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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 21-Out-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.29785 

Artigos

Alfabetização crítica: contribuições de Paulo Freire e dos novos estudos do letramento

Alfabetización crítica: contribuciones de Paulo Freire y de los nuevos estudios de literacidad

Critical literacy: contributions of Paulo Freire and of the new literacy studies

Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo1 
http://orcid.org/0000-0003-3103-3203

Ana Caroline de Almeida2 
http://orcid.org/0000-0001-8062-0696

Magda Dezotti3 
http://orcid.org/0000-0003-4080-1673

1Doutora em educação pela UFMG. Pós doutorado pelo King’s College e pela Goldsmiths, University of London. Coordenadora do GPEALE. Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação da UFSJ e da UFPE. Bolsista produtividade do CNPq.

2Doutora em educação pela UFPE. Atua no GPEALE - Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade. Professora do Centro Universitário de Lavras - Unilavras e Centro Universitário Presidente Antônio Carlos. Pesquisadora da área de alfabetização e letramento e colaboradora no projeto de pesquisa Alfabetização em Rede: uma investigação sobre o ensino remoto da alfabetização na pandemia Covid-19 e da recepção da PNA pelos docentes da Educação Infantil e Anos Iniciais do E. F.

3Doutora em educação pela UFPE. Atua nos seguintes Grupos de pesquisa: Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade - GPEALE; Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Linguagem - NEPEL; Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Profissão e Formação Docente. Pesquisadora da área de alfabetização e letramento, colaboradora no projeto Alfabetização em Rede: uma investigação sobre o ensino remoto da alfabetização na pandemia Covid-19 e da recepção da PNA pelos docentes da Educação Infantil e Anos Iniciais do E. F.


Resumo

O objetivo desse ensaio é refletir sobre a alfabetização de crianças buscando articular duas perspectivas epistemológicas: a concepção de Paulo Freire sobre a educação e a alfabetização e a teoria dos novos estudos do letramento (NEL), em circulação no país a partir dos anos de 1990 do século XX. Ao buscar responder as perguntas “Que alfabetização queremos para as crianças? Qual o sentido da alfabetização hoje?”, nossas reflexões indicam que uma possível mudança nas práticas de alfabetização passaria por uma transformação da escrita que circula na escola, aliada a uma pedagogia da pergunta e do diálogo, como elementos fundantes da prática pedagógica alfabetizadora.

Palavras-chave Alfabetização crítica; Letramento; Paulo Freire; Pedagogia da pergunta

Resumen

El propósito de este ensayo consiste en reflexionar sobre la alfabetización de los niños, buscando articular dos perspectivas epistemológicas: la concepción de Paulo Freyre sobre educación y alfabetización y la teoría de los nuevos estudios de literacidad (NEL) que circulan en el país desde la década de los 90 del siglo XX. Al tratar de responder las preguntas sobre ¿qué alfabetización queremos para niños, jóvenes y adultos y cuál es el significado de la alfabetización hoy en día?, nuestras reflexiones indican que una posible transformación de las prácticas de alfabetización pasaría por una transformación de la escritura que circula en la escuela junto con una pedagogía de la pregunta y del diálogo, como elementos fundadores de la práctica pedagógica alfabetizadora.

Palabras clave Alfabetización crítica; Literacidad; Paulo Freire; Pedagogía de la pregunta

Abstract

This essay aims to reflect on children’s literacy by articulating two epistemological perspectives: Paulo Freire's conception of education and literacy and the theory of new literacy studies (NLS), circulating in Brazil since the 1990’s. Seeking to answer to the questions “What literacy do we aim for children? What is the meaning of today’s literacy?”, our discussions indicate that a possible change in the literacy practices would go through a transformation of the writing that circulates in the school combined with a questioning pedagogy and dialog as founding principles of literacy practice.

Keywords Critical literacy; Literacy; Paulo Freire; Questioning pedagogy

Introdução

As discussões sobre a alfabetização de crianças, jovens e adultos no Brasil sempre estiveram em foco tanto na pesquisa quanto nas políticas educacionais. Dados oficiais vêm mostrando ao longo de décadas o quanto os índices de analfabetismo, embora tenham sofrido importante queda, ainda são altos. Do final do século XIX até final do século XX, passamos de 17,7% de alfabetizados para 93% da população com 15 anos ou mais de idade, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018). Houve avanços significativos, no entanto, considerando-se que a educação e a alfabetização são um direito, ainda existem 11,5 milhões de analfabetos no país, alijados do direito de aprender a ler e escrever. A situação agrava-se quando consideramos as desigualdades regionais. Os dados mostram que os analfabetos estão concentrados nas regiões Nordeste (14,5%) e Norte (8,0%). As menores taxas são do Sul e Sudeste, que registraram 3,5% cada. No Centro-Oeste, o índice foi de 5,2%.

