer os processos criativos dos alunos dentro e fora da sala de aula e, assim, promover espaços para que a educação seja verdadeiramente emancipadora.

A criatividade se caracteriza por dois elementos essenciais: a novidade e o valor (Mitjáns Martínez, 2002), cujos parâmetros não são necessariamente os pares ou o mercado em uma perspectiva econômica, mas o indivíduo em sua trajetória. Dessa forma, segundo Mitjáns Martínez (2002), se formam as configurações criativas, conceituadas como configurações subjetivas com sentidos subjetivos relacionados à individualização, responsabilização, ao tensionamento social, dentre outros, que por sua vez embasam a criatividade. Essa concepção desloca a avaliação social da criatividade na EJA somente a partir dos parâmetros brancos, europeus e masculinos do que significa “criar” na sociedade ocidental científica. As camadas populares, portanto, produzem mais do que “saberes”, palavra veiculada com uma conotação menor que “conhecimento. Reconhecer suas capacidades criadoras em qualquer espaço enquanto discentes é essencial para o trabalho pedagógico.

Assim, procurar compreender a constituição subjetiva dos alunos da EJA reforça a sua humanidade, que é cada vez mais mutilada pela configuração social atual em que desemprego, subemprego e condições materiais não ideais são uma realidade constante. A constituição da EJA enquanto campo pedagógico idiossincrático perpassa a configuração subjetiva tanto dos alunos individualmente quanto da sala de aula enquanto turma e, também, da sociedade em que esses alunos estão inseridos; em outras palavras, perpassa compreender como esses alunos se constituem e quais são os seus recursos subjetivos enquanto alunos adultos.

Metodologia

A epistemologia que embasa esse estudo é a Epistemologia Qualitativa de González Rey (2010), orientada à pesquisa qualitativa em uma perspectiva histórico-cultural. Essa perspectiva compreende o conhecimento não enquanto reprodução ou compreensão da realidade, mas sim como produção. Advoga-se pela natureza construtivo-interpretativa do conhecimento, que reforça a capacidade criadora dos indivíduos em situação de cultura, colocando o conhecimento enquanto produto da subjetivação do indivíduo. O conhecimento não é neutro ou objetivo, mas alinhado às configurações subjetivas de quem o produz.

Não sendo reduzido à linguagem, o diálogo constitui o processo de pesquisa determinando a qualidade dos processos vividos (González Rey & Mitjáns Martínez, 2016). Assim, a pesquisa tem um caráter dialógico e interativo. Portanto, os instrumentos de pesquisa são compreendidos como toda situação que permite o sujeito se expressar em diálogo com o pesquisador, não como forma de “coleta de dados”, mas instrumentos para promover a expressão da subjetividade do participante. Nesse caso, optamos por produção fotográfica, entrevistas processuais, completamento de frases e projetos pedagógicos para que seja possível a construção de conhecimento acerca de um tópico tão complexo e fluído quanto a subjetividade.

Em uma perspectiva metodológica, essa epistemologia reforça a capacidade criadora e interpretativa do pesquisador no campo empírico, voltada à produção de novos campos de inteligibilidade acerca do tema pesquisado, para além da reprodução. Destarte, tanto o pesquisador quanto o participante são compreendidos enquanto produtores de conhecimento, para que os campos acerca do tema pesquisado se expandam. A proposta é adentrar no que é a vida cotidiana e como é subjetivada pelo participante de pesquisa.

Portanto optou-se pelo estudo de caso que, nessa perspectiva, proporcionará mais profundidade para a análise. O trabalho pedagógico desenvolvido na EJA pela escola selecionada e sua história na cidade natal das pesquisadoras foram os grandes critérios de seleção para a pesquisa e, sendo a pesquisadora formada em Letras-Língua Portuguesa, optou-se por iniciar o campo empírico com observações nas aulas de Língua Portuguesa da EJA na escola.

O aluno foi selecionado a partir de observações em sala de aula e participações das pesquisadoras em atividades escolares, tendo como base os critérios de envolvimento na sala de aula, perguntas aos professores e colegas, relação com o estudo e interações nas atividades informais da escola. Em relação aos aspectos éticos da pesquisa, foi elaborado e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, além disso, a pesquisa foi submetida aos âmbitos éticos de avaliação necessários; por fim, o próprio aluno escolheu o pseudônimo que seria utilizado durante a elaboração da pesquisa para a proteção da identidade.

