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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 19-Nov-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.32971 

Artigos

Prática pedagógica intercultural: a alteridade como princípio didático no ensino de Libras

Práctica pedagógica intercultural: la alteridad como principio didáctico en la enseñanza de Libras

Intercultural pedagogical practice: alterity as a didactic principle in sign language teaching

Huber Kline Guedes Lobato1 
http://orcid.org/0000-0002-4553-8862

José Anchieta de Oliveira Bentes2 
http://orcid.org/0000-0003-1134-3677

Fábio Augusto Teixeira Rodrigues3 
http://orcid.org/0000-0001-7175-0704

Lucas Silva Pantoja4 
http://orcid.org/0000-0002-3368-1784

1Doutorando e Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professor do Magistério Superior do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (UFPA).

2Pós-doutor em educação pela PUC-RJ (2013), doutor em Educação Especial pela UFSCAR (2010), mestre em Letras - Linguística pela UFPA (1998), especialista em Linguística aplicada ao ensino-aprendizagem do Português pela UFPA (1993) e graduado em Letras pela UFPA (1991). Professor adjunto da Universidade do Estado do Pará; atua no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED/UEPA).

3Especialista em docência no ensino de Libras pela Escola Superior da Amazônia – ESAMAZ (2020). Graduado em Letras, Licenciatura plena em Libras pela Universidade do Estado do Pará – UEPA (2019). Professor de Libras no Instituto de Educação e Cultura do Pará – IEPA. Atua no Grupo de Estudos em Linguagem e Práticas Educacionais da Amazônia (GELPEA).

4Graduado em Letras, Licenciatura plena em Libras pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Atua no Grupo de Estudos em Linguagem e Práticas Educacionais da Amazônia (GELPEA).


Resumo

Neste estudo, analisam-se os métodos de ensino utilizados por uma professora ouvinte de Libras no ensino superior. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com base na teoria da interculturalidade. Realizou-se entrevista individual e semiestruturada. Os dados foram organizados em categorias: i) Formação docente; ii) A Libras no ensino superior. Os resultados apontam: o ensino de Libras dar-se em um viés crítico; há o uso de uma perspectiva dialógica; há utilização de uma concepção de educação nos princípios da alteridade; a Libras é articulada ao contexto cultural dos diferentes sujeitos. Conclui-se que compreender o outro como um sujeito que nos constitui, é um traço intercultural na prática pedagógica da professora de Libras.

Palavras-chave Interculturalidade; Alteridade; Ensino de Libras

Resumen

En este estudio, se analizan los métodos de enseñanza utilizados por un profesor de lenguaje de señas que escucha en la educación superior. Es una investigación cualitativa, basada en la teoría de la interculturalidad. Realizamos entrevistas individuales y semiestructuradas. Los datos se organizaron en categorías: i) Formación del profesorado; ii) Lenguaje de señas en la educación superior. Los resultados muestran: la enseñanza de lenguaje de señas debe tener un sesgo crítico; existe el uso de una perspectiva dialógica; existe el uso de un concepto de educación en los principios de la alteridad; lenguaje de señas está vinculado al contexto cultural de diferentes sujetos. Se concluye que entender al otro como un ser que nos constituye es un rasgo intercultural en la práctica pedagógica del maestro de lenguaje de señas.

Palabras clave Interculturalidad; Alteridad; Enseñando lenguaje de señas

Abstract

In this study it is analyzed the teaching methods utilized by a listener teacher of Sign Language in university. It is a qualitative research based on the interculturality theory. We did individual and semi-structured interviews. The results were organized in categories: i) Teacher training; ii) Sign Language in higher education. The results point that the teaching of Sign Language happens in the critical perspective; in the dialogical perspective too; there is use of a concept of education in the principles of otherness; Sign Language is linked to the cultural context of different subjects. It was concluded that understanding the other as a subject that constitute ourselves is an intercultural trait in the pedagogical practice of the Sign Language teacher.

Keywords Interculturality; Otherness; Sign Language Teaching

Introdução

O presente artigo foi desenvolvido a partir das atividades realizadas na disciplina Reflexões sobre as Práticas Pedagógicas IV, do Curso de Letras Libras, da Universidade do Estado do Pará (UEPA). O estudo surgiu das seguintes inquietações: Quais métodos de ensino são utilizados por uma professora ouvinte no âmbito do ensino de Língua Brasileira de Sinais (Libras) no ensino superior? De que forma a alteridade é tida como um princípio didático na sala de aula?

A ideia é refletir acerca da prática pedagógica na perspectiva intercultural. Esta perspectiva emerge no contexto das lutas contra todas as formas de discriminação e de exclusão social. A educação intercultural se apresenta como um projeto de educação em um viés democrático, crítico e dialógico. Por isso, buscamos pensar em outro (s) método (s) de ensino de Libras, na intenção de discutirmos a relação entre sujeitos e entre grupos diferentes na perspectiva da alteridade e interculturalidade crítica.

Traçamos como objetivo para esse estudo: analisar os métodos de ensino utilizados por uma professora ouvinte de Libras no ensino superior. Em nosso artigo, partimos da seguinte hipótese: acredita-se que o ensino de Libras dá-se por meio do ensino focado nos conteúdos curriculares que estão, de certa forma, descontextualizados das situações reais de comunicação, logo, os professores desenvolvem práticas pedagógicas distantes da realidade social e cultural dos alunos.

Destacamos que estamos vivendo em nosso país um momento de grande visibilidade da Libras, em especial, nos meios de comunicação – o meio televisivo e a internet. A Libras também vem sendo destaque no ensino superior. Isso tornou-se possível a partir da obrigatoriedade da disciplina de Libras nas licenciaturas - cursos de formação de professores (Brasil, 2005).

A luta das comunidades surdas e seus apoiadores fez com que a Libras ganhasse um prestígio social. Tal prestígio é evidente nas Instituições de Ensino Superior – diferente da Educação Básica. Nas universidades brasileiras percebemos um número crescente de professores surdos, o que requer a presença do profissional Tradutor e Intérprete de Libras (Antonio et al., 2020). Nesse contexto, a Libras é uma realidade, embora precise ser a todo tempo problematizada por meio de estudos e pesquisas.

