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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 23-Out-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.33513 

Artigos

As representações sociais de crianças negras sobre a cor em contexto escolar

Las representaciones sociales de los niños negros sobre el color en un contexto escolar

The social representations of black children about color in a school context

Antonio Matheus do Rosário Corrêa1 
http://orcid.org/0000-0002-3503-963X

Raquel Amorim dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0003-4817-0036

1Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPLSA/UFPA). Especialização em andamento em Coordenação Pedagógica pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI). Licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiros (NEAB/UFPA).

2Doutora e mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia (PPLSA/UFPA). Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiros (NEAB/UFPA). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais (GERA/UFPA).


Resumo

Este estudo investiga as representações sociais de crianças negras sobre a cor da pele em contexto escolar. A metodologia é de abordagem qualitativa por meio de grupo focal com 17 crianças de uma escola pública de Bragança (PA). Os resultados revelam representações sociais por gradações de cor, demonstrando estereótipos raciais, invisibilização do negro e aproximação com o racismo. Contudo, ensaiam comportamentos antirracistas e identidade positiva sobre ser negro. Portanto, os discursos e atitudes das crianças delimitam práticas de valorização de negros e brancos pela elaboração de identidades e pertencimento racial, assim como invisibilidade da cor em outros discursos.

Palavras-chave Representação social; Crianças negras; Cor da pele

Resumen

Este estudio investiga las representaciones sociales de los niños negros sobre su color de piel en un contexto escolar. La metodología utiliza un enfoque cualitativo a través de un grupo focal con 17 niños de una escuela pública en Bragança (PA). Los resultados revelan representaciones sociales por gradaciones de color, evidenciando estereotipos raciales, invisibilidad de los negros y aproximación al racismo. Sin embargo, ensayan un comportamiento antirracista y una identidad positiva sobre ser negro. Por tanto, los discursos y actitudes de los niños delimitan prácticas de valorización de negros y blancos a través de la elaboración de identidades y pertenencias raciales, así como la invisibilidad del color en otros discursos.

Palabras clave Representacion social; Niños negros; Color de la piel

Abstract

This study investigates the social representations of black children about their skin color in a school context. The methodology uses a qualitative approach through a focus group with 17 children from a public school in Bragança (PA). The results reveal social representations by gradations of color, demonstrating racial stereotypes, blacks' invisibility and approximation with racism. However, they rehearse anti-racist behavior and a positive identity about being black. Therefore, the children's speeches and attitudes delimit practices of valorization of blacks and whites through the elaboration of identities and racial belonging, as well as the invisibility of color in other speeches.

Keywords Social representation; Black children; Skin color

Introdução

Este trabalho propõe como objeto de estudo a investigação de representações sociais de crianças negras sobre a cor da pele no contexto escolar, a partir de uma escola pública municipal. Pensar as crianças negras como sujeitos elaboradores de imagens e atitudes com base na cor de si e do outro perpassam suas interações, identidades e discursos que transitam diferentes espaços de formação humana.

Consideramos as crianças negras como coletivo estruturado sob duas óticas: a) pluralidade de infâncias das crianças; b) percepções sobre os negros e brancos. As percepções sobre criança e infância, nas palavras de Sarmento e Vasconcellos (2007), têm diferentes noções a depender do tempo, elaboradas nos espaços culturais, por meio da variação das concepções de infância fundamentada em aspectos como classe social, pertença étnica, religião predominante e instrução da população.

Nessa perspectiva, as crianças negras representam uma categoria da sociedade, que demonstra uma complexidade de culturas, saberes e lugares de fala. Para Feitosa (2012), são pertencentes a diversos grupos sociais, em pleno desenvolvimento psicológico e físico, as quais produzem representações sociais e são representadas por outros grupos, a partir das infâncias no interior das relações raciais.

Salienta-se que na produção de noções sobre a infância da criança negra, a reprodução do racismo, negações de suas identidades, ausência de reconhecimento e valorização enquanto negro e a invisibilidade da própria cor se fazem presentes. Segundo Coelho (2006, p. 47), “[…] muitas das crianças que vivem em condições precárias e em condições de abandono são negras. Isto, todavia, só evidencia uma faceta da segregação racial existente no país […]”, onde percebemos sua extensão nas realidades cotidianas de escolas brasileiras.

Essas realidades compartilhadas podem ser compreendidas a partir da ótica da Teoria das Representações Sociais, considerando a socialização entre grupos e sujeitos, de modo a fundamentar saberes acerca de algo ou alguém. Para Moscovici (2000/2015) e Jodelet (2003) as representações sociais são imagens, sentidos, significados e ideias que grupos sociais constituem em suas relações por meio do senso comum, tendendo a formar atitudes e comportamentos acerca de algum objeto de representação.

Assim, a cor da pele é um objeto de representação existente nas relações raciais em contexto escolar, por meio da classificação e autoclassificação racial comunicadas pelas crianças no cotidiano. De acordo com Fazzi (2006), esse movimento em torno da cor da pele é considerado como um jogo de processos sociais constituintes da realidade racial cotidiana das crianças, pelos quais expressam com termos próprios e diversificados as cores da pele para ajustar a sua visão de mundo, a exemplo de gradações de cor ao se referirem a outras pessoas.

Salienta-se que esta produção deriva do Trabalho de Conclusão de Curso “Representações sociais de crianças negras sobre a cor no contexto escolar em Bragança-PA”, no âmbito do Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Pará (Campus Universitário de Bragança, Faculdade de Educação), em colaboração com o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Pará (NEAB/UFPA)[1].

A relevância acadêmica deste estudo se apresenta no aprofundamento de conhecimentos a respeito das representações sociais de crianças negras sobre a cor em contexto escolar e no processo de escolarização, de modo a apreender as imagens, sentidos, significados, experiências e vivências que contribuem para compreensão de suas construções e reconstruções enquanto sujeitos.