Com essa metodologia, procuramos analisar como a criatividade é produzida e expressada nas produções subjetivas dos alunos da educação de jovens e adultos nos processos de aprendizagem. Para isso, a Metodologia Construtivo-Interpretativa (González Rey, 2010; González Rey & Mitjáns Martínez 2016) quebra com a lógica positivista de criação de uma hipótese acerca do problema de pesquisa, seguida de aplicação de instrumentos e, por fim, a análise dos resultados. Não há, portanto, a construção de hipóteses a priori para serem comprovadas ou refutadas na empiria, mas sim a construção conforme o campo avança.

A Metodologia Construtivo-Interpretativa compreende a produção inicial de conjecturas acerca do tema pesquisado, que são conceituadas como reflexões, dúvidas, acerca do tema pesquisado, a partir do diálogo com o participante; no entanto, não ainda concretizadas na forma de hipóteses. Essas conjecturas, conforme as dinâmicas com o participante avançam, se reforçam na busca por indicadores, que são unidades essenciais de informação, que podem não ser o que o sujeito entende por ela, mas sim o que foi interpretado pelo pesquisador. Ou seja, a constituição subjetiva do indivíduo não está essencialmente no discurso, mas sim nas entrelinhas que podem ser interpretadas e construídas pelo pesquisador, em alinhamento tanto com o objetivo de pesquisa quanto com a teoria discutida. Esses indicadores, por sua vez, são relacionados, formulando a construção de hipóteses (a posteriori) a respeito do tema pesquisado. Ou seja, as hipóteses são os caminhos pelos quais a pesquisa ganha capacidade propositiva dentro do campo empírico e, assim, direcionam o processo interpretativo conforme o campo avança.

Essa metodologia, acompanhada pela epistemologia, reforça a necessidade de termos relações horizontais, dialógicas e honestas com os participantes de pesquisa para que situações de diálogo sejam criadas e sustentadas, aproveitando tanto as tensões quanto os momentos informais. Além disso, também reforça a capacidade criativa do pesquisador para a produção de caminhos que compreendam mais profundamente a subjetividade em toda sua complexidade em pesquisas qualitativas.

Configurações criativas nos processos de aprendizagem de Sédriky

Sédriky tem 32 anos de idade e, ao contrário da maioria dos seus colegas, iniciou os estudos no ensino médio em idade regular, mas evadiu da escola e procura retomar os estudos na EJA. Atualmente, trabalha como pintor predial. Mesmo evadindo da escola, sempre procurou saciar as suas curiosidades epistemológicas, principalmente durante seu tempo na escola bíblica da igreja que frequenta, tempo em que inclusive foi professor evangelizador:

Mas sempre gostei de aprender, sempre achei interessante a busca pelo conhecimento, eu sempre me mantive procurando aprender, lendo, perguntando, sempre fui assim como eu sou, de querer o esclarecimento daquilo que tá sendo passado pra mim, alguns me chamam de crítico, eu já cheguei a ser polêmico, eu fui aprendendo a lidar comigo mesmo, e ainda tou aprendendo, né. (Sédriky, 32 anos, pintor predial)

Percebe-se a importância que a busca pelo conhecimento toma para Sédriky, de forma ativa. Assim, percebe-se a centralidade da curiosidade epistemológica para a sua constituição subjetiva, o que nos aponta um indicador do seu processo de aprendizagem. Isso também reforça o caráter processual da aprendizagem e a importância da reconstrução dos movimentos subjetivos durante a trajetória de vida do indivíduo (Mitjáns Martínez & González Rey, 2017).

Sédriky comentava bastante da sua infância no bairro de origem, principalmente quando saía com os amigos para brincar de caçar pequenos animais e tomar banho de rio. No trecho a seguir, Sédriky descreve uma dessas primeiras incursões: “Eu tinha uma meta pessoal né, eu quero descobrir alguma novidade nisso. Antes eu procurava nas rocha, ver se eu achava uma pedra, tudo que eu via no colégio".