Com isso, percebemos que, em nosso país, há uma outra configuração de ensino pautada no uso das mãos, do corpo, das expressões faciais, entre outras marcas da Libras. Esse ensino acontece, em especial, no ensino superior que vivencia um “boom” da Libras. Isto vem gerando mudanças estruturais, didáticas, pedagógicas e atitudinais nas diversas licenciaturas que, aos poucos, se organizam para a inserção da Libras no currículo, por meio de disciplinas específicas.

Além da Libras fazer-se presente, obrigatoriamente, nas licenciaturas, essa disciplina aparece, opcionalmente, nas demais graduações. A Libras, também é fortemente visível nos cursos de licenciaturas em Letras Libras ou em Letras Libras/Língua Portuguesa, como segunda língua para surdos, que vem formando seus egressos desde 2006, quando o curso foi pensado no Brasil.[1]

Nessa perspectiva, pontuamos como relevante investigar o ensino de Libras no contexto de um curso de licenciatura no Norte do país, para que possamos analisar e refletir acerca dos métodos de ensino elaborados e desenvolvidos por uma professora ouvinte de Libras no ensino superior. Nesse estudo, focamos no aspecto didático de uma professora de Libras por entendermos que a sua prática de sala de aula se origina a partir da experiência e da prática cotidiana e dos seus saberes interculturais.

Consideramos para esta pesquisa alguns fatores essenciais para a análise dos métodos de ensino, tais como: a) a formação docente e o ensino de Libras; b) a Libras no Ensino Superior da/na Amazônia paraense. Essa região é constituída, interculturalmente, por grupos indígenas, ribeirinhos, pescadores, urbanos, entre outros, bem como por uma natureza repleta de florestas, rios e igarapés. Isso tudo pode moldar os princípios didáticos de Libras no ensino superior.

Este trabalho é embasado nos preceitos da educação intercultural, no que tange ao contexto das lutas sociais contra os processos de exclusão social e a construção de identidades particulares e o reconhecimento das diferenças (Freire, 1989; 1996; Fleuri, 2001; 2018; Candau, 2009; Oliveira, 2011; 2015). O estudo traz, também, discussões acerca do ensino e da aprendizagem da Libras no ensino superior e sua relevância na educação de surdos (Albres, 2016; Brasil, 2002; 2005). Tais pressupostos teóricos garantem uma maior consistência ao referencial teórico-metodológico e analítico desse estudo.

Referencial Teórico-Metodológico

Quando se pensa na prática pedagógica de professores, consideramos que a constituição desta prática perpassa por um emaranhado de situações educativas interculturais, que atravessam e constroem o seu fazer em sala de aula. Com isso, “a complexidade das relações sociais e interculturais no mundo contemporâneo requer novas formas de se elaborar o conhecimento no campo da pesquisa e da educação” (Fleuri, 2001, p. 48).

Essas novas formas de elaborar ou construir conhecimentos estão presentes nas escolas e universidades. São práticas pedagógicas consideradas insurgentes e que se canalizam para outros objetivos educacionais: realizar o ensino e a aprendizagem por meio de um projeto de sala de aula intercultural ou quiçá refletir sobre as formas de discriminação e preconceito nos espaços educativos. A educação intercultural requer visibilizar as práticas de professores críticos e reflexivos e que precisam ser fortemente apoiadas.

Neste sentido, “a perspectiva intercultural reconhece e assume a multiplicidade de práticas culturais, que se encontram e se confrontam na interação entre diferentes sujeitos” (Fleuri, 2018, p. 47). A partir das relações sociais e interculturais, é mister que o conhecimento no âmbito da educação seja produzido de modo a articular diferentes contextos sociais e culturais.

O princípio didático pautado em um projeto de educação intercultural deve ter como foco a multiplicidade de vozes e práticas culturais, os complexos olhares que se cruzam, se topam, se afrontam no contexto de interação entre diferentes culturas e sujeitos. A escola e as universidades são palcos de intenso envolvimento de sujeitos diversos e historicamente diferenciados. Esse envolvimento é refletido na prática pedagógica dos professores.

O projeto de educação intercultural, o qual valoriza os diferentes sujeitos e seus múltiplos saberes, também está ancorado em uma prática pedagógica crítica em relação as mazelas vivenciadas no meio social. Essa prática é permeada por um princípio didático que visa estimular a aluna e o aluno a refletirem a respeito da realidade sociocultural. Isso perpassa pela dialogicidade, pois o professor é quem estabelece o diálogo com a realidade dos alunos, por consequência, a participação destes, com os seus saberes, é fundamental para o ensino de um ponto vista concreto, que concebe a língua viva.

Essa elaboração de conhecimento dar-se por meio da relação entre indivíduos na vida cotidiana e/ou contextos culturais diferentes. Com isso, nas sociedades complexas – que se caracterizam pela relação entre ambientes culturais plurais e indefinidos – “os indivíduos interiorizam na vida cotidiana formas e conteúdos culturais muito diferentes, ou mesmo antagônicos entre si” (Fleuri, 2001, p. 49).

Por isso, a construção do conhecimento carece da adoção de princípios didáticos que viabilizem reflexões acerca das diferenças culturais e dos múltiplos saberes que constituem o ambiente educativo. Cabe romper com as práticas pedagógicas padronizadas e com as dimensões das culturas escolares dominantes e excludentes. É condição sine qua non a busca de um projeto intercultural que priorize o contexto sociocultural dos professores e dos seus alunos.

Concernente ao ensino no viés da interculturalidade, é indispensável a pluralidade discursiva, porque os alunos e alunas são diversos, desse modo, têm experiências distintas e riquíssimas, o que implica pensar em uma heterogeneidade cultural e o respeito a alteridade do outro. Isso precisa ser utilizado como princípio didático. Caso isso não aconteça, o professor pode incorrer no erro de homogeneizar um público e, com isto, não reconhecer as particularidades de cada aluno e aluna, ou seja, perde-se a dimensão do sujeito e olha-se pelo viés do aprendente. Essa distinção é necessária, pois ao concebermos o sujeito, o compreendemos em sua alteridade, constituído de narrativas, as quais expressam saberes.

