SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26Autorregulação de aprendizagens e o desempenho acadêmico no ensino superiorAlfabetização crítica: contribuições de Paulo Freire e dos novos estudos do letramento índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 20-Out-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.32369 

Artigos

Estudantes do ensino fundamental I e suas percepções sobre nativos brasileiros

Estudiantes de primaria y sus percepciones de los nativos brasileños

Elementary school students and their perceptions of Brazilian natives

Victor Gustavo de Souza1 
http://orcid.org/0000-0002-0731-1528

1Mestrando em História, linha Política: Ações e Representações, pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), campus de Assis, com pesquisa financiada pela CAPES. Possui licenciatura em História pela mesma instituição (2018).


Resumo

O presente artigo apresenta os resultados obtidos a partir de um bloco de aulas de história, ministrado a alunos do 5° ano do ensino fundamental I, que teve como tema principal a discussão sobre as percepções que os estudantes têm acerca das comunidades indígenas brasileiras e a promoção da quebra de estereótipos através da consciência histórica. Adotou-se como fontes pinturas de Jean Baptist-Debret, datadas do século XIX, e fotografias do século XXI, que mostram o nativo em contato com tecnologias contemporâneas. As aulas demonstraram que a mentalidade popular ainda enxerga os povos indígenas através de olhares coloniais e custa a entender seu lugar na sociedade contemporânea.

Palavras-chave Ensino de história; Nativos brasileiros; Ensino fundamental I

Resumen

Este artículo presenta los resultados obtenidos de un bloque de clases de historia, impartidas a estudiantes de 5 ° año de la escuela primaria I, cuyo tema principal fue la discusión sobre las percepciones que tienen los estudiantes sobre las comunidades indígenas brasileñas y la promoción de la ruptura de estereotipos a través de la conciencia histórica. Se adoptaron como fuentes pinturas de Jean Baptist-Debret, del siglo XIX, y fotografías del siglo XXI, que muestran al nativo en contacto con las tecnologías contemporáneas. Las clases demostraron que la mentalidad popular todavía ve a los pueblos indígenas a través de visiones coloniales y es difícil entender su lugar en la sociedad contemporánea.

Palabras clave Enseñanza de la historia; Nativos brasileños; Escuela primaria I

Abstract

This article presents the results obtained from a block of history classes, taught to students in the 5th year of elementary school, whose main theme was the discussion on the perceptions that students have about Brazilian indigenous communities and the promotion of breaking stereotypes through historical awareness. Jean Baptist-Debret paintings, dating from the 19th century, and 21st century photographs, which show the native in contact with contemporary technologies, were adopted as sources. The classes demonstrated that the popular mentality still sees indigenous peoples through colonial eyes and it is difficult to understand their place in contemporary society.

Keywords History teaching; Brazilian natives; Elementary school I

Introdução

Desde a chegada dos portugueses ao Brasil (1500) até hoje, temos um espaço temporal de mais de cinco séculos, incontáveis mudanças e transformações na humanidade, contudo, algo parece sobreviver, passando de geração para geração na mente do brasileiro: a imagem de um indígena que usa cocar, anda (pelado) com os animais silvestres e tem a função de proteger a natureza, alheio ao chamado mundo moderno.

Com isso em mente, este artigo tem como objetivo geral apresentar os resultados de um estágio de docência em história, realizado durante o segundo semestre de 2017, ministrado a estudantes do 5° ano do ensino fundamental I,com idade média de 10 anos, de uma escola pública. De modo mais específico, busca-se refletir sobre o ensino de história durante os primeiros anos de escolaridade, sobre a perpetuação de imagens estereotipadas envolvendo as comunidades nativas brasileiras e o desenvolvimento de uma consciência histórica nos estudantes.

Em relação às fontes, para o primeiro segmento de aulas, trabalhou-se com três pinturas de autoria do Jean Baptiste-Debret (1768-1848), contidas no primeiro volume do livro “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil” (Baptiste-Debret, 1834, s.p.), sendo elas: 1)“Família de um chefe se preparando para festa”; 2) “Botocudos, buris, patachós e macharis” e 3) “Dança de selvagens”. Já para a segunda parte do estágio, com o intuito de refletir sobre o indígena no século XXI, incorporamos às discussões duas fotografias contemporâneas de nativos utilizando aparelhos eletrônicos.

