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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 13-Out-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.31903 

Artigos

Representações sociais de leitura: práticas docentes e formação de crianças leitoras

Representaciones sociales de lectura: prácticas de ensiñanza y formación de lectores infantiles

Social representations of reading: teaching practices and training of children who read

1Docente da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes, Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem -GEPEL/Unimontes.

2Docente da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita - CEALE/UFMG.


Resumo

O artigo tem por objetivo analisar representações sociais e práticas docentes produzidas no processo de escolarização da literatura nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A pesquisa foi realizada com participação de 94 professoras que, no processo de coleta de dados, se posicionaram por respostas a questões abertas de um questionário aplicado no formato impresso. A análise dos discursos docentes permitiu constatar que as três dimensões das representações sociais – as atitudes, a informação e a imagem – ancoram-se no prazer de ler e na funcionalidade das práticas de leitura desenvolvidas.

Palavras-chave Representações de leitura; Práticas Docentes; Literatura Infantil

Resumen

El artículo tiene como objetivo analizar las representaciones sociales y las prácticas docentes producidas en el proceso de enseñanza de la literatura en los primeros años de la escuela primaria. La investigación se llevó a cabo con la participación de 94 docentes que, en el proceso de recolección de datos, se posicionaron respondiendo preguntas abiertas de un cuestionario aplicado en formato impreso. El análisis de los discursos de los maestros mostró que las tres dimensiones de las representaciones sociales (actitudes, información e imagen) están ancladas en el placer de la lectura y en la funcionalidad de las prácticas de lectura desarrolladas.

Palabras clave Representaciones de lectura; Prácticas de enseñanza; Literatura infantil

Abstract

This article aims to analyze social representations and teaching practices developed in the literature schooling process in the early years of elementary school. The research was carried out with the participation of 94 teachers who, in the data collection process, answered open questions from a questionnaire applied in printed format. The analysis of the teaching discourses showed that the three dimensions of social representations – attitudes, information and image – are anchored in the pleasure of reading and in the functionality of the reading practices developed.

Keywords Reading representations; Teaching Practices; Children's literature

Introdução

O artigo se insere no campo das práticas de leitura literária e possibilita reflexões sobre os saberes dos professores. Pensamos, com Tardif (2002), que os saberes docentes são plurais, oriundos de diferentes fontes: da formação profissional, que se constitui pelo conjunto de saberes acessados nas instituições formadoras; dos saberes disciplinares que emergem da tradição cultural de diversos campos de conhecimento; dos saberes curriculares inscritos em programas e propostas de currículo; dos saberes experienciais que se realizam no trabalho cotidiano. Ainda com o autor, entendemos que as práticas docentes requerem do professor o domínio destas diferentes dimensões do seu ofício, de forma a integrá-las e mobilizá-las em sua ação pedagógica.

Dentre os saberes requeridos aos professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, encontram-se aqueles relacionados ao ensino da leitura. Afinal, a escola é a principal agência de letramento e o professor é o mediador entre a criança e o mundo da cultura escrita. Pensar o exercício destas mediações implica compreender que as disciplinas escolares não são entidades monolíticas e que a literatura, em sua origem, não é material didático, não tem o ensino como destinação ou a escola como espaço de circulação. No entanto, concebida como arte e produzida como objeto cultural, a literatura tem sido apropriada pela escola visando aos objetivos educacionais, sendo a sua presença no espaço escolar envolta por intensos debates e ausência de consensos.

Para Soares (1999), a apropriação da literatura infantil pela escola, sua transformação em instrumento educativo e sua escolarização são inevitáveis – é da essência mesma da escola a seleção de conteúdos, a ordenação de tarefas, a proposição de ações e procedimentos para ensinar e aprender. A questão que se coloca para o professor é estabelecer distinção entre uma escolarização adequada ou inadequada da literatura. De um lado, as práticas escolares podem conduzir às práticas sociais de leitura e gerar habilidades, atitudes e valores que correspondem ao ideal de leitor que se quer formar. Por outro lado, uma escolarização inadequada, errônea e prejudicial da literatura mais afasta do que aproxima os estudantes de práticas sociais de leitura, podendo desenvolver resistências ou aversão à leitura (Soares, 1999).

Contemporaneamente, tem crescido o volume de questionamentos e críticas ao processo inadequado de escolarização da literatura. Ao se processar de forma utilitária e imediatista, o trabalho pode impedir que o leitor viva uma experiência sensível com esta produção cultural. No entanto, por uma adequada escolarização, a arte literária pode tornar-se suporte para a imersão na cultura, para desenvolver a sensibilidade criadora, favorecer a empatia e a humanidade daquele que penetra nos mundos imaginados por autores e ilustradores.

Encontrando-se cindida entre ética e estética, a escola se vê diante do desafio de produzir práticas pedagógicas que ultrapassem os antagonismos entre arte e pedagogia para encontrar o equilíbrio de uma produção cultural que pode educar e, ao mesmo tempo, humanizar e gerar a adesão do leitor. Paiva (1999) aponta a necessidade de se superar dicotomias geradoras dessa posição inconciliável entre arte e pedagogia para se encontrar o espaço de integração das instâncias escola e leitura.