Nas palavras de Freire, “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (Freire, 1989, p. 96). A partir deste excerto, Freire aponta a necessidade de valorizar às diferentes vozes, trazê-las para o centro das discussões. Pelo diálogo com o outro, em relação de alteridade, a educação torna-se intercultural e estabelece a articulação do saber oficializado com o saber do cotidiano. Dessa forma, as discussões em sala de aula, nesse caso, no ensino de língua – Libras - precisam estar incorporadas à realidade de cada aluno. Nisso reside a importância de valorizar cada sujeito, cada narrativa.

É preciso ter os alunos e alunas como sujeitos partícipes nas aulas, para pensar em outro (s) método (s) de ensino, outras práticas pedagógicas que contemplem conteúdos culturais diferentes. Com isso, “[…] na prática pedagógica, aparece como principal desafio a necessidade de elaborar a multiplicidade e a contraditoriedade de modelos culturais que balizam na formação da visão de mundo dos educandos” (Fleuri, 2001, p. 49).

Entendemos que o foco da prática pedagógica não é a transmissão de uma cultura homogênea, mas o reconhecimento da diversidade de práticas culturais relacionadas com a formação dos alunos, bem como “o respeito à cultura do outro pressupõe o reconhecimento de sua identidade cultural” (Oliveira, 2011, p. 52). Dessa forma, compreendemos:

Em sua dimensão epistemológica da complexidade, a interculturalidade compreende as relações interculturais na sua dimensionalidade, articulando e fazendo conexões entre as singularidades e destas com a universalidade, sem perder de vista a visão totalizadora e complexa do contexto sociocultural. (Oliveira, 2015, p. 66)

Já fazendo a relação com o presente estudo, é interessante quando os fatores socioculturais são considerados, pois isto também é uma maneira de evidenciar as formas de valorizar a cultura de um lugar específico, de pessoas, que são produtoras de conhecimento. Esse diálogo não está restrito aos livros e manuais de ensino. Sobre isto, mais uma vez, salientamos a relevância de um ensino que considere o aluno e aluna como ativos: protagonistas de seus aprendizados, portanto, colaboradores, não meros ouvintes.

Mediante a perspectiva intercultural, buscamos “conviver com o diferente e não com o inferior ou a quem se tolera, reconhecendo a cultura do ‘outro’” (Oliveira, 2011, p. 51). Com isso, a educação intercultural requer uma reflexão crítica a um sistema opressor, a uma situação de discriminação e opressão social, seja por fatores de raça, classe, de etnia, de gênero, entre outros. O viés crítico de um projeto intercultural de educação é condição necessária para pensar em uma prática de sala de aula pautada no diálogo, no acolhimento, na aceitação, no respeito à alteridade do outro.

Como Freire (1989) argumentou, a educação não se faz de abstração, pois se assim for, a palavra perde sua carga real e torna-se apenas uma palavra verbosa, oca e sem um plano concreto, o que nos remete ao apagamento do aspecto autoral. Essa palavra precisa estar na vida e no ensino em diálogo com a realidade do aluno. A educação faz-se com a crença no aluno como alguém apto a discutir as questões do seu país, bem como na sua capacidade de intervenção social. A educação não se faz desvinculada da vida. Nesse sentido:

A educação intercultural se configura como uma pedagogia do encontro, até suas últimas consequências, visando promover uma experiência profunda e complexa, em que o encontro/confronto de narrações diferentes configura uma ocasião de crescimento para o sujeito, uma experiência não superficial e incomum de conflito/acolhimento […]. (Fleuri, 2001, p. 53)

O encontro de sujeitos diferentes/plurais e a sua valorização no ambiente de sala de aula é que faz com que a educação torne-se a cada dia mais intercultural possível. Para a efetivação da educação intercultural, torna-se imprescindível algumas mudanças no sistema educacional, dentre as quais: a formação dos educadores. Esta formação pauta-se na “[…] superação da perspectiva monocultural e etnocêntrica que configura os modos tradicionais e consolidados de educar […]” (Fleuri, 2001, p. 55). Nesse sentido, alcançaremos um outro caminho para o ensino nas escolas e nas universidades.

O ensino de Libras também precisa romper com os modos tradicionais e consolidados de ensinar. De tal modo, ressaltamos a existência de dois importantes documentos, os quais asseguram a sua legalidade: a Lei e o Decreto de Libras[2]. Estes propiciam a oficialização da Libras em todo Brasil, sendo a língua assumida pelas comunidades surdas do país. Em função disso, a referida língua é adotada como disciplina curricular nos cursos de licenciaturas.

O artigo 4º versa que a formação de professores para o ensino de Libras na educação superior deve ser realizada em curso de Letras Libras ou Letras Libras/Língua Portuguesa como segunda língua. Sendo que em seu parágrafo único estabelece que “as pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação” (Brasil, 2005). Esta prioridade, e não obrigatoriedade, garante que professores ouvintes, também, atuem com a disciplina de Libras nas instituições de ensino superior.

A partir da Lei e do Decreto de Libras podemos visualizar, de forma considerável, o reconhecimento e a valorização da Língua Brasileira de Sinais no Brasil. Ao dar visibilidade a esta língua, também, está se considerando às questões das comunidades surdas e seus apoiadores. Esse foi um fato marcante em nossa educação, pois a partir desse momento a Libras passou a ser introduzida no âmbito do ensino, com ênfase no ensino superior.

Nesse sentido, a disciplina de Libras torna-se uma realidade no ensino superior do país e a compreensão acerca das questões vivenciadas pelas pessoas surdas passam a ser disseminadas, ainda que restritas, ao espaço da academia e em especial nas instituições de ensino superior que, também, lidam com este público. Com isso, surge a demanda da formação de professores de Libras para atuar no ensino superior. Destarte,

Consideramos a formação do professor de Libras uma temática relevante para ser pesquisada. É necessário desenvolver reflexões que resultem em propostas, em medidas e em determinações políticas, sob pena de se desprezar um problema social de incalculável custo social para a comunidade surda brasileira. (Albres, 2016, pp. 239-240)

Diante do exposto, podemos conceber a possibilidade de um debate a respeito da formação de professores de Libras no ensino superior, mais precisamente, em um curso de Letras Libras, que é um curso voltado a contemplar as necessidades sociais e educacionais da comunidade surda brasileira e seus apoiadores. Tal debate torna-se mais rico e frutífero quando vinculamos os preceitos da alteridade no ensino de Libras, pois a postura ancorada na relação Eu-Outro é uma escolha teórica a embasar as práticas pedagógicas de professores surdos e de professores ouvintes atuantes no ensino superior.