Metodologicamente, alinhamo-nos à Circe Bittencourt (1997) e suas propostas de análise de imagens presentes no artigo “Livro didático entre textos e imagens”. Conforme a autora, inicialmente, o/a estudante deve fazer uma leitura geral do que lhe é apresentado, sem informações prévias. Em seguida, devemos nos preocupar com elementos externos e realizar indagações como: quem fez? Por que fez? Qual o momento histórico em que a obra foi produzida? Por fim, realizar análises comparativas que possibilitem “estabelecer relações históricas entre as permanências e mudanças e para relativizar o papel que determinados personagens tendem a desempenhar na história” (Bittencourt, 1997, p. 86).

Ressalta-se, também, a importância do trabalho de Molina (2007) para a elaboração do presente artigo, no qual a autora realiza questionamentos a respeito de como professores trabalham a fonte imagética nas aulas de história e como os alunos se relacionam com a mesma. Em suas palavras, o educador deve “redimensionar e explorar as competências específicas da imagem, não somente para motivar e envolver, mas re-elaborar, re-codificar, ordenar e organizar conceitos, transformando uma relação sócio-afetiva com a imagem em uma situação de cognição” (Molina, 2007, p. 25).

Ao trazer imagens dos séculos XIX e XXI, problematizando a perpetuação de estereótipos sobre as comunidades indígenas, tivemos como propósito provocar nos estudantes o desenvolvimento da consciência histórica, apontada por Jörn Rüsen (1992). Segundo o autor, há quatro tipos de consciência histórica: tradicional, exemplar, crítica e genética, sendo a tradicional a mais básica e a genética a mais avançada, a grosso modo.

Após discussões orais e atividades, verificou-se que a consciência histórica tradicional foi o modo predominante entre a classe. Conforme Rüsen (1992) no modo tradicional, ocorre uma manutenção de modelos culturais mesmo com o passar do tempo. Transpondo essa afirmação para o estágio, observa-se que as crianças conservavam a mentalidade de que os povos nativos mantinham o mesmo estilo de vida de quinhentos anos atrás, como se não fossem passíveis de mudanças, constituindo-se como um grupo à parte da sociedade, quase místico.

Considerando, portanto, que o estágio buscou, a partir da consciência histórica de Rüsen, trabalhar com as representações feitas por estudantes sobre as comunidades brasileiras originárias, podemos dar início à discussão sobre as atividades desenvolvidas e os resultados obtidos. Além desta introdução e da conclusão, o artigo encontra-se dividido em três seções: na primeira apresentamos o trabalho realizado com as pinturas de Debret e discutimos a permanência de estereótipos; o segundo tópico é voltado para as fotografias contemporâneas, evidenciando como tais imagens foram encaradas pelos estudantes e o último tópico apresenta os resultados ao final do estágio, após as aulas expositivas, as discussões orais, as atividades escritas e ilustradas.

Comunidades nativas, Debret e estereótipos

Durante a primeira aula, com o objetivo de conhecer a visão dos alunos sobre os nativos, foi proposta uma atividade com desenhos em que os estudantes deveriam retratar os chamados índios de acordo com as próprias ideias e vontades, sem qualquer tipo de discussão prévia. O produto obtido a partir desse exercício (no caso, as ilustrações) constitui os conhecimentos prévios da turma. De acordo com Siman (2005), o conhecimento prévio pode ser definido como “um conjunto de ideias e modos de pensar ou raciocinar socialmente construído”, destaca também que tal “conhecimento, adquirido por meio dos processos sociais, não é somente um produto de características inerentes à mente humana; também não é um simples reflexo de influências do meio ambiente” (Siman, 2005, p. 351).

Ao coletar e analisar os desenhos, não foi surpresa que todos giravam em torno de estereótipos perpetuados ao longo do tempo. Nenhum nativo foi retratado fora da aldeia ou da floresta e a maioria expressiva retratou o que acreditava ser cenas do cotidiano indígena: os homens se dedicam à caça, enquanto as mulheres à colheita de frutas e atividades que podem ser compreendidas como domésticas. Para um melhor entendimento, categorizamos os temas das ilustrações no Gráfico 1 – o número na legenda indica a quantidade de desenhos e o gráfico sua porcentagem.

