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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 13-Out-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.23809 

Artigos

Práticas umbandistas como aprendizagem comunitária de longa duração no Paraná

Prácticas umbandistas como una aprendizaje comunitaria de larga duración en Paraná, Brasil

Umbanda’s practices as community of long-term learning in Paraná, Brazil

Pratiques umbandistes comme aprentissage commaunitaire de longue durree au Parana, Brésil

Jefferson Olivatto da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-6542-1461

Thais Rodrigues dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0001-5803-528X

1Doutor em Ciências Sociais (UNESP-Marília); Pós-Doutor em História e Pós-Doutor em Educação (UFPR); Departamento de Psicologia Social e Institucional (UEL); PPG - Educação (UNICENTRO). GIEDH; Psicologia Social e Antropologia da Educação em Estudos étnico-raciais e comunidades tradicionais.

2Mestrado em Educação (UNICENTRO); Doutoranda (Psicologia Social pela UFSC), pesquisa sobre memórias negras nas famílias inter-raciais do Sul do Brasil; Integrante do Grupo de Pesquisa Margens – modos de vida, família e relações de gênero – UFSC.


Resumo

A mediunidade é uma atitude convergente do processo educativo da Umbanda, que no Paraná mediou o cuidado mútuo e saberes tradicionais. A interface entre Antropologia da Educação e Psicologia Social Comunitária oportuniza discutir a ancestralidade em termos de aprendizagens de longa duração e uma educação silenciosa. Conclui-se que as práticas de curandeirismo e benzimento próprios da historicidade local de vulnerabilidade foram incorporadas nos templos umbandistas por meio da ação de suas entidades, como expressão matricêntrica de cuidado mútuo às aflições dos consulentes.

Palavras-chave Educação; Ancestralidade; Constelação de aprendizagem; Umbanda

Resumen

La mediumnidad es una actitud convergente del proceso educativo de Umbanda, que en Paraná mediado el cuidado mutuo y saberes tradicionales. La interfaz entre Antropología de la Educación y Psicología Social Comunitaria discute la ancestralidad en términos de aprendizaje de larga duración y una educación silenciosa. Se concluye que las prácticas de curanderismo propias de la historicidad local de vulnerabilidad fueron incorporadas en los templos Umbandistas por medio de la acción de sus entidades, como expresión matricéntrica de cuidado mutuo a las aflicciones de los consulentes.

Palabras clave Educación; Ancestralidad; Constelación de aprendizaje; Umbanda

Abstract

Mediumship is a convergent attitude in Umbanda’s educational process, which mediates mutual care and traditional knowledge in Parana State-Brazil. Moreover, by uttering Anthropology of Education and Social and Community Psychology, it conveyed to reveal ancestry as a long-term learning and a silent education. As a result, the actions of medicine men and women through the local history of vulnerability were embodied into Umbanda’s temples through entities’s actions, readjusting matricentric expression of mutual care to consultant’s afflictions.

Keywords Education; Ancestry; Constellation of learning; Umbanda

Résumé

La médiumnité est une attitude convergente du processus éducatif d’Umbanda, qui, au Paraná, Brésil, ont contribué au soin mutuel et aux savoirs traditionnels. L’interface entre anthropologie de l’éducation et psychologie sociale communautaire permet de discuter de l’ascendance en termes d’apprentissage de longue durée et d’éducation silencieuse. Il est conclu que les pratiques des guérriseurs propres à historicité locale de vulnerabilité ont été incorporés dans les temples umbandistes par l’action de leurs entités, comme expression matricentrique de soin mutuel aux afflictions des consultants.

Mots clés Éducation; Ascendance; Constellation d'apprentissage; Umbanda

Introdução

A plasticidade cerebral é uma das capacidades humanas que caracteriza a aprendizagem e sua criatividade resolutiva, o que nos levou a estabelecer como foco sua produção inserida em um tipo de vínculo identitário específico. Assim, as relações que modelam a identidade umbandista giram em torno de práticas ritualísticas de mediunidade – como expressão de possessão de espíritos denominados de entidades que intercambiariam a relação entre o mundo supranatural e o natural.

A aprendizagem da mediunidade é o caminho pelo qual aquele que se insere na comunidade umbandista responde ao denominado desenvolvimento espiritual apontado pelas entidades. À medida que interpretamos as diferentes práticas que ocorrem nesses espaços de cultos religiosos no Paraná com o intuito de compreendê-las como processos educativos em torno de uma identidade coletiva, é possível observar dinâmicas sócio-históricas que compõem interações intersubjetivas de longa duração, isto é, produções de realidades compartilhadas por diferentes populações e entre várias gerações. Aponta-se, assim, como desafio perscrutar e desvelar a mediunidade na forma de produção desses processos educativos de longa duração diante do silenciamento ou pseudo-esquecimento (Pollack, 1989) que impera no estado mediante os esforços do Movimento Paranista (Martins, 1899/1995; Wachowicz, 1966/1982) para que o fosse impregnado o ideário de uma região branca e europeia, como denotou o livro de Wilson Martins (1954/1989), intitulado Um Brasil diferente.