Destacamos que o referencial metodológico da pesquisa, pauta-se em uma investigação de abordagem qualitativa, sendo este tipo de pesquisa aquela que “[…] se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado” (Minayo, 1994, pp. 21-22). Essa pesquisa não pode e nem deve ser reduzida à operacionalização de variáveis quantitativas.

Junto a uma professora de Libras realizamos entrevista individual, que é “uma técnica de investigação baseada em perguntas que são dirigidas a pessoas previamente escolhidas” (Ludwig, 2009, p. 65). Portanto, a entrevista é concebida “como a técnica em que o investigador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo da obtenção dos dados que interessam a investigação” (Gil, 2008, p. 113).

Justificamos a opção ou necessidade de utilização de somente uma entrevistada durante a pesquisa, em virtude dessa professora ser uma profissional ouvinte atuante em movimentos sociais, tais como a Associação de Tradutores/Intérpretes de Língua de Sinais do Pará. A referida professora também atua como tradutora de Libras de músicas paraenses junto a grupos de músicas regionais da Amazônia. Isso despertou o interesse em investigar a prática pedagógica dessa professora.

Sobre a tipologia da entrevista, utilizamos a entrevista semiestruturada, “que se baseia em questões específicas, porém sem ordenamento rígido” (Ludwig, 2009, p. 66). Para seguirmos uma sequência durante a entrevista, usamos um roteiro, sendo que a fala da entrevistada foi registrada em aplicativo de gravação de aparelho de celular e o local de realização da entrevista foi as dependências de uma sala regular, espaço em que a entrevistada realizava suas atividades pedagógicas.

A entrevista junto a professora foi realizada no dia 08/05/2019. Houve apenas um encontro com a finalidade de realizar a entrevista, porém em outros momentos aconteceram algumas conversas (presencial e via WhatsApp) no sentido de criar uma situação de proximidade com a participante da pesquisa. A entrevista seguiu um fluxo de conversa, com a ordenação das perguntas adequadas às respostas da entrevistada.

As perguntas da entrevista versavam: a) os métodos utilizados para o ensino de Libras; b) os conteúdos de sala de aula; c) as atividades desenvolvidas nas aulas; d) a relevância da Libras no ensino superior; e) os aspectos curriculares da disciplina de Libras; f) o diálogo do ensino de Libras com os movimentos sociais; g) o reflexo da realidade sociocultural no ensino de Libras.

Sobre o perfil da participante da pesquisa, organizamos o quadro a seguir que traça a caracterização da referida professora de Libras.

Fonte: os autores.

Quadro 1 Perfil da participante da pesquisa 

Além de todas as informações sobre o perfil da professora participante da pesquisa, foi possível perceber, a partir do contato, que a mesma possui: experiência na área de Psicologia Escolar e Educacional com ênfase em Ensino e Aprendizagem na Sala de Aula de alunos com comprometimento funcional, orientação e acompanhamento de pais/responsáveis, assessoramento a professores e corpo técnico/operacional das escolas onde estudam essas crianças.

Os dados de nossa pesquisa foram organizados em categorias. Tais categorias apresentam-se em um quadro na intenção de “identificar e organizar as principais questões levantadas, as falas significativas, bem como elaborar a síntese e a análise preliminar dos dados organizados” (Oliveira & Mota Neto, 2011, p. 169). Apresentamos o quadro a seguir.

Fonte: os autores.

Quadro 2 Análise por meio da categorização 

As categorias desse estudo partem de uma categoria analítica (inicial). A partir dessa categoria maior, as demais são agrupadas tematicamente, originando as categorias e unidades que são aglutinadas em função da ocorrência das temáticas que se interseccionam. Estas categorias estão subdividas para fins didáticos e uma melhor compreensão do leitor deste estudo, porém as mesmas se correlacionam entre si em seus conteúdos.

Reflexões sobre a formação docente e o ensino de Libras

Para refletirmos sobre a formação docente e o ensino de Libras neste estudo, torna-se relevante frisarmos que a professora possui toda uma trajetória acadêmica e profissional na área da educação de surdos e ensino de Libras. Do mesmo modo, sobre a sua formação docente, três elementos merecem ser discutidos: a graduação em psicologia; a certificação de Tradutora/Intérprete pelo PROLIBRAS; e a Pós-Graduação na área da educação especial.

Percebemos que a professora possui como formação inicial a graduação em psicologia. Assim, destacamos que o Decreto de Libras concebe em seu Art. 4º que a formação de docentes para o ensino de Libras na educação superior deve ser realizada em curso de Letras Libras ou em Letras Libras/Língua Portuguesa como segunda língua (Brasil, 2005). Isso, a priori, nos parece estranho, contudo era recorrente na área da educação de surdos.

Ainda que o Decreto defina que a formação de docentes para atuar com o ensino de Libras deva ser realizada em curso de Letras Libras, no entanto, a escassez deste profissional no estado do Pará tornou-se algo evidente nos anos de 2005 a 2015. Neste sentido, inferimos que o edital que regeu o concurso ou contrato da referida professora estabelecia como requisito: graduação em qualquer área com Pós-Graduação na área da educação especial / educação de surdos.

Sobre a certificação de Tradutora/Intérprete pelo PROLIBRAS, este foi um Exame Nacional para Certificação de Proficiência no Ensino e para a Tradução e Interpretação da Libras / Língua Portuguesa nos termos do Decreto de Libras. Para Albres (2016), o PROLIBRAS buscou identificar a proficiência na Libras e o mesmo exame certificava candidatos para o exercício de duas profissões: 1) o ensino da Libras; 2) e a tradução e interpretação da Libras /Língua Portuguesa.