Fonte: Elaboração própria a partir das atividades.

Gráfico 1 Coleta de conhecimentos prévios 

Como se pode observar pelo gráfico acima, de um total de 29 estudantes, 76% retratou um cotidiano imaginado do nativo em sua aldeia. Nessa categoria, os nativos geralmente se encontram cercados por rios, navegando em canoas, com peixes espetados nas pontas das lanças e afins. Isso demonstra que, apesar da variedade de atividades, todas estão ligadas a uma imagem estereotipada dos povos nativos. Além disso, apenas 6 (21%) das atividades retrataram mulheres indígenas; cenas de caça se fazem presentes em 8 figuras (27,5%) e 11 desenhos apresentam fogueiras (38%).

Apesar de haver uma proximidade grande entre os desenhos, um (1) deles divergiu do tema geral apresentado pelo grupo (o índio em harmonia com a natureza) e retrata um nativo sendo escravizado. Para sua obra, o estudante dividiu a folha em quadrantes e, em cada um, desenhou elementos como tanga e cocar; arco e flecha; animais e alimentos. No maior quadro, temos a cena onde é possível ver um homem branco de chapéu montado em um animal (cavalo) e um chicote em sua mão, de sua boca sai um balão com o seguinte comando “Trabala”. Transcrito conforme a grafia do estudante, não resta dúvida de que a ordem é para o indígena trabalhar, este, por sua vez, encontra-se trabalhando na terra, enquanto lágrimas escorrem pelo seu rosto.

Além de destoar dos desenhos que representam um nativo feliz e em meio à natureza, o desenho em questão coloca o nativo em contato com o Outro (o homem branco), fato que não se repete em nenhum dos outros desenhos, onde os indígenas interagem apenas com seus semelhantes, e, ainda, introduz o que pode ser considerado um regime de escravidão. Todavia, vale ponderar que, apesar de se distanciar dos demais trabalhos apresentados, o nativo ainda é retratado de maneira passiva.

Sobre a suposta passividade do índio, Lessa (2016, pp. 19-20) afirma que:

Um dos maiores desafios do Ensino encontra-se na ação de reeducar o pensamento quanto às sociedades indígenas, deixando claro suas diferenças étnicas, sua riqueza cultural, singularidades, organizações sociais e principalmente, romper o silêncio quanto à ideia do índio passivo no processo da colonização, alienado de suas realidades, submisso às decisões políticas e não participante na formação do que chamamos de Brasil.

Realizada a atividade (e a constatação da consciência histórica tradicional), foi possível introduzir as obras de Jean-Baptiste Debret e problematizar a manutenção de aspectos estereotipados que cercam as comunidades indígenas brasileiras. Como se sabe, o artista esteve no Brasil durante a chamada Missão Artística Francesa, início do século XIX, e produziu obras diversas que retrataram sua estadia no país. Além de indígenas, pintou sobre negros escravos e cenas do cotidiano do Império. Sobre a Missão,

Divulgar o Novo Mundo através da arte foi uma das maneiras encontradas para apresentar a ideia do homem e a possibilidade de retorno à pureza, o contato harmônico com a natureza, porém, vale lembrar, que ainda assim o índio era visto dentro de limitações. O pensamento básico recorrente era que este índio sozinho não capaz [sic] de alcançar o desenvolvimento intelectual pleno, no entanto, baseado nos conceitos Iluministas, este indígena já não era mais “mau” pelo simples fato de tornar-se parte das muitas pesquisas científicas. A representação da realidade presenciada, porém com um toque do exótico como atrativo para um novo conhecimento […]. (Lessa, 2016, p. 17)

Como apontado anteriormente, selecionamos três pinturas contidas no primeiro volume do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (Baptiste-Debret, 1834).A escolha desse volume se justifica pela forma como o indígena brasileiro foi retratado pelo artista europeu. Para Valéria Piccoli (2005, p. 456)

O primeiro volume da Viagem está rigorosamente estruturado para conduzir o leitor, tanto em termos de texto, quanto sucessão de imagens, à apreciação de uma escala evolutiva, que vai do indígena mais selvagem ao mais civilizado, segundo a avaliação do autor. Por mais civilizado, Debret entende aquele indígena que está mais incorporado à sociedade brasileira, ou o que ocupa um lugar nela, supondo, portanto, o abandono de seus próprios hábitos e de suas raízes culturais em favor de sua inserção num sistema social modelado a partir da civilização europeia.