Quanto à relevância social, colabora para a compreensão das ancoragens e objetivações que são construídas nos diferentes grupos sociais que estas crianças pertencem e explicitadas em seus comportamentos e diálogos, assim como nas relações raciais. Nesse sentido, a pesquisa permite reflexões no tocante às representações sociais que as crianças têm sobre si e o outro a respeito da cor da pele.

Destarte, formulou-se a seguinte questão problema: quais as representações sociais de crianças negras sobre a cor da pele no contexto escolar? Para responder a tal inquietação, delineou-se por objetivo geral: investigar as representações sociais de crianças negras sobre a cor da pele no contexto escolar.

Assim, os objetivos específicos são: a) compreender o processo de produção das representações sociais sobre a cor nos discursos e atitudes dos sujeitos; b) identificar informações, imagens e atitudes sobre negros e brancos que se manifestam nas falas das crianças negras; c) destacar ancoragens e objetivações partilhadas pelas crianças acerca da noção de cor da pele na sociedade e cotidiano escolar.

Percurso metodológico

A pesquisa é de abordagem qualitativa, uma vez que apresenta sentidos atribuídos pelas crianças negras à cor da pele. Para Minayo (2002, p. 21), tal abordagem “[…] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e fenômenos […]”, propiciando sistematização dos conhecimentos para compreensão do cotidiano dos sujeitos.

Os fenômenos que ocorrem nos contextos escolares e sociais se apresentam singulares quanto às elaborações de representações sociais, pois tendem a constituir um corpus de significações que são reproduzidos em comportamentos e atitudes nas relações raciais estabelecidas.

O eixo de análise deste trabalho se fundamenta na Teoria das Representações Sociais a partir de Moscovici (1978; 2000/2015) que conceitua essa perspectiva como estruturas teóricas e ideológicas que são transformadas em realidades compartilhadas, constituídas nas interações entre sujeitos, corporificando ideias em experiências e interações em comportamento coletivo e individual.

Assim, buscou-se delinear as representações sociais a partir da tridimensionalidade informação, imagem e atitude (Moscovici, 1978), sendo, esta, elementar para a elaboração do campo representacional e de categorização do trabalho. Nesse sentido, a informação consiste no conjunto de saberes e conhecimentos do senso comum sobre determinado objeto; a imagem diz respeito aos sentidos e significados sobre algo ou alguém; a atitude se refere aos comportamentos e práticas compartilhadas nos grupos sociais.

A tridimensionalidade se configura no seguinte campo representacional:

Fonte: Elaborado pelos autores (2019).

Figura 1 Campo representacional do estudo 

No âmbito da informação se apresentam as noções e concepções das crianças sobre a cor da pele; na imagem são demonstrados os sentidos e significados construídos em torno da noção de cor; no campo da atitude são discutidas as práticas racistas e antirracistas geradas no contexto escolar e nas experiências em sociedade.

O lócus de pesquisa foi a Escola Municipal Jiquiri (nome fictício), situada na cidade de Bragança, Estado do Pará, Brasil. Essa unidade escolar se localiza entre os meios urbano e campesino do referido município, precisamente entre as rodovias BR-308 (Bragança - Viseu) e PA-108 (Bragança - Cacoal do Peritoró), as quais propiciam fluxo migratório considerável para a localidade, assim como mobilidade à sede da cidade.

Na instituição de ensino estão lotados 10 (dez) docentes divididos entre os níveis de educação infantil e ensino fundamental, equipe gestora composta por 1 (um) diretor, 1 (um) vice-diretor e 2 (dois) coordenadores pedagógicos, 1 (um) secretário, 1 (um) auxiliar de secretaria e 4 (quatro) responsáveis pelos serviços operacionais. O total de matrículas no ano letivo de 2018 corresponde a 190 alunos, distribuídos na educação infantil (40 alunos) e no ensino fundamental (150 alunos).

Fonte: Arquivo dos autores (2018).

Figura 2 Vista frontal da Escola Municipal Jiquiri. 

Os critérios de seleção do lócus de pesquisa foram os seguintes: (a) ofertar ensino fundamental de 1º ao 5º ano; (b) ter acesso facilitado quanto à receptividade da comunidade escolar e das crianças para realização do estudo. Para além, a instituição possui trajetória em ações pedagógicas de promoção da educação para as relações étnico-raciais[2].

Os sujeitos são 17 crianças, sendo 12 do sexo feminino e 5 do sexo masculino, integrantes de uma turma de 2º ano do ensino fundamental. Os critérios para a escolha dos sujeitos foram: (a) frequentar regularmente as aulas na unidade escolar; (b) cursar o primeiro ciclo do ensino fundamental (1º ao 3º ano); (c) estar na faixa etária de 7 a 9 anos; (d) permissão dos responsáveis legais para participar da pesquisa.

Salienta-se que os nomes fictícios apresentados foram escolhidos pelos próprios sujeitos. Assim, apresentamos os dados dos participantes:

Fonte: Elaborado a partir do questionário (2018).

Nota: *Autocategorização racial realizada pela própria criança em aplicação de questionário verbal em 10.11.2018.

Quadro 1 Dados dos sujeitos 

Esse levantamento permitiu conhecer a autocategorização racial[3] das crianças de modo a traçar um perfil racial do grupo, a partir de um questionário semiestruturado aplicado durante o período de observação por meio de diálogos desenvolvidos no cotidiano.

As crianças em diálogos e interações compartilham pensamentos, imagens, significados, atitudes, que permitem tecer reflexões acerca de representações sociais sobre a cor da pele, formas de ver, pensar e conceber negros e brancos na sociedade, de modo a constituir suas identidades raciais. Na autocategorização racial das crianças, as identidades raciais estão atreladas a gradações de cor da pele como morena, marrom escuro, branco, preto, meio que preto e cor de pele.

