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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 09-Dez-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.34075 

Artigos

"Sabe por que a gente escreve? Para ser amado” - Foucault e os arquivos

“¿Sabes por qué escribimos? Para ser amados” - Foucault y los archivos

“Do you know why we write? To be loved” - Foucault and the archives

Célia Ratusniak1 
http://orcid.org/0000-0002-0608-8838

Maria Rita de Assis César2 
http://orcid.org/0000-0002-5843-2899

1Doutora em Educação (2019) pela Universidade Federal do Paraná. Professora do curso de Pedagogia Bilingue do Instituto Federal de Santa Catarina, campus Palhoça/SC. Professora do Departamento de Pedagogia da UNICENTRO. Membra do Laboratório de Investigação em Corpo, Gênero e Sexualidade na Educação - LABIN/UFPR.

2Professora Associada IV do Departamento de Teoria e Prática de Ensino - DTPEN/Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná - UFPR e professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) - PPGE/UFPR. Coordenadora do LABIN - Laboratório de Investigação em corpo, gênero e subjetividade na Educação (CNPq/UFPR).


Resumo

O artigo problematiza a experiência de pesquisar os arquivos de Michel Foucault, depositados na Biblioteca Nacional da França. Relata como se tornaram Tesouro Nacional e explica como estão organizados. Junto a essa experiência, apresenta o Foucault pesquisador e suas incursões pelas bibliotecas e o seu fascínio pelos arquivos. Localiza as fontes usadas para algumas de suas obras a partir de entrevistas, livros, apresentações, introduções escritas por ele mesmo, pelo biógrafo Didier Eribon, por seus debatedores e por declarações daqueles que o conheceram. Constrói um retrato do Foucault pesquisador e seu minucioso trabalho com os arquivos que resultou em sua produção teórica. O trabalho recebeu financiamento da CAPES – Brasil. Código de Financiamento 001.

Palavras-chave Foucault; Arquivo histórico; Pesquisa com documentos

Resumen

El artículo problematiza la experiencia de investigar los archivos de Michel Foucault, depositados en la Biblioteca Nacional de Francia. Informa cómo se convirtieron en Tesoro Nacional y explica cómo están organizados. Entrelazado con esta experiencia, presenta al investigador Foucault y sus incursiones por las bibliotecas y su fascinación por los archivos. Localiza las fuentes utilizadas para algunas de sus obras a partir de entrevistas, libros, presentaciones, introducciones escritas por él mismo, por el biógrafo Didier Eribon, por sus comentaristas y por declaraciones de quienes lo conocieron. Construye un retrato del investigador Foucault y su detallado trabajo con los archivos, que resultó en la producción de libros que llamó pequeñas cajas de herramientas para comprender el presente. El trabajo recibió financiación de CAPES – Brasil. Código de financiación 001.

Palabras clave Foucault; Archivo histórico; Búsqueda con documentos

Abstract

The article questions the experience of researching Michel Foucault's archives, at the National Library of France (BNF). We tell how it became a National Treasury of France and explains how they are organized. Intertwined with this experience, it presents Foucault as a researcher and his forays into the libraries and his fascination with archives. It locates the sources used for some of his works from interviews, books, presentations, introductions written by himself also by his biographer Didier Eribon, his debaters and declarations by those who knew him. It builds a portrait of the researcher Foucault and his detailed work with the archives, that resulted in the theoretical production. The work received funding from CAPES – Brasil. Financing code 001.

Keywords Foucault; Historical archives; Research with documents

Introdução

É indescritível a experiência de ter nas mãos os arquivos com os manuscritos de Michel Foucault. Eles estão disponíveis para pesquisa desde 2013 na Biblioteca Nacional da França (BNF) em Paris. Foram colocados à venda por seu companheiro Daniel Defert e rapidamente levantaram o interesse de universidades norte-americanas onde Foucault trabalhou por diversas vezes. Foram considerados tesouro nacional francês em 2012 como uma medida para proibir sua retirada do país por 30 meses, tempo levado pela BNF para levantar o montante de 3,8 milhões de euros pagos (Rérolle, 2012), hoje algo em torno de 24 milhões de reais.

Os arquivos são compostos por cerca de 37 mil folhas com notas de leitura, referências, textos de conferências e de seminários, manuscritos e 39 cadernos com as ideias de seus livros, artigos ou cursos.

A BNF é composta por um complexo de 5 espaços: Francois-Mitterrand, Opera, Jean Vilar, Arsenal e Richelieu. Os documentos que compõem os escritos do filósofo são chamados de Fonds Michel Foucault. Estão guardados em caixas fechadas à chave num grande armário, no centro da Sala de Manuscritos na Biblioteca Richelieu. Era nesse prédio que Foucault fazia a maior parte de suas pesquisas, juntamente com os arquivos da Bastilha, que estavam em Arsenal. Na caixa 28, do conjunto denominado Notas de Leitura e Manuscritos, estão os materiais que ficaram na mesa quando ele faleceu, em 25 de junho de 1984. Dentre esses está a carteira de usuário da BNF.

Foucault era um frequentador assíduo de bibliotecas. Em Upsala, na Suécia, onde escreveu a sua tese, A História da Loucura, chegava na biblioteca em torno das dez horas e permanecia até as três: a duração do dia. À noite, ouvindo Mozart e Bach, continuava escrevendo em sua casa. Na Alemanha, pesquisava na Biblioteca de Hamburgo, cidade em que assinou o prefácio da História da Loucura. Em Túnis, trabalhava durante a manhã em sua casa e permanecia na Biblioteca Nacional à tarde. Nos Estados Unidos, visitou as bibliotecas, que classificava como muito organizadas: muitas pessoas para atender, materiais sempre localizados e disponíveis. Nesse período, estava estudando as práticas penitenciais. Também era um frequentador assíduo da Bilbiotèque de Saulchoir, em Paris, na qual pesquisou livros que fundamentaram a História da Sexualidade (Eribon, 1990).