Por compreender que os saberes docentes não são estáticos e que o trabalho com a literatura infantil exige dos professores a mobilização de habilidades e experiências de diferentes ordens, este artigo tem por objetivo analisar representações sociais e práticas docentes produzidas no processo de escolarização da literatura nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

No processo de pesquisa, os saberes docentes foram tomados por uma lógica reflexiva que, superando a culpabilização dos professores, toma-as como protagonistas. Segundo Alves-Mazzotti (2000), a pesquisa em educação avançou de uma perspectiva que apontava os culpados pelo fracasso escolar para outra que estuda o cotidiano escolar, buscando compreender os mecanismos básicos de sua produção. Assim, as pesquisas de representações sociais possibilitam a análise do como e do porquê de as percepções, atribuições, atitudes e expectativas serem construídas pelos sujeitos e mantidas em sua prática educativa. Para a autora:

a teoria das Representações Sociais parece ser um caminho promissor para atingir esse propósito, uma vez que busca relacionar processos cognitivos e práticas sociais, recorrendo aos sistemas de significação socialmente partilhados que as orientam e justificam. (Alves-Mazzotti, 2000, p.58)

A pesquisa de representações sociais tomou impulso a partir das contribuições da psicologia social, que definiu uma matriz conceitual pela qual têm sido desenvolvidas investigações. Moscovici (1978) apresentou o conceito de representações sociais em 1961, buscando estabelecer distinção e, ao mesmo tempo, integrar as perspectivas individual e social. Para o autor, a produção de representações não se reduz a um fenômeno puramente psíquico de construções individuais que, somadas, cumpririam a função de definir a dimensão social de um sistema de significações. A representação social constitui-se como via de apreensão do mundo concreto, construído individualmente pelos sujeitos em sua relação com o mundo social. É, portanto, uma forma de conhecimento individual, composta de figuras e expressões socializadas acerca de um fenômeno socialmente valorizado. “É uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos” (1978, p. 26).

As representações sociais são teorias do senso comum, construídas pelos indivíduos enquanto sujeitos sociais que buscam compreender a realidade na qual estão inseridos e com a qual travam relações. Para Moscovici (1978), as representações não são “opiniões sobre” ou “imagens de”, mas teorias coletivas sobre o real com uma estrutura de implicações baseada em valores e conceitos, que regem as condutas desejáveis ou admitidas. “As Representações Sociais não são um agregado de representações individuais da mesma forma que o social é mais que um agregado de indivíduos” (Jovchelovitch, 1995, pp. 80-81). Elas vão além do psiquismo individual para se constituírem em um processo mediador entre o indivíduo e a sociedade, um fenômeno necessariamente colado ao tecido social, que expressa “o espaço do sujeito na sua relação com a alteridade, lutando para interpretar, entender e construir o mundo” (1995, p. 81).

Em nosso estudo, ao compreender as representações e práticas de leitura literária, identificamos o conjunto de significações individuais e procuramos entender a atividade representacional mediada por processos sociais. Participaram do estudo 93 professores e 01 professor, incluídos por terem cursado a disciplina Literatura Infantil, em licenciatura voltada para a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, e exercerem seu oficio docente há mais de 5 anos, com crianças matriculadas em escolas da rede municipal de ensino de Montes Claros – MG. Neste artigo, optamos pelo genérico feminino – professora/professoras – para fazer referência aos participantes do estudo, como forma de conferir visibilidade para o protagonismo das mulheres no exercício da profissão docente.

No processo de coleta de informações foi aplicado questionário composto por questões abertas. Esta escolha deveu-se ao número elevado de participantes e a dificuldade de operacionalização de outro instrumento, como a entrevista, que demandaria maior disponibilidade de tempo das professoras. As limitações do questionário foram superadas pela prevalência de questões abertas, que deram voz às professoras, para poderem se posicionar, rememorar experiências com a leitura, retomar sua prática docente e falar das mediações de leitura que realizam junto às crianças da 1ª fase do Ensino Fundamental. A análise dos dados se orientou por uma perspectiva compreensiva e interpretativa, por abordagem qualitativa.

Entendendo que a expressão pesquisa qualitativa é abrangente, Strauss e Corbin (2008) afirmam que esta pode referir-se ao estudo sobre a vida das pessoas, experiências vividas, comportamentos, emoções, sentimentos, movimentos sociais e fenômenos culturais.

Por essa via, trabalhamos com experiências vividas pelas professoras, por meio das quais procuramos responder às seguintes questões: Como foram estruturadas e em quais conteúdos se encontram ancoradas as representações e práticas de leitura literária produzidas por professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental? Estaria o trabalho com a literatura infantil se encaminhando de uma finalidade estritamente pedagógica para se constituir como prática que adequadamente escolariza a literatura e cria espaços para que a arte literária possa ser apreciada como produção cultural?

Para responder a estas indagações, focalizamos as significações produzidas pelas professoras, sendo que, neste artigo[1], as práticas docentes captadas e analisadas são apresentadas em duas seções. Na primeira, apresentamos o modo como as professoras pensam o valor da literatura em suas práticas, tendo em vista a formação de crianças leitoras; na segunda discutimos os processos de ancoragem e objetivação da leitura literária, processos inseridos no contexto de conteúdos em circulação no mundo social.