Os instrumentos de coleta de dados foram questionário semiestruturado, observação participante e grupo focal. O questionário semiestruturado foi aplicado a todos os sujeitos, com o objetivo de traçar um perfil a partir da autocategorização racial, sendo realizadas as seguintes perguntas: (1) Qual sua idade? (2) Qual é sua cor de pele?

Segundo Guimarães (2008), questionar sobre a própria cor possibilita compreender senso comum e noções construídas em torno da cor da pele, em termos de classificação e identidade racial nos planos individual e coletivo. Desse modo, obteve-se um primeiro contato com suas autocategorizações raciais em contexto escolar, em que também são construídas nos discursos e comportamentos sociais.

Escolheu-se a técnica de grupo focal por possibilitar a percepção dos modos de pensar, ver, refletir e comunicar dos sujeitos por meio da socialização de saberes. Segundo (Santos, 2009), é uma técnica mais ampla que articula as perspectivas dos sujeitos e as representações sociais com as relações raciais presentes na escola.

Nesse sentido, delineou-se a sistematização do grupo focal baseado em Gatti (2012, p. 7), na qual define que “[…] os participantes devem ter alguma vivência com o tema a ser discutido, de tal modo que sua participação possa trazer elementos ancorados em suas experiências cotidianas”. As experiências cotidianas e ideias construídas a partir dos grupos sociais apresentam os saberes do senso comum sobre a cor, tendo como sujeitos as crianças em contexto escolar.

O planejamento do grupo focal ocorreu da seguinte maneira: (1) elaboração e sistematização das atividades a serem realizadas; (2) convite às crianças para que participassem do grupo focal; (3) solicitação de permissão dos pais ou responsáveis por meio do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, para que as crianças participassem; (4) realização das atividades com as crianças.

A equipe de aplicação foi composta por um pesquisador como moderador[4] e uma relatora[5]. Para tanto, utilizamos como instrumento de registro gravação em áudio e transcrição de momentos relevantes em Diário de Campo. Salienta-se que o tempo estimado da reunião é de 1h30min, em sessão única.

Sendo assim, destacamos as etapas de realização do grupo focal: a) Introdução – Recepção das crianças e apresentação da equipe de pesquisa (moderador e relatora); b) Identificação – Entrega a cada participante de um crachá em branco, para que escrevessem um nome fictício; c) Dinâmica das bonecas – O moderador organizou e selecionou bonecas, uma negra e uma branca, com características próximas, como tamanho aproximado do corpo, feições do rosto e indumentárias, para que as crianças escolhessem com qual gostariam de brincar e qual vestiria roupa do cotidiano e/ou roupa de festa, conforme figura a seguir.

Fonte: Arquivo dos autores (2018).

Figura 3 Bonecas e roupas utilizadas no grupo focal. 

De início, realizamos alguns questionamentos sobre a relação entre as bonecas e a cor da pele, para compreendermos a preferência, estereótipos e como a criança se percebe em seu cotidiano social: Você gosta da cor de sua pele? Alguma cor de pele seria mais bonita? Para tecer uma breve reflexão acerca das representações sociais sobre a cor que ocorrem no cotidiano.

Quanto à dinâmica de contação de história, realizamos leitura de versão resumida[6] da história Meninos de Todas as Cores e questionamentos sobre aspectos relacionados às personagens e suas cores de pele. A leitura dessa história buscou aproximar os saberes do senso comum com conhecimentos concernentes a cor, para identificação de informações referentes à cor nos discursos e práticas sociais dos participantes.

Tal atividade se desenvolveu em dois momentos: 1) leitura da história pelo moderador para as crianças; 2) diálogo com os participantes sobre os personagens com os quais gostariam de brincar, a presença de negros e brancos na história e a possibilidade do personagem Lumumba (menino negro) viajar no mundo assim como o personagem Miguel (menino branco).

Como procedimento de análise definiu-se: (a) transcrição dos registros de áudio; (b) verificação de convergências e divergências nas falas dos sujeitos; (c) identificação das ideias centrais que constituem os processos de ancoragem e objetivação; (d) organização a partir da tridimensionalidade informação, imagem e atitude; f) análise à luz de referencial teórico.

A partir da tridimensionalidade das representações sociais, as falas dos sujeitos foram analisadas com base na aproximação ao dialogismo discursivo de Bakhtin (2011), em que se buscou explorar diferentes enunciados que constituem os discursos por meio da relação entre si e o outro, em diferentes contextos de interação como escola, família, recreação, dentre outros. Estes tendem a contribuir para a elaboração de significados, ideias e opiniões pelo confronto de dizeres individuais e coletivos entre os interlocutores, propiciando movimento dialógico de comunicação discursiva.

Representações sociais das crianças negras sobre a cor

As relações raciais se configuram em um conjunto de sociabilidades que principiam o motivo de cor como determinante de significados e práticas sociais, não de forma dicotômica entre negro e branco, mas que constituem identidades e percepções de vivências que congregam práticas racistas e discriminatórias ou enfrentamento pelo antirracismo e valorização de ser negro (Ianni, 2004).

Promover múltiplos olhares sobre as questões étnico-raciais, elaboração de representações positivas sobre a cor e percepções sobre negros e brancos na sociedade nacional se fazem elementares no processo de escolarização. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER), a abordagem das relações étnico-raciais na educação busca tornar os sujeitos “[…] capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira” (Brasil, 2004, p. 11), a partir da diversidade racial.

As relações raciais compartilhadas promovem apreensões sobre os saberes a respeito da cor da pele e compreensão desses sujeitos acerca da diversidade racial tanto na sociedade quanto na escola. As representações sociais aparecem por meio das comunicações de percepções acerca da realidade e nos comportamentos frente a situações de escolha e opinião sobre objetos sociais.