Temos ainda a última edição do Indicador de Alfabetismo Funcional (Ribeiro et al., 2015) desenvolvido pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, indicando que houve um crescimento considerável na taxa de escolaridade da população nos últimos anos, embora 30% continuem funcionalmente analfabeta e apenas 12% dos adultos tenham um nível proficiente em leitura e escrita.

Diante disso perguntamo-nos: que alfabetização queremos para as crianças, jovens e adultos? Qual o sentido da alfabetização hoje? São perguntas desafiadoras para as quais não temos respostas prontas. Com base em mais de duas décadas de pesquisa sobre a alfabetização de crianças realizadas por integrantes do Gpeale (Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Decolonialidade), lançaremos mão de duas perspectivas que podem, a nosso ver, contribuir para avançar a reflexão. Trata-se da concepção de Paulo Freire sobre a educação e a alfabetização e a teoria dos novos estudos do letramento (doravante NEL), em circulação no país a partir dos anos de 1990 do século XX. O objetivo desse ensaio, portanto, é refletir sobre a alfabetização buscando articular essas duas perspectivas epistemológicas que em muito podem contribuir para a pesquisa, a formulação de políticas públicas de educação e a prática em sala de aula.

Paulo Freire e os NEL

Paulo Freire publica na década de 1970 a obra seminal Pedagogia do Oprimido alcançando visibilidade internacional por propor uma pedagogia baseada no diálogo em oposição à educação bancária que desconsidera os saberes e o contexto social, cultural e histórico dos educandos. A partir daí observa-se que a categoria diálogo é central em toda a extensa obra do autor:

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. (Freire, 1987, pp. 78-79)

Sua fala evidencia que o diálogo é mais que a relação de interação face-a-face e só ocorre entre os que reconhecem o direito de todos dizerem sua palavra, de expressarem sua voz, de pronunciar e anunciar o mundo na busca de se fazerem escutar.

Paulo Freire parte do entendimento do homem como um ser que se constitui na relação com o outro, nas suas interações. E isso não significa compreendê-lo como um ser limitado pelo seu contexto, por suas condições materiais. Ao contrário, desde a sua tese de doutorado, Educação e Atualidade Brasileira, defendida em 1959, Freire já deixava claro esse entendimento, ao cunhar o conceito de “dialogação” em oposição ao conceito de “assistencialização”:

A “assistencialização” é o máximo de passividade do homem diante dos acontecimentos que o envolvem. Opõe-se ao conceito nosso de “dialogação”, que coincide com o de “parlamentarização” do professor Guerreiro Ramos. Enquanto na “assistencialização” o homem queda mudo e quieto, na “dialogação” ou na “parlamentalização” o homem rejeita posições quietistas e se faz participante. Interferente. (Freire, 2003, p. 28)

Relatando sua experiência de educação com operários ligados ao SESI (Serviço Social da Indústria) nos anos de 1947 a 1957, Freire afirma que nunca impôs uma solução para resolver qualquer situação problema, que o caminho sempre foi o diálogo, através do qual se conhecia e se discutia a realidade. Essas discussões ocorriam em assembleias com os líderes dos operários e se davam de forma verdadeiramente democrática: “muitas vezes saímos vencidos em alguns dos pontos que defendíamos. Não só vencidos, mas, em alguns casos, convencidos” (Freire, 2003, p. 23). Vimos surgir na obra de Freire uma “pedagogia da pergunta” que ele sistematizaria, mais claramente, no livro com esse título, de 1985.

Em Pedagogia do oprimido o autor reflete acerca da educação “bancária”, antidialógica, estando a serviço do sistema opressor. Uma educação que engendra uma falsa visão do homem, na qual haveria uma dicotomia na relação homem-mundo, como se os homens estivessem “simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros”. Em oposição a essa ideia, ele aprofunda o conceito de diálogo:

Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. (Freire, 1987, pp. 78-79)

É no diálogo que se concentra a possibilidade de que o homem se reconheça como um ser com capacidade de interagir com o mundo e com os outros. O sujeito analfabeto, foco da ação alfabetizadora, para Freire, “não é um homem perdido, o analfabetismo não é uma chaga ou enfermidade”, é um homem que inserido na cultura escrita, não aprendeu a ler e escrever (Freire & Macedo, 1990), visão completamente oposta à que circula na sociedade, na mídia, na política pública, cuja erradicação do analfabetismo assemelha-se à erradicação de uma doença. Ao contrário, é um sujeito que vive no mundo, age sobre ele produzindo conhecimento, tem o que dizer na relação com o outro, desde que seja uma relação de escuta.