A violência encontrou mecanismos sociais que se manifestaram em exclusão, depreciação de saberes, negligência estatal e violência física oriundas da metabolização do processo colonial latino-americano direcionado às populações indígenas, negras e colonos empobrecidos (Mota, 1994; 2000; 2013; Mignolo, 2005). Já o silenciamento corresponde tanto às atitudes das populações exploradas, que sem correspondência cognitiva, afetiva ou jurídica não possuem reconhecimento social, quanto pelo excesso dos discursos oficiais que, em decorrência desse desprezo, gerou apatia para a manutenção do poder (Boff & Conte, 2016; Mattos, 1998; Pollack, 1989). Todavia, é justamente esse desprezo que alimenta o estado de pseudo-esquecimento, tornando operante sua incompreensão pelas vias da legitimidade. Assim desvelar as dinâmicas sócio-históricas implica na desideologização das condições coloniais desdobradas na atualidade pela assimetria entre experiência comunitária de indígenas, negros e mestiços e o excesso de discursos oficiais que os negligencia (Martin-Baró, 1990).

Nesse cenário, buscamos demonstrar a configuração das práticas de acolhimento que compõem a mediunidade umbandista como produção de longa duração da matricentralidade, sendo que, de um lado, há as contribuições psicossociais de dinâmica relativa às práticas religiosas negras e indígenas do sul do Paraná, entre Irati até Marmelos, e de outro, como essas interações responderam ao cuidado comunitário relativo à negligência a esses povos no processo de ocupação dos territórios. Com efeito, a Umbanda como religião inicialmente urbana, teria acompanhado famílias atraídas para o interior e sul do Paraná, predominante, a partir da década de 1950. Assim, as aprendizagens teriam sido desdobradas em identidades de cuidado e resistências comunitárias e locais. Como enfatizou Madalena Santos (2004), as identidades são produzidas no e pelo coletivo diante dos referentes-outros, para que aconteça o reconhecimento mútuo da totalidade existencial.

Dessa mesma forma, o cuidado aqui não se refere à dimensão subjetiva de si para com as entidades, aliás, em uma concepção social, a mediunidade será interpretativa à luz das aprendizagens mediadas entre os saberes tradicionais e as diferentes expressões de aflições levadas pelas consulentes até os terreiros, que, a seu turno, corresponde aos processos sócio-históricos de negligências regionais. Para interpretar esses processos educativos, faremos uso da concepção de constelações de aprendizagem manifestada pela matricentralidade inspirada por Cheick Anta Diop (1982/2014) e Ifi Amadiume (1997), por acolher a alteridade em coletivos, pela interface entre Antropologia da Educação e Psicologia Social Comunitária. Ademais, vale ressaltar que nossa hipótese, por se tratar de aprendizagens de longa duração, procura contribuir com o diálogo profícuo de pesquisas em outras áreas como os estudos sobre as línguas africanas por Christopher Ehret (2002) relacionando às invenções e civilizações africanas de 16.000 a.C. até 1.800, Edward Alpers (2000) sobre a expansão do islamismo em populações africanas do oeste africano, sudanesas e subequatorianas a partir do século VIII, bem como Rebecca Grollemundet al. (2015) sobre a disseminação do banto na África Central e Austral, para mencionar alguns estudos. Nesse sentido, os processos de aprendizagem que acercam a mediunidade vislumbram a compreensão de que o pertencimento negro, configurado por Cheik Anta Diop (1982/2014), é ancestral e pertencente ao advento da humanidade ao gravitar o cuidado mútuo em sua incorporação comunitária de matricentralidade.

Os contatos estabelecidos nas cidades paranaenses de Irati, Guarapuava, Pato Branco e Marmelos, prevalentemente, remetem sua identidade comunitária e ancestral aos templos de matriz africana (Candomblé e Umbanda) de Curitiba-PR (Galliciano, 2015; Santos, 2018; Silva, 2019), Florianópolis-SC (Fávaro, 2018), Porto Alegre-RS (Silva, 2019) e Passo Fundo-RS (Fernandes, 2018). Esses vínculos de aprendizagem sustentam o fortalecimento de saberes tradicionais e mantêm os terreiros vivos mediante sua metabolização com as aflições cotidianas. Diante do silenciamento e da invisibilidade colonial que fomentou o pseudo-esquecimento (Pollack, 1989) das origens mestiças, indígenas e negras, novas manifestações de resistência vindas com a expansão ocupacional do Paraná responderam ao sentido social de resistência das camadas populares (Brandão, 2007).

Metodologia

Para interpretarmos os processos educativos faremos uso da concepção de constelações de aprendizagem em torno da mediunidade umbandista em resposta aos apelos locais. A concepção de constelações de aprendizagem dialoga com a Antropologia da Educação (Brandão, 2007; Dias, 2019; Santos, 2018; Silva, 2016; Silva et al., 2020) e com a Psicologia Social Comunitária (Martin-Baró, 1990; Montero, 2004), para interpretar as aprendizagens de longa duração relativas ao cuidado mútuo umbandista (Ehret, 2002; Grollemundet al., 2015; M’Bokolo, 2009). Para tanto faremos uso da triangulação a partir de três unidades interdependentes: a) pesquisas sobre os terreiros na região central e sul do Paraná (Fávaro, 2018; Fernandes, 2018; Galliciano, 2015; Silva, 2019), isto é, Irati, Guarapuava, Clevalândia, Pato Branco, Marmelos e Dois Vizinhos; b) dados historiográficos a respeito da mobilidade humana na região; c) dados etnográficos do terreiro Mãe Oxum e Pai Ogum em Irati entre os meses de setembro de 2016 a abril de 2018. Ressaltamos, que os dados do terreiro de Irati foram possíveis pelo atendimento das sessões ritualísticas restritas aos membros nas segundas-feiras das 20:00 às 23:00 e das abertas ao púbico nas terças-feiras no mesmo horário.