Com isso, percebemos que a formação docente da participante deste estudo deu-se, também, a partir de sua inserção no âmbito das atividades de tradução e interpretação da Libras. Os saberes obtidos com estas atividades vêm cerceando o seu universo enquanto professora de Libras em um curso de licenciatura no ensino superior. Ou seja, as suas escolhas profissionais e acadêmicas – a sua trajetória na educação de surdos - reverbera na sua prática de sala de aula com a disciplina de Libras.

A certificação do PROLIBRAS foi, e ainda é, socialmente valorizada e, por vezes, toma o papel do certificado de formação em um curso de licenciatura em Letras Libras. Apesar de haver severas críticas a este exame, não podemos nos eximir de registrar o papel do PROLIBRAS na história da educação de surdos e na formação docente de Libras no Brasil.

Em relação a formação no contexto de Pós-Graduação, na área da educação especial, revelamos a pluralidade de saberes os quais compõem a prática pedagógica desta professora. Acreditamos que a mesma realizou, no âmbito da Pós-Graduação (Especialização e Mestrado), muitas reflexões teóricas e práticas sobre a Inclusão de Surdos, o Atendimento Educacional Especializado e a Educação Especial em uma perspectiva de Educação Inclusiva.

Analisamos, ainda, que o diploma de Pós-Graduação (Especialização e Mestrado) garantiu um melhor desenvolvimento profissional e pessoal da professora e, consequentemente, a ocupação de outros cargos e o recebimento de um melhor salário no ensino superior. Isto tudo, reflete em sua prática pedagógica com o ensino de Libras. Outrossim, supomos que a Pós-Graduação (Especialização e Mestrado) contribuiu para seu ingresso ao ensino superior, caso o requisito de concurso ou contrato tenha sido graduação em qualquer área com Pós-Graduação na área da educação especial / educação de surdos.

Evidenciamos que a referida professora já participou de uma diretoria da Associação de Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais do Pará de 2009 a 2011. Com isso, destacamos que é a partir desta perspectiva das relações culturais emergentes nos movimentos sociais que se encontra “o enfoque mais fecundo da educação intercultural” (Fleuri, 2001, p. 48). Toda essa bagagem é refratada no universo da sala de aula.

Esse envolvimento mais próximo com a realidade social vivenciada no interior dos movimentos, implica a sensibilidade da professora de Libras para com as causas das comunidades surdas, intérpretes, familiares de surdos, entre outros. Isto nos mostra como a alteridade foi um fator essencial na formação profissional da professora. Destacamos que essa formação não se limitou ao âmbito puramente profissional-técnico, porque ela se permitiu vivenciar o encontro com os outros sujeitos surdos, que têm outras formas de compreender o mundo e sua cultura. Consideramos isso uma prática intercultural, em que houve o encontro com o outro em um contexto de alteridade. O princípio didático é permeado por esse contexto.

Portanto, com base nas reflexões sobre a formação da professora de Libras, passamos adiante a discutir sobre a Libras enquanto disciplina no ensino superior. A ideia é perceber o status epistemológico da interculturalidade crítica nos métodos de ensino de Libras. Pensamos que fazer esse cruzamento da Educação de Surdos com a perspectiva intercultural, constitui-se um elemento essencial para compreender o universo das pessoas surdas.

Discussões acerca da Libras enquanto disciplina no ensino superior

A intenção deste estudo, portanto, não é de se ater a um método de ensino de Libras como o correto, mas pensar sobre outros métodos de ensino, tendo como base epistemológica a perspectiva intercultural. Desta forma, entrevistamos uma professora de Libras na busca de evidenciarmos a sua prática pedagógica, para que, assim, pudéssemos refletir acerca dos seus princípios didáticos no âmbito ensino de Libras. No que tange a primeira pergunta direcionada à professora de Libras, quando foi questionada acerca dos métodos utilizados para o ensino da referida disciplina, a professora argumentou que:

Trabalho mais na perspectiva do uso da Libras em contextos reais de aplicação no cenário profissional dos alunos […]. Começo (as primeiras aulas) com uma apresentação teórica dos conceitos básicos sobre língua, linguagem; apresento a legislação nacional sobre a Libras e os direitos dos surdos; apresento alguns mitos do senso comum sobre a Libras e a surdez, mas, em todas as aulas, há aspectos práticos (vocabulário): apresentação do meu sinal pessoal, o sinal do curso de cada aluno, da universidade e derivam para as dúvidas que os alunos trazem. Normalmente, no primeiro dia de aula, já conseguem construir frases e assim segue-se a cada aula. (Professora de Libras, 2019)

O que mais chamou a nossa atenção nessa primeira resposta foram os chamados contextos reais de uso da língua, nesse caso, podemos observar “a valorização dos saberes culturais […] e a promoção do diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais” (Oliveira, 2011, p. 42). É evidente que a professora busca realizar a sua prática pedagógica a partir de experiências reais e concretas dos alunos.

A professora atua com métodos de ensino de Libras voltados a realidade sociocultural dos alunos, ou seja, ela direciona o ensino de Libras para o contexto da dimensão profissional em que estes alunos se encontram imersos: contextos profissionais variados. Em 1996 Freire apontou: “Por que não estabelecer uma ‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos?” (Freire, 1996, p. 30). Nesse sentido, a professora de Libras promove o encontro do saber sistematizado com a vida e contextualiza o mundo de trabalho dos estudantes em um plano concreto. Esse encontro demarca a alteridade, tão asseverada na interculturalidade do Eu-Outro como fator para a emancipação no diálogo da palavra viva.

Além disso, podemos notar a preocupação da professora em situar os seus alunos e alunas no campo legal da surdez e da Libras, quando afirma que nos primeiros momentos já apresenta a legislação, a qual resguarda a língua. Isso demarca, ainda, um aspecto de sua formação: a alteridade vivenciada nos movimentos sociais. Seu princípio didático promove a articulação para o combate às formas de opressão, bem como à luta pela conquista de direitos de grupos excluídos. A prática pedagógica da professora de Libras está fundamentada para além de uma questão técnica de conhecimentos sistematizados. Tal prática se concretiza na vida.

