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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 23-Nov-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.32224 

Artigos

Educação superior em tempo de precarização: análises a partir do discurso do docente

Educación superior en tiempo de precarización: análisis del discurso del profesor

Superior education in decay time: analysis from the teacher's opinion

Érica Elena Avdzejus1 
http://orcid.org/0000-0001-6294-913X

Maria Teresa Franco Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0003-4027-3049

1Doutora em Administração, Universidade Federal da Bahia – Escola de Administração (2017). Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia. Membro do grupo de pesquisa: Autoestima, Precarização e Trabalho do Campus XIX - UNEB.

2Pós-doutorado no IHEAL - Université Paris III Sorbonne Nouvelle (2007). Professora Titular da Universidade Federal do Estado da Bahia. Membro do Instituto Voçoroca em Nazareno-Minas Gerais, com projetos voltados à recuperação e preservação do solo e da água. Membro fundador do LABMUNDO- Laboratório de Políticas Internacionais da EA/UFBA.


Resumo

Este trabalho apresenta como os docentes percebem as mudanças das condições de trabalho, assumindo a precarização e considerando o cenário a partir dos anos 1990, observando as especificidades das IES públicas e privadas de Salvador/BA e analisando os dados primários coletados através do Discurso do Sujeito Coletivo. Percebeu-se que após a reforma gerencialista, onde a Universidade assumiu a lógica hegemônica, o discurso se torna único. Assim, verificou-se o desengajamento em relação a um mundo compartilhado que impede a criação de laços duradouros, favorecendo a obsolescência de valores como responsabilidade, respeito e solidariedade por parte dos professores analisados.

Palavras-chave Precarização; Docência; Ensino Superior

Resumen

En este trabajo se presenta cómo los docentes perciben los cambios en las condiciones laborales, asumiendo la precariedad y considerando el escenario desde la década de los noventa en adelante, mirando las especificidades de las IES públicas y privadas en Salvador/BA y analizando la información primaria recolectada a través del Discurso del Sujeto Colectivo. Se notó que luego de la reforma gerencial, donde la Universidad asumió la lógica hegemónica, el discurso se vuelve único. Así, se produjo un desapego en relación a un mundo compartido que impide la creación de vínculos duraderos, favoreciendo la obsolescencia de valores como la responsabilidad, el respeto y la solidaridad por parte de los docentes analizados.

Palabras clave Precariedad; Educación; Educación superior

Abstract

This paper presents how teachers perceive changes in work conditions, assuming precariousness and considering the scenario from the 1990s, considering the specificities of public and private HEIs in Salvador/BA and the primary data collected was analyzed through the Discourse of the Collective Subject. It was noticed that after the managerial reform, where the University assumed the hegemonic logic, the discourse becomes unique. Thus, there was disengagement in relation to a shared world that prevents the creation of lasting bonds, favoring the obsolescence of values ​​such as responsibility, respect and solidarity on the part of the teachers analyzed.

Keywords Precariousness; Teaching; University education

Introdução

Em meados da década de 1990, observou-se um crescimento da quantidade de universidades privadas, assim como uma maior apropriação da construção do conhecimento mediante o racionamento do mercado das instituições de ensino desta categoria. Diante disso, compreende-se a problemática sendo desenvolvida face às modificações decorrentes do meio capitalista ocorridas fortemente nos últimos anos, havendo aspectos que colaboraram para a reestruturação globalizada e hegemônica ideológica e política do neoliberalismo, cuja repercussão recaiu na educação (Menezes, 2014). Por outro lado, considerou-se o estado de precarização salarial como: contrato, remuneração e jornada de trabalho. Outrossim, no que tange à precarização das condições de trabalho diante das modificações ocasionadas pela revolução tecnológica informacional, constata-se uma nova metodologia de gestão flexível, implicando no aumento das rotinas de trabalho e na ampliação do controle e comprometimento do trabalho em prol do capital.

