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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 04-Ago-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.25549 

Resenhas

A mudança do imaterial: a internet chegou, e agora?

Caio Pinheiro Della Giustina1 
http://orcid.org/0000-0002-5469-615X

1Mestrando em Desenvolvimento Sustentável do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB) e Cientista Social formado pela UnB.

Quintarelli, S.. Instruções para um Futuro Imaterial. 2019. Elefante, 304p. ISBN: 978-85-93115-22-6.


Pode ser que você nunca tenha ouvido falar de Stefano Quintarelli (n. 1965), italiano, especialista em Tecnologia da Informação (TI), empreendedor, ativista, ex-deputado da República Italiana, coordenador da Agenzia per l’Italia Digitale [Agência pela Itália Digital]. Mas, é possível que ele se torne um nome importante quando o assunto for neutralidade de rede, instituições, regulação estatal, empresas e economia frente à universalização da internet. Essa importância ganha corpo quando, em seu mandato como Deputado da República, participou de discussões sobre a Carta de Direitos para a Internet, propondo projetos que visavam a regulação e a neutralidade da rede. Essa experiência, aliada ao trabalho de publicar constantemente artigos em seu blog e somada aos mais de 25 anos de expertise no campo da computação e da internet resultaram no livro Instruções para um futuro imaterial (2019), lançado no Brasil pela editora Elefante[1].

O livro é, majoritariamente, uma coletânea de escritos do próprio Quintarelli, na qual o autor se debruça em analisar as mudanças socioeconômicas globais que ocorreram em função do surgimento da internet. São textos que foram escritos ao longo das últimas três décadas e cujo intuito é analisar os processos de mudança na sociedade causada pela dimensão imaterial. Para tanto, o livro foi escrito com quatro “capítulos independentes” (Quintarelli, 2019, p. 23), mais anexos - textos complementares que explicam, de maneira técnica, ideias e conceitos que ordenam o mundo imaterial. Dessa forma, o primeiro capítulo trata, de maneira introdutória, dos princípios e conceitos básicos necessários para a compreensão do fenômeno histórico que é o mundo imaterial. O segundo aborda os impactos da imaterialidade, isto é, oferece ao leitor uma leitura sobre como a imaterialidade influenciou a materialidade: os eletrônicos se tornaram onipresentes em nossa vida; processos de terceirização do trabalho e aprisionamento tecnológico, formação de monopólios de empresas de tecnologia, dentre outros assuntos. O terceiro discorre sobre possíveis cenários futuros, estabelecendo previsões. Assim, enquanto o capítulo anterior reflete sobre o passado dos impactos, o capítulo três busca argumentar sobre o futuro de várias áreas das práticas humanas: jornais, livros, trabalho, saúde, comércio, transportes e vários outros elementos que ainda são passíveis de uma transformação orientada pela possibilidade do imaterial. Por fim, o quarto capítulo apresenta suas propostas de regulamentação e do que fazer neste mundo em constante mudança. É o capítulo em que o autor oferece elementos ao buscar superar as dificuldades das sociedades democráticas no enfrentamento das transformações do mundo imaterial.

De acordo com o autor, a internet e a revolução digital abriram as portas de acesso para outra dimensão: a dimensão imaterial, que é oposta à dimensão material. Explico: o dinheiro que existe nas contas bancárias, checados por aplicativos de celular, não existe enquanto papel moeda (por mais que seja possível realizar transações, pagar contas, comprar mercadorias, transferir, ou seja, todas as operações financeiras sem necessidade de uma cédula de papel). Portanto, o que Quintarelli argumenta é que as coisas, para existirem, não necessitam de um suporte material, basta um aparelho conectado à rede e pronto: estar-se-á diante da dimensão imaterial.

É interessante perceber que

a realidade desta dimensão imaterial vira do avesso a maior parte daquilo que os manuais de economia até hoje ensinam aos estudantes. […] Parte crescente da vida contemporânea deixa de responder à consagrada definição segundo à qual a economia é a ciência que estuda os recursos escassos entre fins alternativos. [Pois] Na dimensão material, mesmo que custe muito produzir algo, reproduzir e distribuir torna-se virtualmente gratuito (Quintarelli, 2019, p.10-11).

Dessa forma, ao longo do livro, percebe-se que, na dimensão imaterial, reproduzir, armazenar e transferir não custam nada. A remuneração do trabalho humano altera-se, pois, máquinas, softwares e computadores fazem trabalhos antes ocupados por humanos; os bens não perecem, não são rivais, nem excluíveis – situação na qual um comprador elimina a possibilidade do outro de consumir o mesmo produto. Todas estas características do mundo imaterial provocaram profundas mudanças na contemporaneidade.

Dentre as várias mudanças ocorridas, os avanços na área de tecnologia permitiram o surgimento de criptomoedas, empresas mediadoras de serviços (como Uber, Airbnb, Ebay), além de promover mudanças drásticas no cenário internacional das maiores empresas do mundo. Quanto a este último ponto, é interessante notar que “as características fundamentais da dimensão imaterial praticamente eliminam custos e prazos, descartando os gastos de processamento e aumentando os lucros” (Quintarelli, 2019, p.123). Isso contribui para entender que, em 2016, todas as cinco maiores empresas em valor de mercado são da área da tecnologia[2].