Ademais, retomando Rüsen (2001), ao optarmos por criações estereotipadas, tivemos como objetivo fomentar nos/nas estudantes, dentro das limitações possíveis, a passagem da consciência histórica tradicional para o tipo genético, e a utilização das obras de Debret configurou o passo inicial para que os/as estudantes percebessem que o nativo pode usar calças jeans, possuir um smartphone e, mesmo assim, continuará sendo um nativo brasileiro, um “índio”.

Dito isto, a primeira imagem exposta foi “Família de chefe se prepara para a festa”(Baptiste-Debret, 1834). Seguindo a metodologia proposta por Bittencourt (1997), não apresentamos nenhum tipo de informação prévia sobre a obra, nem mesmo o título, assim, os estudantes tiveram a oportunidade de externar suas primeiras impressões em uma discussão oral. Realizada essa primeira etapa, passamos para o momento em que a pintura foi situada em seu contexto histórico, apresentamos informações sobre o autor, sobre a missão e assim por diante, fornecendo subsídios externos para que os alunos pudessem realizar a segunda atividade. Visando obter o registro escrito e individual de cada estudante sobre a obra, foi-lhes dada a seguinte instrução: “Comente a imagem” – nada mais.

Neste dia, havia 22 estudantes e suas respostas puderam ser separadas em quatro categorias: 1) descritiva. onde os discentes se preocuparam apenas em empreender uma análise mais técnica, por assim dizer, da imagem; 2) desagradável. pois uma grande parte classificou dessa maneira a obra de Debret; 3) interessante. outra definição bastante utilizada pelos estudantes, sem maiores aprofundamentos; 4) outros. nesta categoria foram colocadas as respostas que não atenderam ao que foi pedido.

Fonte: Elaboração própria a partir das atividades.

Gráfico 2 Temas das respostas 

Após a análise das respostas obtidas, ficou claro que o único motivo para as oito respostas que descreveram a imagem como “desagradável” se deu pelo fato de que os nativos foram retratados despidos de qualquer vestimenta. A ideia de um grupo diversificado de pessoas (homens, mulheres e crianças) juntas e desnudas causou estranhamento.

Das oito respostas, quatro declararam que, apesar de terem achado a imagem desagradável, após as discussões orais, compreenderam o porquê da falta de roupas. Abaixo transcrevemos duas respostas recebidas que apontam esse possível entendimento – destacamos que as reproduções estão de acordo com a escrita original do aluno ou aluna e não possuem identificação, conforme solicitado.

No começo, quando eu não sabia o que estava acontecendo, ficou meio desconfortável e confuso. Mas depois que o soube o que era, ficou menos confuso.

Bom… confeço que achei desagradável! Mais entendo pois é a sua cultura, o que eu mais me interesso são as pinturas, que é o que os índios mais fazem.

Vale destacar que, durante a aula, não apenas 8 alunos fizeram comentários sobre o fato de não estarem com roupas, mas a grande maioria que se dispôs a falar, além das expressões faciais e risos. Notou-se, naturalmente, anacronismos em suas falas, uma vez que trouxeram elementos do mundo atual para suas interpretações. Claro que não podemos esperar que crianças de 10 anos saibam o que é anacronismo e não o cometam, mesmo assim é importante destacar o ocorrido, pois serve como um indicador de como ocorre a construção da imagem do nativo. No geral, a atividade confirmou o que também já era esperado: o tabu ao redor da nudez.

Finalizado o bloco de aulas destinado a trabalhar a imagem do nativo através das pinturas de Debret, deu-se início ao segmento que objetivou discutir sobre as comunidades nativas no século XXI, refletindo sobre alguns obstáculos enfrentados por elas na atual sociedade brasileira – nosso próximo ponto.