Por conseguinte, as definições elementares ligadas às transformações no âmbito do trabalho docente, no tocante à escassez de publicações sobre docentes do ensino superior, ademais voltadas ao propósito de aprofundar o estudo nesses processos e nas complexidades do atual trabalho, corroboram para acender a problemática deste artigo, sendo por sua vez: como as modificações das condições do trabalho docente, em face da precarização do trabalho decorrente na década de 1990, considerando as peculiaridades das Instituições de Ensino Superior (públicas e privadas) de Salvador e Região Metropolitana de Salvador/BA implicam no trabalho do professor?

Nessa conjuntura, a precarização das condições de trabalho docente e a lógica produtivista condicionam e modificam a autonomia docente, interferindo no seu resultado em sala de aula. Assim, o objetivo geral desta pesquisa é: as modificações das condições do trabalho docente, em face da precarização do trabalho decorrentes na década de 1990, considerando as peculiaridades das Instituições de Ensino Superior (públicas e privadas) de Salvador e Região Metropolitana de Salvador/BA, implicam no trabalho do professor. Por meio disso, os objetivos específicos buscam caracterizar o contexto de trabalho dos professores das Instituições pesquisadas, mormente em termos de precarização e de produtivismo e aclarar as características de precarização de trabalho dentro do contexto apresentado.

Metodologia

Com o propósito de expor a estrutura-chave da metodologia deste artigo, observa-se a dicotomia entre sujeito e objeto. Justo posto, reconhece a sobreposição ocorrida na conjectura da teoria e método, cujo princípio está no processo de desenvolvimento da pesquisa, na qual o pesquisador alcança a validação do conhecimento demandado. Portanto, aqui revela-se um ponto de vista crítico para as subjetividades e complexidades notadas pelos professores de IES Públicas e Privadas mediante um cenário neoliberal. Partindo disso, contribui para a plena compreensão das relações existentes no materialismo histórico (Avdzejus, 2018). Assim, corroborando Graça Druck (2011), o método qualitativo se torna mais adequado pelo direcionamento analítico frente ao contexto de trabalho apresentado.

Posterior a isso, o artigo buscou confrontar a relação entre sujeito e objeto de modo a dialogar com a necessidade de percepção ocorrida dentro das modificações das necessidades da natureza do trabalho docente, havendo esta análise dentro da universidade pública e privada, na região de Salvador e Região Metropolitana de Salvador. O cerne deste estudo está voltado à visão dos docentes diante da eminente precarização do seu trabalho. Dito isso, o propósito é percebido principalmente das organizações empresariais. Assim, adicionou-se vertentes de Graça Druck (2011) e Giovani Alves (2013) para conduzir as fundamentações de precarização, tais como: a precarização salarial e a precarização do homem trabalhador. Nesse sentido, constataram-se vertentes práticas direcionadas às manifestações reais do trabalho. E nas questões teóricas, percebe-se os fundamentos e discursos numa relação direta com o contexto histórico.

Dentro do campo de observação, a Instituição de Ensino público trazida como objeto da pesquisa é a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), maior deste seguimento no estado, cujo corpo discente é motivado a participar das pesquisas através de programas de iniciação científica e de concessão de bolsas de monitoria (Avdzejus, 2018). Em contrapartida, a IES privada também analisada neste trabalho, onde chamaremos de Universidade Empresa, tem como sua missão o compromisso em formar profissionais competentes e críticos. Por conseguinte, obtém-se para análise dos dados o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), que segundo Lefèvre e Lefèvre (2003), diante do Discurso do Sujeito, compreende a sintetização da opinião coletiva. Salienta-se também que não há modificação na fala do entrevistado, salvaguardando a íntegra e buscando captar a emoção apresentada.