Em Pedagogia da autonomia, dentre outras passagens, o autor reforça sua concepção ao falar sobre a escuta:

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições, precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. (Freire, 1996, p. 113)

Portanto, a educação libertadora que Freire defende tem como essência a dialogicidade e precisaria fazer parte da relação professor-aluno, alfabetizador e alfabetizando. Trata-se de uma educação que se estruture a partir da pergunta e não em busca de oferecer respostas prontas aos alunos. Em diálogo, Freire & Foundez (1985, p. 46) questionam a pedagogia tradicional, que se estrutura pela repetição e memorização e afirmam que:

O que o professor deveria ensinar – porque ele próprio deveria sabê-lo – seria, antes de tudo, ensinar a perguntar. Porque o início do conhecimento, repito, é perguntar. E somente a partir de perguntas é que se deve sair em busca de respostas, e não o contrário.

Mas o que Freire tem nos ensinado sobre a alfabetização? Como o autor pensa a escrita? Freire (1987, p. 10) parte da ideia de que a alfabetização, assim como a educação, é uma ação cultural para a transformação de si e da sociedade: “Talvez seja esse o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se”. Construir sua própria autoria, ter consciência do mundo em que vive e agir para transformá-lo. Uma alfabetização nesta perspectiva concretiza-se na medida em que toma como ponto de partida a prática social do educando seja ele criança, jovem ou adulto. Afirma o autor:

Somente a alfabetização que, fundando-se na prática social dos alfabetizandos, associa a aprendizagem da leitura e da escrita, como um ato criador, ao exercício da compreensão crítica daquela prática, sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca da libertação, oferece uma contribuição a este processo. (Freire, 1987, p. 50)

Tal perspectiva de alfabetização, que visa contribuir com o que Freire (1978, p. 94) denomina processo de libertação, é bem definida também na obra Cartas à Guiné Bissau como “conquista de sua palavra” e por isso mesmo não pode ficar alheia à atividade produtiva e à cultura do povo, para “esclerosar-se na frieza sem alma de escolas burocratizadas”. Freire destaca “a impossibilidade de tomá-la [a alfabetização] em si mesma como se fosse viável realizá-la fora e acima da prática social” e discute seu caráter político, “caráter que demanda dos educadores uma clareza crescente com relação à sua opção política e uma coerência com esta opção, em sua prática”.

O mundo do educando é, portanto, o mundo da cultura no qual está inserido, com todas as linguagens que o constitui, com a variedade de funções sociais que a escrita desempenha neste contexto cultural. Tomadas dessa forma, a educação e a alfabetização devem referenciar-se na cultura, como alerta Freire e Macedo (1990, p. 3 3): “Não se pode desenvolver um trabalho de alfabetização fora do mundo da cultura, porque a educação é, por si mesma, uma dimensão da cultura”.

O objeto da alfabetização é a língua, compreendida por Freire como cultura e como mediadora da apropriação do conhecimento: “A língua também é cultura. Ela é a força mediadora do conhecimento; mas também é ela mesma conhecimento (Freire & Macedo, 1990, p. 35). Aqui identificamos um princípio fundamental da sua concepção de alfabetização: trata-se de um processo de apropriação de uma cultura, aquela que envolve as práticas do ler e do escrever. Freire distancia-se, portanto, de uma visão restrita da língua escrita que a identifica como um sistema, para alguns, um código, para outros. Mais que um sistema abstrato, a língua é um conhecimento cultural cujo sentidos são produzidos na cultura e não fora dela.

Questionando a concepção mecanicista de alfabetização em voga nos anos de 1960 (e até a atualidade) e a visão de que a alfabetização por si só promove a inserção dos sujeitos no mundo do trabalho, Freire assevera:

A concepção mecanicista de alfabetização veicula a ilusão de que “o analfabeto que aprende a ler e escrever consegue um emprego […] A mera aprendizagem da leitura e da escrita não faz milagres. Não é ela em si mesma, a que cria empregos. (Freire, 2006a, pp. 18-55)

E vai além: “Alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras, mas a dizer a sua palavra, criadora da cultura” (Freire, 2006a, p. 47). Ao contrário, a alfabetização é por ele compreendida como um processo de constituição da autoria que se dá pelo diálogo e não pela prática dissertadora: “Uma das características dessa educação dissertadora é a “sonoridade” da palavra e não sua força transformadora” (Freire, 2006a, p. 105).

A vasta obra de Paulo Freire, nos revela, portanto, que o mote para as reflexões e críticas deste pensador se assenta na complexidade da vida social e da atividade humana. A divisão de classes, a relação de exploração entre opressores e oprimidos, a desigualdade social, por exemplo, são elementos intrínsecos a essa atividade e sempre o inquietaram. Assim como o inquietava também uma visão ingênua da educação e da alfabetização, que pouco ou quase nada colaborava com a transformação dessa realidade.

Desde a década de 1960, Freire já denunciava essa visão ingênua - um modelo de educação que negava ao sujeito a sua condição de ser histórico e social e como tal, ao mesmo tempo em que se apropria da cultura, também é produtor dela. A criança ou o adulto, em processo de aprendizagem da língua escrita, eram tratados como uma tábula rasa, onde seria possível “depositar” os conhecimentos dos quais eles necessitariam. Freire já denunciava: “como seres passíveis e dóceis, pois que assim são vistos e assim são tratados, os alfabetizandos devem ir recebendo aquela transfusão alienante da qual, por isto mesmo, não pode resultar nenhuma contribuição ao processo de transformação da realidade” (Freire, 2006a, p. 17).