Neste texto, o Foucault pesquisador é problematizado a partir dos lugares onde fazia suas pesquisas: as bibliotecas e os arquivos. Para tanto, utilizamo-nos da biografia oficial produzida por Didier Eribon (1990) e a partir dela seguimos os rastros que apontam para os seus locais de pesquisa e para a escrita de seus livros. Não temos a pretensão aqui de apresentar um texto teoricamente denso, mas de compartilhar a vivência produzida pelo acesso aos manuscritos de Foucault e, a partir da análise de seus textos e de suas notas, às peculiaridades sobre como o filósofo escrevia.

Este texto nasce da curiosidade e da oportunidade de realizar o doutorado “sanduíche” na França por 6 meses entre 2018 e 2019, financiado pela CAPES e incentivado pelo programa de Pós-Graduação em Educação no Brasil. Deixamos aqui as pistas para que outras pessoas possam pesquisar os arquivos de Michel Foucault. Desejamos, também, que possam passar por essa experiência que afetou profundamente a nossa constituição enquanto pesquisadoras de arquivos e documentos: uma experiência transformadora de si.

A Sala de Manuscritos da Biblioteca Nacional da França e a Biblioteca de Saulchoir

O prédio mais conhecido da Biblioteca Nacional da França é o que fica nas margens do rio Sena, em Paris, no 13º arrondissement, chamado François-Mitterrand. É composto por 4 blocos em formato de livros abertos, todos virados para um pátio interno. Foi a primeira tentativa na busca dos arquivos de Foucault. Lá uma funcionária explicou que a BNF tinha um setor de manuscritos na Rue Richelieu.

Ao chegar na Biblioteca Richelieu, na entrada, cada pessoa tem suas bolsas ou mochilas vistoriadas e é requisitada a passar por um detector de metais, pois a BNF é considerada um alvo em potencial para atentados terroristas. Mais à frente, há um grande saguão no qual se encontra o setor de informações. À direita, uma sala de convivência com máquinas de café. É comum as pesquisadoras e os pesquisadores lancharem ou almoçarem nesse espaço. Não raro, passam o dia inteiro na Biblioteca, como Foucault fazia.

A Sala de Manuscritos fica no 3º andar. Ao sair do elevador, atravessa-se uma sala destinada às exposições temporárias. Em seguida, há uma passarela de vidro. Ao final, à esquerda, está uma porta de madeira imponente com um brasão e logo depois outra porta. À direita, uma pessoa recepciona quem chega: solicita a carteirinha, faz uma consulta no computador e pergunta se a reserva foi feita. Depois, deve-se dirigir ao bureau central, para a solicitação dos arquivos.

Os materiais que compõem o Fonds Foucault ficam no armário em meio às prateleiras com livros antigos que vão até o teto. Um total de 117 caixas guarda os documentos pertencentes ao filósofo. Muitas vezes, os/as atendentes pedem para ajudar a localizar o material reservado. Todas as caixas são da mesma cor. Divergem apenas em espessura, tamanho e etiquetas. Algumas são retiradas para consulta por pesquisadoras e pesquisadores responsáveis pela organização do material ou pela equipe que está editando novas publicações. Nas vezes em que solicitaram nossa ajuda, percebemos manuscritos do filósofo ao lado dos de Simone de Beauvoir. Didier Eribon (1990) relata que Foucault não recebeu bem as críticas que a filósofa havia feito ao seu livro, As Palavras e as Coisas, e isso causou vários desentendimentos entre os dois. Hoje, estão lado a lado.

Foucault escrevia em cadernos e folhas sem linhas. Algumas escritas só na frente. Outras, em frente e verso. Uma letra difícil de entender, que precisava ser decifrada. Anotações de revisão, lembretes e referências dividiam o espaço com os textos. Páginas inteiras de referências e excertos. Livros inteiros escritos à mão, meticulosamente corrigidos. Bibliografias. Ideias para serem desenvolvidas, problematizadas. Cadernos tradicionais franceses com um quadriculado de linhas e páginas amareladas. Anotações de suas aulas na École Normale Superieure. Preparação de cursos e seminários. Vários papeis pequenos. Até seus cartões de visita que informavam sua mudança de endereço para a Rue Vaugirad serviram para anotações. Uma forma de registrar, lembretes para a memória. Essa organização nos faz inferir a respeito de um pesquisador que estava o tempo todo pensando seus livros, suas aulas, conferências.

Foucault fez um testamento em nome de seu companheiro Daniel Defert. Numa entrevista concedida a Eric Aeschimann e Isabelle Monnin, Defert fala que ele lhe deixou: “[…] seu apartamento na rue de Vaugirard e tudo o que havia lá” (Aeschimann & Monnin, 2012, s.p.). O entrevistado relatou suas dificuldades em usufruir dos bens, pois na época gays não podiam receber heranças dos companheiros. Casais homoafetivos só passariam a ter a união oficializada na França a partir de 1999, com a possibilidade de se fazer um Pacto Civil de Solidariedade (PACS) que permitia a união estável e o direito à herança, desde que manifestado em testamento.