Logo depois, nota-se os dados secundários trazidos mediante levantamento bibliográfico. E em relação aos dados primários, foram realizadas entrevistas semiestruturadas junto aos docentes dos cursos de Administração e Ciências Contábeis de IES, objetivando colher informações referente às especificidades das relações entre contextos da precarização dessas instituições. Outrossim, foi realizada uma pesquisa no site Scientific Electronic Library Online .Scielo) em 15 de março de 2019, na base regional integrada, usando as palavras-chave: “Trabalho docente e contexto”, e tal busca levou à identificação de 127 artigos.

Mudanças no contexto do trabalho

As alterações do modelo capitalista decorrentes dos anos de 1970, conforme Harvey (2008), resultaram numa grande ressignificação, muito pela forte mudança do mercado, elevação da rivalidade mercadológica e drástica diminuição da taxa de lucro, sendo que os proprietários do capital se aproveitaram do enfraquecimento da luta sindical, aliado ao grande excedente de mão de obra, composto por desempregados e/ou subempregados, para condicioná-los a condições e contratos de trabalho voltados aos interesses patronais. Assim, Harvey (2008) comenta a dificuldade oriunda da flexibilidade ao tentar relacionar de forma holística os aspectos únicos, uma vez que cada corporação detém características intrínsecas, e pautadas visando se ajustar a cada particularidade da entidade. Dessa forma, para aqueles detentores de empregos regulares, com as tradicionais cargas horárias estabelecidas na jornada média de 40 horas semanais ao longo do ano, forçam o empregado a trabalhar bem mais em períodos sazonais, contrapondo com menos horas em períodos de redução da demanda (transformando numa relação de dependência de horas de trabalho – banco de horas).

Dejours (2002), em sua análise sobre as mudanças, perdas de direitos e a degradação das condições de trabalho ocorridas na França nos anos 1990, trouxe a sustentação dos conceitos da precarização do trabalho como o pilar da injustiça social, pois cita aspectos que estendem aos aspectos relacionados às formas precárias e inseguras de inclusão ao trabalho, desemprego e à gestão pelo medo sobre os que continuam empregados, ampliando o sofrimento e a alienação dos trabalhadores. Face disso, observa-se a ausência de revolta e reação individual e/ou coletiva, cuja outrora era clara, visto do ponto de vista de um alto nível de tolerância para com o cenário de perdas de direitos e conquistas, aliado à degradação das condições de trabalho, inicialmente marcadas na década de 1990, especialmente na França. Em contrapartida, a precarização se torna um elemento central e estrutural da crise de valorização do capital, sendo imprescindível aclarar a real natureza da crise. Compreende-se, então, no tocante da exposição dos movimentos que visam a evitar a queda da taxa de lucro da composição orgânica do capital, as alterações vivenciadas nessa conjuntura econômica e política, a globalização e reestruturação produtiva do capital que permearam a precarização estrutural do trabalho (Alves, 2013).

Nesse contexto, os resultados das políticas sociais condicionaram um crescimento dentro da educação de forma relevante no país. Dessa forma, Santos (2010) informa a intenção de compreender o Programa Universidade para Todos (PROUNI), cuja objetivação está na concessão de bolsas de estudos integrais e parciais para estudantes de baixa renda, oferecendo, assim, a entrada do cidadão menos favorecido financeiramente à educação do terceiro grau. Nessas condições, o FIES, introduzido em 1999, visa a essa mesma oportunidade a classes de renda baixa, mediante concessão de financiamento. Outrossim, com a crise econômica e política instalada no país desde 2014, condizem com as políticas sociais de inclusão supracitadas, sendo que em 2017 a redução foi 40% com relação ao ano anterior, totalizando uma diminuição de 150 mil vagas.