Leitura, Literatura e Prática docente

Para Moscovici (1978), as representações sociais mostram-se como proposições, reações e avaliações organizadas de maneira muito diversa, conforme as classes, as culturas ou os grupos. Nestes universos de significação, são três as dimensões constitutivas: a atitude, a informação e o campo de representação ou imagem. A atitude confere ao sujeito uma orientação global em relação ao objeto representado, podendo ser favorável ou desfavorável; já a informação relaciona-se à organização dos conhecimentos de um grupo a respeito deste objeto. Por sua vez, o campo de representação remete-se à imagem e ao modelo social, ao conteúdo concreto e limitado das proposições atinentes a um aspecto preciso do objeto da representação.

A atitude é a mais frequente das dimensões, sendo “razoável concluir que uma pessoa se informa e se representa alguma coisa unicamente depois de ter adotado uma posição, e em função da posição tomada” (Moscovici,1978, p. 76). Ainda é fundamental considerar que “as Representações Sociais são uma constante construção: elas são realidades dinâmicas, e não estáticas. Vão sendo reelaboradas e modificadas dia a dia. Vão sendo ampliadas, enriquecidas com novos elementos e relações” (Guareschi, 1995, p. 218). Assim, é essencial analisar discursos e práticas, identificar conteúdos expressos, compreender as atitudes e a imagem produzida para representar o objeto.

Em nosso estudo, os conteúdos expressos pelas professoras possibilitaram compreender a imagem que produziram para a leitura literária e a posição adotada em relação a esta prática – imagem e posição que justificam as atitudes frente ao livro e os mecanismos que legitimam sua presença na sala de aula. No universo representacional das professoras, a leitura de literatura assume a imagem de uma viagem para o leitor e se vincula ao prazer de ler, mas, também, se apresenta como ferramenta para aprendizagem de conteúdos e valores. A atitude das professoras frente à leitura literária é altamente favorável, a presença do livro na escola apresenta-se como recurso para garantir às crianças o direito de aprender a ler e escrever e apropriar-se dos conteúdos escolares.

Tais significados produzidos pelas professoras se inscrevem na tradição escolar e são alimentados por conteúdos que circulam no mundo social. Da perspectiva histórica, em diferentes momentos, a literatura foi considerada importante para o enfrentamento dos problemas de leitura. No Brasil, as primeiras publicações regulares de obras literárias para crianças ocorrem com traduções e adaptações de textos importados, no final do século XIX, momento em que o texto literário é apropriado pela escola para atender finalidades educativas. Nas primeiras décadas do século XX, com a Escola Nova, o prazer de ler é considerado mola propulsora para a relação leitor-livro.

O discurso escolanovista não se ocupou, apenas em normatizar o livro, atentando para seu aspecto material e de conteúdo. Uma explosão de falas sobre a leitura apontava para uma nova sensibilidade. A leitura prazerosa, muitas vezes identificada com a literatura, poderia ser reencontrada no trabalho e na escola. Abolido o livro-texto, a que se escravizavam os escolares, despertar-se-ia no aluno novo prazer por ler: aventura intelectual. Uma pluralidade de textos oferecia-se à descoberta. (Vidal, 2001, pp. 207-208)

No movimento da Escola Nova, ler constituiu-se como prática fundamental, sendo que a literatura infantil assumiu novo impulso com as publicações de Monteiro Lobato. Os anos 1970 vivenciaram expansão e renovação do mercado editorial. Mas foram preservadas duas concepções básicas: a noção de que a leitura forma a base do ensino; a noção de que os textos lidos são importantes para a aprendizagem, porém se constituem em passagem para outro estágio superior, aquele em que o leitor descobre o prazer da leitura.

No entanto, imbuída da finalidade de ensinar, a escola produziu processos didáticos, em que a leitura de literatura nem sempre esteve associada ao prazer de ler. Para compreender a relação leitura-literatura-escola é importante pensar que, depois da família, a escola é a instituição responsável pela educação, assumindo como meta a transmissão da herança cultural e das normas de conduta social. Desta forma, a literatura é tomada como objeto cultural e sua entrada na escola é fundada no ensino de valores e padrões de comportamento (Lajolo & Zilberman, 1984).

Tornada aprendizagem quase compulsória, a leitura é tarefa prioritária da escola. Para Silva e Martins (2010), a leitura se constitui como espaço interativo, materializado em práticas culturais, históricas e sociais. Por não ser uma atividade natural para o ser humano, é necessário o seu ensino, cabendo à escola a criação de condições para efetivação das práticas de leitura. As autoras consideram que os textos literários talvez sejam os mais significativos para formação de um acervo cultural consistente para a formação de crianças leitoras. Para além da veiculação de valores e padrões de comportamento, os motivos de defesa das produções literárias como aquelas em torno das quais a escola deva fazer investimentos se associam a duas possibilidades. De um lado, os textos literários trabalham com imagens que falam à imaginação criadora, característica que lhes confere o potencial de levar o leitor a produzir uma forma qualitativamente diferenciada de penetrar na realidade. De outro, os livros podem provocar no leitor a capacidade de experimentar sensações pouco comuns em sua vida, podendo enxergar para além de suas experiências cotidianas (Silva & Martins, 2010).