Discussão

Alinhados à noção de aprendizagem de longa duração, devemos entender que ocorreu o desdobramento de ações de cuidado na reformulação identitária de comunidades no sul paranaense, as quais podemos considerar sua similaridade ao que Abdias do Nascimento denominou de aquilombamento (1980). Nesses termos, o aquilombamento corresponde ao que o autor denominou de cultura de libertação em sua totalidade histórico-existencial e metafísica. Logo, os processos educativos que orquestraram esses grupos em torno de vínculos comunitários correspondiam ao cuidado mútuo agregante de alteridades bem como delineavam fronteiras em resposta aos mecanismos excludentes como escravidão, servidão, extermínio, apropriação, negligência ou pseudo-esquecimento de sua existência. É diante desta compreensão ética e política da concretude da vida dos grupos que foram subalternizados, que ampliamos a concepção de quilombismo como forma atualizada da matricentralidade.

Além disso, pela concepção de comunidade, segundo Maritza Montero (2004), corroboramos que o desenvolvimento histórico e cultural ocorre por certas questões em circunstâncias específicas e seus participantes em seu autorreconhecimento compartilham um sentido de comunidade por sua ênfase no “nós coletivo”. Esse sentido dinamicamente modela a identidade comunitária. Sodré (1988) afirma que, à medida que as religiões de matriz africana se configuram como um patrimônio simbólico da população afro-brasileira, possibilita uma re-territorialização na diáspora, de modo que, a comunidade afro-religiosa passa a ser um novo território para aqueles que foram retirados de suas terras originais.

A matricentralidade seria para Cheick Anta Diop (1982/2014) a matriz de interações do advento da nossa espécie que, ainda na África, vivenciava um ambiente com fartura, denominado de Berço Meridional. Neste cenário as comunidades teriam agregado diferentes indivíduos, acolhendo o outro e afirmando o destaque feminino e a solidariedade material. Haveria dinâmicas sociais que desconheciam a miséria material e moral,em decorrência de um cotidiano de paz, justiça, bondade e otimismo. A partir dessa visão global, Ifi Amadiume (1997) investigou a matriz de cuidado mútuo do Berço Meridional que teria sido atualizada no oeste africano pelos sistemas políticos descentralizados, antiestatais e familiares. Esses processos teriam tecido práticas de relações de proximidade e intimidade. No entanto, segundo Diop (1982/2014), a expansão da espécie fora do continente africano teria desencadeado novas práticas de interação correspondentes a ambientes inóspitos em direção à Europa. Com efeito, teria assim surgido e propagado o patriarcado por meio da competitividade, da virilidade e da força como disposições condicionantes a novos ritos e símbolos, inclusive na invenção da sua pseudoprocriação (Amadiume, 1997). Ora, esse novo sistema também teria sido introduzido no continente africano, posteriormente. Podemos considerar, conforme apontou Amadiume (1997), que as aprendizagens matricêntricas, diante do encontro com o patriarcado e/ou na prevalência deste, subsistiram na forma de aprendizagens silenciosas, por vezes menosprezadas, mas necessárias para a manutenção de vínculos familiares e comunitários a partir da propagação de cuidados mútuos.

Com efeito, por meio do argumento da matricentralidade de Diop e Amadiume sustentamos o sentido pelo qual diferentes processos sócio-históricos contextualizam a performance de intimidade ou fragmentação identitária em ritos e práticas religiosas -como se caracterizam os ritos de passagem nos diferentes ciclos da vida (nascimento até a morte) material e espiritual para atender às aflições comunitárias. Ora, as práticas culturais identitárias, constituídas por formas diferenciadas de intimidade, conforme associamos a produção com populações específicas, demonstram o avanço e a complexidade segundo os quais as comunidades mediaram ações para sua sobrevivência coletiva. Esses desdobramentos de aprendizagens e suas difusões podem inclusive ser constatados ao considerarmos as migrações ocorridas, também, no continente americano.

Lembramos que a presença humana no sul do Brasil pôde ser constatada a partir de ossadas e produções líticas desde 12.000 anos atrás por populações pré-ceramistas (denominadas de Humaitá, Umbu e Sambaqui) - com alta complexidade de adaptação climática do Pleistoceno tardio ao Holoceno. Posteriormente a elas tivemos os grupos ceramistas (Taquara-Itararé, Casa da Pedra e Tupi-guarani). Outros vestígios arqueológicos apontam que os grupos Jê (Kaingang e Laklanõ) não eram somente nomádicos, mas desenvolveram cultivo de grãos que os instrumentalizaram a se manter em determinadas regiões por várias estações, quiçá séculos em processos de reocupação (Souza et al., 2016).

O início da ocupação europeia pelo projeto das reduções jesuíticas espanholas, nas duas primeiras décadas de 1600, impôs novas formas organizacionais para modelar o tipo ideal indígena, chamado de guarani misionero, entendido como aqueles que estariam mais suscetíveis à violência externa (Wilde, 2009). O trabalho servil e escravidão, vestimentas estrangeiras, horários de oração e deslocamentos populacionais, além da formação do cacicado em torno de famílias específicas, romperam com práticas simbólicas anteriores e causaram o desastre social com o aniquilamento de populações - Ingáin, Kindá e Gualacho – de acordo com Francisco Noelli e Jonas de Souza (2017). Em 1628, houve o colapso Guarani pelo conflito de disputa de mão-de-obra escravizada indígena entre jesuítas espanhóis e bandeiras paulistas afugentando as populações indígenas para a região sul do estado, entre 3.000 indígenas levados para a Província de São Paulo e 12.000 para o Paraguai (Montoya, 1985).