Comunidades nativas, tecnologias e (outros) estereótipos

Gava e Jorge (2013), em seu artigo “O Papel da Tecnologia na Escola Indígena”, afirmam que diversos recursos didáticos utilizados na formação escolar do índio não fazem jus à sua realidade e se tornam, na verdade, obstáculos para sua educação. Diante dessa problemática, demonstram a importância da utilização adequada de ferramentas computacionais e afins que ajudem a superar tais barreiras. Em suas palavras,

O desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação permitiu à sociedade aplicar e difundir conhecimentos adquiridos de forma a resolver problemas técnicos e satisfazer suas necessidades. A difusão de tecnologias no Brasil é de extrema importância, haja vista sua capacidade de democratizar o conhecimento […]. (Gava & Jorge, 2013, p. 56)

Dessa forma, assim como a população não nativa, os indígenas também estão inseridos em uma sociedade que utiliza a tecnologia em diferentes situações, seja para lazer, negócios ou para a democratização do conhecimento. Diante dessas evidências, abordar o uso das tecnologias atuais pelos indígenas nos pareceu um tema importante a ser desenvolvido.

Alda Cristina Costa (2010), em estudo de caso dentro da comunidade indígena Suruí-Aikewára, localizada em São Domingos do Araguaia (Pará), analisou as relações de sociabilidade estabelecidas entre os nativos e a sociedade ao seu redor, bem como a manutenção de suas tradições e cultura em meio à aparelhagem tecnológica. A autora afirma que é inevitável a incorporação de tecnologias de informação pelas comunidades indígenas, visto que várias se localizam em áreas muito próximas aos centros urbanos. Além disso,

essas mídias têm servido para dar visibilidade e ‘guardar’ a história e a memória da comunidade indígena, dentro de recursos tecnológicos que atraem o olhar do índio e também que fazem com que os mesmos sintam-se incluídos no mundo, pois a cultura deles também é difundida para a sociedade. (Costa, 2010, p. 2)

Costa (2010) não deixa de reconhecer os desafios que surgem ao conciliar tradição com a novidade, mas pondera que isso não deve ser encarado com medo pelas comunidades indígenas, afinal, acesso à tecnologia também é um direito das populações originárias. O poder público, por sua vez, não deve ficar preso ao imaginário popular e colocá-las à margem dos avanços, como simples espectadores, possui a obrigação de enxergá-las e incluí-las nessa trama.

A partir dessas reflexões, uma nova imagem foi trazida à sala, desta vez, uma fotografia contemporânea. Nela um indígena adulto segura em seu colo uma garota, também indígena, e ambos estão posando para a famigerada selfie. Novamente, sem informações prévias, ocorreu uma discussão oral sobre a fonte e, posteriormente, foi realizada uma atividade escrita com três questões: 1) Como as tecnologias e os objetos digitais podem transformar a vida dos nativos?; 2) O que você acha do uso dessas tecnologias pelos indígenas?; 3) Analise a imagem de acordo com a discussão e com seu ponto de vista.

Devido às limitações físicas do artigo, não é possível empreender analisar e expor todas as respostas para todas as questões. Diante disso, optamos por focar na pergunta número 2, visto que garante uma visão mais ampla sobre as ideias dos estudantes, que, muitas vezes, buscam mascarar suas respostas a fim de “não errarem”, sempre temendo receber uma nota baixa, como foi percebido em sala.

O Gráfico 3 separa as 27 respostas obtidas e, como esperado, variadas foram as opiniões, o que nos levou a criar um total de 6 categorias para as respostas:

Fonte: Elaboração própria a partir das atividades.

Gráfico 3 Opiniões sobre o uso de tecnologias atuais pelos nativos 

A seguir, no Quadro 1, selecionamos algumas respostas de cada categoria apresentada no Gráfico 3 e realizamos uma análise a respeito delas. Antes disso, todavia, declaramos que a última categoria, intitulada “Contraditórias”, não significa que os estudantes acharam contraditório comunidades nativas se valerem de tecnologias contemporâneas, mas a opinião emitida nos pareceu ambígua, pois afirmaram achar “diferente”, mas também “normal”.

Fonte: Elaboração própria a partir das atividades.

Quadro1 Respostas para a questão “O que você acha do uso dessas tecnologias pelos indígenas?” 