Cosson (2019, p. 50) também considera que a literatura deva ser trabalhada na escola como parte importante da formação cultural dos estudantes. “Por meio da experiência com a literatura obtemos palavras para dizer o mundo e um mundo a ser vivido”. O autor ainda considera que a experiência com a literatura possibilita ao leitor romper os limites temporais e espaciais de suas vidas para penetrar nos universos construídos por palavras. Por isso, “para além da tecnologia da escrita, ler atualmente pertence tanto à ordem do que fazemos quanto à ordem do que somos” (Cosson, 2019, p. 46).

No espaço da escola, o professor se torna elemento central para produzir o encontro do aluno com o livro. Ao apresentar-se como leitor, “[…] o professor torna-se responsável pela interação entre a criança e o livro. Ele deve ter a chave concreta de onde estão os livros disponíveis pelo acervo recebido pela escola além da chave metafórica para conduzir a criança pelo portal do imaginário” (Maciel, 2010, p. 12)

Em nosso estudo, as representações produzidas pelas professoras se apresentam mediadas por suas experiências leitoras, mas, também dialogam com os discursos acadêmicos que associam a leitura de literatura com a formação humana. As professoras buscam construir sentidos para a leitura em um repertório já existente e compartilhado, gerado pelas práticas vivenciadas na escola e fora dela, incluindo as leituras experimentadas na infância e juventude. E, em um jogo de mudanças e permanências, consensos e contradições, a literatura se configura como recurso essencial para a educação, sendo diversos os mecanismos de ancoragem.

Uma vez que as representações são produzidas a partir de investimentos cognitivos e afetivos, os discursos e as práticas indicam que as professoras se apropriaram de conteúdos em circulação e estruturaram atitudes em defesa da literatura, alicerçadas em posturas idealistas e realistas. A postura idealista – aquilo que acreditam ser adequado – sinaliza para relação entre leitura e prazer do leitor em sua experiência com a literatura. Essa postura se contrapõe a uma prática cotidiana realista – aquilo que é possível realizar –, em que se busca ensinar conteúdos escolares pela via do texto literário, a partir de limites e possibilidades colocadas pelas escolas e pelo próprio processo de formação e desenvolvimento profissional docente. As representações, aparentemente contraditórios, na verdade compõem uma totalidade de ação concreta e material.

No âmbito desta postura idealista, as representações se orientam para uma prática em que a leitura literária, associada às aprendizagens de conteúdos escolares, é representada pela imagem de uma viagem para o leitor, com um sentido de atividade prazerosa e envolvente:

[O ato de ler] estimula a imaginação, criatividade, melhora a leitura, conduz o leitor a vivenciar a história, desenvolve a produção oral e escrita. (P03. Questionário)

A leitura literária deve ser sensível, impressionadora, envolvente, imprevisível e interessante ao leitor. (P48. Questionário)

A leitura literária tem a capacidade de nos estimular a criação e recriação imaginária em dimensões bem além do texto, nos propiciando uma sensibilidade aguda, emoções, prazeres, riquíssimas ilustrações de pensamentos, imaginação. (P41. Questionário)

Por estes discursos idealistas, a prática de leitura literária se encontra associada a finalidades não imediatistas e pragmáticas, ultrapassando a aprendizagem de valores e conteúdos escolares para produzir a humanidade de seu leitor. O texto literário também encontra ressonância nos discursos por favorecer habilidades de leitura, sendo que as professoras se ressentem da falta de tempo para o trabalho com a literatura: “Eu gostaria que na grade curricular fosse destinado um tempo (horário) para desenvolver aulas de literatura” (P78. Questionário).

Ao propor a definição formal de um tempo para ler literatura, a professora reafirma o valor desta prática e pretende garantir que a literatura não seja diluída pelas diferentes demandas escolares. Ainda em relação ao tempo para ler, há professoras que pensam que o trabalho com a leitura literária deva ser realizado pelo bibliotecário ou nas aulas de língua portuguesa:

Esse ano o trabalho de literatura é ministrado pela bibliotecária. (P29. Questionário)

Na minha escola a bibliotecária é que trabalha literatura com os alunos. (P25. Questionário)

Não tenho trabalhado com leitura literária. Em nossa escola trabalhamos por disciplina e eu trabalho com Ciências, Matemática e Educação Física. (P23. Questionário)

Nos discursos das professoras, a leitura é valorizada, mas limitada a alguns espaços/tempos e, por vezes, a atividade de formar leitores é delegada a outros profissionais. A prática da leitura literária não se integra plenamente às ações da escola, que coloca outras demandas de ensino. Isso implica dizer que, nas representações das professoras, a leitura literária é uma prática relevante, mas necessita ser formalizada pela destinação de profissional específico e pela instituição de tempo para seu desenvolvimento. Por esta lógica, formar leitores é tarefa a ser empreendida pela bibliotecária ou pela professora de português – não se lê literatura nas aulas de matemática, ciências, educação física.