Vale lembrar que as reduções se estabeleceram em territórios Guarani para evitar o conflito com os Kaingang (Mota, 1994). Após o referido colapso, os Kaingang reocuparam os territórios ao norte do estado (Mota, 2000; Noelli & Souza, 2017). Por outro lado, na primeira década de 1800 pela ocupação das terras via instalação de postos militares nos Campos Gerais para assegurar a sobreposição de poderes não locais em capitanias e subdividas em sesmarias, a região sul utilizava-se da mão-de-obra escravizada, inclusive importava africanos escravizados (Mota, 1994; 2000). Isso explicaria a presença de negros no sul do Paraná, bem como de forros e degredados (prisioneiros) do império (Pontarolo, 2007), que um século depois, seriam a mão-de-obra do tropeirismo de Viamão, Rio Grande do Sul, para conduzir mulas e suínos até a feira de Sorocaba, São Paulo. Ao longo desses caminhos, instalaram-se comunidades negras tanto como força motriz para as fazendas locais quanto para a mão-de-obra desse comércio, gerando vínculos onde ainda podemos constatar a concentração das comunidades quilombolas (Cruz, 2013).

Esses direcionamentos de sobreposição e violência sistemática modelaram o que temos apontado sobre o pseudo-esquecimento reiterado pelas instituições sociais e supervalorização da segunda imigração europeia no século XX composto pelo Movimento Paranista, de um lado, e o aquilombamento de populações tradicionais, de outro. Em contraposição a essas práticas de solidariedade e acolhimento das populações tradicionais, o ideário do Movimento Paranista iniciado por Alfredo Romário Martins, em História do Paraná (1899/1995), convergiu a ânsia deste estado por ser destaque nacional. Assim, Wilson Martins procurou dar essa ênfase, no seu livro Um Brasil diferente, ao alimentar o imaginário desse tal estado distinto:

Assim é o Paraná. Território que, do ponto de vista sociológico, acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de uma civilização original construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão, sem negro, sem português e sem índio, dir-se-ia que sua definição humana não é brasileira […] (Martins, 1954/1989, p. 446).

Tal diferença está asseverada no contraste do que Wilson Martins (1954/1989) apontava em seu tempo ser a cultura ou civilização em oposição ao primitivismo, caboclo e caipira, presentes e transmitidos pelos brasileiros. Por outro lado, o cuidado mútuo continuou sua educação silenciosa emudecido pela narrativa oficial e prevaleceu na forma de dom e auxílio comunitário, nomeadamente, curandeirismo e benzimento (Dias, 2019; Silva et al. 2020). Sobreviver diante da assimetria colonial e imperial se tornou uma prática social revolucionária por meio da afirmação dos saberes e identidades dessas populações tradicionais.

Para entender que os saberes e as populações tradicionais são entendidos em seu sentido lato, dialogamos com Manuela Carnerio da Cunha (2009, p. 300):

Uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir as leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados.

Dessa forma, a historicidade de práticas locais do sul do Paraná corrobora essa perspectiva, bem como delineia a interpretação religiosa de vínculo ancestral ao qual, inclusive, a Umbanda está inserida. Ilustrativamente, assim é que as incorporações ameríndias representadas pelo caboclo, do negro pelo preto-velho e do tropeiro pelo boiadeiro, reorganizam as experiências coletiva e ancestral atualizadas em cada templo.

Aprendizagens umbandistas: agregando saberes e cuidados

Há que ser apontado que as trajetórias locais de curandeirismo e benzimento estiveram entrelaçadas por violências e massacres. Podemos relembrar que o massacre da Guerra do Contestado (1912-1916) contra as populações caboclas ao longo da rota dos tropeiros, que matou mais de 20.000 entre Santa Catarina e Paraná, convergiu o acúmulo de cuidados mútuos na figura lendária do monge João Maria D’Agostini que peregrinava pela região desde 1844, fazia orações públicas, plantava cruzes no chão, bebia água de grutas e ensinava o uso de remédios caseiros (Muller Teider & Fraga, 2017). Sua presença revestida por auxílio espiritual que respondia a anseios diversos das comunidades materializou-se, até, em grutas e olhos d’água. Se o silêncio da narrativa oficial tangenciou sua importância, sua presença foi silenciosamente incorporada pela transmissão do dom de cura. Por sua vez, o benzimento observado em Foz do Jordão (Dias, 2019; Silva, 2019), como dádiva transmitida às mulheres no seio de famílias com ascendência negra e indígena, traduz esses saberes tradicionais de cuidado pela afirmação comunitária do vínculo ancestral direcionado à figura do monge.

Observamos que por aprendizagens de cuidado mútuo caracterizadas por um longo processo sócio-histórico de interações entre as primeiras populações no estado, houve a partilha de conhecimentos e tecnologias contra intempéries (abrigos adequados ao frio e umidade), fome (sazonalidade para o cultivo de plantas, grãos e estratégias de caça e pesca) e adoecimentos (uso de ervas para chás, banhos e incensos). Com efeito, esses saberes ancestrais, de certa forma, compuseram práticas de curandeirismo e benzimento, que somadas ao personalismo do dom de cura do monge João Maria, reconstruíram um espaço de reconhecimento da totalidade histórico-existencial e metafísica para o ser negro e ser indígena (Nascimento, 1980). Portanto, esses processos de longa duração fomentaram um ambiente social favorável à instalação de templos umbandistas a partir da correspondência aos saberes e representações ancestrais.