Precarização do Trabalho Docente

Todas as análises são oriundas da pesquisa realizada (Avdzejus, 2018). Assim, ao analisar o primeiro bloco de questões do instrumento de pesquisa, percebe-se claramente que nas Instituição Privadas a sobrecarga de trabalho é ampliada e o trabalho docente intensificado, verifica-se ainda que não existe remuneração para todas as atividades que são necessárias para o exercício da atividade docente e que os professores sentem que, mesmo cumprindo todas as solicitações, não existe garantia de empregabilidade no semestre seguinte. Conforme relatos, percebe-se claramente que o discurso do professor se alinha com os posicionamentos dos teóricos que tratam sobre o tema. Quando questionados sobre “Quanto tempo que o professor despendia para a preparação de suas aulas?”, os professores afirmam que pode chegar a 20 horas semanais (Avdzejus, 2018).

Durante a pesquisa de campo, quando questionados sobre “o tempo semanal dedicado à construção de pesquisa”, percebe-se que os professores das IES privadas não possuem tal prática, enquanto que os professores com vínculos públicos e que exercem alguma atividade de pesquisa são unânimes em afirmar que o tempo gasto é superior à carga horária remunerada. Quando questionados sobre “o tempo para alimentação do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) da Instituição de Ensino em que trabalha”, os professores das Instituições Privadas foram enfáticos em afirmar que, em média, 4 horas semanais. No entanto, a remuneração na Instituição privada analisada se refere apenas à aula ministrada. Assim, o professor não tem remuneração para atividades como: preparação de aulas, atualização de material didático e inserção de dados nos ambientes virtuais (chamadas, aulas estruturadas, lançamentos de notas).

Conforme verificado no momento das entrevistas, os ambientes virtuais das Instituições Privadas necessitam de maior tempo e dedicação por parte dos professores, reiterando que tal questão é cobrada pontualmente pelos coordenadores de curso e que eles são também exigidos com relação à tal métrica. Quando se questiona sobre “o tempo para alimentação do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) da Instituição de Ensino em que trabalha?”, tem-se um tempo grande. Em média, 2 a 4 horas por semana. Tal razão coaduna com os autores que trazem a precarização do trabalho como pilar central da estratégia de dominação. A ameaça de perda do emprego e as condições precárias de trabalho são exatamente a percepção desta força. Percebe-se claramente na fala dos professores aspectos que são levantados na segunda dimensão da pesquisa e que trazem a questão da insegurança sentida pelos docentes escutados. Quando questionados sobre o tema, os professores das Instituições Privadas são contundentes nessa percepção, em especial ao serem questionados sobre “Como você se sente em relação à Estabilidade/Instabilidade no trabalho” (Avdzejus, 2018).

No discurso onde o docente fala acerca de sua percepção sobre o ambiente de trabalho, a palavra “medo” se mostra presente. A instabilidade é uma realidade e perceptível na fala de todos os analisados, inclusive dos professores públicos. A professora 4 alega que precisou de dois vínculos para se sentir “menos” insegura. Claramente, a fala dos professores nos traz a sensação de descarte, de fragilidade, onde a vulnerabilidade é presente e a insegurança ampliada. Se analisarmos de forma mais profunda o fator “medo”, verifica-se como um sentimento permanente nas Universidade Privadas e de grande interesse do sistema que o trabalhador o tenha. De certo modo, quanto maior o medo de perder o emprego o trabalhador tiver, mais “produtivo” do ponto de vista do sistema ele será, uma vez que a sua capacidade crítica ficará ainda mais diminuída. Nesse contexto, a tão utilizada informação “de que existem vários profissionais à procura de empregos” perde a relevância, uma vez que o cenário é posto e assumido (Avdzejus, 2018).

Identidade dos Docentes

A identidade individual e coletiva do professor nasce da condição de desempregado e permanece no indivíduo que se sente ameaçado constantemente pela perda do trabalho. De forma superficial, poderíamos supor que tal questão só reflete a realidade dos profissionais da esfera privada, contudo, a problemática encontra-se tão materializada na realidade da sociedade que os professores públicos apresentam em suas falas um alto nível de vulnerabilidade. Importante enfatizar que todos os docentes analisados têm vínculos públicos e privados, ou vínculos exclusivamente públicos recentes. Nesse sentido, importa salientar que a consciência política e o relacionamento entre os pares no ambiente profissional têm relação direta com a identidade individual e coletiva do docente (Avdzejus, 2018).