Neste sentido indagamos sobre a eficácia destas práticas anunciadas. A definição de tempos-espaços para ler será capaz de instituir práticas leitoras? Se a literatura deve ser instrumento para desenvolver o gosto, como compreender este gosto circunscrito em tempos e espaços reduzidos? Como compreender que somente o bibliotecário ou o professor de português deva se constituir como mediadores entre a criança e o livro? A leitura pragmática, com foco nos conhecimentos curriculares, se constitui como ação formadora da criança leitora?

Estas questões encontram-se com problematizações de Silva e Martins (2010), que abordam os limites encontrados pelo professor dos anos iniciais do ensino fundamental, que “[…] ancorado em uma tradição que lhe exige o ordenamento dos conteúdos em disciplinas, tempos de aulas, intervalo para o recreio, depara-se com práticas de leitura restritas em sua amplitude e compreensão” (2010, p. 27).

É neste espaço, dividido por múltiplas tarefas e objetivos, que a leitura literária se insere, ainda disputando espaços e tempos com os programas da TV, os computadores e os jogos eletrônicos. Mas, para além do equacionamento de espaços, ritmos e tempos para as aprendizagens, as professoras revelam o desejo de intercambiar experiências e renovar as práticas de leitura literária com seus alunos:

Gostaria que você me desse sugestões, pois a minha sala de aula está necessitando de muita leitura. (P08. Questionário)

Gostaria de ser visitada por você, para que eu possa enriquecer os meus conhecimentos e trocar experiências. Que a sua pesquisa possa proporcionar maiores incentivos aos professores para o trabalho com a literatura. (P26. Questionário)

Quero ajudar e ser ajudada para que possamos melhorar a prática de leitura nas nossas escolas. (P57. Questionário)

Estes discursos reafirmam uma atitude favorável à leitura literária – atitude que gera práticas e orienta comportamentos. Para as professoras, o livro é visto como um farol a iluminar a travessia, contudo, sentem dificuldade em identificar o caminho a seguir ou a proposta mais adequada para promover a formação da criança leitora. A consciência sobre os limites da atividade profissional parece constituir-se como situação de tensionamento para as professoras, que explicitam a necessidade de condições para seu desenvolvimento profissional, de forma a poderem ampliar conhecimentos e mobilizar novos saberes, produzindo diferenciadas práticas e experiências com a leitura literária.

Pensamos, com Nóvoa (1992), que a renovação das práticas docentes deva se constituir como proposta a ser empreendida pelo coletivo da escola:

O trabalho centrado na pessoa do professor e na sua experiência é particularmente relevante nos períodos de crise e de mudança, pois uma das fontes mais importantes de 'stress' é o sentimento de que não se dominam as situações e os contextos de intervenção profissional. (Nóvoa, 1992, p. 15)

Apesar da tensão gerada, estes momentos de crise guardam o gérmen da mudança e podem se constituir como oportunidades de consciência reflexiva e de construção de novas possibilidades de atuação profissional:

As situações que os professores são obrigados a enfrentar (e a resolver) apresentam características únicas, exigindo portanto respostas únicas: o profissional competente possui capacidades de autodesenvolvimento reflexivo. (Nóvoa,1992, p. 16)

Nestas situações coletivas, os professores podem mobilizar saberes já construídos, produzir novas formas de enfrentamento dos desafios que o oficio docente lhes apresenta.

Para as professoras participantes de nosso estudo, faltaram oportunidades para discutir processos e produzir novos saberes no âmbito das escolas em que exercem seu oficio. Por isso, no trabalho com a leitura literária elas tendem a acionar os saberes da experiência, replicando na sala de aula os processos experienciados em sua trajetória como estudantes e leitoras de literatura. E ao procederem por essa via, as práticas de leitura tendem a se orientar por objetivos escolares, que tomam a arte literária como material didático.

A experiência coletiva e compartilhada de formação e desenvolvimento profissional pode favorecer possibilidades para reflexão sobre as próprias experiências, na direção proposta por Barthes (1989). O autor considera que, para além de veicular saberes, o texto literário se constitui de forma diferenciada. Na literatura as palavras têm sabor, o que torna o saber profundo e fecundo. Na literatura, “as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa” (1989, p.21).

Ancorando o prazer e a funcionalidade da leitura literária

As representações sociais são teorias do senso comum, cujos processos se produzem por investimentos cognitivos e afetivos empreendidos pelos sujeitos. Por essa lógica, estudar representações implica captar o modo como os sistemas de significação se constroem em determinado tempo histórico, sendo fundamental ter em vista os conteúdos que circulam em diferentes tempos. Se as representações sociais são formas de conhecimento estruturadas em uma base cognitivo-afetiva, “precisam ser entendidas, assim, a partir do contexto que as engendram e a partir de sua funcionalidade nas interações sociais cotidianas” (Spink, 1995, p.118). A elaboração das representações sociais se dá na interface de duas forças monumentais:

De um lado temos os conteúdos que circulam em nossa sociedade e, de outro, temos as forças decorrentes do próprio processo de interação e as pressões para definir uma dada situação de forma a confirmar e manter identidades coletivas (Spink, 1995, p. 121).