Se a alfabetização não ocorre, portanto, por uma transfusão alienante, pela repetição de sílabas e palavras, é no texto que Freire foca todo o processo ao defender que os educandos devem ler e compor textos para expressar e construir sua autoria. Desse modo, o autor chama a atenção para um dos elementos-chave da teorização dos novos estudos do letramento, a ser discutida mais à frente: o texto. Compor livros com autoria, compor textos com autoria, ser autor da própria alfabetização. Isso significa abandonar a sílaba como um conhecimento da alfabetização? Certamente, não. Freire (2006a, p. 73) considera, com base nas suas experiências de alfabetização de adultos, que, quando os educandos:

[…] participam criticamente da decomposição das primeiras palavras geradoras associadas à sua experiência quotidiana; quando percebem o mecanismo de combinações silábicas da sua língua descobrem, finalmente, nas várias possibilidades de combinações, as suas próprias palavras.

O conhecimento da sílaba, nesta perspectiva, está a serviço da construção da palavra, entendida aqui como autoria e não apenas como uma sequência de sons representados por grafemas. Freire chega a indicar como deve ser o ambiente da sala de aula de alfabetização. Sugere o autor que “As classes de leitura devem ser seminários de leitura”, evidenciando aqui a leitura como uma prática interativa, dialogada, com função social, conforme defendem os NEL.

Consideramos que o modo como Freire entende a alfabetização é muito próximo do conceito de letramento ideológico proposto pelos pioneiros dos NEL (Street, 1984; 2001; 2003; Heath, 1982; Barton & Hamilton, 2000). Os NEL, mais especificamente, designam estudos sobre o letramento desenvolvidos a partir da perspectiva antropológica e etnográfica de pesquisa. Esses estudos têm influenciado trabalhos desenvolvidos na academia brasileira por pesquisadores que compreendem as práticas de leitura e escrita para além da aquisição de um sistema de escrita em uma dada língua. Pesquisadores que compreendem que questões ideológicas repousam nessas práticas e que, portanto, elas devem se configurar como possibilidades de reflexão que trazem implicações para políticas educacionais.

Brian Street, pioneiro na conformação deste campo, propõe o modelo de letramento ideológico fundamentado numa concepção de escrita como uma prática social permeada por relações de poder: “Argumento que o que as práticas e concepções particulares de leitura e escrita são para uma dada sociedade, depende do contexto; elas são envolvidas em ideologia, não podem ser isoladas ou tratados como uma técnica neutra”[1]. (Street, 1984, p. 1).

Segundo esse modelo, a escrita não é um sistema neutro ou abstrato de normas, mas um conhecimento constituído nos eventos de letramento (Heath, 1982) ou de alfabetização (Almeida, 2020) dos quais os sujeitos que vivem numa sociedade letrada, participam.

Street esclarece que não há uma única forma de letramento, entendido por nós como a escrita em uso. Relatando suas experiências etnográficas no Irã, afirma que observou diferenças consideráveis entre o letramento comercial, letramento do alcorão, letramento escolar. Ele ressalta que: “as pessoas podem estar envolvidas em uma forma e não na outra, suas identidades podem ser diferentes, suas habilidades podem ser diferentes, seus envolvimentos em relações sociais podem ser diferentes” (Street, 2010, p. 37).

Tal percepção implica no entendimento de que, muitas vezes, as decisões tomadas no âmbito das políticas que envolvem programas de alfabetização em larga escala, pretendem-se autônomas e desconsideram peculiaridades e características próprias de determinados lugares. A crítica feita pelo autor é reportada a um modelo hegemônico de letramento, no qual subjaz a ideia de que existe uma neutralidade no processo de uso da escrita independentemente do contexto no qual ela aconteça, como se existisse uma forma universal de ser letrado, bastando-se, para tanto, a aprendizagem de um conjunto de técnicas. Para o pesquisador, esse modelo, que ele chama de autônomo, está vinculado ao estabelecimento de categorias classificatórias que distinguem pessoas letradas das não letradas. Por isso é importante tratar o letramento numa abordagem ideológica explícita. Nas palavras do autor:

É evidente que o letramento não pode ser estudado como uma tecnologia neutra, como no modelo reducionista autônomo. Mas como uma prática social e ideológica, que inclui aspectos fundamentais da epistemologia, do poder e da política: a aquisição do letramento implica questionamentos sobre discursos dominantes, alterações na agenda da alfabetização, lutas por poder e posições sociais. Neste sentido, as práticas letradas estão saturadas de ideologia. (Street, 2004, p. 90)