Ainda com relação ao bloco, nota-se todos os traços teóricos contidos nos trabalhos que tratam da precarização do trabalho. Aspectos como o descarte da pessoa que trabalha, o baixo nível salarial, a insegurança e a intensificação do trabalho corroboram tal afirmação. Nesse contexto, coadunam com Dardot e Laval (2016) a diminuição intensa e contínua dos direitos do trabalhador, atrelada à insegurança em todas as esferas trazida pelas “novas formas de empregos” que, além de serem precárias, provisórias e temporárias, ainda permitem ao empregador o descarte da pessoa humana que trabalha de forma simples e rápida, o que impacta diretamente na diminuição do poder de consumo individual, coletivo, e para além, no empobrecimento de frações inteiras de classes trabalhadoras. Dessa forma, tais elementos geram um aumento da dependência entre trabalhador e empregador (Avdzejus, 2018).

Assim sendo, percebe-se um pânico social que atravessa a sociedade como um todo e pode ser verificado facilmente através do discurso dos professores entrevistados. Deste modo, a nitidez do discurso é percebida nos docentes das Instituições Privadas e nos professores com vínculo provisório nas públicas. Contudo, está tão enraizado na sociedade que os professores estatutários também demonstram um “pânico social” que é notório em se tratando de uma possível privatização da Instituição Pública em questão ou quando enfatizam a importância de uma “boa relação com seus pares” a fim de que possam ter seus projetos de pesquisa aprovados.

Analisando com um pouco mais de profundidade sobre o medo social, amparado ainda em Dardot e Laval (2016), notou-se que tal questão foi de suma importância e até mesmo estrutural para a implementação da “neogestão” nas instituições como um todo: gestão num contexto neoliberal, onde a exposição cada vez maior e mais direta do trabalhador às flutuações do mercado, pela diminuição das proteções individuais e coletivas, é condição sine qua non. Dessa forma, transferindo o risco para os trabalhadores e produzindo nestes o sentimento cada vez maior de insegurança pela possível perda do seu emprego, o empregador pode exigir cada vez mais o aumento da disponibilidade e do comprometimento por parte dos empregados.

Sabe-se que a “neogestão” não é um novo conceito e que o sistema capitalista tem uma essência única, contudo, importante destacar nuances no modelo que vem tornando os indivíduos aptos a suportar as novas condições que lhe são impostas na medida em que o seu próprio comportamento contribui e retroalimenta para a sucatização cada vez maior das condições de trabalho. Desse modo, Dardot e Laval (2016) utilizam a expressão “reação em cadeia” intencionando sintetizar o que se percebe no tecido social como sujeitos “empreendedores” que, em suma, ampliarão a competitividade entre eles, ampliando a reprodução sistêmica e maximizando as condições de trabalho cada vez mais duras por eles mesmos. Assim, aspectos como a apologia da incerteza, da reatividade, da flexibilidade, da criatividade e da rede de contatos fazem uma representação coerente, cheia de promessas, que permitem e estimulam a adesão dos trabalhadores ao modelo “conexionista” do capitalismo. Assim, a perda completa da identidade coletiva e logicamente da individual é a certeza que temos (Avdzejus, 2018).