Encerramentos e (quebras de) estereótipos

Nesse momento, apresentaremos os resultados obtidos na última atividade desenvolvida no estágio, parte integrante do último bloco de aulas, que teve como objetivo averiguar se houve, ou não, assimilação dos conteúdos trabalhados. A atividade consistiu em retomar a proposta da primeira aula e foi solicitado, novamente, que os educandos e educandas apresentassem um desenho sobre os nativos.

Retomando, rapidamente, os resultados da primeira atividade: tivemos um total de 29 desenhos, em que 100% deles giravam em torno de estereótipos e nenhum nativo havia sido retratado fora da aldeia ou da floresta. Ao empreender a análise dos novos desenhos, esse cenário modificou-se completamente.

Dos vinte e sete desenhos recolhidos ao final do estágio, um total de 26 (96%) retratou o indígena em ambientes urbanos, realizando atividades como ir ao supermercado; à escola; dirigir automóveis e trabalhar. O único desenho que não colocou o nativo em um ambiente urbano apresenta um personagem utilizando cocar, tanga e com seu rosto pintado, todavia ele utiliza um celular para fazer uma foto (tal qual a imagem trabalhada) e sua moradia não mais é uma oca, mas uma casa de alvenaria, por assim dizer. Verifica-se que as representações dos nativos se modificaram significativamente em relação à primeira atividade. Chamamos a atenção aqui para um desenho que dividiu a folha em dois quadros e de um lado retratou a visão estereotipada e do outro a vida de indígenas nas cidades.

O Gráfico 4 classifica os temas dos desenhos referentes à vida do nativo na cidade, no qual cenas do dia a dia urbano representam 73%.

Fonte: Elaboração própria a partir das atividades.

Gráfico 4 Temas dos desenhos finais 

Apesar de nenhum desenho retratar o indígena a partir de uma ótica estereotipada, como no exercício de conhecimentos prévios, surgem novas problemáticas. Ao nos aprofundarmos nas análises das cenas, percebe-se que a felicidade dos nativos na cidade se mostra uma constante, como se não houvesse problemas ao seu redor. Se antes o indígena encontrava-se em harmonia com a natureza, agora ele encontra-se em harmonia com a selva de pedra.

Apenas uma (1) das atividades retrata um episódio em que o nativo é subjugado perante o homem branco. Nesse desenho, temos um indígena dirigindo um caminhão pela cidade e um balão que sai de sua boca que diz: “Oi eu sou um índio”. A fala é direcionada a um transeunte da rua, que responde “Seu otário”. De acordo com a explicação do aluno, a resposta foi dirigida ao indígena caminhoneiro e representa o preconceito que eles sofrem.

Temos, ainda, 3 desenhos que merecem um pouco mais de atenção, pois vão além do cotidiano e retratam indígenas exercendo profissões: uma professora de matemática; um engenheiro (como definido pelo estudante) e um policial. O engenheiro veste um terno preto, com calças e botas vermelhas, em suas mãos encontram-se duas maletas e em sua cabeça um cocar, logo, é facilmente identificado como um indígena. O policial encontra-se em frente a uma delegacia, também com um cocar e possui pinturas pelo seu corpo. A professora, por sua vez, não apresenta nenhum elemento visual que indique sua etnicidade, apenas sabemos que ela é uma indígena, pois a estudante deu o título de “India” – sem acento – ao seu trabalho.

Essa questão nos leva à nossa última problemática: ausência de elementos nos próprios desenhos que identifiquem o nativo como tal. Onze desenhos não possuem nenhuma característica indicando que os desenhos retratam indígenas e sua realidade no século XXI. Ao passo que pode parecer contraditório levantar essa problemática, dando a entender que o pesquisador em questão estaria buscando identificar os nativos através dos mesmos estereótipos criticados e trabalhados em sala de aula, nosso objetivo é evidenciar que mais de 40% dos desenhos representam um indígena totalmente aculturado, distante de sua cultura o suficiente para não possuir elementos étnicos.

Não temos como confirmar se essa ideia de total aculturamento realmente ocorreu entre os alunos, no entanto, são questões que precisam ser levadas em conta quando nos propomos a trabalhar com as comunidades indígenas na sociedade moderna, afinal não desejamos que os educandos substituam uma imagem falsa por outra.