O autor esclarece, assim, que o letramento consiste nas formas que o engajamento textual toma dentro de contextos materiais específicos da prática humana, que envolvem relações e estruturas de poder, valores, crenças, objetivos e propósitos, interesses, condições econômicas e políticas, e assim por diante. Diante do exposto, é evidente que pode se compreender o porquê de o termo letramento ser empregado pelo autor também no plural - letramentos. É do interior desse campo que Brian Street formula o conceito de práticas de letramento em diálogo com o conceito de eventos de letramento formulado por Heath (1982). Esclarece o autor:

Para Heath, o termo “eventos de letramento” se refere a “qualquer ocasião em um trecho de escrita é essencial à natureza das interações dos participantes e a seus processos interpretativos” (Heath, 1982). O conceito de “práticas de letramento” se coloca num nível mais alto de abstração e se refere igualmente ao comportamento e as conceitualizações sociais e culturais que conferem sentido aos usos da leitura e/ou da escrita. As práticas de letramento incorporam não só “eventos de letramento”, como ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, mas também modelos populares desses eventos e as preocupações ideológicas que os sustentam. (Street, 2014, p. 18)

Na esteira dessas definições, David Barton e Mary Hamilton (2000) adotam os conceitos de evento e de prática de letramento em seus estudos. Os autores também estabelecem a relação entre os eventos de letramento e os textos de circulação social. Estes são componentes fundamentais nos eventos de letramento e o estudo do letramento é, em parte, o estudo do texto e de como ele é produzido e usado: “Textos são uma parte crucial dos eventos de letramento e o estudo do letramento é parcialmente um estudo dos textos e de como eles são produzidos e usados”[2] (Barton & Hamilton, 2000, p. 09).

Para esses autores, o conceito de prática de letramento, como uma prática social, ultrapassa o senso comum de que seria o que as pessoas fazem com a escrita, what people do with literacy, pois envolve aspectos do comportamento humano que nem sempre podem ser objetivamente observáveis, mas que permeiam os eventos, tais como valores, atitudes, sentimentos, relações pessoais. Esses aspectos estão relacionados a ideologias, identidades sociais, às relações de poder.

A ideia de letramentos que explicitamos em Street (2010) também é compartilhada por Barton e Hamilton (2000) ao afirmarem que existem diferentes letramentos associados aos diferentes domínios da vida, por exemplo, a casa, a escola, o local de trabalho. As atividades que acontecem no interior desses domínios são configurações particulares das práticas de letramento nas quais os participantes atuam em vários eventos. De acordo com Barton e Hamilton as práticas de letramento são modeladas por instituições sociais como a escola, por exemplo, que contribuem para dar suporte às práticas de letramentos dominantes, uma vez que algumas são mais visíveis e influentes do que outras. Eles chamam a atenção para o fato de que os estudos sobre as práticas de letramento devem situar as atividades de leitura e de escrita em contextos mais amplos, visto que as pessoas se apropriam dos textos com objetivos próprios e em contextos históricos situados podendo ser modificadas conforme a época e a sociedade.

A aproximação entre essas concepções e a visão de Paulo Freire sobre a alfabetização é bastante evidente. A escrita como prática social, marcada por ideologia, situada num contexto cultural, constituída na interação entre os sujeitos mediada por textos, guarda semelhanças com o que Freire pensa sobre a escrita. Essa aproximação foi realizada em artigo publicado por Bartlett e Macedo (2015). As autoras explicitam pontos de convergência das duas perspectivas uma vez que para Freire a escolarização e a alfabetização não são neutras, mas um ato político que exige das instituições o conhecimento do aluno e o respeito pelos seus saberes e pela sua cultura, tendo entre seus princípios o elo crítico entre a reflexão-ação e o diálogo como uma importante ferramenta na mediação dos saberes sobre a escrita.

O reconhecimento acerca das contribuições de Paulo Freire e de outros estudiosos para a perspectiva dos Novos Estudos do Letramento também é destacado por Colin Lankshear (1999). Discorrendo sobre as contribuições transdisciplinares ao estudo sociocultural da linguagem e do letramento na grande divisão, o autor relaciona uma série de movimentos que teriam alavancado a virada social chegando aos Novos Estudos do Letramento, entre eles estão a etnometodologia, a sociolinguística interacional, a etnografia da comunicação, a psicologia sócio-histórica baseada no trabalho de Vygotsky e seus pares, os estudos de Bakhtin e o trabalho de Paulo Freire. Acerca deste último, ele comenta:

Além dessas influências do 'movimento de virada social', outras notáveis influências sobre o paradigma sociocultural emergente incluíram o trabalho de Paulo Freire no Brasil e outros cenários do Terceiro Mundo da década de 1960, e o trabalho realizado na “nova” sociologia da educação durante a década de 1960. 1970s. A "pedagogia do oprimido" de Freire (Freire 1972, 1973, 1974) denunciou explicitamente reduções psicológicas-tecnicistas da alfabetização, insistindo em vez disso que "Palavra" e "Mundo" estão dialeticamente ligados, e que a educação para a libertação envolvia relacionar Palavra e Mundo dentro de uma práxis cultural transformadora. Freire afirmou a impossibilidade de a alfabetização realizer-se fora da prática social e, consequentemente, fora dos processos de criação e manutenção ou recriação de mundos sociais. Para Freire, as questões cruciais dizem respeito aos tipos de mundos sociais que os homens criam por meio de suas práticas mediadas pela linguagem, os interesses promovidos e subvertidos e a opção histórica de promover a educação como um instrumento de libertação ou opressão. (Lankshear, 1999, s.p.)

Lankshear destaca a importância de Paulo Freire, especialmente no que tange à Pedagogia do Oprimido, por ser uma obra que denuncia o reducionismo das tendências psicologistas-tecnicistas da alfabetização, defende que palavra e mundo estão dialeticamente ligados e que a educação para a libertação não pode se dar fora das práticas sociais. Street (2014, p. 36) também admite que ele foi “o militante mais influente e radical do letramento”.

Freire defendeu a inseparabilidade entre a leitura da palavra e a leitura do mundo, contribuindo assim para uma abordagem social e política da alfabetização e do letramento numa perspectiva critica. Decorrente da compreensão do homem como um ser histórico, que se constitui na relação com o outro, temos todo um modo de compreensão da vida, da educação, da concepção de língua/linguagem e de alfabetização sintonizados, implicando na consciência de que não existe neutralidade na educação, mas que toda educação é um ato político e pedagógico.

Alfabetização e a escolarização crítica da leitura e da escrita

Embora a escola seja o lugar de promoção da alfabetização e do letramento, a escolarização pode não ser garantia de que isso ocorra, em especial, quando ela é proposta na perspectiva do modelo autônomo de letramento questionado por Street e na visão mecânica da alfabetização, criticada por Freire. As críticas demonstram que nem o letramento e nem a alfabetização de uma população estão vinculados apenas à escolarização, bem como o letramento, a alfabetização e a escolarização não são sinônimas de ascensão social.

Por muito tempo o analfabetismo foi encarado como uma “erva daninha” ou como uma “enfermidade”, que precisaria ser erradicado, pois acarretava, entre outras coisas, “baixos níveis de civilização” de determinadas sociedades. Sendo o analfabetismo encarado desta forma, temos que

A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de depositar palavras, sílabas e letras nos alfabetizandos. Este depósito seria suficiente para que os alfabetizandos começassem a afirmar-se, uma vez que, em tal visão se emprestaria à palavra um sentido mágico. (Freire, 1978. p. 13)

Dessas e outras reflexões feitas pelo autor resulta o anúncio de uma educação libertadora e crítica. Paulo Freire postula que mais que escrever e ler a “asa é da ave”, “os alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de escrever a sua vida, o de ler a sua realidade, o que não será possível se não tomam a história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos.” (Freire, 1978, p. 16). Nesta concepção crítica, o analfabetismo não é encarado como uma chaga, nem uma erva daninha, a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, “mas das expressões concretas de uma realidade social injusta”, não se tratando, portanto, de um problema estritamente linguístico, nem exclusivamente pedagógico ou metodológico, mas político.

Graff (1995) tece críticas às tentativas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de avaliar os níveis de letramento e de alfabetização dos países, principalmente por associá-los ao desenvolvimento econômico e individual das pessoas, uma vez que não há uma relação de causa e efeito. O autor cita como exemplo o caso da Suécia, país que atingiu a alfabetização geral da população desde o séc. XVIII, com a determinação do rei Carlos XI e o apoio da igreja, que tomava a leitura do catecismo de Lutero: o protestante só poderia receber os sacramentos da igreja e se casar se soubesse ler a bíblia. Esse processo não teve qualquer relação com o letramento escolar ou com processos de escolarização, como pressupõem os princípios da UNESCO ao conceber sua proposta de alfabetização e letramento vinculando-a totalmente à escolarização.

Analisando os resultados das avaliações realizadas pelo Instituto Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), em 2001, Britto (2004) critica o discurso hegemônico e o modelo autônomo de letramento. Para ele a alfabetização deve se dar dentro de uma perspectiva crítica semelhante à que Street concebe no modelo ideológico e ao que Freire defende na sua obra. O autor destaca, ainda, que o letramento não seria a causa da posição social dos indivíduos, mas a consequência:

A análise comparativa do nível de alfabetismo com a classe socioeconômica, o grau de instrução e o tipo de atividade profissional demonstram que são essas circunstâncias que contribuem para o letramento, e não o contrário. Em outras palavras, a condição de maior ou menor domínio de habilidades de leitura e escrita e o exercício de atividades dessa natureza é antes o resultado da situação social que a possibilidade de maior participação. (Britto, 2004, p. 56)