Verifica-se também o sentimento de esvaziamento das relações sociais e que implicam no pertencimento e na identificação do professor enquanto sujeito e classe. Percebe-se um discurso que concorda com a “fábrica do sujeito neoliberal” que Dardot e Laval (2016) explicam de forma tão consistente. Trata-se exatamente de como o sistema usa o trabalhador para, através do discurso, multiplicar apenas a face sedutora e estritamente retórica dos novos modos de poder. Com efeito, os autores resumem que esse discurso subestima o aspecto estritamente disciplinar do mesmo, se baseando numa argumentação de forma literal. Tal subestimação parte exatamente da superestimação da ideologia da “realização pessoal” que deriva do “Novo Espírito do Capitalismo”. Assim sendo, esse termo designado “neogestão” corresponde a uma fase mais sofisticada, mais individualizada e mais competitiva da racionalização burocrática. Numa alusão a Weber, não saímos da “jaula de aço” apenas, cada indivíduo deve construir, por conta própria, uma “individual”.

Assim sendo, o local de trabalho, dos professores pesquisados, não é uma comunidade ou um lugar de realização pessoal, mas um instrumento e um espaço de competição, apresentado idealmente como o lugar de todas as inovações, da mudança permanente, da adaptação contínua às variações da demanda do mercado, da busca por excelência. Pode-se julgar que tais nomenclaturas devam ser utilizadas apenas nas Instituições Privadas, porém, cada vez mais, se percebe o mesmo discurso nas Instituições Públicas. Percebe-se, então, que cada vez mais os sujeitos que compõem a sociedade transformada buscam atingir o perfil seguinte: “o mais eficaz possível, inteiramente envolvido no trabalho, aperfeiçoado por uma aprendizagem contínua, capaz de se adaptar à grande flexibilidade exigida pelas mudanças incessantes e impostas pelo mercado, especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo”. Em suma, o perfil da racionalidade neoliberal que impregna todas as esferas da sociedade, e que é composta também por professores (Avdzejus, 2018).

O discurso dos professores entrevistados transparece expressões como: “só se identificam com quem trabalha”. O que nos chama a atenção trata-se exatamente da palavra “trabalha”. A percepção do professor é de que só “trabalha” aquele cumpridor do seu “papel”. Fica claro o discurso individual, a baixa percepção de classe e dos espaços de trabalho. Mas quando questionamos qual a importância do papel do professor na sociedade contemporânea, questão essa que abrange ainda a dimensão da “identificação individual e coletiva”, verifica-se uma fala do papel do professor impregnada do discurso neoliberal.

Em algumas falas dos professores aparecem a expressão “atender ao mercado”. Percebe-se na fala uma “ boa intenção” de formar o profissional que, na visão do professor, será inserido no mercado de trabalho, em melhorar a condição social do aluno (no que se refere ao poder aquisitivo), bem aderente à ideologia neoliberal. Assim, quando o discurso traz a correlação com a empresa, fica clara a inclinação para o atendimento às necessidades de mercado e, portanto, o discurso neoliberal. Da mesma forma que, ao trazer a questão de “melhorar os indicadores de avaliação”, corrobora as “técnicas de gestão”, que buscam objetivar a adesão do indivíduo à norma de conduta que se espera dele, avaliando, então, seu “comprometimento” subjetivo. Trata-se de uma “prévia” para as demandas do mercado e, na visão de 50% dos professores entrevistados, a percepção é de que o papel do professor é possibilitar a adesão do aluno ao mercado de trabalho (Avdzejus, 2018).

A falta de sentimento de pertencimento é comum a todos os entrevistados. Até os que disseram que eram sindicalizados (apenas os professores que possuem vínculo público) também expressaram um sentimento de descrença e descrédito. Com efeito, a proporção mais impactante para o trabalhador, no que se refere ao posicionamento do sindicato, foi a falta de análise da subjetividade e do sofrimento no trabalho por parte das organizações. Indubitavelmente, tais atitudes contribuíram para a desqualificação do discurso sobre o sofrimento e, logicamente, para a tolerância ao sofrimento do outro. Assim, a partir dos anos 70, as preocupações tidas pelas organizações sindicais não mais correspondiam à realidade vivida por parte dos trabalhadores, o que provocou a falta de identificação por parte dos indivíduos enquanto classe. Percebe-se uma falta de identificação coletiva, bem como, um sentimento de culpa, de responsabilidade, de punição, como se ela fosse “responsável” (Avdzejus, 2018).