As representações contidas nos saberes do senso comum das crianças sobre a cor da pele compõem a primeira dimensão de análise, a partir da preferência de cor e vestuário correspondente à dinâmica das bonecas, assim como contação de histórias no grupo focal. Nos discursos, desenvolve-se uma relação entre falante e ouvinte que configuram uma estrutura comunicativa do coletivo (Bakhtin, 2011), em que o moderador propõe atividades a serem discutidas e os participantes expõem seus sentidos e significados, de forma interacional com o grupo.

Desse modo, as bonecas foram apresentadas pelo moderador às crianças, para que optassem com qual ou quais gostariam de brincar, em que obtivemos os seguintes discursos:

Milena: Essa [aponta para a boneca branca]. / Moderador: Qual é a cor dela? / Milena: Cor de pele! Porque ela é mais bonita.

Ana Clara: [aponta para a boneca branca] / Moderador: Qual a cor dessa boneca? / Ana Clara: Cor de pele. / Moderador: Por que você escolheria a cor de pele? / Ana Clara: Porque eu gosto de brincar.

Raquel: [aponta para a boneca branca] / Moderador: qual a cor dela? / Raquel: Cor de pele. Porque ela é mais bonita!

Victória: Ah, claro, a cor de pele [apontando para a boneca branca]. Porque ela é bonita.

Ketlen: A cor de pele [apontando para a branca]. / Moderador: Por quê? / Ketlen: Porque é mais bonita.

Suany: Cor de pele [apontando para a boneca branca]. / Moderador: Por que seria a cor de pele? / Suany: Porque é mais bonita.

Aline: A cor de pele [apontando para a boneca branca]. Porque ela é mais bonita também.

Rafael: Essa [apontando para a boneca branca] / Moderador: Por que você brincaria com ela? / Rafael: [passa um tempo pensando, mas não consegue explicar o motivo]. (Informação verbal, grupo focal)

Nos discursos aparece o elo entre a cor da pele branca com a imagem de beleza, para crianças negras e brancas, e apenas Ana Clara expande essa percepção para a atividade de brincar. A concepção de ser branco a partir da preferência de cor revela uma parcela da realidade e elaboração de representações sociais, uma vez que “[…] circulam nos discursos, são carregadas pelas palavras, veiculadas nas mensagens […], cristalizadas nas condutas e agenciamentos materiais ou espaciais” (Jodelet, 2003, p. 37).

As preferências da cor retratam a ideologia do branqueamento presente no Brasil entre os séculos IX e XX que reverberam nos dias atuais. Para Skidmore (1976), o branqueamento se fundamenta na proposição da superioridade branca, pela rotulação de raças adiantadas e raças inferiores, que geraram dois pensamentos seculares aceitos pela elite da época: 1) A população negra diminuiria em comparação com a branca, pela redução da taxa de natalidade, aumento de doenças e desorganização social; 2) A miscigenação produziria uma população considerada mais clara, pois as características genotípicas brancas eram mais fortes, fazendo com que os homens procurassem parceiras brancas (a imigração europeia reforçaria a predominância branca e miscigenação).

Na contemporaneidade, essa ideologia tem influenciado na construção de representações de crianças negras sobre a cor da pele, especialmente na imagem sobre ser negro e a diversidade étnica, que necessita de atenção nos espaços formativos. As relações raciais, enquanto conjunto de conhecimentos, apresentam informações, imagens e atitudes de diversas perspectivas ideológicas e históricas no processo de socialização.

O termo cor de pele está presente em algumas representações das crianças, que a reconhecem somente como branca. Fanon (1952/2008) afirma que o enaltecimento das cores claras na sociedade contemporânea conscreve estratégias para elaboração de significados sobre o branco que podem constituir referenciais para a construção de identidade.

As objetivações sobre cor de pele atribuída ao branco ocasionam ausência do reconhecimento do negro nessas representações, que reverberam nas atitudes das crianças diante de outros discursos e atividades realizadas tanto no grupo focal quanto em sala de aula. As informações e imagens contidas nesse grupo de sujeitos revela o senso comum dos sujeitos, que expressam mecanismos de estigmatização e construção de identidades negativas a respeito de ser negro no Brasil.

De acordo com Cruz (2005), ser negro em nosso país é conviver com a resistência, a negação de direitos e o racismo que se constituiu historicamente. É lutar pelo acesso e permanência em diversos setores sociais, valorizar a cultura e história dos ancestrais africanos e do povo afro-brasileiro, assim como reivindicar equidade. A relação entre racismo e antirracismo no processo de escolarização perpassa pelas noções de cor e concepção sobre o negro no Brasil. A respeito, outras crianças escolheram a boneca negra para brincar, delineando os seguintes discursos:

Sérgio: Quero essa daqui [apontando para a boneca negra]. / Moderador: Qual é a cor dela? / Sérgio: Morena, que a cor é diferente. Cor de pele.

Fernanda: Essa daqui [apontando para a boneca negra]. / Moderador: Qual é a cor dessa boneca? / Fernanda: morena. / Moderador: Por que você escolheria a morena para brincar? / Fernanda: Porque ela é da cor do meu pai [falando em meio a risos].

Bia: A morena. / Moderador: Por que a morena? / Bia: Por causa que meu pai é da cor dela.

Rayla: [aponta para a boneca negra] / Moderador: Qual é a cor dela? / Rayla: Morena. / Moderador: Por que você escolheria a morena? / Rayla: Porque ela é mais bonitinha.

Géssica: A morena. / Felipe: A morena? [demonstrando surpresa] / Moderador: Por qual motivo escolheria a morena para brincar? / Géssica: [passa um tempo pensando, porém não explica o motivo]. (Informação verbal, grupo focal)

Sérgio informa que sua escolha é motivada por ser moreno, principalmente pela diferenciação dessa tez de pele e da boneca branca. Outro elemento diz respeito à ancoragem acerca da noção de cor de pele, uma vez que pela classificação como morena busca suavizar o valor semântico da palavra negro ou preto naquele momento.