Por outro lado, tais mudanças na economia acompanharam paralelamente mudanças na sociedade e na maneira como a humanidade se relaciona com as coisas e entre si. Nesse ponto, Quintarelli é técnico ao mesmo tempo que simples: explica didaticamente ao leitor conceitos e como eles se relacionam com a realidade. Em outras palavras, explica a nova realidade criada pelo processo de desmaterialização, ao mesmo tempo operacionalizando em sua análise os conceitos de: nativos, pioneiros, colonos e imigrantes digitais; information overload [sobrecarga de informação]; aprisionamento tecnológico; desmaterialização; Open Innovation; efeito de rede; monopólios no mundo da tecnologia; backchannel. flash mobs. crowdfunding. crowdsourcing e muitos outros.

Todas as alterações causadas pela desmaterialização geraram novos problemas. Então, se faz necessário compreender tais fenômenos para não permitir que os ônus da tecnologia se sobreponham ao bônus e às facilidades que elas trazem ao cotidiano. Para Quintarelli (2019, p. 129), “vivemos em um mundo onde nossa maior empresa de táxi (Uber) não tem nenhum veículo, nossa mídia mais popular (Facebook) não cria conteúdo, […] nossa maior empresa de hospedagem (Airbnb) não tem sequer nenhum hotel.” Para além disto, vivemos em um mundo em que a inteligência artificial ocupa cada vez mais relevância na vida contemporânea: ela guia carros, extinguindo a necessidade de um condutor; os algoritmos que programam as inteligências artificiais aprendem o padrão de comportamento do usuário e passam a selecionar determinado tipo de conteúdo em detrimento do outro.

Estes são apenas dois exemplos: em um universo infinito de novas possibilidades e configurações para o mundo material e imaterial, o autor aponta para a necessidade de regulamentação destas novas práticas que foram possibilitadas pela revolução digital. Ele demonstra essa preocupação em vários momentos do livro. No caso da inteligência artificial, chegará o momento em que a máquina não precisará de programadores para configuração: ela aprenderá sozinha. A partir desse momento, quem seria responsável pelas ações de uma inteligência artificial? “Bastaria dizer que uma decisão foi tomada por uma máquina para eximir-se da responsabilidade […]?” (Quintarelli, 2019, p.119)

É justamente neste ponto que se percebe uma das grandes contribuições da reflexão de Quintarelli (2019, p. 11): “O ritmo das mudanças tecnológicas é exponencial e o tempo da política nem de longe é capaz de acompanhá-lo”. Em outras palavras, isso significa que a velocidade das mudanças ocorridas no campo tecnológico (muitas vezes de empresas privadas) é extremamente maior à velocidade cujos governos conseguem adequar para criar novas regulações que consigam abarcar as transformações sociais causadas pela tecnologia – e essa diferença entre velocidades é uma das grandes fontes de mal-estar contemporâneas.

Portanto, Quintarelli observa, expõe, analisa e faz previsões sobre a influência do mundo imaterial na nossa vida. As mudanças tecnológicas, econômicas, relacionais, políticas e espaciais causadas pelo advento do mundo imaterial afetam desde áreas do comércio a diferentes tipos de profissionais (desde jornalistas, atores, motoristas, professores, estudantes), a meios de transporte, logística, segurança de redes, publicidade, saúde, investigações policiais, energia, dentre várias outras áreas.

O livro, por se tratar de um compilado de textos, em alguns momentos torna-se repetitivo em suas ideias. Assuntos abordados nas páginas iniciais são expostos novamente páginas à frente. Por outro lado, algumas previsões de caráter abrangedor que Quintarelli faz parecem ser de difícil realização. Quintarelli escreve como autor italiano que lida com tecnologias disponíveis na Europa, portanto, seu saber é localizado. Ao ler tais previsões, é preciso se perguntar se, nos países de terceiro mundo, as coisas acontecerão da mesma forma. As diferenças culturais não irão sobreviver ao avanço global da tecnologia? E, ainda mais, a necessidade de regulação que ele tanto defende poderá acontecer em outros lugares do mundo da mesma forma que ocorreram nos padrões europeus?

Por mais que existam estes poucos problemas na obra de Quintarelli, seu trabalho funciona como uma boa introdução para aqueles que são curiosos sobre tecnologias e para quem é leigo no assunto. É uma leitura fácil, pois o autor é conciso e claro – méritos também para a tradutora que faz intervenções que contribuem para o entendimento do mundo europeu e italiano na língua portuguesa. Portanto, é um livro altamente recomendado para leigos da área de TI que se preocupam em compreender sobre as mudanças do imaterial na vida material.

Referências

Quintarelli, S. (2019). Instruções para um Futuro Imaterial (Tradução de Marcela Couto). Elefante. [ Links ]

[2]Em ordem decrescente: Apple (528 bilhões de dólares); Alphabet (556 Bilhões de dólares); Microsoft (452 bilhões); Amazon (364 bilhões); Facebook (359 bilhões).

Recebido: 01 de Julho de 2019; Aceito: 23 de Junho de 2020

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