Para compreender as representações de leitura literária, para além dos conteúdos em circulação é fundamental considerar os processos de objetivação das práticas de leitura e a ancoragem das categorias prazer e funcionalidade. Nos processos representacionais, os significados produzidos ligam-se (ancoram-se) em práticas, imagens e concepções já existentes e consolidadas. “Novas idéias são assimiladas às já existentes, que neutralizam a ameaça que elas apresentam e tanto a nova idéia, como o sistema que a hospeda, sofrem modificações nesse processo” (Bauer, 1995, p. 22).

Para as professoras, o livro e a leitura literária se encontram fortemente ancorados em suas crenças representacionais, legitimados como objeto e prática potencialmente benéficos para as crianças. Contudo, desenvolver a sensibilidade, a criatividade e a imaginação é uma faceta um tanto ameaçadora para algumas professoras, que concebem o fazer docente por outra perspectiva. Para estas professoras, é prioritário ensinar gramática e outros conteúdos, pois a escola tem resultados a apresentar, horários a cumprir, normas e cobranças a orientar o cotidiano.

Pensar a prática de leitura literatura implica lançar um olhar reflexivo sobre a materialidade dos resultados possíveis. Apesar do consenso acerca dos benefícios da literatura na formação cultural e humana da criança, a objetividade e o controle dos conteúdos curriculares ocupam posição prioritária na escola. E a literatura cede lugar para o imediatismo e as demandas cotidianas, sendo que o prazer, repetidamente ressaltado nos discursos, torna-se meta secundária pela dificuldade de ser medido e avaliado pelos programas curriculares que a escola toma como referência. Para as professoras, a ideia de leitura-prazer e leitura-viagem encontra-se fortemente construída e ancorada em práticas que assumem uma finalidade pragmática. As solicitações e cobranças feitas pela escola funcionam como imperativos do ensino, exercendo pressão pelos conteúdos escolares.

As professoras querem considerar a dimensão do prazer, ao mesmo tempo em que sentem necessidade de ensinar os conteúdos previstos nas propostas curriculares – conteúdos que, conforme Batista (1998), precisam ser explicitados, sintetizados, retomados e avaliados. Neste contexto, o que fazer para ensinar literatura? Quais parâmetros considerar? Como promover o prazer em um espaço onde as demandas estabelecem prioridade para resultados objetivamente observáveis e passíveis de quantificação? Como conciliar a necessidade de objetivação das aprendizagens escolares com a subjetividade própria à literatura? Como avaliar o desenvolvimento da sensibilidade da criança e o gosto pela leitura?

Para equacionar estes problemas e demandas, as professoras constroem abordagens didáticas para ancorar a incerteza diante do ler como prazer/gozo e da literatura como arte. Por esse motivo, dramatizar cumpre uma função de âncora, com a qual as professoras se sustentam e se protegem das cobranças oriundas da coordenação pedagógica, dos pais, dos currículos; cumpre também a função de controle pedagógico – garantia de que o aluno leu o texto proposto.

Para as professoras é tradicional e antiquado não visar o prazer de ler. No entanto, as possibilidades de solução são geradoras de novas indagações: É possível ensinar o prazer e controlar sua ocorrência? Como conciliar o ensino dos conteúdos com o trabalho com a literatura, concebida como arte, prazer e deleite, se escola é o espaço institucionalizado do ensino? É possível controlar a leitura e o prazer do leitor? Se o prazer não puder ser controlado, qual é a função do professor, que tradicionalmente propõe atividades de ensino e de controle de resultados?

O propósito da literatura-arte e da leitura como experiência estética parece não combinar com a escola imediatista, preocupada com os conteúdos curriculares e propósitos funcionais de leitura. Ao discutir leituras de professores e formação de leitores, Batista (1998) afirma que:

As práticas escolares [de leitura] se constróem em nome da “não-gratuidade”, de uma finalidade de aprendizado e se desenvolvem com base em gestos que procuram garantir sua consecução: o controle do professor, que direciona a leitura e submete a autonomia do aprendiz; a realização de exercícios e avaliações, o desenvolvimento de atitude atenta ao pormenor e à minúcia, a utilização de formas de anotações e registro, uma disposição de buscar nos textos um ensinamento, uma regra, uma máxima, uma instrução. (Batista, 1998, p.43, grifo do autor)

Faces deste modo de compreender o ensino da leitura foram identificadas nas representações e práticas de leitura. Ao falarem das experiências de leitura que consideram bem sucedidas, as professoras enumeraram atividades que apontam a leitura como pretexto, em que os alunos leem para recontar, dramatizar e realizar outras atividades que possam dar visibilidade para as aprendizagens:

Recentemente venho trabalhando com o Cantinho de Leitura. Esta é uma atividade que faz parte do projeto de leitura desenvolvido pela escola, em que os alunos apresentam os livros lidos, por meio de dramatização, reconto oral, dentro da sala de aula. (P54. Questionário)

Trabalhamos com poesias, classificados poéticos, onde os alunos declamaram, dramatizaram, produziram poemas e classificados poéticos. Os alunos deram música às letras das poesias e produziram instrumentos para apresentar as mesmas, etc. Foi muito proveitoso! (P22. Questionário).