Fernanda, Bia e Rayla, com exceção de Géssica que não expôs motivos, representam a cor de pele negra como morena, buscando aproximar de convivências sociais em núcleo familiar, que nesse caso expressa “[…] dificuldade da formação da identidade negra, uma vez que ela fica, muitas vezes, encoberta pela ideia do moreno, mestiço” (Pinto & Ferreira, 2014, p. 262). Em contraponto, Rayla é a única criança que atribui a cor de pele negra ao termo bonita, pela aproximação da cor do brinquedo com sua identidade racial, considerada positiva.

As crianças buscam referenciais e adjetivos para justificarem suas escolhas, pelas quais se percebem representações sociais estabelecidas “[…] na interação social quando as diferenças entre culturas passam a serem objetos de atribuição de significados […]” (Careno & Abdalla, 2011, p. 71), considerando a cor negra como diferente, mais bonitinha ou por descendência paterna.

As enunciações nas falas das crianças referenciam suas famílias, situando esse como grupo importantíssimo na construção de representações sociais sobre a cor da pele na vida dos sujeitos. Os familiares, na perspectiva de promotores de reconhecimento e valorização do negro, são fundamentais no desafio de construções positivas de si e do outro e no combate às desigualdades raciais (Freitas, 2016).

A partir desses resultados, demonstramos que o campo representacional sobre a preferência de cor da pele se apresenta da seguinte forma:

Fonte: Elaborado pelos autores (2019).

Figura 4 Síntese das representações sociais das crianças negras sobre a cor da pele 

As informações a partir da preferência de cor revelam a valorização do ser branco, visto como mais bonito e vinculado ao termo cor de pele, bem como atitudes contidas nos discursos a respeito da invisibilidade da cor negra, ocorrendo suavização semântica por morena, aproximando da cor branca. Segundo Fazzi (2006), as relações de cor nos discursos e interações das crianças demonstram a composição racial do grupo, de modo a identificar os consensos sociais em torno de categorias consideradas adequadas ao indivíduo.

Posteriormente, colocou-se à disposição das crianças uma roupa considerada de festa e outra que deveria ser utilizada no cotidiano, para que selecionassem qual vestiriam na boneca negra e na boneca branca. Nessa atividade, buscou-se perceber as informações sobre as preferências de vestuário para a elaboração de imagens sobre o negro e o branco, assim como as ancoragens e objetivações contidas nas falas e comportamentos das crianças diante da situação proposta.

Ao serem questionadas sobre qual das bonecas vestiriam a roupa de festa, as crianças expressam os seguintes discursos:

Raquel: Nessa daqui [apontando para a boneca branca].

[simultaneamente, cinco crianças apontam para a boneca branca e três para a boneca negra].

Moderador: E na boneca negra? Vocês vestiriam também? [Suany, Raquel, Fernanda, Victória, Rafael e Ana Clara dizem que não].

Moderador: Por que não? / Raquel: Porque seria o azul [roupa de casa]. / Fernanda: combina mais.

Moderador: Essa roupa do cotidiano vocês vestiriam em qual boneca? / Suany: Preta. / Raquel: Na morena. / Fernanda: Na preta. / Victoria: Na preta, certinho. / Rafael: Na preta. / Ana Clara: Na preta.

Moderador: E a boneca branca poderia vestir esse vestido aqui [vestido do dia-a-dia]? / Suany: Não. / Rayla: Poderia sim, por que não? [demonstrando desconforto com a afirmação de Suany].

Moderador: Poderia vestir a roupa de festa na boneca negra também? / Suany: não… / Raquel: não… / Fernanda: Pode sim… [demonstrando desconforto com afirmação de Suany e Raquel] / Suany: Pode não. (Informação verbal, grupo focal)

A maioria das crianças escolhe a boneca branca para ser vestida com a roupa de festa, enquanto a boneca negra deveria vestir a roupa do cotidiano, partindo da prerrogativa que combinaria visualmente. Os sentidos e significados acerca da boneca branca são reforçados quando Suany nega que essa possa vestir roupas de cotidiano, contudo Rayla demonstra resistência a tal posicionamento, por considerar que ambas as bonecas podem vestir qualquer roupa, de modo a garantir uma igualdade dos objetos.

Outras alunas expressam nas representações que apenas a boneca branca pode vestir roupa de festa, constituindo um pensamento em torno de estigmas sobre os negros, elaborados a partir da cor da pele. O silenciamento de parte das crianças diante do conflito de representações negativas chama atenção, uma vez que é possível inferir, a partir de tal silenciamento, um racismo velado mediante discursos e comportamentos discriminatórios que venham a ocorrer em espaços de socialização.

Necessita-se de aprofundamento nas relações raciais nos espaços escolares e educativos, uma vez que “[…] o silêncio que envolve essa temática nas diversas instituições sociais favorece que se entenda a diferença como desigualdade e os negros como sinônimos de desigual e inferior” (Cavalleiro, 2017, p. 20). Assim, o sujeito singulariza informações em relação a outras, que as dissocia do contexto original para ser integrante de um novo contexto imagético individual ou grupal (Trindade et al., 2014).

Em síntese, a preferência de vestuário está contemplada da seguinte forma no campo representacional.

Fonte: Elaborado pelos autores (2019).

Figura 5 Preferência de cor da pele a partir do vestuário pelas crianças 

A informação a respeito do vestuário conveniente à boneca branca ou negra encaminham para o branqueamento a partir da predominância da escolha do vestido de festa para a boneca branca, em que se constituem atitudes referentes às práticas racistas; imagem de subalternização do negro por meio da seleção predominante da boneca negra para vestir a roupa do cotidiano e resistência quando algumas crianças queriam vestir roupa de festa na boneca negra. A prevalência da escolha do vestido de festa para a boneca branca demonstra estigmatização sobre o negro em parte do grupo social.