Michel Foucault deixou recomendações claras: não fazer publicações póstumas. Durante um tempo, essa vontade foi respeitada. Porém, havia uma demanda enorme pela consulta e pelas publicações dos seus cursos no College de France. O último volume da História da Sexualidade estava finalizado, em fase de revisão. Devido à enorme busca e ao medo de que esses arquivos fossem separados, o companheiro de Foucault começou a ter dúvidas. Na mesma entrevista, Defert relata que Georges Dumézil, amigo e professor de Foucault, foi categórico: ou todo mundo teria acesso aos arquivos ou ninguém (Aeschimann & Monnin, 2012). Durante muito tempo, ninguém teve. Depois, Defert mudou de opinião.

No começo, publicaram-se os cursos. Ele mesmo se encarregou de organizar o primeiro, de 1970/1971, do qual não havia gravações, apenas as anotações e os textos de Foucault. A própria confiança depositada pelo companheiro foi o que Defert fez mudar de ideia, conforme explicado na mesma entrevista:

Eu acho que se ele me confiou isso foi um ato de confiança e que ele me deixou desfrutar. Eu não revelo nada pessoal, desistam disso. É sobre pensamentos, não intimidade. O futuro será decidido coletivamente nesta área, com sua família e pesquisadores. (Aeschimann & Monnin, 2012, s.p.)

Uma parte do material, compreendendo o período entre 1986 e 1997, já havia sido enviado para o Institut Memoires de l’Édition Contemporaine (IMEC) para o qual também foi destinado o material em posse do Centre Michel Foucault, sediado inicialmente na Biblioteca de Soulchoir. Esses arquivos eram compostos por cursos dados no Collège de France, alguns seminários nos Estados Unidos, entrevistas e emissões radiofônicas (Albaric, 2019). O primeiro inventário feito depois que os arquivos foram adquiridos pela BNF foi realizado pelo próprio Defert e reorganizado posteriormente por pesquisadoras/es que se beneficiaram de uma bolsa de um ano, a Bourse Defert. Atualmente, estão acondicionados em 117 caixas (Biblioteca Nacional da França [BNF], 2020).

Existem 3 subunidades de descrição dos arquivos. A primeira contém os 13 cursos ministrados no Collège de France: A Vontade de Saber (1970/1971); Teorias e Instituições Penais (1971/1972); A Sociedade Punitiva (1972/1973); O Poder Psiquiátrico (1973/1974); Os Anormais (1974/1975); Segurança, Território e População (1977/1978); Nascimento da Biopolítica (1978/1979); O Governo dos Vivos (1979/1980); Subjetividade e Verdade (1980/1981); A Hermenêutica do Sujeito (1981/1982); O Governo de Si e dos Outros (1982/1983); e A Coragem da Verdade (1983/1984) (BNF, 2020).

A segunda subunidade é composta por 49 caixas, sendo que algumas se subdividem em pastas. Por exemplo, na primeira caixa existem 5 pastas, com notas de leitura sobre Teoria Dominante e Sistema Penal (preparação de Vigiar e Punir). A ordem não é cronológica. A organização é a seguinte:

Fonte: BNF, 2020 (Org. das autoras)

Quadro 1 Catalogação dos documentos de Michel Foucault 

A terceira subunidade não tem descrição. Cabe ressaltar que os arquivos ainda estão sendo organizados. Publicações recentes resultaram dessas reorganizações feitas por pesquisadoras e pesquisadores, como o curso La Societé Punitive, 2013 (A Sociedade Punitiva); Discours et Vérité, 2016 (Discurso e Verdade); Dire Vrai sur Soi-même, 2017 (Dizer a Verdade sobre Si Mesmo); o quarto volume da História da Sexualidade - Les Aveuxs de La Chair, 2018 (As Confissões da Carne) e Folie, Langage et Littérature, 2019 (Loucura, Linguagem e Literatura).

A experiência de conhecer alguns dos arquivos, olhar para as anotações e ler os textos levantou uma grande curiosidade em saber como Foucault encontrava suas fontes. Nas bibliotecas estão as pistas. Os arquivos da Sala de Manuscritos na Biblioteca de Richelieu nos dão uma ideia do que são e do que contêm as bibliotecas europeias. Em 1898, um inventário dos manuscritos gregos informava em sua introdução que eles ultrapassam 4.700 volumes repartidos em 3 fundos distintos: antigos, de Coislin e os suplementares. Nos manuscritos de Coislin, por exemplo, encontramos textos de Clemente de Alexandria, filósofo grego do século II, problematizado por Foucault no quarto volume da História da Sexualidade. No inventário existe uma lista dos copistas e outra dos anos dos manuscritos, que se inicia em 890 d.C. (Omont, 1898). Hoje, esse acervo é muito maior.

A BNF conta com livros e manuscritos medievais, sendo que muitos pertenciam aos acervos das monarquias. Na coleção moderna e contemporânea existem materiais raros datados a partir do século XVII, como manuscritos de Pascal, Marie Curie, Rousseau, Diderot, Pasteur. A partir do século XX, se juntam às coleções os manuscritos de intelectuais como Sartre, Simone de Beauvoir e Marleau-Ponty (BNF, 2020). No século XXI, Foucault passou a fazer parte do acervo.