Essa concretude situa os alunos e alunas na realidade vivenciada pelas comunidades surdas do país, ainda em processo de validação de um compromisso social pelo uso da língua - Libras. Também há o cuidado em conceituar com detalhe o que é língua e linguagem para melhor esclarecer os alunos e alunas no que concerne ao estatuto linguístico das Libras.

Outrossim, como nem sempre a professora atua em cursos de Letras, faz-se necessário esse detalhamento na conceituação sobre o que vem a ser língua e linguagem durante a disciplina. Dessa forma, podemos visualizar o teor crítico na prática pedagógica da professora, visto que há uma preocupação em situar os alunos no âmbito legal e político - quando a professora contextualiza as prerrogativas das pessoas surdas - e no campo conceitual – quando conceitua a Libras como uma língua independente; isso fortalece a representação da pessoa surda como sujeito.

Mais uma vez, percebemos a lógica da educação intercultural presente na prática da professora, dado que ao trazer esses esclarecimentos aos seus alunos, a professora dimensiona os mesmos em um âmbito de uma luta política, já que as comunidades surdas do país estão há anos reivindicando o reconhecimento da sua língua, Libras. Isso implica pensarmos em uma articulação, a qual traz em seu bojo uma narrativa de resistência que ultrapassa a esfera educacional, uma vez que a pessoa surda está transitando pelos demais setores da sociedade, ainda que de forma subalternizada.

Com isso, “não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico” (Freire, 1996, p. 38). Nesse excerto, conseguimos enxergar a ação da professora, pois ao dialogar com os seus alunos, há a construção de uma alteridade outra das pessoas surdas, rompendo com a lógica hegemônica, a qual é reproduzida na consciência de boa parte dos atores sociais, inclusive os professores de pessoas surdas.

Por meio dessa dialogicidade, a qual a palavra torna-se uma ferramenta de construção de si a partir do outro, emanam discursos de resistência, no sentido de contribuir para a desconstrução do paradigma opressor, usando o diálogo entre pares como uma prática libertadora, ou seja, libertando os alunos e alunas das amarras de um discurso sobre a pessoa surda pautado em um ser menos. A alteridade torna-se um princípio didático.

Quando a participante diz quais são os conteúdos ministrados, podemos perceber a valorização da alteridade da pessoa surda, ou seja, alguns conteúdos tratam diretamente dessa pessoa. Nas palavras da professora, os conteúdos em sala de aula versam a “história da educação de surdos; identidade e cultura surda e conversação em Libras – os aspectos da gramática e, também, aquisição de vocabulário” (Professora de Libras, 2019). Isso tudo contribui para uma outra maneira de ver o surdo e a sua língua.

A partir dessa fala, é notório como o ensino de Libras está articulado com a noção de respeito e valorização da Libras. Esse ensino traz a importância de legitimar a Libras enquanto língua das comunidades surdas do/no Brasil. Ainda nesse plano, falar de língua é falar de cultura e identidade, pois, o processo educativo consiste na criação e no desenvolvimento de contextos educativos, “[…] em que as pessoas em relação ativam as interações entre seus respectivos contextos culturais” (Fleuri, 2001, p. 61). Por essa razão, pontuamos a importância de temas referentes a cultura e a identidade surda na sala de aula.

Esses conteúdos mencionados na fala da entrevistada ressaltam a necessidade de se trabalhar com as memórias constituintes da educação de surdos no país. É valioso mostrar um histórico de opressão e promover a disseminação dos aspectos político-educacionais, assim como das memórias históricas, as quais mostram a representação atribuída aos surdos. Desse jeito haverá uma compreensão melhor da marginalização deste segmento social hoje.

Outro ponto a ser ressaltado é a conversação em Libras. Interessante como a professora não foca em questões gramaticais e sistêmicas apenas, pelo contrário, já trabalha com a linguagem em uso, a prática de interação entre pares. Com isso, destacamos o pensamento freireano: “Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele” (Freire, 1996, p. 53). Nesse sentido, ao promover a interação entre pares, a professora contribui para que a palavra, no caso o sinal em Libras, proporcione o reconhecimento de si e pela relação de alteridade do Eu com o Outro.

Em resposta semelhante, a participante diz o seguinte quando é perguntada sobre quais atividades são mais usadas em suas aulas: “Uso a construção de diálogos, a construção de frases de apresentação individual, a construção de vídeos e jogos com mímica para expressões não manuais” (Professora de Libras, 2019). Com isso, o uso da língua é promovido a partir do relacionamento da alteridade entre os seus pares.

Nessa resposta podemos verificar a concepção da língua como espaço de interação novamente, pois, o uso de diálogos e a construção de frases a partir de uma situação da vida, demonstram uma perspectiva da palavra contextualizada. Isso mostra a relevância de se perceber o sentido global daquilo que se está visualizando, no caso, o diálogo e/ou frase. Esse diálogo dar-se numa perspectiva de interação entre os alunos na sala de aula.

A própria ideia dos diálogos já demarca a perspectiva da alteridade entre sujeitos diferentes. Dessa maneira, “o diálogo viabiliza a humanização, ações de colaboração e de participação política, ao possibilitar aos silenciados o direito de dizerem sua palavra” (Oliveira, 2011, p. 43). Compreendemos a situação de alteridade, bem como a ocasião de interlocução e de comunicação em sala de aula sendo efetivada pelo uso da Libras.

Quando foi solicitado que a professora respondesse a respeito da importância da Libras no ensino superior, ela revelou:

Embora ainda pouco divulgada dentro do total de cursos de graduação (obrigatoriedade apenas nas Licenciaturas), a Libras é uma das disciplinas fundamentais para se compreender e respeitar as diferenças dentro do ambiente acadêmico e – futuramente – dentro do ambiente profissional. A Libras abre a discussão e inicia a reflexão sobre o papel do surdo na sociedade, no futuro sendo cliente/paciente ou empregador ou colega de trabalho de nossos alunos da graduação […]. (Professora de Libras, 2019)

A professora ressalta a língua como um fator de alteridade, pois, podemos observar que a partir da difusão da Libras, há uma compreensão maior acerca da pessoa surda e da questão do ser diferente de mim – o outro. Essa noção de outrem aparece de forma nítida quando ela aponta a possibilidade do ouvinte ter algum colega de trabalho ou empregador surdo, ou seja, a necessidade de aprender Libras para dialogar com o outro, nesse caso, a pessoa surda.