Quando questionados sobre “Como você avalia a sua autonomia na condução de: aulas; avaliação; atividade extra classe; atividade extensionista e atividade de pesquisa?”, de acordo com a expectativa, os docentes públicos possuem mais autonomia na condução da atividade, ao passo que na iniciativa privada os mesmos não têm autonomia, além de serem submetidos ao rigoroso controle das atividades, com pouco ou nenhum espaço para reflexão. Em se tratando de “autodeterminação do seu trabalho”, os professores são enfáticos com relação à não existência nas privadas e percebem que ainda é possível se autodeterminar nas públicas.

Contudo, percebe-se com a fala dos professores a ausência de autonomia nas privadas e a diminuição da autonomia nas públicas. Desse modo, o resultado reflete a lógica do sistema, que tende a tratar a educação como mercadoria. Para além, nas públicas, existe um tema pouco discutido, que se refere à contratação de professores substitutos. Na fase do grupo focal, um dos cinco professores era substituto de uma Universidade Federal e nos trouxe um relato surpreendente, que pouco se diferenciava das IES Privadas:

Discurso do Sujeito Coletivo

[…] passei no concurso de vinte horas para substituir um professor que está em Pós Doc, na área de Sistema de Informação. Porém, todo semestre que se inicia me dão matérias novas, na verdade, dou as vinte horas de sala de aula. O tempo para preparação das aulas não estão computados. Mas, o que mais me angustia é que apesar do contrato ter validade de dois anos, pode acabar a qualquer momento e sem aviso prévio […]. (Entrevistado2, 32 anos, professor universitário)

O autor Lelis (2012) adverte para o risco de reformas estarem implicando e aumentando a desqualificação docente, a sua proletarização, haja vista a natureza do trabalho estreitamente controlada e os programas definidos em termos de objetivos, estratégias de ensino etc. Aborda, para além, uma censura de alguns autores mais críticos no que se refere à pressão cada vez maior sobre o desempenho da atividade docente e suas atividades extraclasse, produtivismo, o estabelecimento de escolas eficazes, alertando para uma “desprofissionalização”, onde acrescentamos, a despolitização do trabalho do professor.

Considerações finais

Ao passo que a educação superior tem como principal preocupação a preparação do estudante universitário para inclusão no mercado de trabalho a fim de possibilitá-lo o melhor desempenho profissional, também se orienta para dispor ferramentas utilizadas por interesses econômicos privados, conforme Mészáros (2002), do mesmo jeito que seria tratada qualquer mercadoria. Assim, as Instituições de Ensino Superior de iniciativa privada promovem ao professor universitário a perda completa da autonomia, instaurada pela ameaça do desemprego, com a necessidade de ministrar aulas que muitas vezes nem pertencem ao seu arcabouço de formação, numa precarização explícita do trabalho docente. Em contrapartida, as IES Públicas apresentam uma lógica produtivista exacerbada, ameaçada pelas privatizações e a perda da autonomia paulatinamente.

Diante disto, as Instituições de Ensino Superior de iniciativa privada trabalham face ao trabalho do professor universitário mediante a diminuição de sua autonomia em sala de aula, estabelecendo uma preocupação emocional diante da possibilidade de perder o emprego caso não esteja enquadrado nessa conduta despótica dos gestores, aliada à angústia de lecionar conteúdos que não estão fortemente consolidados em seu arcabouço de conhecimento ou formação, incitando, assim, uma maquiagem em sala de aula e consequentemente precarização do trabalho docente. Não obstante, as IES do setor público promovem um caminho praticamente inserido na prerrogativa capitalista, visto pela lógica produtivista exagerada, com uma alta demanda de trabalho com o intuito de provar sua utilidade social e econômica ao Estado como um todo, na qual a ameaça de privatização permeia o imaginário dos funcionários e estudantes, acarretando uma perda gradual de autonomia profissional.