A Biblioteca dos Dominicanos de Paris, chamada Biblioteca Soulchoir entrou na rota de Foucault de maneira inusitada. Michel Albaric, bibliotecário da instituição entre 1973 e 1999, relata que o conheceu num jantar, durante o qual o filósofo lhe contou sua decepção com a BNF: havia perdido um dia de trabalho por causa do tempo de espera, da restrição de acesso e dos livros indisponíveis. Albanic o convidou para pesquisar Santo Agostinho em Saulchoir. Em novembro de 1979, Foucault fez sua inscrição e passou a frequentar regulamente a biblioteca. No volume II da História da Sexualidade, O Uso dos Prazeres, há uma nota de rodapé no índice de textos citados, agradecendo ao diretor da biblioteca. Os Dits et Écrits I (edição francesa) também é composto por materiais que estavam nesse espaço (Albaric, 2019).

Os fundos consultáveis de Saulchoir possuem 350 mil impressões, com 2000 obras a partir do século XVI. No acervo, existem 103 manuscritos, sendo 7 medievais. Um tesouro para Foucault, que estava interessado na história do cristianismo, na antiguidade grega e latina (Biblioteca de Saulchoir, 2020). No site institucional, é possível ver uma foto da mesa onde Foucault se instalava: perto de uma janela voltada para um pátio interno.

Foi nessa biblioteca que nasceu, em 1986, a Associação para o Centre Michel Foucault, onde permaneceu até 1997. Essa Associação era composta por 30 acadêmicas/os e pesquisadoras/es, como François Ewald, Paul Rabinow e Judith Revel. O seu objetivo era “[…] reunir documentos, arquivos e obras que compõem o trabalho de Michel Foucault; facilitar e coordenar pesquisas relacionadas ao seu trabalho ou inspiradas em suas orientações e métodos” (Albaric, 2019, s.p.). Os arquivos eram compostos pelos cursos e conferências do College de France. Depois de 1997 foram transferidos para o IMEC e hoje estão no Centre Michel Foucault, em Caen, na França.

Foucault, os arquivos, a escrita: produzindo caixas de ferramentas

Didier Eribon (1990) nos relata um episódio ocorrido entre 1960 e 1966 na Universidade de Clermont-Ferrand: uma conversa entre Foucault e sua assistente. O filósofo faz uma pergunta a ela, à qual ele mesmo responde: “Sabe por que a gente escreve? Para ser amado” (Eribon, 1990, p. 138).

O período de seis anos como professor de Filosofia em Clermont foi de intensa produção teórica. Em 1963, publicou Nascimento da Clínica e Raymond Roussel. Em 1966, foi lançado As palavras e as Coisas, livro que deu grande visibilidade ao filósofo, agraciado pela crítica e que o fez sair do círculo acadêmico. Foucault passou a ser amado. Muitas vezes, um amor passional.

Em entrevista concedida a R. P. Droit para o jornal Le Monde, em 1975, perguntaram a Foucault para quais lutas seus livros poderiam servir. O filósofo respondeu que seu discurso era intelectual e funcionava nas redes de poder existentes nesse meio. Porém, explica que quando se lança um livro, este “[…] é feito para servir a usos não definidos pela pessoa que o escreveu. Quanto mais novos, possíveis e imprevistos usos, mais feliz serei” (Droit, 1975, s.p.).

Os livros tiveram usos que Foucault não previu. Estar em jornais, rádios, televisão e revistas significava ser julgado e avaliado por pessoas que não compreendiam sua produção teórica e nem as especificidades da pesquisa acadêmica. Em entrevista concedida a Didier Eribon, pouco antes de morrer, contou seu desejo por um espaço de publicação voltado para essas pesquisas. Um trabalho útil para as/os pesquisadoras/es e que materializasse o trabalho das universidades:

Você sabe com o que estou sonhando? Seria criar uma editora de pesquisa. Estou loucamente procurando essas possibilidades para fazer o trabalho aparecer em seu movimento, em sua forma problemática. Um local onde a pesquisa poderia ser realizada em seu caráter hipotético e provisório. (Eribon, 1985, s.p.)

O trabalho intelectual lhe exigia dedicação e tempo. Em entrevista de 1968, concedida ao Bonniers Litteräre Magasin, em Estocolmo, publicada nos Ditos e Escritos, volume VII, Foucault relatou que a ideia de viver escrevendo lhe parecia absurda e ele nunca pensou em tornar isso um modo de vida. Conta que foi na longa noite sueca quando adquiriu a mania que chamava de hábito horrível: escrever de cinco a seis horas por dia (Foucault, 2011).

A escrita passou a ser um fardo, principalmente depois que ele anunciou os demais volumes da História da Sexualidade no lançamento do primeiro volume, A Vontade de Saber. Essa pressão o atormentava e fez trabalhar incansavelmente em seus últimos dias para terminá-los. Eribon relata uma confissão feita por Foucault: “Comecei a escrever por acaso. E uma vez que se começa, a gente se torna prisioneiro dessa atividade, não pode mais fugir” (Eribon, 1990, p. 102). Nessa época, o filósofo manifestou a Paul Vayne seu desejo de deixar de escrever: “A gente começa a escrever por acaso e continua por força das circunstâncias” (Eribon, 1990, p. 301). Ele estava cansado, atormentado pelas críticas que diziam que ele já havia escrito tudo e não terminaria o que propôs. Mesmo com as enxaquecas, a suspeita da AIDS, as tosses que lhe enfraqueciam a saúde, em 1984, ia constantemente à BNF para conferir suas notas e, assim, finalizar o trabalho (Eribon, 1990).