Os alunos leem os livros e cada equipe apresenta a história de uma maneira – por meio de cartazes, dramatizações, desenhos, produções, recontos. Às vezes a bibliotecária faz esse trabalho, também, com os alunos. (P73. Questionário)

Os discursos revelam a tensão entre a fruição estética e as demandas do currículo, em que a leitura literária se configura como pretexto para realizar atividades que materializem a aprendizagem de valores e atitudes:

Adoro fábulas. Distribui os livros e os alunos escolheram as que mais gostaram. Em equipe escolhia-se uma só. A proposta foi: cartaz com o reconto e desenhos, dramatizações e fantoches. Tudo produzido por eles mesmos. Foi ótimo e eles adoraram. Pediram bis. (P16. Questionário)

Eu gosto muito daqueles livros de literatura infantil que têm um fundo moral. Livros que contam histórias bíblicas. Livros que fazem entrar no mundo da fantasia. (P27. Questionário)

As professoras propõem a leitura de fábulas e histórias bíblicas com vistas aos aprendizados que consideram relevantes. As representações de leitura, ancoradas no prazer e na funcionalidade, tomam o deleite e a subjetividade da literatura como objetivos que se configuram por mediações objetivas e passíveis de mensuração. As três dimensões das representações – atitudes, informação e imagem – podem ser captadas nas situações narradas, em que as práticas revelam faces indissociáveis dos sentidos atribuídos à leitura. Na lógica das professoras, a escolha pelos alunos dos livros que mais lhes agradam, funciona como processo que tem o prazer como referência. No entanto, a própria limitação dos gêneros textuais disponibilizados – fábula e histórias bíblicas – parece apontar uma tendência funcional de trabalho que visa aos conteúdos educativos e moralizantes.

Para proporcionar segurança e conferir a aparência de ludicidade e criatividade – tão cara aos discursos sobre a literatura infantil–, as professoras resgataram práticas antigas, tais como dramatizar histórias e recitar poemas. Por este viés, as práticas de leitura literária configuram-se como um arcabouço desejável, onde a professora alicerça o prazer e o gosto. Da mesma forma, produzir paródias e recontar histórias são atividades que servem de âncora para a representação da leitura-prazer. A atividade pressupõe a intervenção lúdica e criativa do aluno, sem, contudo, abandonar-se à gratuidade e ao prazer. Por trás do gosto, está fortemente presente a funcionalidade da literatura, que serve ao ensino de conhecimentos e cumpre uma função de modelo de linguagem, associando-se às práticas de produção de textos escolares e desenvolvimento das habilidades de leitura.

Neste quadro, as professoras ficam divididas. Ao estudar suas representações e práticas, tornou-se fundamental considerar o processo pelo qual foram ancorados o prazer e a funcionalidade da literatura, compreender a forma como os novos conteúdos se integram às representações já existentes. Na busca de equilíbrio e estabilidade em sua ação docente, as professoras ancoram a leitura-prazer em práticas pedagógicas que integram a tradição escolar e tomam a literatura como motivo para a aprendizagem, incorporando um conteúdo passível de ser avaliado em sala de aula. A literatura torna-se suporte para atividades em que seja possível vislumbrar os desempenhos dos alunos – dramatização, jogral, paródia, teatro de fantoche, dentre outras.

Algumas práticas antigas revestem-se de novas roupagens, tomando a aparência de renovação que não aconteceu. Assim, atribui-se ao texto a tarefa de desencadear a criatividade do estudante, que a traduz em atividades como dramatizações, quadrinizações, jograis, etc., deixando então de ser motivo para a elaboração de frases exemplares com as palavras recentemente aprendidas, exercícios de sinônimos e antônimos ou redação de dissertação e histórias com tema comum. (Zilberman, 1991, p.113)

Em nosso estudo, 92 dentre as 94 professoras afirmam realizar dramatização de histórias. Apesar de tomarem o prazer na realização destas atividades, é possível perceber que dramatizar surge como controle de resultados e aprendizagem das crianças.

Recentemente trabalhei por conta própria o poema A Porta, de Vinícius de Morais. O resultado foi muito bom, pois os alunos fizeram a dramatização do poema com muito empenho. (P58. Questionário)

Dramatizações – Não fez parte de nenhum projeto de leitura da escola. Os resultados foram muito bons. Pois as crianças adoram. Desenvolve a criatividade e até mesmo a socialização. (P07. Questionário)

Foram contadas as histórias: - O Gato de Botas, e após contada, os alunos organizaram a dramatização da mesma e confeccionaram as máscaras para a apresentação. Obtive bons resultados, os alunos se interessaram e todos participaram. (P42. Questionário)

Nas práticas mediadas pelas professoras o trabalho com as dramatizações ultrapassa os limites da sala de aula para se constituir como processo que dá visibilidade ao desempenho do aluno e possibilita divulgar resultados– é a dramatização-show. Esta é uma tendência de tornar a dramatização um ato público, algo a ser mostrado, espetáculo a ser apreciado por um público externo.