Assim é que podemos constatar até o momento a origem da Umbanda na região por meio da migração de pais e mães-de-santo para Guarapuava a partir da década de 1950 (Silva, 2019), Irati em 1954 (Kotlinski, 2018; Santos, 2018), Clevelândia em 1958 e Pato Branco em 1962 (Fernandes, 2018).

Outrossim, a reatualização dessas práticas de cuidado mútuo corrobora a noção matricêntrica endógena das comunidades do oeste africano às quais se referiu Amadiume (1997) em virtude da forma de acolhimento do dom geracional e feminino do benzimento (Dias, 2019) nutrindo localmente a receptividade de outras lógicas de cura e dom como se tornaria a mediunidade. Nesses termos, Janderson Carneiro (2017) constata que a mediunidade se realiza por experiências sensório-corporais e o reconhecimento destas pelo grupo. Porém, frisamos que sem o reconhecimento do grupo ou o apelo em torno desse tipo de acolhimento a mediunidade perde sua razão de ser.

Os processos educativos de longa duração observados, principalmente, no terreiro Mãe Oxum e Pai Ogum de Irati e nos demais templos observados na região demonstraram a organicidade afirmativa da identidade umbandista; concomitantemente, a comunidade umbandista reforça sua identidade por práticas que agregam sinais de pertencimento, legitimidade e reconhecimento pela experiência compartilhada da mediunidade. Consequentemente, as práticas mediúnicas se modelam no atendimento aos apelos locais trazidos pelos consulentes e interpretados pelos médiuns e suas entidades. Por isso, é nutrida na composição da identidade umbandista de cada templo a correspondência entre aflições e determinadas entidades, ou seja, a mediunidade umbandista se afirma por um processo próprio de aprendizagem que se traduz no jogo de perguntas (aflições) e respostas (atendimentos).

Em vista do que observamos e da literatura, o espectro de aprendizagem na umbanda é amplo e até distinto se considerarmos a identidade comunitária em relação às aprendizagens Bergo (2011), Fávaro (2018), Fernandes (2018), Monteiro (1992), Prandi (2011) e Silva (2019). Podemos constatar por meio desses autores, como pelos templos contatados na região, que há características que os distinguem em suas aprendizagens, como: adoção de práticas orientais como música, narrativas, incensos e artefatos no templo, permissão de incorporação ou não relativo ao tempo de desenvolvimento do adepto, sacrifício ou não de animais para os rituais, proibição ou não de bebidas alcoólicas durante a incorporação entre outras. Essas diferenças, que constroem um conjunto de aprendizagens delineantes da identidade comunitária do templo, demonstram a versatilidade de respostas oferecidas em cada templo para corresponder ao que os seus consulentes buscam. Por isso, cada terreiro é independente entre si e interdependente das aflições acolhidas, já que precisa acontecer a partir da concretude e da intimidade disponíveis. Todavia, para explicarmos as centralidades de aprendizagem de cada momento da mediunidade, tomamos como base o Templo Mãe Oxum e Pai Ogum pesquisado em Irati. Ali são definidos cinco marcos da ritualidade no encadeamento desse processo educativo em decorrência de sua função: chamamento, cambonagem, capitão e capitã, pai e mãe-pequena e pai e mãe-de-santo.

O terreiro Mãe Oxum e Pai Ogum é liderado pela Mãe Dulce com vínculos de saberes tradicionais em Curitiba para legitimar o culto da Umbanda Omolokô aprendido com a Mãe Dilma de Santa Catarina, sua mãe-de-santo. Ela toca seu terreiro com seu marido, Pai Ogã, que também cuida das ervas plantadas no terreno ao lado do templo. Além disso, a mãe-de-santo afirma que a sua casa tem a sua personalidade, “a gente busca seguir um pouco dos rituais que a gente aprendeu, mas de tudo que eu aprendi tento pegar o melhor, dizem até que a Umbanda da Dulce é um pouco esotérica, tem um pouco de tudo” (nov./2017). Em termos de caracterização a Umbanda Omolokô é combinada pelas orientações da mãe-de-santo com outros cultos negros, ameríndios, kardecistas, católicos, ciganos, orientais - budismo e hinduísmo- e da magia, isso acontece em outros templos e garante a adesão e resistência da umbanda.

O processo mediúnico carrega diferentes engendramentos para seu desenvolvimento, cuja excelência é atribuída pelos umbandistas à intensidade, fluxo e domínio das experiências sensório-corporais das manifestações das entidades do panteão umbandista (Santos, 2018; Silva, 2019). Para tanto, existe uma necessidade inicial do chamamento para tal desenvolvimento. As pesquisas sobre as religiões de matriz africana (Bergo, 2011; Cancone, 2011; Prandi, 2011; Victoriano, 2005) indicam que há uma prevalência da procura desses templos para a resolução de um problema pessoal ou familiar, sem pretensão consciente de uma integração junto à comunidade. Mas, diante da acolhida no atendimento feito por uma entidade específica com atenção à sua aflição, é possível que a entidade indique a causa de suas questões relacionadas à mediunidade desse consulente.

A escolha por essa indicação do desenvolvimento da mediunidade é similar ao processo de aceitação do dom no benzimento – isto é, uma escolha pessoal diante do chamamento supranatural (Dias, 2019; Oliveira, 2008). Assim, propriamente é iniciada sua participação como membro, desde que o neófito corresponda à sua participação nas giras em conformidade ao modus operanti do templo específico. Porém, é comum que esse chamamento seja denominado como uma missão que acarreta implicação na vida social (Cancone, 2011; Carneiro, 2017; Fernandes, 2018).