O estudo constante fazia parte do seu cotidiano desde muito cedo. Quando decidiu ser filósofo, contra a vontade do pai, foi fazer o concurso para a École Normale Superieure, em Paris. O exame aprovava anualmente 100 candidatos e Foucault foi o 101º classificado. Entrou para a instituição no ano seguinte, depois de estudar incansavelmente. Na École, era um leitor voraz. Fazia fichamentos de suas leituras. Guardou suas anotações em caixas metodicamente organizadas, as quais podem ser consultadas na BNF. Aprendeu alemão para ler Heiddegger. Manifestou interesse pela psicanálise, pela fenomenologia husserliana, pela psiquiatria. Na primeira vez que fez o exame d’Agregation, uma sabatina de avaliações finais organizadas em duas etapas, Foucault foi reprovado no exame oral, contrariando todas as expectativas. No ano seguinte, estudou incessantemente, simulando todas as questões. No exame oral, deveria dar uma aula sobre um tema sorteado: a sexualidade. Foi aprovado e seus resultados lhe agraciaram com uma bolsa da Fundação Thiers para escrever sua tese. Nessa época, começou a frequentar a BNF (Eribon, 1990).

Em entrevista dada a Bernard Pivot, no programa Apostrophes gravado no Museu do Louvre em 1976, Foucault fala sobre o que o impulsionava a escrever:

Primeiro a gente escreve coisas porque as pensa e também para não pensar mais nelas. Terminar um livro é poder não vê-lo mais. Enquanto se ama um pouco o próprio livro, a gente trabalha. Quando se deixa de amá-lo, deixa de escrevê-lo. (Pivot, 1976, s. p.)

Escrevia para organizar o pensamento, para traçar a rota do poder e seus deslocamentos, para compreender o surgimento das práticas. Escrevia aquilo que não sabia e o escrevia para saber. Experiência pulsante. Para ele, seus livros eram caixas de ferramentas para compreender o mundo, como explicou na entrevista ao Le Monde:

Todos os meus livros, seja a História da Loucura ou aquele [Vigiar e Punir] são, se você quiser, pequenas caixas de ferramentas. Se as pessoas quiserem abri-las, use essa frase, uma ideia, uma análise como uma chave de fenda ou um parafuso solto para causar um curto-circuito, desqualificar, interromper os sistemas de energia, incluindo possivelmente aqueles mesmos que meus livros vêm … bem, isso é bom! (Droit, 1975, s.p.)

Seus livros nasciam de experiências pessoais. Era um escritor de si. A ideia de fazer uma história da sexualidade o perseguia muito antes de 1976, quando foi lançado o primeiro volume. Esse tema já aparecia na História da Loucura, em 1960, onde Foucault já nos dava pistas do que viria pela frente.

Será preciso fazer também a história, e não somente em termos de etnologia, dos interditos sexuais: em nossa própria cultura, falar das formas continuamente moventes e obstinadas da repressão, e não para fazer a crônica da moralidade ou da tolerância, mas para trazer à tona, como limite do mundo ocidental e origem de sua moral, a divisão trágica do mundo feliz do desejo. É preciso, enfim, e em primeiro lugar, falar da experiência da loucura. (Foucault, 2002, p. 155)

A sexualidade era uma temática constante nos trabalhos de Foucault. Quando era professor de Psicologia em Clermond-Ferrant, ofertou um curso durante o qual trabalhou com a perspectiva da psicanálise infantil de Freud. Antes, na Agregatión, foi a temática que lhe rendeu sua aprovação na École Normale. No curso Os Anormais, ministrado entre 1974/1975, no Collège de France, trabalhou o onanista (masturbador) como uma das figuras da genealogia da anormalidade, problematizando como a medicina social patologizou as práticas de sexualidade na infância, transformando-as em causas de quase todas as doenças, devendo ser reprimidas (Foucault, 2001).

A maneira como conhecemos os livros da História da Sexualidade (composto pelos volumes I - A Vontade de Saber; volume II - O uso dos Prazeres; volume III - O Cuidado de Si; e volume IV - As Confissões da Carne) é muito diferente do que Foucault havia imaginado inicialmente. Didier Eribon (1990) relata que na época em que A Vontade de Saber foi lançado, Foucault anunciou outros volumes. O material para cada um deles estava guardado em envelopes diferentes com textos, anotações e referências. Esse material pode ser consultado na BNF. Os outros volumes seriam:

II – Le chair e le corps (A carne e o corpo);

III – Le croisade des enfantes (A cruzada das crianças);

IV – Le femme, le mère e l’hysthérique (A mulher, a mãe e a histérica);

V – Les pervers (Os perversos);

VI – Populations et races (Populações e raças).

No Fonds Foucault, existem vários materiais escritos e arquivados por Foucault para escrever a História da Sexualidade. Na lista presente no setor de manuscritos, esses materiais compõem as seguintes caixas: 12, 45, 51, 64, 71, 78 e 89 (BNF, 2020). Porém, existem mais caixas não descritas nessa catalogação que ainda estão sendo analisadas. Por exemplo, a caixa 84 contém o último trabalho que Foucault estava revisando: o volume IV da História da Sexualidade - Les aveux de la Chair. Frédéric Gross, por meio da nota de rodapé número 3, na página VII do Avertissement do livro, nos informa da sua existência. Foucault havia enviado os manuscritos para a editora Gallimard em 1982, advertindo que a publicação deveria esperar, pois queria escrever um livro que o precederia, consagrado à experiência grego-romano da aphrodisia (Gross, 2018).

Nessa caixa, está a versão datilografada/digitada enviada pela editora a Foucault, que fazia um trabalho meticuloso de correção. Frédéric Gross conta que a secretária da editora que normalmente datilografava os textos do filósofo estava doente, sendo designada outra pessoa não familiarizada com a letra do filósofo, e que, por isso, havia cometido erros. Ele conseguiu revisar os dois primeiros capítulos, nos quais é possível ver as correções com a sua letra. No terceiro capítulo, elas não existem mais.