As enunciações das crianças revelam o silenciamento diante de fenômenos sociais, como o caso de práticas de inferiorização do negro e racismo, principalmente pelas atitudes tomadas pelos sujeitos e discursos produzidos em cada situação. A percepção dos sentidos e significados existentes nos discursos das crianças fornece um olhar reflexivo sobre os contextos sociais, uma vez que: “Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo, é de natureza ativamente responsiva […], toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (Bakhtin, 2011, p. 271).

A interação entre as crianças constrói e reconstrói o objeto cor da pele nas representações sociais, pelo reconhecimento do lugar social que ocupam e satisfação diante da própria cor. Quando questionadas se gostavam da própria cor, explicitaram:

Moderador: Vocês gostam da cor de sua pele? / [Todas as crianças] Siiiiiiim… / Moderador: Por que vocês gostam? / Fernanda: Porque é bonita [risos das crianças].

Moderador: Vocês poderiam falar mais por que gostam? / Raquel: linda, bonita. / Moderador: Então Milena, tu gostas da cor da tua pele? / Milena: Eu gosto! Porque mesmo… [risos das crianças]. (Informação verbal, grupo focal)

Todas as crianças respondem que gostam da cor da pele, contudo apenas duas acentuam elementos de tal afirmação, sendo essas referenciadas pela beleza da sua cor como linda e bonita. Parte dessa enunciação está acompanhada de comportamentos como sorrir e gargalhar, de modo a reafirmarem o que o outro participante está falando.

As representações sociais demonstram que independentemente da cor, nesse momento, elas pensam e veem sua autocategorização racial como algo positivo, satisfatório à sua identidade racial. De acordo com Munanga e Gomes (2016), nesse movimento de significação se encontra a distinção sobre a conotação empregada à cor, sendo atribuído caráter positivo a essa palavra e interação racial entre os sujeitos.

Nesses comportamentos partilhados as representações sociais “[…] se tornam capazes de influenciar o comportamento do indivíduo participante de uma coletividade” (Moscovici, 2000/2015, p. 40). Ancoragens e objetivações, nessa perspectiva, se tornam pilares de informações, imagens e atitudes demonstradas pelas crianças, por meio de suas percepções sobre a cor de pele.

As representações a partir da noção de cor e a satisfação apontam para a atribuição do adjetivo bonito, independentemente da identidade racial construída ou pertencimento étnico. Quando questionamos se há alguma cor de pele mais bonita que outra, os discursos revelam: “Raquel: Não… / Fernanda: Não… / Moderador: Por qual motivo não haveria? / Raquel: Porque todas as cores são bonitas [risos]. / Moderador: Podem falar, estou escutando vocês. / Rafael: Mas, é verdade. Quase todas as cores são bonitas” (Informação verbal, grupo focal).

Inicialmente as crianças negam o fato de haver uma cor de pele superior a outra na beleza, uma vez que nesse questionamento as conceituam como todas sendo iguais. Observa-se que quando Raquel anuncia que todas as cores são bonitas, outras falas ecoam no sentido de reafirmar o que ela relata, assim como estão acompanhadas de risadas, como se estivessem confortáveis com essa percepção.

Visualiza-se também um conflito entre a representação social de que todas as cores são bonitas igualmente com a atividade anterior da seleção das bonecas, uma vez que as crianças apresentam na maioria dos discursos a boneca branca, cor de pele, como mais bonita em relação à outra boneca considerada negra. Desse modo, as enunciações discursivas revelam a presença acentuada do termo branco como referência em relação a outras cores, uma vez que “[…] em cada tempo e círculo social, sempre existem enunciados considerados elementares para totalidade das ações e manutenção de tradições” (Bakhtin, 2011, p. 249).

Esse movimento de representações sociais e enunciação sobre a cor da pele apresenta o modo de racialização brasileiro “[…] que reflete também o conflito e a negociação em torno da cor” (Silva, 2007, p. 38), pelo qual circunstancia relação dicotômica entre práticas racistas, no caso a negação da cor, e antirracismo exercido por movimentos sociais negros e instituições sociais.

A compreensão das crianças sobre a cor negra no sentido de bonita ou quase bonita favorece a promoção de práticas escolares e de relações raciais proveitosas tanto no campo educacional quanto nos modos de socialização. A seguir, sintetizamos as percepções das crianças sobre as relações raciais a partir da cor da pele.

Fonte: Elaborado pelos autores (2019).

Figura 6 Percepções das crianças negras sobre as relações raciais e acerca da cor da pele 

Os enunciados apresentam informações pautadas na percepção sobre a cor da pele, que refletem em imagem de elogios a cor como linda, bonita ou quase bonita, assim como a presença de assimetrias nas relações raciais ao comparar suas percepções próprias sobre a cor com as escolhas das bonecas para brincar. Tais elementos constituem atitudes voltadas ao autorreconhecimento da cor da pele pela criança negra em perspectiva de igualdade, comunicadas nas compreensões decorrentes das convivências sociais e discursos referentes às relações raciais, onde surgem comportamentos voltados à construção de identidade positiva de ser branco e ser negro.

Os discursos e representações sociais das crianças negras sobre a cor da pele são elementos que dialogam com outros objetos sociais no processo de escolarização e convívio em sociedade. Dessa forma, teceu-se atividade em torno de contação de história infantil para apreensão sobre as representações sociais no tocante às relações de cor e aos efeitos disso em pensamentos e atitudes dos participantes do grupo focal.

A contação de histórias de acordo com Abramovich (1997) suscita o imaginário da criança para encontrar ideias, solucionar problemas diversos e de diferentes origens, descobrir um mundo de conflitos e desafios, perceber e refletir sobre as personagens, se reencontrando em cada fala do texto e compreender as vivências da realidade. Assim, a história infantil para a percepção das representações sociais se fez importante por aproximar o imaginário à realidade, revelando as enunciações e representações sociais contidas nas relações raciais dos sujeitos.