Esse desenvolvimento mediúnico atrai para si alteridades de cuidado em relação à experiência religiosa da mãe-de-santo e de sua comunidade, conforme suas aprendizagens correspondem ao reconhecimento do plano supranatural em que vibrações, energia ou força das entidades e orixás devem modelar as respostas do médium. A diferença espaciotemporal entre gerações de saberes e aflições reforçam nosso argumento que, nesse jogo de perguntas e respostas, propicia o sentido de identidade comunitária e cuidado mútuo (Montero, 2004). Em termos de elucidação relacionada à aprendizagem das experiências sensório-corporais (Carneiro, 2017) da mediunidade em etapas integradas, podemos dizer que existe o chamamento como referido acima, cuja aflição pessoal encontra no acolhimento do terreiro o reconhecimento de sua legitimidade, independentemente de sua natureza – emocional, econômica, espiritual entre outras -, para oferecer ao consulente um vínculo ancestral.

Diante da afirmação do médium ao chamamento e sua acolhida pela mãe-de-santo junto à sua comunidade, o neófito é inserido na cadeia de aprendizagem mediúnica como cambono para se preparar para as graduações seguintes. A tarefa de cambonar responsabiliza o médium pelo auxílio direto à entidade nos trabalhos realizados. Nessa função, cabe ao cambono facilitar a comunicação entre a entidade e o assistido, cuidar para que não falte elementos ritualísticos, bem como acompanhar e aprender com os diferentes encontros de cuidado. Zangariet al. (2016) evidenciam que além disso, os ensinamentos acontecem pelo contato indireto de médiuns com suas entidades, mediado pelos cambonos. Antes e depois do atendimento à assistência, cambonos e entidades trocam informações e as narrativas de trajetórias espirituais convertem-se em doutrina para a comunidade.

Há uma diferença do encaminhamento desse marco entre os terreiros. Podemos dizer que a amplitude pode ir desde o encorajamento para o neófito ser inserido nas giras públicas de atendimento até um período propedêutico em gira privada para melhor gravitar na lógica do templo. No caso deste templo de Irati, o cambono é direcionado às giras privadas, denominadas de giras de desenvolvimento que acontecem em dias diferentes da pública, para aprender práticas de mediação entre entidades e consulentes. Essa gira subdivide-se em dois momentos: estudo e sabedoria ancestral transmitidos pela mãe-de-santo e na sua ausência pelos mais velhos presentes; em seguida, a prática em si para atrelar o médium à sinergia comunitária; ou melhor, pela ritmicidade entre canto, atabaque, adjá, entidade, corpo e sensibilidade.O médium se prepara para o jogo de perguntas e respostas, de modo que esse conjunto cultive saberes tradicionais entre os integrantes e os integrem ao cotidiano religioso. Ou como considerou Carneiro (2017, p. 106), o desenvolvimento da mediunidade seria uma “sensoridade inscrita na cultura corporal da religiosidade umbandista.” Essa correspondência desenvolve a adesão aos ensinamentos e práticas de longa duração relativos à emergência da afirmação do humano, característica da matricentralidade.

Atravessado pela experiência da iniciação no terreiro, o médium L.H. (dez./2017) destaca que foi “muito interessante ver que cada mano tinha um desenvolvimento. Mesmo que fosse um momento único para cada um, ali várias caminhadas próprias se encontravam no objetivo por elevação espiritual”. Para esse templo a elevação espiritual refere-se à maior intimidade com a ancestralidade, que permite ao grupo religioso definir sua identidade à medida que são convergidas experiências com o sagrado.

Ali os cambonos não recebem toda a gama de entidades, principalmente, as da linha da esquerda, exus e pombas giras, em vista da condição primária de aprendizagem, somente com a graduação de capitã ou capitão se autoriza o recebimento das entidades dessa linha. Outro aspecto de destaque é que para essa comunidade, os médiuns receberiam vibrações dos Orixás na forma de caboclos – diferente do que observamos em outros terreiros – embora Targino (2018) tenha evidenciado na sua etnografia, exatamente, essa diferença vibratória para evidenciar a distinção entre Umbanda e Candomblé na comunidade pesquisada. A ritmicidade do médium cambono se caracteriza pela fluidez com que assessorou as entidades dos outros médiuns na gira pública e traduziu para os consulentes as observações das entidades, desenvolveu sua entidade com mais segurança e indicou a capacidade de incorporar outras (Bergo, 2011); além disso, colaborou com as atividades semanais de manutenção do terreiro: faxina, organização de rituais de proteção, bem como no preparo de rituais festivos. Por conta dessas observâncias e preceitos, a mãe-de-santo juntamente com os médiuns poderá legitimar o neófito para a graduação de capitão ou capitã.

Ademais, a incorporação da linha da esquerda para este templo, como para os outros (porém, sem a necessidade da graduação), é sua proximidade com o histórico de negligência regional, ou diria Cancone (2011), a identificação com as camadas populares e subalternas (Brandão, 2007). Essas entidades são as mais procuradas pelos consulentes compatíveis ao grau de aflição apresentado. Caberia em outro estudo verificar até que ponto as qualidades de exus ecoariam em outras entidades como caboclos e preto-velhos, segundo a proposição de Cancone (2011), ou até, quais desdobramentos o tropeirismo e suas qualidades corresponderiam às entidades dos templos da região.