Foucault terminou o segundo e o terceiro volumes da História da Sexualidade em maio de 1984, pouco antes de morrer, em 25 de junho. Para os amigos, o filósofo disse que precisaria de mais um mês ou dois de trabalho, e então, terminaria o quarto volume. Não teve tempo. Na introdução do volume II, O Uso dos Prazeres, Foucault explica as modificações e os deslocamentos no seu projeto inicial:

Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade — em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses jogos consigo mesmo têm que permanecer nos bastidores; e que no máximo eles fazem parte desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia — quero dizer, a atividade filosófica senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? (Foucault, 2012, p. 12)

Entre o primeiro volume e o último existem oito anos. Nesse período, muito se especulou sobre a capacidade de Foucault de ir até o fim. E ele foi. Não podemos esquecer que, no meio disso tudo, realizava os seminários, as conferências pelo mundo, as aulas dos cursos no Collège de France, os grupos de pesquisa que criava por onde passava, a militância, o trabalho como correspondente de imprensa, as entrevistas, os prefácios e os inúmeros artigos escritos.

As fontes que Foucault utilizava não eram as consideradas convencionais pela Filosofia e isso precisavam ser constantemente justificadas. Para escrever A História da Loucura, buscou nos arquivos e na literatura elementos para construir a tese. Os relatórios psiquiátricos serviram de partida para a análise dos deslocamentos nas formas de punição e nas práticas por onde o poder operava. Em sua aula inaugural no Collège de France, alertava que era necessário estudar “O efeito de um discurso com pretensão científica – discurso médico, psiquiátrico, discurso sociológico também – sobre esse conjunto de práticas e discursos prescritivos que o sistema penal constitui” (Foucault, 2009, p. 63).

Com o Grupo de Investigação sobre as Prisões (GIP), Foucault novamente ressignificou o papel do intelectual. Em 1971, militantes da esquerda presos no ano anterior reivindicavam o status de presos políticos, que lhes daria alguns direitos específicos. Para tanto, uma das ações reivindicatórias foi uma greve de fome, a qual também tinha o objetivo de atrair a atenção da sociedade e da imprensa para as condições do sistema penitenciário francês (Eribon, 1990).

Daniel Defert, um dos responsáveis pela defesa dos militantes, propôs ao filósofo a organização de uma comissão de inquérito sobre as prisões, composta por intelectuais. Foucault pretendia escrever uma história da prisão, já anunciada por ele após o lançamento da História da Loucura. Entretanto, achou a expressão ‘comissão de inquérito’ muito judiciária, transformando-a em Grupo de Informações sobre as Prisões (GIP). Esse grupo propunha uma experiência coletiva e a abertura da palavra para os detentos e as detentas. O Manifesto do GIP, publicado em 1971, apresentava os seus objetivos:

Propomo-nos a fazer saber o que é a prisão: quem entra nela, como e por que se vai parar nela, o que se passa ali, o que é a vida dos prisioneiros e, igualmente, a do pessoal de vigilância, o que são os prédios, a alimentação, a higiene, como funcionam o regulamento interno, o controle médico, os ateliês; como se sai dela e o que é, em nossa sociedade, ser um daqueles que dela saiu. (Foucault, 2006a, p. 2)

Os efeitos desse grupo foram gigantescos. Ao final do Manifesto do GIP, Foucault disponibilizou seu endereço para que as pessoas pudessem lhe enviar cartas sobre as prisões, sobre prisioneiros e prisioneiras, recebendo um número enorme de correspondências. As rádios e os jornalistas passaram a frequentar essas instituições, o que era antes interditado. Entre 1971 e 1972, houve 38 rebeliões com a destruição de algumas dessas prisões (Eribon, 1990).

Para conhecer as condições de vida dos presos e das presas, o GIP foi até seus portões abordar seus familiares nos dias de visita com o intuito de preencher um questionário. Esse inquérito buscava saber quem eram as pessoas presas, que tipo de sujeito era produzido por essa instituição, como eram suas vidas depois que saíam. Recolhiam relatos sobre o cotidiano dos condenados e das condenadas e o passado que revelava as suas vidas antes dessa condição. Coletavam fragmentos da história individual por meio dos quais davam visibilidade ao intolerável e mostravam que os poucos direitos que lhes sobravam não eram respeitados (Foucault, 2006a).

O questionário também tinha como objetivo que os presos conversassem entre si dentro das prisões e entre as instituições, que pudessem falar para a população e que as suas revoltas se tornassem ações coordenadas. Para tanto, organizaram-se grupos com militantes, intelectuais, médicos/as, familiares, ex-detentos e ex-detentas que não concordavam com o atual regime das prisões para que continuassem as inquirições, planejassem ações que colocassem em xeque o seu funcionamento (Foucault, 2006b).

Foucault, que já estava trabalhando em Vigiar e Punir, vasculhou a literatura policial, os projetos reformadores, os manuais dos quartéis e das escolas. Ele também se deparou com narrativas de existências nos arquivos, com especial atenção àqueles localizados na Biblioteca do Arsenal, como os arquivos da prisão da Bastilha. Esperou dois anos para publicá-lo, para não parecer que havia se aproveitado dos relatos dos presos e das presas para escrever seu livro (Defert & Ewald, 2006).