A contextualização e aplicação do conhecimento escolar é o motor das descobertas cotidianas de Sédriky na infância, sendo uma atividade que promovia sozinho, sem a necessidade de uma atividade domiciliar requisitada por um professor. Assim, reforça-se o quanto a busca por conhecimento é um aspecto constitutivo de Sédriky, o que o leva a um caminho de produção de sentidos subjetivos relacionados à individualização (Mitjáns Martínez, 2002) ativa e autônoma para interagir com a atividade que realiza.

Ele comenta sobre uma vez que, quando criança, descobriu, no seu bairro de origem, um espaço que era usado, décadas antes, para a tortura de escravizados na época colonial do Brasil. O lugar se mantinha conservado, apesar da ação do tempo. Sendo um homem negro, Sédriky comenta sobre a sua percepção do momento: “mas eu achei interessante porque eu tive o contato com as minhas raízes, embora não tenha visto literalmente, mas a minha imaginação me transportou naquele tempo.”.

Inegavelmente, a sociedade racista brasileira conecta a herança e ancestralidade negra somente à escravidão e, nesse relato de Sédriky, percebemos o impacto da percepção desse fato histórico para uma criança negra. No entanto, ao notar o quanto os seus antepassados foram torturados, não somente em uma conversa com a família ou através de um conteúdo na escola, Sédriky subjetivou essa experiência enquanto uma oportunidade para o autoconhecimento. Assim, percebemos um indicador da imaginação como uma ferramenta de materializar situações para que a implicação na atividade aconteça e, assim, se produzam caminhos subjetivos alternativos, como a sua própria identidade enquanto homem negro. Esse indicador pode ser reforçado pelo trecho de entrevista a seguir:

A questão de imaginar me leva… pelo menos para mim, me acrescenta ânimo e fé, que eu vejo. […] Claro que eu não me imagino em Marte, não me imagino em Vênus, né? Mas eu me imagino alcançar metas, imagino quando estiver lá, como eu vou me portar diante da situação. (Sédriky, 32 anos, pintor predial)

Inferimos o papel da imaginação para Sédriky como uma possibilidade de vivência e projeção dos seus pensamentos em relação a situações futuras, atuais ou passadas. A imaginação, portanto, se relaciona com uma construção da visão de si, o que nos designa um indicador dos seus processos subjetivos criativos. Assim, hipotetizamos que a imaginação, para Sédriky, é utilizada não como forma de desconstruir o real, mas de reorganizá-lo, possibilitando a construção de outros caminhos subjetivos acerca da sua autovisão; e, assim, tornando-se importante parte do seu processo criativo.

A imaginação, sendo elemento importante da criatividade (Mitjáns Martínez, 1997), mantém relação em Sédriky com o que conceituamos como sua visão sistemática do conhecimento. Essa visão é entendida como uma forma de interagir com o mundo que sempre procura pelos mínimos detalhes, tanto históricos quanto materiais e biológicos, e procura as relações entre eles para ter um entendimento completo do que se está com vontade de conhecer. Essa visão acerca do conhecimento é descrita por Sédriky no trecho a seguir:

Sempre que eu imagino um universo, eu comparo né, eu imagino uma noite bem estrelada, e cada estrela é um ponto que eu devo chegar, alguns dizem que, em alguns pontos, até mesmo na igreja, que eu chego numa profundidade de raciocínio tendeu, eu pego um raciocínio e vou pra dentro desse raciocínio. (Sédriky, 32 anos, pintor predial)

Sédriky mantém uma relação ativa e ávida com a busca de conhecimento, o que ele constrói como a imagem de um universo estrelado. Essa abordagem é constituinte dos seus processos de aprendizagem, tendo a articulação entre conhecimentos um papel importante. Essa visão, evidentemente, entra em conflito com a visão da escola tradicional, que divide as disciplinas em blocos não articulados, não promovendo, historicamente, a interdisciplinaridade. Assim, essa articulação faz parte das configurações subjetivas de Sédriky acerca da aprendizagem, que se relaciona com a produção de sentidos subjetivos relacionados à individualização e à capacidade imaginativa. Em outras palavras, é nesse espaço que ele pode se perceber enquanto protagonista do seu processo.