A alteridade como um processo de completude do ser, reflete uma educação que promove o reconhecimento do outro, “para o diálogo entre diferentes grupos sociais e culturais” (Oliveira, 2011, p. 37). Dessa forma, a alteridade é um meio pelo qual alcançamos a completude do ser, que está no outro. Nesse sentido, quando a professora faz um apelo para o porvir, chamando a atenção de um possível colega ou empregador surdo, ela está fazendo uma reflexão inclusiva sobre essa relação, constitutiva do humano.

Outro aspecto que nos chamou a atenção foi quando a professora mencionou acerca dos aspectos curriculares da disciplina de Libras. A professora explica:

[…] as ementas precisam de reformulação para uma abordagem mais comunicativa – e menos gramatical/teórica; precisa de maior divulgação enquanto disciplina optativa nos cursos de bacharelado; precisa acontecer em mais de um semestre para melhor assimilação dos conteúdos, especialmente a prática, a conversação. (Professora de Libras, 2019)

Ela fala da necessidade de uma abordagem do ensino de Libras de cunho prático, ao invés de conteudista. Tornando, assim o ensino de Libras um ensino significativo, no sentido se conceber essa língua na perspectiva intercultural “[…] em relação de reciprocidade entre si e com o próprio ambiente” (Fleuri, 2001, p. 61). Um ensino de uma língua viva, a partir dos contextos históricos, sociais e culturais.

Aponta para uma perspectiva crítica de ensino, pois consegue reconhecer a relevância da abordagem comunicativa (aprender uma língua por meio da interação) e a necessidade da obrigatoriedade desse ensino de Libras nas demais graduações. Sua visão rompe com o Decreto de Libras que torna a disciplina de Libras optativa nos demais cursos de educação superior. Essa disciplina poderia ser obrigatória nos cursos de bacharelados. Seu posicionamento revela a marca de uma prática intercultural, capaz de refletir e analisar o seu contexto de atuação.

Em relação a articulação da Libras com os movimentos sociais, foi realizada a seguinte pergunta: De que forma você promove, em sua prática pedagógica, o diálogo do ensino de Libras com os movimentos sociais surdos? A seguir, a resposta:

[…] eu não tenho como fazer diferente. Eu estou ministrando a disciplina de Libras desde 2012 […] eu não sei falar da língua de sinais de uma comunidade surda no Brasil sem falar como é que essa comunidade tem o direito a ter essa língua. Quando eu falo dessa comunidade surda eu estou falando de uma minoria e quando eu falo de uma minoria eu tenho que falar de uma minoria que foi oprimida, e ainda é, que é vítima de exclusão social, que é vítima de segregação educacional […] eu só consigo realizar esse ensino se eu mostrar ao meu aluno de onde veio o direito da pessoa usar a língua dela e isso é ensinar sobre a inclusão social, é mostrar historicamente, numa linha do tempo, o processo pelo qual as pessoas surdas foram excluídas, foram marginalizadas. (Professora de Libras, 2019)

Em um primeiro momento, chama atenção o teor de criticidade na fala da professora ao ancorar a sua prática pedagógica em uma perspectiva de refletir sobre uma minoria surda que foi/é, constantemente, oprimida, vítima de exclusão social e segregação educacional. Essa narrativa da professora dialoga com os achados da interculturalidade crítica, em que o seu campo epistemológico é concebido como “[…] uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização” (Candau, 2009, p. 22).

Podemos fazer o diálogo com o postulado da interculturalidade crítica quando ela aponta para o ensino de Libras imbricado na história de luta dos surdos pela legitimação da língua de sinais. Por isso, a professora se posiciona didática e criticamente sobre a situação de opressão, de segregação, de negação dos direitos dos surdos, especialmente dos direitos de interagir no mundo por meio de sua língua.

Outro aspecto, também interessante, é a valorização à comunidade surda constituída de sujeitos que lutam pelo direito de usar a língua. Percebemos o destaque que a professora oferece às lutas e às conquistas dessa comunidade surda ao longo dos anos. Sendo assim, a interculturalidade crítica também desempenha o papel de visibilizar as memórias de resistência, contribuindo para a compreensão, segundo Albres (2016), de uma questão social: a luta pelos direitos, pelo respeito e reconhecimento da língua dos surdos.

Sobre isso, pontuamos: “[…] a interculturalidade crítica como ferramenta pedagógica que questiona continuamente a racialização, subalternização, inferiorização e seus padrões de poder […]” (Candau, 2009, p. 25). Desse modo, o viés intercultural não é apenas um paradigma de uso acadêmico, pelo contrário, é uma ferramenta analítica para contribuir com as diversas esferas sociais, inclusive, com a esfera educacional.

Sendo assim, combater a opressão é uma das principais formas de legitimar esse diálogo de culturas, as quais são materializadas por sujeitos e suas formas diversas de ser e estar no mundo. É preciso uma educação do ser mais, e a compreensão sócio histórica das lutas sociais. Isso aponta para a alteridade, pois demonstra uma linha de acontecimentos interligados, dos quais um sujeito contribuiu para a formação humana do outro, a dialogicidade.

Podemos enxergar as aulas da professora de Libras comprometidas com a alteridade, sendo realizada pela perspectiva intercultural, uma vez que a professora perpassa por uma cadeia sócio histórica de resistência em favor de uma língua, que se concretiza na história de um grupo marginalizado em função de uma particularidade linguística, que desencadeou desdobramentos severos na vida dos surdos.