Através da história foi realizado: reconto, paródias, dramatização, acontecendo um auditório, fazendo a culminância das turmas para finalizar. (P58. Questionário)

Foi feito um auditório para classificar 03 leitores, que ganharam uma medalha de incentivação. Toda a escola participou. (P59. Questionário)

Desenvolvi muitas atividades com leitura literária. Porém a que mais marcou foi a desenvolvida pela escola, com Projeto do Conto, onde conhecemos melhor o autor, suas diversas obras. E após, os alunos caracterizados desfilaram pela comunidade. (P34. Questionário)

As práticas docentes indicam que há preocupação em demonstrar que a literatura foi trabalhada e dar a ver que os resultados foram positivos. Mesmo pretendendo o prazer, as professoras não perdem de vista os propósitos educativos e os resultados observáveis. Os depoimentos a seguir conferem visibilidade para o interesse dos alunos, mas as professoras não se sentem plenamente satisfeitas com os resultados, porque nutrem outras expectativas relacionadas aos desempenhos:

Fizemos a leitura, conto, reconto e organizamos um teatro, para ser apresentada na escola, com a história dos Três porquinhos. Foi ideia minha e tudo correu bem, mas na apresentação os alunos não se saíram bem. (P13. Questionário)

Gostei da experiência e percebi o grande interesse dos alunos das turmas de 1ª e 2ª séries. Esperava obter um êxito maior, mas refletindo depois, considerei válido. (P77. Questionário)

Pelos discursos das professoras é possível perceber que o valor da literatura se relaciona aos resultados observáveis e não às experiências com a arte, ao encontro e aos processos vivenciados. A partir das dimensões prazer e funcionalidade, foram mapeadas as funções que a leitura assume no contexto escolar. As professoras realizaram múltiplas atividades que têm o texto literário como suporte – teatros, dramatizações, quadrinizações, jograis, recontos, paródias. Contudo, é claro o distanciamento da leitura. As professoras afirmam que os alunos adoram as atividades e se envolvem com as apresentações, porém, é ausente a afirmação de um envolvimento com o autor, o livro e a leitura, com a experiência sensível, com a arte e o prazer de ler. É como se a leitura mesma não fosse importante, ao contrário, o resultado observável é tudo que importa no trabalho com o texto.

Na perspectiva das professoras, prazer e funcionalidade são dois movimentos indissociáveis. E esta aparente contradição das representações – anunciar o prazer e efetivar ações que conferem destaque à funcionalidade – está no cerne da própria produção de significados. Os sujeitos assumem um discurso que possa lhe conferir um status de competência e modernidade, que configura a pertença a um grupo profissional progressista. Contudo, os imperativos da sala de aula colocam em evidência o ensino, o acompanhamento e a avaliação, deslocando o eixo para questões objetivas, passíveis de controle externo. A professora concebe a leitura como prática articulada a funções bastante específicas no processo de aprendizagem. Dramatizar, quadrinizar, declamar, parodiar a literatura cumpre uma função – são estratégias utilizadas para conciliar pontos de vista conflitantes, supostamente conferindo prazer às atividades e aos objetivos do ensino da língua portuguesa na escola.

Considerações finais

Em nosso estudo, as representações sociais de leitura literária apresentam-se estruturadas em duas dimensões – realista e idealizada – na configuração das práticas docentes que têm por objetivo a construção da relação leitor/livro. No discurso das professoras estão presentes concepções e ideias inovadoras que, nem sempre, se objetivam em práticas educativas adequadas com a arte literária.

Ao mapear e analisar representações e práticas percebe-se que estas ancoram o prazer de ler em práticas tradicionalmente conhecidas, como quadrinizações, jograis, declamação de poemas e dramatizações. Estas atividades cumprem a função de materializar práticas de leitura não-visíveis e conferem segurança na efetivação da prática docente. Ou seja, as professoras propõem atividades para dar visibilidade à leitura do texto e evidenciar o grau de sua apreensão e, ao mesmo tempo, preservar a ideia de renovação da cultura escolar. Pela dramatização, pretende-se resguardar a ludicidade do ato pedagógico e exteriorizar os sentidos produzidos pelo leitor. Da mesma forma, contar a história lida para o colega, fazer a propaganda do livro, realizar pantomimas são formas de ancoragem desta nova concepção de leitura literária – tida como fruição.

É assim que, nas representações e nas práticas docentes, foi possível identificar aspectos que aparentemente permaneceram inalterados. A ideia do gosto pela leitura que se originou a partir da Escola Nova assumiu, contemporaneamente, outro matiz. No movimento escolanovista, este gosto revestiu-se de um significado que atrelou a prática pedagógica à conquista do leitor, que conferiu à literatura um papel específico no desenvolvimento de competências de leitura. Já no movimento contemporâneo, o discurso sobre a literatura associa-se à gratuidade do ato de ler, à fruição, à experiência estética, ao desenvolvimento da imaginação e da sensibilidade. Podem ser identificados, neste processo, matizes diferenciados nas práticas discursivas sobre a leitura, que ora privilegiam o prazer do leitor, considerando a leitura literária como prática carregada de sentidos, ora se associam à adesão do leitor ao livro, não apenas como prática, mas como recurso que irá servir para o desenvolvimento de habilidades de ler e outras competências escolares.

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[1]Artigo resultante de pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), produzido a partir de Dissertação de Mestrado produzida junto à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ressignificada e atualizada.

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 29 de Setembro de 2020

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