Sédriky, durante as aulas da EJA, sempre se mostrou muito participativo, questionador e provocador, o que nem sempre é positivo na visão dos colegas por “tirar a aula do eixo” ou dos professores por “tomar muito tempo de aula”. No entanto, Mitjáns Martínez (2002) atenta para uma observação detalhada desse tipo de comportamento, que pode indicar um posicionamento criativo. Sédriky comenta sobre isso:

Para que eu aprenda, eu tenho que buscar. Não vou achar que o aprendizado vai vir até mim, vai entrar na minha mente e vai dizer eu estou aqui, eu sou assim, estou aqui, e deu, aí seria fácil aprender, né? (Sédriky, 32 anos, pintor predial)

Historicamente, a escola foi reconhecida como uma instituição de transmissão de saberes; ou seja, os professores eram os detentores do saber, enquanto os alunos eram a tábula rasa amorfa que somente absorvia. Por mais que essa ideia seja constantemente debatida e refutada em muitos espaços de discussão teórica acerca da educação, é uma visão recorrente, principalmente na subjetividade social. Portanto, o aluno questionador, que tensiona a institucionalização dos processos escolares, é geralmente tido como problemático. Dessa forma, percebemos como essa concepção de sala de aula e de educação obstaculizam e entram em conflito com a concepção de Sédriky acerca do seu processo de aprendizagem, em que é evidente prerrogativa uma posição crítica, ativa e protagonista.

Em outros trechos de entrevista, Sédriky comenta o quanto está consciente da visão dos colegas sobre si, que sabe que pode ser “chato” ou “inconveniente”, mas que continua da mesma maneira por entender a necessidade do questionamento. Dessa forma, percebemos novamente um reforço da sua individualização, responsabilização e de seu posicionamento ativo em relação ao conhecimento, elementos de sua configuração subjetiva acerca da aprendizagem que promovem sua motivação em relação a esse processo:

Até o que me despertou interesse nisso foi por causa do evangelho, que eu queria saber como é que a gente entende que Deus que criou todas as coisas, o que ocorre no DNA do ser humano né, essa era o motivo principal da minha curiosidade. (Sédriky)

Nesse trecho, reforçamos a compreensão de que a aprendizagem é processual e subjetiva (Mitjáns Martínez e González Rey, 2017), pois os sentidos subjetivos relacionados à individualização e à curiosidade epistemológica são perceptíveis em outros espaços que não somente a aprendizagem escolar. Paulo Freire (1987) coloca como uma questão central em sua obra a necessidade de articulação entre o conhecimento formal de escola e/ou do ambiente educacional com o conhecimento informal que o aluno traz em sua trajetória histórica. Percebemos, em Sédriky, que essa articulação tem um caráter subjetivo que se relaciona com a sua individualização; ou seja, Sédriky, pelos recursos subjetivos que apresenta, articula conhecimentos de diferentes esferas para que sua curiosidade seja saciada. Dessa forma, mesmo não incentivado por um professor e nem em um ambiente formal de educação, ele procura por essas articulações, o que evidencia, também, um posicionamento criativo.

Assim, hipotetizamos que a curiosidade epistemológica de Sédriky, em conjunto com a sua imaginação e sua visão do conhecimento, se expressam em um espaço coletivo, qualquer que ele seja, em uma atitude de constante questionamento. Portanto, essa característica é uma expressão da sua criatividade e das suas configurações subjetivas nos processos de aprendizagem. Durante a pesquisa, tratamos, nas aulas de língua portuguesa, sobre o preconceito linguístico, que versa sobre as possibilidades de uso da linguagem que dependem da situação de comunicação. Como essa era uma questão central de Sédriky, que sempre procurou modificar sua linguagem para conseguir conversar com o máximo de pessoas à sua volta, utilizando o mínimo de gírias, a aula foi tomada por diversos questionamentos acerca do funcionamento da adequação linguística no seu cérebro. Os questionamentos de Sédriky em aula não são feitos para redirecionar o foco da discussão, mas sim para a melhor compreensão dos seus próprios processos de vida. Assim, percebemos um indicador da importância, para o aluno, da interação social para a sua constituição enquanto indivíduo. Podemos perceber esse indicador também no trecho de entrevista a seguir:

Graças a Deus eu nunca tive, hã, nunca passei por humilhação no sentido das pessoas me rejeitarem, né, então eu não tive nada que marcasse no sentido negativo; e no sentido positivo foi que eu descobri a importância de interagir, eu vi assim que era, eu sempre fui comunicativo, e sempre gostei de defender causas também, desde pequeno defendia causas. (Sédriky)

Nesse trecho, Sédriky fala sobre a sua inserção na escola enquanto criança. Sempre foi uma criança muito comunicativa, brincalhona e argumentativa, e seleciona como uma memória importante os laços que construiu lá. Dessa forma, percebemos como um momento que pode ser estressante para uma criança (sair do reconhecimento dos seus pares familiares para um espaço com pessoas desconhecidas) é significado por Sédriky de uma maneira mais positiva, em que ele se coloca como parte do coletivo, inclusive defendendo aqueles que acredita necessário. Além disso, reconhecendo o bullying como uma prática constante, sensível e em larga escala praticada nas escolas, marcando os alunos durante anos de suas vidas, Sédriky não a escolhe como uma lembrança especial da sua trajetória escolar.

Portanto se concretiza um indicador da importância do outro para o desenvolvimento subjetivo de Sédriky, importância essa que se aloca nas configurações subjetivas relacionadas à aprendizagem. Tunes et al. (2006), ao discutir a complexidade da aprendizagem escolar, reforçam como a importância do outro evidencia o caráter individual e social desse processo, tanto nos conteúdos aprendidos quanto nos papéis sociais assumidos pelos estudantes e professores. Dessa forma, a compreensão das turmas de EJA enquanto coletivos de jovens e adultos diferentes e sua importância para um ambiente promotor de sentidos subjetivos positivos relacionados à aprendizagem é importante. Como coloca Bell Hooks (2013), é importante a criação de uma comunidade de aprendizagem, ou seja, do reconhecimento da turma enquanto coletivo e, dentro disso, enquanto uma turma integrada à escola, apesar do lugar marginal das turmas de EJA nesse espaço.

Mitjáns Martínez (1997) coloca que a visão de futuro pode ser um elemento constitutivo da configuração criativa de um indivíduo, já que se relaciona com a produção de caminhos alternativos que ele realizará para que isso seja possível e concreto. Nesse sentido, para um aluno que foi estigmatizado como repetente e rebelde a vida toda, para enxergar possibilidade de futuro em um curso de ensino superior, o caminho é mais árduo. Além disso, como um jovem negro morador de periferia e envolvido com pessoas do mundo do tráfico, e considerando o alto nível de mortalidade pelas ações policiais dessa juventude, Sédriky comenta sobre como “não estaria ali” se não tivesse mudado de vida, e falava isso no sentido literal. Percebemos essa reflexão a seguir:

E o aprender significou que nem que seje uns milímetros, mas aumentou um pouco mais minha visão, eu pude enxergar um pouco além, através daquilo que eu aprendi, então me sinto super feliz por causa disso, porque me leva mais além. (Sédriky, 32 anos, pintor predial)

Podemos perceber, portanto, a relação entre a possibilidade de aprendizagem e a visão de futuro de Sédriky, que acompanha a expansão do seu horizonte de possibilidades de vida. Para a EJA, a inserção na cultura letrada ocidental tem importantes repercussões para a produção de caminhos subjetivos alternativos dos estudantes (Donadon, 2020). Dessa forma, apesar de sentidos subjetivos relacionados à marginalização e à “incompetência”, a configuração subjetiva de Sédriky também comporta a construção de uma visão de futuro:

Eu via assim as coisas na minha frente como um muro que eu não enxergava, eu sabia que atrás daquele muro tinha muitas oportunidades, mas aquele muro era para mim a realidade de que eu não tinha possibilidade de estar lá, do outro lado, entendeu? […] eu parava e ficava olhando, bah, existe tal coisa, mas quem sou eu para fazer tal coisa. Mas às vezes assim eu enxergava a possibilidade de ao menos pular esse muro. (Sédriky, 32 anos, pintor predial)

Muitos são os obstáculos sociais (tanto físicos quanto psicológicos) dispostos para dificultar o acesso da população de periferia ao avanço social (Donadon, 2020), o que Sedriky expressa como “muros”. No entanto, ele não os percebe como obstáculos intransponíveis, mas sim como potências para o avanço e rompimento com os processos de institucionalização. Portanto, o ambiente em que a pessoa cresce é certamente influenciador das suas ações e atitudes; no entanto, não determina diretamente suas trajetórias de vida, sendo possível a criação de outros caminhos, que são importantes de serem estudados e pesquisados nas suas implicações para o processo pedagógico dentro de uma sala de aula de EJA.