Assim, diríamos, como escreve Freire, que mesmo tomando a alfabetização num sentido global, mais abrangente,

[Ela] jamais deve ser compreendida como sendo, por si só, a deflagradora da emancipação social das classes subalternas. A alfabetização conduz a uma série de mecanismos deflagradores, dos quais participa, os quais devem ser ativados para a transformação indispensável de uma sociedade cuja realidade injusta destrói a maior parte do povo. (Freire & Macedo, 1990, p. 120)

Cabe-nos perguntar, diante dessas reflexões, como a escolarização da leitura e da escrita pode se dar numa perspectiva crítica tal como defendida por Freire e pelos NEL? Como essa escolarização pode contribuir para uma alfabetização na qual os sujeitos dominem não apenas o sistema de escrita, mas conheçam e usem a escrita com suas funções sociais, reconhecendo as relações de poder que lhes são constitutivas e ajam no sentido da transformação da sociedade?

Street, ao refletir sobre o processo de apropriação de práticas letradas na escola, defende uma perspectiva crítica para o ensino da leitura e da escrita, na mesma direção apontada por Freire, quando questiona a alfabetização mecânica, baseada numa educação bancária. Afirma o autor que:

Todo letramento é aprendido num contexto específico e as modalidades de aprendizagem, as relações sociais dos estudantes com o professor são modalidades de socialização e aculturação. O aluno está aprendendo modelos culturais de identidade e personalidade, não apenas a decodificar a escrita e escrever com determinada caligrafia. Se, esse é o caso, então, deixar o processo crítico para depois que eles tiverem aprendido vários dos gêneros letrados usados na sociedade é descartar, talvez para sempre, a socialização de uma perspectiva crítica. (Street, 2014, p. 54)

Para Freire a leitura não se esgota (e nem pode se esgotar) na decodificação da palavra escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. E, embora não tenha empregado o termo letramento (uma vez que esse termo só foi cunhado nos anos de 1990), é evidente sua preocupação com uma alfabetização como prática social permeada por uma visão critica da realidade em que os sujeitos estão inseridos. É por isso que afirma que não basta dizer que Ivo viu a uva ou que A viúva viu a uva, pois é necessário saber quem produziu a uva, qual o preço da uva, quem lucrou com essa produção. Nessa mesma perspectiva ele declara:

Para mim seria impossível engajar-me num trabalho de memorização mecânica dos ba-be-bi-bo-bu, dos la-le-li-lo-lu. Daí que também não pudesse reduzir a alfabetização ao puro ensino da palavra, das sílabas ou das letras. Ensino cujo processo o alfabetizador fosse “enchendo” com suas palavras as cabeças supostamente “vazias” dos alfabetizandos. (Freire, 2006b, p. 19)

Pensar a escola, como um local privilegiado (embora não seja o único) para o aprendizado da alfabetização das práticas letradas, significa pensar nas concepções que são materializadas por meio do que e do como a escola ensina a leitura e a escrita. Refutar concepções tradicionais de alfabetização e assumir a perspectiva crítica apontada por Freire (2006a) e Street (2014), significa mudar as bases de ensino que constituem a cultura escolar. A possibilidade de o letramento ser o eixo norteador dos currículos, contribui com a transformação da cultura escrita na escola, uma vez que as práticas sociais que demandam o uso da escrita é que seriam o ponto de partida para o processo de ensino e aprendizagem.

Assim, consideramos relevantes as reflexões de Ribeiro (2004, como citado em Mortatti, 2004) sobre o modo como o letramento pode constituir e nortear o currículo escolar e, desse modo, contribuir para uma ampliação da concepção de escrita que norteia a prática docente alfabetizadora:

[…] o letramento pode ser tomado como um importante eixo articulador de todo o currículo da educação básica. Entretanto, o vigor do conceito de letramento para a reflexão pedagógica não reside apenas no reconhecimento da centralidade da leitura e da escrita no interior da própria escola, mas principalmente no fato de que ele instiga os educadores – e a sociedade de maneira geral – a refletir sobre a relação entre a cultura escolar e a cultura no seu conjunto, sobre as relações entre os usos escolares e os demais usos sociais da escrita. (Ribeiro, 2004, como citado em Mortatti, 2004, p. 116)

Desse modo, pensar a alfabetização de crianças a partir dos princípios dos NEL e da concepção de alfabetização de Freire implica em se repensar não apenas o modo como a língua escrita circula nas práticas escolares, mas, sobretudo, qual língua escrita e que reflexões (ou diálogos) ela possibilita. Pesquisas etnográficas têm mostrado que a escrita que circula nas turmas de alfabetização ainda é muito distante daquela que circula na sociedade (Almeida, 2012; Macedo et al., 2017; Almeida, 2020). Trata-se de uma escrita produzida na escola e para a escola, os textos são artificiais, selecionados por serem curtos, grande parte extraídos dos livros didáticos. As atividades de ensinar a ler e escrever tomam como referência predominante a análise de silabas soltas e de palavras selecionadas com o objetivo de se ensinar as famílias silábicas, as letras e os fonemas.