Como asseverado, a incorporação é vista pelos umbandistas como a aprendizagem central do desenvolvimento mediúnico, cujo aperfeiçoamento será legitimado pela Mãe Dulce após um ano de cambonagem para que possa atingir o grau de capitão. Esse cargo exige a responsabilidade do médium para com a manutenção da ordem no terreiro umbandista, o capitão ou capitã orienta a comunidade sobre os direcionamentos da mãe-de-santo e tem maior proximidade com os cambonos pela ordem hierárquica. O cargo pressupõe, ainda, diferentes aprendizagens, principalmente, de comunicação, já que lhe cabe a integração dos participantes na comunidade para garantir que cada qual faça o que é de responsabilidade pelo seu cargo comunitário e se mantenha o axé coletivo. Para tanto, o capitão ou capitã leva todas as questões da gira à chefe do terreiro para que esta possa orientar qual procedimento tomar e, diante dos encaminhamentos da mais velha, o capitão os organiza em comunidade. Quando há desdobramentos de conflitos, os capitães repassam para os pais e mães-pequenas, que podem chegar até a mãe-de-santo conforme o entendimento destes.

Os pais e mãe-pequenas são médiuns de, no mínimo 5 anos de graduação e atuação no terreiro. Essa experiência compartilhada agrega o respeito da comunidade por esses médiuns e suas entidades, já que demonstram a devida ritmicidade com todo o espectro ritualístico (simbólico e material). Os pais e mães-pequenas auxiliam o desenvolvimento mediúnico dos médiuns com graduações menores, sobretudo, na incorporação. É comum observar, durante e depois das giras, pais e mães-pequenas tirando dúvidas e acalmando angústias dos mais novos em relação ao vínculo com suas entidades. Também é responsabilidade desses médiuns substituir a mãe-de-santo em trabalhos ritualísticos se a última não está presente.

A graduação maior é a mãe-de-santo, com no mínimo 7 anos de graduação, de acordo com Santos (2008) em Os Nagô e a Morte. A mãe de santo é, ao mesmo tempo, mãe do axé, por ser a chefe suprema e quem fornece os maiores conhecimentos e experiências ritual e mística e possui o axé mais poderoso e atuante. Ela é responsável não somente pela guarda dos templos, altares, ornamentos e de todos os objetos sagrados, mas também deverá, sobretudo, zelar pela preservação do axé que manterá ativa a vida comunitária. A sua graduação é determinada pela senioridade iniciática e não pela idade cronológica da sacerdotisa.

A senioridade pressupõe a partilha de saberes entre os mais experientes no axé para os novos adeptos. As aprendizagens pelo axé são identificadas por Santos (2008) como: a interiorização e a mobilização de elementos simbólicos ou espirituais, individuais e coletivos, que transformam o ser humano num altar vivo, no qual pode ser invocada presença de orixás, encantados, entidades e outras manifestações de comunicação entre os mundos dos vivos e dos mortos. Essa ligação ancestral é preparada por ensinamentos que antecedem cada graduação, visto que o conhecimento precisa ser praticado e munido de experiência, de modo a garantir sua partilha posterior entre a comunidade.

A disciplina é interpretada na cadeira de senioridade que manteria o fluxo do axé na família-de-santo. Por exemplo, para que uma capitã incorpore em uma gira antes de uma mãe-pequena é preciso uma justificativa e autorização da mãe-de-santo, inclusive para dar o exemplo para os mais novos. Porém, caso haja uma ruptura na doutrina por parte do neófito, é muito provável que alguma entidade do templo exerça uma correção que deverá ser entendida em sua função pedagógica (Bergo, 2011).

Quando é feito um pai ou mãe-de-santo há um ganho coletivo em termos de ampliação ao vínculo ancestral, por isso, é desejável encontrar vários com essa graduação em determinados templos. Nesse sentido, a amplitude do vínculo comunitário pela abertura de casas, reafirma o axé de origem, pois a relação de senioridade se manterá entre si, bem como no prestígio em festas e encontros públicos e no atendimento em rituais de graduação dos filhos e netos espirituais – isto é, em momentos específicos para o fortalecimento da mediunidade do templo filiado, que, a seu turno, se traduz em “nós coletivo”.

Outrossim, esse comportamento religioso de vínculo ancestral e de senioridade pode explicar as mudanças ou iterações simbólicas nos templos. Embora M’Bokolo (2009), Ehret (2002) e Grollemund et al. (2015) demonstrem por meio dos movimentos de avanço e retrocessos as mudanças morfossintáticas de línguas bantas no último milênio, pela mesma razão alguns esquemas culturais podem ser iterados por séculos, muito provavelmente, diante de seu valor e função para a memória coletiva do grupo, bem exemplificadas por meio de mitos originários africanos (M’Bokolo, 2009; Vansina, 1995), da diáspora (Prandi, 2011) e ameríndios (Monteiro, 1992).

Os movimentos migratórios para o sul do Paraná por pais e mães-de-santo não demonstram terem sido traumáticos, mas complementares às práticas religiosas locais e resistentes às perseguições (Kotlinski, 2018). A inserção dessas novas práticas, muito provavelmente, dialogou com os saberes tradicionais incorporados por aqueles que seriam seus médiuns, além do mais, estes conheciam o ambiente social e as diferentes aflições que partilhavam com os consulentes. Eram os herdeiros mais próximos das experiências de cuidado dos saberes tradicionais disponíveis, como o convívio e apreço às benzedeiras. Podemos considerar que diante do tempo de adaptação dos pais e mães-de-santo, suas inclusões na prática mediúnica habilitaria o templo a mediar apropriadamente a atuação das entidades diante da busca dos consulentes.