Concretiza-se, por isto, um indicador dos movimentos de Sédriky para a superação de uma subjetividade social relacionada à sua classe e cor, que envolve a construção de sentidos subjetivos relacionados à visão de futuro, à aprendizagem e à imaginação. Esse indicador pode ser percebido também no trecho a seguir:

Eu me sinto que por alguns instantes eu saio do sistema. O sistema que eu digo não do planeta Terra, mas do sistema que rege o cotidiano, entendeu? Aquele sistema, aquela pressão de hoje com a responsabilidade de compromisso, de como me comportar, esse sistema que rege o meu dia a dia, quando eu uso, quando eu estou, vamos dizer, no período de imaginação, eu esqueço de tudo, entendeu? (Sédriky, 32 anos, pintor predial)

Há, portanto, um paralelo entre imaginação e materialização de outras condições de vida ainda não possíveis para que Sédriky consiga produzir caminhos alternativos para a pressão social. Além disso, esse trecho de entrevista evidencia o quanto a subjetividade social é, muitas vezes, incompatível com a visão que Sédriky tem de si, levando à confusão e ao sofrimento. Dessa forma, percebemos um indicador da relação da subjetividade social com os processos motivacionais para a aprendizagem, o que, em Sédriky, não tomam um contorno de impossibilidade, mas sim de potência para o avanço, através de um posicionamento questionador e criativo. Falando sobre a sua relação com o trabalho como pintor predial, Sédriky comenta:

Mas quando eu pinto assim, me sinto super bem, porque é uma coisa que também me faz relaxar, embora seja um trabalho físico, mas eu me sinto bem à vontade, bem relaxado, no sentido assim de, fico despreocupado, eu fico vivendo aquilo ali, entendeu? Me desligo também, de certa forma. (Sédriky)

Em outro momento, Sédriky discorre sobre como percebe seu trabalho também como uma forma de arte por começar com algo sujo e transformar em algo bonito, que as pessoas gostariam de viver. O trabalho, dentro da lógica neoliberal, é uma importante ferramenta para a estigmatização das possibilidades de avanço social, subjetivo e emocional da parcela periférica, e principalmente negra, da sociedade. Essa lógica mercadológica é desafiada por Sédriky que, mesmo em um trabalho físico, que é socialmente marcado pela “ausência de intelectualidade”, cria espaços de prazer e criação. Dessa forma, a produção de sentidos subjetivos relacionados à autovalorização, ao reconhecimento, à responsabilização e criação também é expressada em relação ao trabalho, evidenciando a complexidade dos processos subjetivos. Portanto, a relação entre aprendizagem e trabalho, muito discutida na educação de jovens e adultos, aqui se alinham a partir da constituição subjetiva da Sédriky.

Portanto hipotetizamos que a produção de sentidos subjetivos relacionados à condição de sujeito (González Rey & Goulart, 2019) que envolvem a imaginação, a inclinação à aprendizagem e a ressignificação de tarefas braçais são expressões da sua criatividade em ambientes escolares, laborais ou informais. Pontua-se que as especificidades da aprendizagem criativa em contextos não formais se relacionam com uma maior ênfase na autonomia do indivíduo em relação ao que e como se aprende (Almeida, 2015). Sédriky, assim, reforça a possibilidade de converter a própria experiência em aprendizagem como um recurso subjetivo.