Evidencia-se, assim, que a alfabetização da soletração, da repetição, sem autoria, tão discutida e questionada por Freire, ainda está presente nas escolas, que ainda não articulam a escrita que aí circula, com questões relevantes para uma formação crítica e emancipatória para os sujeitos que se alfabetizam. Evidencia-se que as reflexões derivadas dos NEL que tomam a escrita como uma prática social ainda não arranharam a cultura escolar, a despeito de várias políticas públicas terem buscado enfatizar o papel do texto no processo de alfabetização[3]. Tais práticas distanciam-se não apenas da escrita como uma prática social e cultural, mas, sobretudo, do sujeito aluno e sua cultura, sua experiência de vida, sua relação com a escrita. Vista dessa forma, a alfabetização suprime o elemento fundante da pedagogia de Freire: o diálogo. A criança submetida a essas práticas é apenas mais um aluno numa sala de aula, sem rosto e sem voz, uma tábula rasa na qual sílabas, fonemas e palavras são impressos. A prática docente, baseada numa escrita como um sistema abstrato de normas, é apenas um objeto estranho, não coincide com o que a criança observa e vê os adultos usando na sociedade. Não coincide com o que o adulto analfabeto conhece da escrita, da sua função social, da relação de poder que ele sabe existir no uso dessa ferramenta cultural, da consciência que ele tem de a alfabetização ser um fator de distinção social, de separação entre quem sabe e quem não sabe, quem pode e quem não pode.

Desse ponto de vista, uma possível transformação das práticas de alfabetização passaria por uma transformação da escrita que circula nesse espaço social e da formulação de metodologias adequadas ao trabalho com essa ferramenta cultural. Ferramenta essa que circula não apenas em suportes impressos, mas virtualmente, de modo cada vez mais diverso.

Mais do que isso, passa pela transformação da relação professor-aluno, tomando o diálogo como elemento fundante da prática pedagógica. Um diálogo, como defende Freire, que envolva a escuta dialógica, no qual o aluno perceba que sua voz, o que diz e pensa, será constitutiva da sua alfabetização, da relação que vai estabelecer com a escrita. Um processo no qual ele possa escrever sendo autor de seus textos (e não apenas copiar a escrita de outrem). Há pesquisas evidenciando o quanto essa proposta pode fazer a diferença na educação dos sujeitos, como as realizadas por Smolka (1988), Goulart e Wilson (2013), Tibúrcio (2014), Macedo (2005).

Considerações finais

Neste ensaio buscamos articular o pensamento de Freire sobre a alfabetização com a teoria do letramento formulada pelos fundadores do campo do NEL. Freire deu grande contribuição aos estudos do letramento como uma prática social de modo que torna-se importante para o avanço da pesquisa em educação colocar em diálogo essas duas formas de conceber a alfabetização.

Reinventar Freire, colocando suas ideias em articulação com outras teorias sobre a alfabetização é, precisamente, buscar concretizar uma das muitas lições que nos deixou quando questionado sobre a aplicação das suas ideias na educação ao redor do mundo: “[…] a única maneira que alguém tem de aplicar, no seu contexto, algumas das proposições que fiz, é exatamente refazer-me, quer dizer, não seguir-me. Para seguir-me, o fundamental é não seguir-me” (Freire & Foundez, 1985, p. 41).

Num contexto em que a Política Nacional de Alfabetização (PNA) apresenta grande retrocesso em relação a todo o acúmulo científico já produzido nos centros e grupos de pesquisas no Brasil (Macedo, 2019; Mortatti, 2019), referendando uma concepção ultrapassada de língua escrita e de alfabetização baseada na memorização de fonemas, torna-se urgente o diálogo com teorias que questionem as limitações e restrições impostas pela PNA. Para que o processo de formação de professores e de ensino-aprendizagem das crianças avance na direção do trabalho com a escrita enquanto ferramenta cultural e uma alfabetização crítica nos moldes defendidos por Freire, precisamos resistir à imposição desta política pública que impõe sério retrocesso à alfabetização das crianças.

Referências

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[1]I shall contend that what the particular practices and concepts of reading and writing are for a given society depends upon the context; that they are already embedded in an ideology and cannot be isolated or treated as ‘neutral’ or merely ‘technical’ (tradução das autoras)

[2]Texts are a crucial part of literacy events and the study of literacy is partly a study of texts and how they are produced and used. (tradução das autoras)

[3]Vide os textos do PRO-LETRAMENTO, do PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), dos PCN (Parâmetros Currículares Nacionais) e do PROFA (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores).

Recebido: 02 de Março de 2020; Aceito: 09 de Outubro de 2020

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