Considerações finais

Durante a elaboração do plano de ensino do estágio várias foram as dúvidas que surgiram, uma das primeiras foi sobre a possibilidade de realizá-lo, visto que trabalhar com história indígena de maneira acertada configura um grande desafio, em partes, devido à própria falta de currículo dentro da academia; mesmo assim, acreditando na importância do tema, ele foi abraçado. Outra dúvida que não demorou a aparecer foi em relação às fontes, em que a principal preocupação foi não torná-las meras ilustrações para distrair os alunos, assim, elas se tornaram as protagonistas das aulas (juntamente com os estudantes). Finalmente, outra dúvida: os e as estudantes estariam interessados em aprender sobre os povos indígenas, sobre estereótipos e afins? Essa questão somente seria respondida se o plano escrito fosse colocado em prática. E assim o foi.

Ao longo do estágio de regência, atentou-se para que as aulas não seguissem modelos tradicionais, exclusivamente expositivos e avaliativos. A busca por trazer conteúdos adequados para alunos do 5° ano do ensino fundamental I foi uma constante, bem como diversificar a forma de ensino-aprendizagem e, mais importante, buscou-se, através da relação professor-aluno, construir conhecimentos, desenvolver o pensamento crítico e trabalhar com a consciência histórica.

Certamente não podemos afirmar que conseguimos atingir o tipo genético, apontado por Rüsen, mas, igualmente certo, podemos afirmar que o tipo tradicional foi muito provocado nas aulas, as ilustrações e as respostas constatam uma quebra (parcial) de visões estereotipadas, o que pode ser classificado como uma evolução, dentro das limitações, da consciência histórica dos educandos e das educandas.

Referências

Baptiste-Debret, J. (1834). Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome premier. FirminDidot Frères. https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3813 Links ]

Bittencourt, C. (1997). Livros didáticos entre textos e imagens. Em C. Bittencourt. O saber histórico na sala de aula (pp. 69-148). Contexto. [ Links ]

Costa, A. C. (2010). A comunidade indígena e o mundo tecnológico: reflexões sobre os impactos das mídias sociais na vida dos Aikewára. Anais do 3° Simpósio hipertexto e tecnologias na educação. Recife, Pernambuco, Brasil. http://www.nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2010/Alda-Cristina-Costa.pdf Links ]

Gava, Á. A., & Jorge, F. G. A. (2013). O papel da tecnologia na escola indígena. Anais I Encontro Brasil Indígena. Araraquara, São Paulo, Brasil. http://fundacaoarapora.org.br/moitara/wp-content/uploads/2016/02/56-o-papel.pdf Links ]

Lessa, A. M. M. (2016). Imagens e olhares: Povos indígenas e a construção/reforço de estereótipos através de imagens dos séculos XVI-XVII e XIX-XX utilizadas como complementos em conteúdos na sala de aula. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia]. Repositório Institucional da UFRB. https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/images/Disserta%C3%A7%C3%B5es/Turma_2014/Agla_Mendes_de_Melo_Lessa.pdf Links ]

Molina, A. H. (2007). Ensino de história e imagens: possibilidades de pesquisa. Domínios da Imagem, 1(1), 15-29. http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/dominiosdaimagem/article/view/19265 Links ]

Piccoli, V. (2005). O Brasil na Viagem Pitoresca e Histórica de Debret. Anais I encontro de História da Arte. Campinas, São Paulo, Brasil. https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2004/PICCOLI,%20Valeria%20-%20IEHA.pdfLinks ]

Rüsen, J. (1992). El desarrollo de la competencia narrativa en el aprendizaje histórico. Una hipótesis ontogenética relativa a la conciencia moral. Revista Propuesta Educativa, 4(7), 27-36. [ Links ]

Rüsen, J. (2001). Razão histórica. Teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Editora Universidade de Brasília. [ Links ]

Siman, L. M. C. (2005). Representações e memórias sociais compartilhadas: Desafios para os processos de ensino e aprendizagem da História. Cadernos Cedes, 25(67), 348-364. https://doi.org/10.1590/S0101-32622005000300007 Links ]

Recebido: 04 de Julho de 2020; Aceito: 09 de Outubro de 2020

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY 4.0.