Assim, realizou-se contação de história a partir do livro Menino de Todas as Cores, que versa sobre o encontro de meninos com diversas cores de pele, pertencentes a diferentes países e regiões do mundo, pelos quais expressam a beleza da multirracialidade dos povos. No decorrer da história, há o encontro entre os personagens Miguel (um menino branco) e Lumumba (um menino preto), em que são demonstradas positividades sobre a cor da pele e pertencimento étnico e cultura de ambos.

Após a finalização da história, questionaram-se as crianças sobre qual personagem escolheriam para brincar. Foram desenvolvidos os seguintes discursos:

Fernanda: O moreno… / Ana Clara: Eu o menino branco… / Vitória: Eu o preto. Porque meu pai é dessa cor… / Douglas: [levantou a mão, em assertiva às crianças que escolheram o negro], porque ela é parecida com minha irmã.

Fernanda: Eu / Moderador: Por que Fernanda? / Fernanda: Porque [Lumumba] é da cor do meu pai… / Bia: Eu escolheria esse [menino branco]. Porque a cor da minha mãe é essa. / Rayla: Eu, porque a cor da minha mãe é morena. / Raquel: A cor da minha mãe também é morena. /Rafael: Eu escolheria também porque a cor da minha mãe que é morena. Raquel: Ei, eu queria escolher branco porque é a cor do meu pai também

Rafael: Eu escolheria o menino branco, porque meu pai e minhas duas irmãs são brancos. / Moderador: Quem mais escolheria o menino branco para brincar? / Victória: Eu, porque é mais bonito, bonita. / Douglas: [levantou a mão]. Porque meu tio, Mano, ele é branco. (informação verbal, grupo focal)

Lumumba foi o personagem escolhido pela maioria das crianças, por ter a cor da pele semelhante à de seus familiares como pais, mães e irmãos, que são indivíduos com quem os sujeitos têm maior convivência cotidiana. O seio familiar se apresenta nos enunciados das crianças como fundamental para a elaboração de imagens sobre o negro e o branco na sociedade, que influenciam também no desenvolvimento dos saberes acerca das questões raciais assim como práticas de racismo ou antirracismo em sociedade.

Dentre os que escolheram Miguel os motivos foram por sua cor ser aproximada a dos pais, irmãs e tio, que são integrantes dos locais onde residem os participantes. Novamente a informação da cor da pele branca ser considerada mais bonita em comparação com o negro é enfatizada, quando Vitória afirma que gostaria de brincar com ele porque é mais bonito, bonita.

Isso demonstra a complexidade de elaboração de informações, sentidos e significados sobre a cor da pele e os caminhos de compartilhamentos de saberes do senso comum a partir de suas descendências familiares, principalmente em acontecimentos cotidianos. De acordo com Cavalleiro (2017, p. 82-83), “Os episódios cotidianos mostram-se permeados de situações conflituosas que marcam profundamente cada um”, comunicadas nas representações das crianças negras.

A comunicação de representações sociais “[…] concedem uma realidade física a ideias e imagens, a sistemas de classificação e fornecimentos de nomes” (Moscovici, 2000/2015, p. 90), sendo esse último pautado na relação entre ancoragem de ideias no plano de pensamento e objetivação que constroem imagens de objetos na realidade dos sujeitos. No campo das relações raciais, o entrelaçamento entre realidade física e imagens promove novas perspectivas de conhecimentos e saberes sobre a temática, no caso à noção de cor da pele, construídas no processo de escolarização e na opinião do grupo pesquisado.

Nesse sentido, questionou-se sobre a possibilidade de Lumumba viajar o mundo assim como Miguel. A esse respeito as crianças disseram: “Douglas: Ele poderia viajar. / Fernanda: sim! / Moderador: Por que ele poderia? / Fernanda: Porque ele é preto… / Moderador: Somente por este motivo? / Victória: Sim… Porque ele é normal, igual às outras crianças”. (Informação verbal, grupo focal).

Os significados atribuídos à possibilidade de Lumumba viajar conhecendo outras culturas, assim como Miguel, refletem o fato de sua cor de pele ser preta e comum às outras, sem ser submetido à discriminação racial ou racismo, em que as crianças concebem uma imagem positiva sobre o negro a partir da história contada, ao menos nas representações sociais comunicadas nesse momento. De acordo com Bischoff (2013) o outro não é anormal, mas sim uma oportunidade de incluir, mostrar as possibilidades de convivência respeitosa, sem diferenças raciais, discriminações, preconceitos e/ou exclusões.

A contação de história e consequente problematização demonstram a percepção das crianças sobre a negritude. Notou-se, em alguns momentos, resistência delas quanto ao significado de ser negro, visto que, optaram pela escolha da categoria racial moreno em aproximação à cor da pele dos personagens do texto com a de seus familiares. Salienta-se que no processo de elaboração de representações sociais, os familiares que possuem maior convivência cultural com as crianças são fundamentais para a construção das primeiras informações, imagens e atitudes delas nas relações raciais.

Nessa perspectiva, percebe-se que as crianças tentam aproximar suas noções e definições sobre as relações de cor com grupos que consideram relevantes em suas trajetórias de vida, comunicado em seus enunciados discursivos. Conforme Bakhtin (2011, p. 270): “O enunciado satisfaz ao seu objeto (isto é, ao conteúdo do pensamento enunciado) e ao próprio enunciador”, o que contribui para a criação de características definidoras das relações entre os personagens da história e incursões na realidade a respeito das relações raciais.

A seguir sintetizamos as imagens das crianças por meio dos enunciados sobre a cor da pele a partir da contação de história, considerando a tridimensionalidade das representações sociais.

Fonte: Elaborado pelos autores (2019).