Nos arquivos, encontrava materiais que traziam figuras anônimas, cuja existência só foi possível pelo choque com o poder. Ao pesquisar os Annales d'Hygiene Publique et de Médicine Légale, de 1836, encontrou um vasto material sobre o acionamento dos saberes psiquiátricos para a definição da culpabilidade e das penas determinadas pelo judiciário. Foi lá que se deparou com os documentos para a organização do livro Eu, Pièrre Rivière, que Matei e Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão. Normalmente, os dossiês apresentados nos Annales seguiam um formato: resumo dos fatos e perícias médico-legais. Porém, no caso de Pierre Rivière, essa ordem fora transgredida. Foucault nos descreve na apresentação essa documentação diferenciada:

1 - Uma série de três relatórios médicos, que não somente não traziam as mesmas conclusões e não faziam exatamente o mesmo gênero de análise, mas tinham cada um uma origem e um estatuto diferentes na instituição médica: o relatório de um médico de província; o relatório de um médico de cidade encarregado de um asilo importante; e o relatório enfim assinado pelos maiores nomes da psiquiatria e da medicina legal da época (Esquirol, Marc, Orfilia etc.).

2 - Um conjunto relativamente importante de peças judiciárias, entre elas as declarações das testemunhas - todas habitantes de uma pequena comuna normanda - interrogadas sobre a vida, a maneira de ser, o caráter, a loucura ou a imbecilidade do autor do crime.

3 – Finalmente, e sobretudo, um memorial, ou melhor, o fragmento de um memorial, redigido pelo próprio acusado, camponês de cerca de vinte anos que dizia mal saber ler e escrever, e que tinha empreendido, durante sua prisão preventiva, a tarefa de dar detalhes e explicação sobre seu crime: o assassinato de sua mãe, de sua irmã e de seu irmão. (Foucault, 1997, p. IX)

Foucault relata a estupefação de seu grupo ao se deparar com aquilo que chamou de 'beleza do manuscrito'. A publicação do livro seria um exemplo de como o material presente nos arquivos poderia oferecer um vasto material de consulta com elementos que permitissem compreender o surgimento de práticas e os seus deslocamentos. Para o filósofo, esses arquivos ofereceriam muitas possibilidades de pesquisa:

a) Visto que a lei de sua existência e de sua coerência não é nem a de uma obra, nem a de um texto, seu estudo deve permitir manter afastados os velhos métodos acadêmicos da análise textual e todas as noções que derivam do prestígio monótono e escolar da escrita.

b) Documentos como estes do caso Rivière devem permitir analisar a formação e o jogo de um saber (como o da medicina, da psiquiatria, da psicopatologia) em suas relações com instituições e os papeis que são aí prescritos (como a instituição judiciária com o perito, o acusado, o louco-criminoso etc.).

c) Permitem decifrar as relações de poder, de dominação e de luta dentro das quais os discursos se estabelecem e funcionam; permitem pois uma análise do discurso (e até dos discursos científicos) que seja ao mesmo tempo política e relacionada com o acontecimento, logo estratégica.

d) Pode-se enfim captar aí o poder de perturbação próprio de um discurso como o de Rivière e o conjunto de táticas pelas quais se tenta recobri-lo, inseri-lo e classificá-lo como discurso de um louco ou de um criminoso. (Foucault, 1997, p. XIII)

Em A Vida dos Homens Infames, novamente os arquivos são fontes de pesquisa. Dessa vez, ele analisa, junto com a historiadora Arlete Farge, as lettres de cachet, cartas com ordens régias de prisão encontradas na Bastilha e que também se encontram na Biblioteca do Arsenal, que possui um acervo de 2.725 caixas e registros e mais de 800.000 folhas. Esses arquivos foram criados numa primeira etapa em 1660, por meio dos prisioneiros. Posteriormente, em 1716, recebeu documentos da polícia e, em 1765, os arquivos que continham os principais julgamentos criminais, julgados pela Câmara Real do Arsenal (BNF - Gallica, 2020).

A Vida dos Homens Infames foi publicado no volume IV dos Ditos e Escritos, no Brasil. Antes do texto, há uma explicação dos editores informando que o projeto de trabalhar com arquivos da Bastilha e do Hospital Geral remonta desde a História da Loucura. Também informam que esse texto é uma introdução a uma antologia, Vidas Paralelas, a qual, em 1978, tornou-se uma coleção, na qual também figura Herculine Barbin (Foucault, 2006c).

Logo no início do texto, Foucault adverte:

Este não é um livro de história. A escolha que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que meu gosto, meu prazer, uma emoção, o riso, a surpresa, um certo assombro ou qualquer outro sentimento, do qual teria dificuldades, talvez, em justificar a intensidade, agora que o primeiro momento da descoberta passou. É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso em livros e documentos. Exemplo, mas – diferentemente do que os eruditos recolhiam no decorrer de suas leituras – são exemplos que trazem menos lições para meditar do que breves efeitos cuja força se extingue quase instantaneamente. O termo "notícia" me conviria bastante para designá-los, pela dupla referência que ele indica: a rapidez do relato e a realidade dos acontecimentos relatados; pois tal é, nesses textos, a condensação das coisas ditas, que não se sabe se a intensidade que os atravessa deve-se mais ao clamor das palavras ou à violência dos fatos que neles se encontram. Vidas singulares, tornadas, por não sei quais acasos. Estranhos poemas, eis o que eu quis juntar em uma espécie de herbário. (Foucault 2006c, p. 203)

Foucault nos conta que a ideia de escrever A Vida dos Homens Infames veio quando realizava pesquisas na BNF e se deparou com um registro de internamento do século XVIII. Mais à frente na introdução do texto, faz uma provocação àqueles que diziam que os arquivos não eram uma fonte de pesquisa recomendável para a produção do conhecimento, alertando que o livro "[…] não convirá aos historiadores, menos ainda que os outros" (Foucault, 2006c, p. 205).