Já na pergunta seguinte - De que forma você traz para dentro das atividades de sala de aula o contexto da Amazônia paraense? – a professora destacou:

Essa é a parte mais divertida da aula. Eu tenho uma programação de ensinar alguns sinais dos animais, do museu, alguns bairros de Belém, mas essa é só minha programação, porque os alunos fazem muitas perguntas: como é o nome daquele ônibus? Daquele bairro? Eles já tiram graça um com outro, eu moro no Umarizal, eu moro no Guamá. Então, a Amazônia paraense vou trabalhando dentro dos limites geográficos da cidade onde a gente mora. Nem todos os alunos são da capital, então começamos a prestar atenção nos sinais dos municípios do interior: Por que Castanhal é a letra C aqui no peito? Se eu sei a história eu conto. Por que Bragança é um B na direção do ombro? Aí os meninos já dizem: Ah! Porque Bragança é mais longe que Castanhal. Então eles já vão fazendo essa relação do sinal com a região paraense. Isso já é o aprendizado da língua de sinais. (Professora de Libras, 2019)

Pela resposta da professora de Libras, fica nítido que ela apresenta a Libras, também, pela perspectiva dos alunos, pois ao favorecer que ambos enunciem seus saberes em sala, ela articula os dizeres discentes com o uso da língua de sinais. Além do que, essa inciativa desperta a participação de todos e todas na sala de aula. Com isso, a dialogicidade vai sendo construída no ensino de Libras com o envolvimento dos próprios alunos, os colocando na posição de sujeitos do conhecimento e protagonistas.

Ademais, é interessante esses questionamentos de quais são os sinais dos ônibus usados, o porquê do sinal da cidade ser de uma determinada forma, tudo isto estimula a curiosidade pelas transformações sociais, as quais a Libras passou. Isso favorece uma relação com a história das comunidades surdas, que está entrelaçada à língua. O ensino refrata uma série de questões importantes sobre o lugar regional onde essa língua se presentifica.

A professora promove um ensino de Libras autêntico e autônomo, por isso tem “uma programação própria de ensinar alguns sinais”. A sua prática pedagógica valoriza os elementos regionais, ou seja, a Amazônia paraense: seus animais, seus museus, seus bairros. Trata-se de enxergar a realidade social e cultural e transpor tal realidade para o contexto de sua prática pedagógica.

A relação de alteridade acontece a todo momento em suas aulas, especialmente, quando os alunos “fazem muitas perguntas” e “tiram graça um com outro”. Percebemos a troca de ideias e opiniões, o diálogo face a face, a interação interpessoal pautada em um clima de respeito à cultura do outro. Temos nisso tudo a alteridade como um princípio didático que constitui o universo da sala de aula.

O olhar da professora para o lugar de onde seus alunos vêm é um elemento fulcral para que o ensino de Libras aconteça. Seus alunos são de outras localidades - “Nem todos os alunos são da capital” - por isso a professora explora os sinais das cidades: Bragança, Castanhal, entre outras. Essa forma de ensinar é intercultural, uma vez que parte do reconhecimento da realidade – bem como da alteridade – de cada aluno e aluna. A prática pedagógica da professora de Libras torna-se ainda mais enriquecida e a alteridade se concretiza como um princípio didático.

Considerações Finais

Com o objetivo de analisar os métodos utilizados por uma professora ouvinte no ensino de Libras na educação superior, pautamos este estudo na perspectiva da educação intercultural. Essa perspectiva concebe a educação a partir do reconhecimento das diferenças, ao mesmo tempo em que sustenta a relação entre diferentes grupos sociais. O estudo, também, traz alguns fragmentos da legislação para respaldar legalmente as nossas discussões.

Diante das análises apresentadas, constatamos que, apesar da participante não ter formação na área de letras, isso não impede que ela desenvolva sua prática pedagógica de forma crítica e dialógica. Por vários momentos da entrevista, podemos encontrar uma prática pedagógica pautada no diálogo cotidiano nesse ensino de Libras. Essa constatação difere de nossa hipótese inicial: um ensino de Libras descontextualizado.

Ao contrário, a professora ouvinte de Libras recorre a um ensino de Libras com foco nas práticas sociais de uso da língua. Isso demarca um posicionamento de alteridade e de respeito às diferenças. Nesse caso, percebemos um ensino de Libras que, logicamente, é focado nos conteúdos curriculares, mas que promove intensamente relação com as situações reais de comunicação e com a realidade social e cultural dos alunos.

Um ponto marcante no posicionamento da professora foi a preocupação com o outro, nesse caso, a pessoa surda, que a todo momento foi colocada em um centro de valor por meio da alteridade. Essa busca de compreender o outro como um ser que nos constitui, é um traço interessante na prática pedagógica da professora, que conforme sua fala, identifica a Libras como um meio de reconhecer a diferença no meio acadêmico e profissional.

Por fim, destacamos a relevância da Libras enquanto disciplina curricular nos cursos de licenciaturas e a necessidade da sua ampliação para os demais cursos. Essa ampliação pode concretizar nas pessoas uma noção de sentir o outro, o que configura a alteridade, reconhecer o outro, bem como desenvolver contextos educativos que promovam a articulação entre diferentes contextos sociais e culturais.

É pertinente destacar que a prática pedagógica da professora entrevistada é permeada por atividades que exploram contextos reais de uso da língua, uma vez que a referida professora situa os seus alunos e alunas no campo legal da surdez, no universo da educação de surdos e da Libras. Algo pertinente, também foi saber que há um dimensionamento em um âmbito de uma luta política voltada à pessoa surda.

De modo geral, o ensino de Libras está articulado com os pressupostos da alteridade como um princípio didático que norteia as atividades de sala de aula. A prática pedagógica da professora inclina-se para o campo da interculturalidade crítica, uma vez que promove o reconhecimento e à valorização das diferenças culturais no contexto de sala de aula e estabelece o diálogo, a interação e o clima de respeito junto aos alunos.

Referências

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[1]Para Albres (2016) o primeiro curso de formação superior de professores de Libras no Brasil foi elaborado na modalidade de ensino de educação à distância. Sua primeira turma foi de 2006 a 2010 pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

[2]De acordo com Albres (2016) os surdos têm discutido com o MEC a formação do professor bilíngue (Libras e Língua Portuguesa para surdos). Essa formação também está prevista no Decreto nº 5.626/2005 que regulamenta a Lei nº 10.436/2002 (Brasil, 2002; 2005).

Recebido: 31 de Julho de 2020; Aceito: 09 de Novembro de 2020

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