Os valores relacionados à criatividade postulados por Mitjáns Martínez (2002) de valor e novidade se evidenciam em Sédriky ao se relacionarem tanto à produção de sentidos subjetivos valorosos para sua autovisão quanto para a sua visão de futuro. Esses valores criativos não são necessariamente relacionados ou à comunidade científica ou à produção de algum material concreto para reformular a vivência cotidiana, mas relacionados à construção de caminhos subjetivos alternativos na trajetória do indivíduo (Azambuja, 2019). Nesse sentido, também se cria um contra-argumento à visão social em relação à criatividade, que a relaciona com um grande potencial cognitivo ou uma grande sensibilidade às artes. Por fim, a sala de aula da EJA não é somente diversa pelas diferentes origens e faixas etárias dos alunos, mas também pelas diferentes constituições subjetivas. A aprendizagem ultrapassa questões cognitivas ou sociais, se relacionando à subjetivação das experiências de vida e às possibilidades de ruptura do indivíduo em situação de cultura.

Considerações finais

Procuramos, com essa pesquisa, compreender as especificidades pedagógicas da EJA a partir das configurações subjetivas expressas na criatividade de um estudantes da Educação de Jovens e Adultos nos processos formais e informais de aprendizagem. Para isso, utilizamos a Teoria da Subjetividade (González Rey, 2013) que, em linhas gerais, advoga pela consideração do âmbito subjetivo da experiência de vida e, assim, pelas possibilidades de mudanças e rupturas ao que está estabelecido. Em nosso sistema educacional e social, “a negação do sujeito que aprende enquanto protagonista da aprendizagem acarretou a desconsideração da dimensão subjetiva envolvida nos processos de produção intelectual” (González Rey et al. 2016, p. 59) e, dessa forma, excluiu sujeitos do seu direito de reconhecimento, no espaço pedagógico, enquanto sujeitos de direito e sujeitos criadores. Assim, a proposta é promover um outro olhar em relação a esses estudantes, que criativamente constroem refutações e tensionamentos à ideia determinística de destino social.

Percebemos em Sédriky uma disponibilidade muito grande em participar da pesquisa e um grande envolvimento nas propostas reflexivas que foram se desenvolvendo durante o campo empírico. Observamos também uma postura questionadora, inquieta e ávida por conhecimento, o que se configura como uma expressão da criatividade em alunos da educação de jovens e adultos. A partir da possibilidade de que, para Sédriky, a sua imaginação o possibilita vivenciar materialmente outras situações de vida, produzindo outros caminhos subjetivos, construímos indicadores da criatividade e da imaginação enquanto funções do desenvolvimento subjetivo. A inserção em um coletivo também toma papel importante para a sua expressão criativa e, nesse sentido, questionamos a marginalização física e simbólica da EJA dentro do espaço escolar.

A relação entre o conhecimento formal e o informal, como postula Freire (1987), tem centralidade nas configurações subjetivas relacionadas à criatividade de Sédriky. Não somente proporcionadas pelo educador, essas relações possíveis são criadas a partir da promoção de ambientes e situações em que essa reflexão é permitida, desenvolvida e possibilitada. Assim, reforçamos o quanto a aprendizagem é complexa, recursiva e subjetiva em sua constituição.

Deste modo, o que mais se torna relevante, na nossa avaliação, é o quanto os processos de desenvolvimento da emancipação, da autonomia, da condição de sujeito, em um viés da educação, não são lineares ou causais; ou seja, mesmo tendo a avaliação do professor acerca das capacidades do aluno um peso grande na autovisão do mesmo, ele produzirá movimentos próprios em relação a isso. Como aponta Goulart (2017), é para isto que o trabalho educativo serve: para o favorecimento da emergência de sujeitos para atuarem no tecido social, promovendo mudanças à institucionalização. Isso envolve muito mais do que o professor e o aluno em sala de aula, mesmo eles sendo o centro da ação; por isso a importância de entender como se configuram, para o aluno, esses outros agentes e elementos dentro do processo educativo. Longe de estabelecer a necessidade de todo professor conhecer a formação subjetiva de todos os seus alunos em relação à aprendizagem, é importante o reconhecimento da existência dos processos diversos de subjetivação dos alunos em relação ao desemprego, à família, e a outros elementos da subjetividade individual e social e seus desdobramentos para o processo de aprendizagem, além de legitimar os seus processos criativos.

Referências

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Recebido: 14 de Janeiro de 2020; Aceito: 28 de Julho de 2020

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