Nessa configuração, à medida em que a precarização se concentra como objeto primordial na estratégia capitalista de dominação educacional faz com que esta dependência ocasione condições precárias em todos os âmbitos da estrutura de ensino superior, atrelando ao fato da constante preocupação de escassez de oportunidades fora da zona de conforto empregatícia já pré-existente. Por conseguinte, o profissional da rede privada possui um sentimento de total instabilidade, pois é sabido da grande rotatividade dos docentes nas universidades a cada semestre findado, até mesmo durante o período letivo, como na retomada das aulas. Percebe-se, através disso, que a dimensão que analisa a identidade individual e coletiva do professor coaduna por completo com a percepção docente a respeito do seu enquadramento de trabalho e sua percepção enquanto indivíduo.

Face a esta análise, compreende-se que no caso do comprometimento da ética do trabalho e a adesão por completo à proposta da organização de ensino, o professor sofre uma racionalização intencional promovida pela gestão educacional, sendo pautada nos objetivos, indicadores, resultados e diversos outros mecanismos que influenciam a relação com o alunado. Desse modo, o mais comum de acontecer com o mercado é sua racionalização, de forma diluída em todos os níveis sociais, cuja violência e autoritarismo exercidos pelas camadas mais elevadas do sistema reproduzem massivamente o modus operandi capitalista, aprofundando as condições de estranhamento do ser humano enquanto ser social. Nesta reflexão, a consolidação das linhas críticas, que outrora eram a premissa básica da educação e voltadas às ações supracitadas, são ainda reforçadas no processo de precarização do trabalho, ao passo que o professor deixa de emitir sua própria opinião e seu ponto de vista.

Outrossim, a Universidade está diante de um afastamento do seu propósito, sendo que Freire (1982) informa, dentro desse contexto, que ensinar é fazer o estudante ler o mundo, para assim, somente através dessa leitura e entendimento, será capaz de transformá-lo. Nesse sentido, percebe-se que as IES estão inseridas dentro de um afastamento da compreensão das necessidades do mundo e, portanto, impossibilitam esse aluno de realizar tal leitura. Aliado a isto, o perfil almejado pelas empresas para profissionais contemporâneos é baseado naquele multifuncional, sendo polivalente nas funções da companhia, associado ao perfil de “gestor” de sala de aula. Tais características já fazem parte naturalmente do processo seletivo, principalmente para fins de redução de custo.

Essa realidade advém, principalmente, de dois pontos fundamentais: da ideologia neoliberal e da busca pela flexibilização e terceirização. Isso resulta na terceirização (ou submissão ao trabalho), assumindo de forma escancarada uma modalidade gestora, garantindo o capitalismo dominante, com “urgência produtiva”, determinada pelo processo acirrado da concorrência. Assim, entende-se que o cenário implica em uma falta de criação dos laços vindouros, no compartilhamento e no sentimento coletivo, trazendo uma fragilidade dos vínculos afetivos e uma hiperatividade destrutiva, que ocasionam uma situação social complexa, destacada pela fragilização das suas relações.

Em linhas gerais, o trabalho evidencia as contradições vivenciadas nas IES, cujo objetivo está diretamente relacionado com sua sobrevivência, ampliadas pela violência do capitalismo, deixando evidente que todos os setores estão suscetíveis ao atropelo devastador da ânsia de lucro, até mesmo na educação. Ao falar disso nas instituições públicas de ensino, cuja ação não é direta, nota-se esse estrangulamento educacional no que tange ao seu financiamento. Nesse cenário, verifica-se a disputa entre o que é de ordem e interesse público e privado.

Referências

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Recebido: 26 de Junho de 2020; Aceito: 20 de Novembro de 2020

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