Seguindo o texto, Foucault apresenta as condições impostas para apresentar as existências-relâmpago presentes nas lettres de cachet, chamadas por ele de poemas-vida, dada à rapidez com que eram descritas e que permitiam que se conhecesse de quem se falava, para logo depois caírem no esquecimento:

· que se tratasse de personagens tendo existido realmente; que essas existências tivessem sido, ao mesmo tempo, obscuras e desventuradas;

· que fossem contadas em algumas páginas, ou melhor, algumas frases, tão breves quanto possível;

· que esses relatos não constituíssem simplesmente historietas estranhas ou patéticas, mas que de uma maneira ou de outra (porque eram queixas, denúncias, ordens ou relações) tivessem feito parte realmente da história minúscula dessas existências, de sua desgraça, de sua raiva ou de sua incerta loucura;

· que do choque dessas palavras e dessas vidas nascesse para nós, ainda, um certo efeito misto de beleza e de terror. (Foucault 2006c, p. 205)

As lettres de cachet permitiam compreender os jogos de poder resultantes do soberano sobre a vida de cada um/a dos/as súditos/as. A individualização das respostas dadas pelo monarca mostra um tipo de poder que não tinha como objetivo a população, mas cada um individualmente.

Foucault transitava entre temas aparentemente diferentes e distantes entre si, mas que tinham em comum as problematizações sobre a constituição dos sujeitos e sobre o poder. Deslocamentos, rupturas, retomadas de um intelectual que estava atento aos acontecimentos de seu tempo, com uma postura combativa frente às arbitrariedades promovidas pelo Estado e que colocavam em risco a própria vida. Sua obra constitui atos de resistência, de contracondutas. A vida como uma obra de arte.

Para finalizar, mas não concluir

Na apresentação que redigiu para a sua candidatura no Collège de France, em 1969, Foucault já anunciava a pesquisa nos arquivos como uma fonte de narrativas e práticas que permitiam problematizar as relações de poder que operam por meio de práticas cotidianas nas instituições:

Um objeto foi então desenhado para mim: o conhecimento investido em sistemas complexos de instituições. E um método se impunha. Ao invés de consultar apenas a biblioteca de livros científicos, como em geral se faz, convinha visitar uma serie de arquivos, compreendendo decretos, regulamentos, registros de hospitais e de prisões, atos de jurisprudência. Foi no Arsenal ou nos Archives Nationales que realizei a análise de um saber cujo corpo visível não é o discurso teórico ou científico, mas uma prática cotidiana e regulamentada. (Foucault, 1994, p. 842)

A aula inaugural de Foucault no Collège de France era um prenúncio da revolução que provocaria naquela renomada instituição parisiense. Foucault dava suas aulas nos cursos às quartas-feiras, no fim da tarde e depois pela manhã, mudança que fez na esperança de que o número de alunos e de alunas diminuísse. Também oferecia seminários às segundas-feiras, somente para quem desejasse formar grupos de trabalho. As notas introdutórias de seus cursos nos dão uma ideia desse acontecimento. Pessoas apinhadas, que a cada ano aumentavam, e que tornavam cada vez mais difícil o estabelecimento de um diálogo, como relatou na entrevista ao jornal Le Monde:

Seria bom poder discutir o que propus. Às vezes, quando a aula não foi boa, bastaria pouca coisa, uma pergunta, para por tudo no devido lugar. Mas essa pergunta nunca vem. De fato, na França, o efeito de grupo torna qualquer discussão real impossível. E como não há canal de retorno, o curso se teatraliza. Tenho com as pessoas que estão aqui uma relação de ator ou de acrobata. E quando termino de falar, uma sensação de total solidão… (Droit, 1975, s.p.)

Foucault manifestava a solidão de quem pesquisa, de quem dedica grande parte do seu tempo às bibliotecas, aos documentos, aos livros, à escrita, às correções, à reescrita até a perfeição. Contava que não lia os livros depois de prontos. Não havia mais nada para fazer com eles. Estavam soltos, para que servissem de ferramentas teóricas para outros. Caixas de ferramentas para pensar o presente.

Ironicamente, como não podia deixar de ser, foi objetivado e subjetivado pelos efeitos daquilo que produziu como filósofo, ativista, intelectual e professor, pelas relações de poder que percorrem o meio acadêmico e editorial. Como já anunciava em sua aula inaugural, cumpriu os rituais e as exigências que lhe outorgaram o direito à fala. Mas não sem ter sido alvo de críticas, de ser marginalizado, de sofrer a angústia de ter que permanecer no jogo acadêmico e editorial, respondendo às pressões direcionadas a quem escreve e precisa se superar a cada livro publicado. Jogos de poder que orquestram as disputas e que legitimam os saberes. Os mesmos jogos que regem a vida das pesquisadoras e dos pesquisadores que se utilizam de suas chaves teóricas.

Sua fala foi publicada, divulgada, aclamada. Foucault revolucionou o mercado editorial. Seus escritos tornaram-se tesouro nacional e hoje ele se transformou em arquivos. Arquivos que o fazem permanecer na biblioteca, lugar onde deixou tanto da sua vida. De pesquisador de arquivos, Foucault passou a ser um arquivo pesquisado.

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Recebido: 12 de Setembro de 2020; Aceito: 08 de Dezembro de 2020

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