Além do mais, essa adaptação necessária à instalação dos templos precisaria negociar desde horários de atendimento, uso de determinados aparatos em eventual falta, ervas, até termos ritualísticos. A partir das constatações linguísticas das migrações bantas analisadas por Grollemund et al. (2015) sobre os processos migratórios da savana em direção à floresta e no retorno para as savanas, a velocidade de adaptação dos grupos demonstra maior ou menor tendência de preservação de saberes anteriores para que sejam enaltecidos entre gerações. Ora, esse processo reforça o argumento de que a mediação de templos umbandistas em um ambiente de benzimento foi mais eficiente, à medida que o prestígio da mediunidade dialogou com saberes tradicionais locais para nutrir uma intimidade comunitária e sua expansão simbólica. Em termos etnográficos, respondemos de que maneira as diferentes aproximações com o sagrado e os desdobramentos deste simbolismo agregaram-se às famílias-de-santo (Cancone, 2011).

À proporção que avança nas graduações, o médium precisa interpretar as experiências sensório-corporais da mediunidade que acerca o panteão e suas manifestações em sonhos, tipos de sensações variadas, os processos de desenvolvimento mediúnico e sua ritualística, pontos cantados, uso de ervas e fumaça (defumadores, cachimbos, charutos e cigarros) para ter condições de deixar fluir o axé na comunidade (Bergo, 2011). Essa fluidez religiosa e comportamental possui a capacidade agregadora da totalidade histórico-existencial e metafísica da cultura afro-brasileira e elusiva aos que desconhecem o processo violento da colonização paranaense. Essas duas capacidades, agregadora e elusiva, podem explicar a razão pela qual as populações regionais, mesmo sem consciência das condições sócio-históricas excludentes ou das alteridades que compõem as expressões do panteão umbandista em torno da mediunidade, exercem ações simbólicas e materiais de um longo processo educativo. A seu turno, quanto mais consciente este processo permear as experiências sensório-corporais na ritualística umbandista, mais será libertador e revolucionário.

Por isso, Elikia M’Bokolo (2009) alerta que as dinâmicas de longa duração que ocorreram nas savanas precisam ser compreendidas antes do advento do colonialismo para então entendê-las em suas respostas sociais. A partilha de práticas culturais de longa duração, ainda mais quando menosprezada pela violência dos interesses exploratórios, possuem maior capacidade de articulação diante dos vínculos pré-estabelecidos que se nutrem por termos, ritmos, sonoridades, medos, olhares e rumores ininteligíveis às categorias cognitivas e emocionais de tais estrangeiros. Por isso, a cultura de libertação a qual se referiu Nascimento (1980) é operante nas diferentes formas de aquilombamento, quer dos legais quer dos ilegais.

Por outro lado, observamos que a inclusão da temática umbandista em ambientes de pesquisa e pós-graduação na região tem instigado a cultura de libertação, posto que desvela mecanismos de exclusão ao mesmo tempo em que aquilomba o conhecimento já existente para “renovar, criticar, ampliar e atualizar” os processos educativos (Nascimento, 1980, p. 31).

Conclusão

Nossa proposição pautou-se teórico-metodologicamente na operacionalização da aprendizagem matricêntrica apontada por Cheick Anta Diop (1982/2014), desdobrada na forma de aprendizagens umbandistas que afirmam o cuidado mútuo em resposta às aflições dos consulentes como um processo convergente ao “nós coletivo” incorporado pela mediunidade umbandista. Com efeito, foi fundamental entender que a aprendizagem umbandista interpretada a partir da mediunidade - domínio das experiências sensório-corporais, rezas, ritos, uso de ervas e defumação - em sua forma silenciosa e íntima enquanto práticas de cuidado demonstrou ser um caminho intrigante para oportunizar à curiosidade epistemológica evidenciar processos educativos de longa duração, consequentemente, para renovar e atualizar o conhecimento já existente propiciando o desenvolvimento da cultura da libertação.

Com efeito, procuramos demonstrar que as graduações umbandistas no templo pesquisado serviram de apoio para entender, primeiro, a trajetória da região pela prática umbandista da mediunidade, depois, um processo didático que identificou aprendizagens com alguns saberes tradicionais orbitando o cuidado mútuo. Em síntese, no Templo Mãe Oxum e Pai Ogum a mediunidade se efetiva processualmente em graduações instigadas por aflições e aquilombadas em torno do diálogo com saberes tradicionais. À medida que o neófito aceita esse pertencimento e é afirmado por essa identidade compartilhada, a mediunidade será o instrumento que oportunizará a experiência do nós coletivo.

Essa inserção em uma nova coletividade atualiza os saberes tradicionais de longa duração, independente da compreensão do enredo dos massacres passados e dos efeitos oportunizados pelo acolhimento de aflições pelo benzimento e religiosidades anteriores. Conforme amplia a mediação de saberes tradicionais no atendimento aos consulentes, mais saberes são adicionados à ritmicidade para conduzir o cuidado mútuo.

Dessa forma, pensar a educação nas comunidades umbandistas é vislumbrar o ato de instruir via apropriação de saberes pelo acúmulo de saberes tradicionais estruturantes ao cuidado comunitário matricêntrico.

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Recebido: 20 de Março de 2019; Aceito: 19 de Setembro de 2020

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