Figura 7 Síntese da preferência de cor e personagem pelas crianças 

A informação sobre a preferência de cor a partir dos personagens da história constitui uma imagem fundamentada na escolha pela descendência familiar de pais, mães, irmãos, dentre outros, que são importantes no desenvolvimento social e cultural das crianças. Desse modo, são elaboradas atitudes direcionadas a preferência de cor pelo personagem preto/moreno e branco, uma vez que os sujeitos aproximam suas categorizações raciais com Lumumba, Miguel e seus familiares.

Assim, as representações contidas nos discursos das crianças participantes do grupo focal, a partir das bonecas e da contação de história, voltam-se à cor da pele como um dos pilares das relações raciais, que apresentam elogios à cor da pele e invisibilidade, retratando nas representações sociais das crianças seus modos de pensar e visualizar negros e brancos na sociedade. No quadro abaixo apresentamos as ancoragens e objetivações sobre a cor da pele nos discursos das crianças.

Fonte: Elaborado pelos autores (2019).

Quadro 2 Ancoragem e objetivação das crianças sobre a cor da pele 

As representações sociais das crianças a respeito da cor se estruturam na ancoragem de percepções oriundas das relações raciais. Por um lado, apresentam-se elogios à cor da pele, que objetivam noções de belo, reconhecimento da própria cor, identidade positiva do ser branco e ser negro e preferência de escolha por meio de descendência familiar. Por outro, demonstram nos discursos a invisibilidade da cor, objetivada na ideologia do branqueamento, inferiorização do negro, práticas racistas pela predominância da escolha da boneca branca por ser considerada mais bonita e estereótipos sobre o negro.

Portanto, as crianças apresentam percepções voltadas à preferência de cor, construídas em torno das relações raciais em contexto escolar, vivência familiar e sociedade. As representações sociais construídas nos grupos sociais que as crianças participam influenciam na nomeação de objetos, atitudes diante de situações, práticas discursivas e sociais, além de fundamentar suas opiniões compartilhadas em suas interações.

Considerações finais

Esta pesquisa buscou investigar as representações sociais de crianças negras sobre a cor da pele no contexto escolar. Com base na tridimensionalidade informação, imagem e atitude, as crianças, através do grupo focal, comunicam sentidos, significados e comportamentos partilhados em suas vivências cotidianas, a partir das quais constituem, nas relações raciais, percepções sobre negros e brancos na sociedade.

Assim, as preferências das crianças, com base nas relações raciais desenvolvidas nas atividades de seleção de bonecas e contação de histórias, expressam percepções desses sujeitos no contexto escolar sobre a cor da pele, em que as representações sociais e discursos se constituem no entrelaçamento de saberes do senso comum, contidos em grupos sociais, e olhares de reconhecimento do negro, assim como estigmatização, estereótipos raciais e racismo.

Em suma, elas revelam a presença de diferentes mecanismos discursivos e atitudinais com os quais as crianças têm contato, em suas vivências, que delimitam práticas de valorização de negros e brancos na sociedade pela elaboração de identidades raciais e pertencimento racial, assim como invisibilidade da cor em alguns discursos. É notório que muitas das informações são constituídas no seio familiar, que possibilita inferir a relevância desta instância formativa na elaboração das representações das crianças negras.

As políticas públicas educacionais antirracistas Lei nº 10.639/2003, Lei nº 11.645/2008 e DCNERER podem fundamentar propostas de valorização do negro e conhecimento das diversas formas de contribuição no processo de construção da sociedade brasileira até atualmente. A constituição de autoestima positiva das crianças negras, a valorização sem depreciação ou discriminação do outro por motivo de cor da pele, as relações raciais como forma de perceber e enfrentar o racismo existente na sociedade brasileira e o aprendizado sobre a cultura afro-brasileira e africana no Brasil são algumas temáticas de abordagem para práticas educativas de promoção de igualdade e equidade racial.

Salienta-se a necessidade de estudos mais abrangentes sobre os processos de socialização e elaboração de representações sociais pelas crianças negras, que constituam seus diferentes olhares e provoquem reflexões sobre a própria cor, espaço, lugar e momento histórico que ocupam. O silenciamento e invisibilidade das crianças negras na composição da população pluriétnica do Brasil ainda vigoram, mesmo com tantas mudanças referentes à noção de infância e compreensão desses sujeitos como participantes da sociedade.

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[1]No período de 2017 a 2019, esse núcleo de pesquisa era denominado Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Currículo, Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais (NEAFRO/UFPA).

[2]No ano de 2014 foi realizado o projeto Tambores Negroides da Marujada, por meio do Programa Mais Cultura nas Escolas, fomentado pelo Ministério da Educação (MEC). Em 2017, a escola propôs por meio do Projeto Político-Pedagógico o Tema Gerador Africanidades e Ancestralidade Afro-Brasileira.

[3]De acordo com Fazzi (2006), a autocategorização racial se define pelo modo que o sujeito se percebe e se classifica em alguma categoria racial, por meio da consciência racial elaborada em suas relações sociais, culturais e cotidianas.

[4]As atribuições eram: a) organizar o local; b) introduzir o assunto; c) motivar os participantes em relação às atividades; d) mediar os diálogos; apresentar e mediar as atividades a serem realizadas pelo grupo; e) valorizar a diversidade de expressões de linguagem e opiniões das crianças.

[5]As atribuições eram: a) anotar comportamentos dos participantes durante os diálogos e atividades; b) anotar as posturas dos participantes – tom de voz, expressões faciais, gestos, inquietude, desconforto diante de situações ou palavras, dentre outras.

[6]Adaptação de Maria de Jesus Sousa, disponível em: https://pt.slideshare.net/luisalamas/meninos-de-todas-as-cores-2979044

Recebido: 21 de Agosto de 2020; Aceito: 01 de Outubro de 2020

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