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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília ene./dic 2020  Epub 24-Sep-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.33753 

Entrevistas

Etnografia crítica na pesquisa em educação: entrevista com o professor Jefferson Mainardes

Etnografía crítica en investigación educativa: entrevista con el profesor Jefferson Mainardes

Critical ethnography in educational research: interview with professor Jefferson Mainardes

Camila Bourguignon de Lima1 
http://orcid.org/0000-0002-3649-9320

Angelo Eduardo Rocha2 
http://orcid.org/0000-0003-0197-554X

Jussara Ayres Bourguignon3 
http://orcid.org/0000-0002-2448-4121

1Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, UFPR (2020). Membro no núcleo de estudos e pesquisa “Práticas Escolares, Docência e Cultura” da UFPR.

2Mestrando no Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR, UEPG. Membro do grupo de estudos e pesquisa “Conhecimento no Jornalismo” e do “Núcleo de produção audiovisual” da UEPG.

3Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP (2005). Professora associada da Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR (UEPG) junto ao Curso de Serviço Social e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas. Membro do núcleo de estudos e pesquisa “Estado, Políticas Públicas e Práticas Sociais” da UEPG.


Resumo

Socializar reflexões sobre os elementos que compõe a Etnografia Crítica, enquanto metodologia de pesquisa, bem como os seus desafios é objetivo deste texto, que expõe entrevista realizada com o Professor Doutor Jefferson Mainardes, professor Associado do Departamento e do Programa de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Pesquisador de expressão na área de educação apresenta uma trajetória profissional e acadêmica comprometida com a formação crítica de professores e com a pesquisa científica. A entrevista aponta o potencial da Etnografia Crítica no processo de formação de pesquisadores que buscam alternativas para desenvolver pesquisas organicamente vinculadas às suas práticas profissionais no âmbito das políticas públicas. É neste espaço interventivo que a pesquisa pode ser recurso para garantir voz à cidadã e ao cidadão, que vivenciam em seu cotidiano múltiplas expressões da questão social.

Palavras-chave Educação; Pesquisa; Etnografia crítica

Resumen

Socializar reflexiones sobre los elementos que componen la Etnografía Crítica, como metodología de investigación, así como sus desafios es el objetivo de este texto, que expone una entrevista con el profesor Jefferson Mainardes, profesor asociado del Departamento y del Programa de Educación de la Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). El investigador de expresiones en el campo de la educación tiene una trayectoria profesional y académica comprometida con la formación crítica de los docentes y la investigación científica. La entrevista señala el potencial de la Etnografía Crítica en el proceso de capacitación de investigadores que buscan alternativas para desarrollar investigaciones orgánicamente vinculadas a sus prácticas profesionales dentro del alcance de las políticas públicas. Es en este espacio de intervención donde la investigación puede ser un recurso para garantizar una voz para los ciudadanos, que experimentan múltiples expresiones del problema social en su vida cotidiana.

Palabras clave Educación; Investigación; Etnografía crítica

Abstract

Socializing reflections on the elements that make up Critical Ethnography, as a research methodology, as well as its challenges is the objective of this text, which exposes an interview with Professor Jefferson Mainardes, Associate Professor of the Department and of the Education Program at Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Expression researcher in the education field has a professional and academic trajectory committed to the critical training of teachers and to scientific research. The interview points out the potential of Critical Ethnography in the process of training researchers who seek alternatives to develop research organically linked to their professional practices within the scope of public policies. It is in this intervention space that research can be a resource to guarantee a voice for citizens, who experience multiple expressions of the social issue in their daily lives.

Keywords Education; Research; Critical ethnography

Introdução

Jefferson Mainardes, professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), apresenta uma trajetória profissional e acadêmica comprometida com a formação crítica de professores e com a pesquisa científica que impacta na realidade social em uma perspectiva emancipatória. Observa-se no seu currículo um vínculo permanente com a área de educação. Cursou Licenciatura em Pedagogia (1988) pela UEPG e Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1995). É doutor em Educação (PhD) pelo Institute of Education/University of London (IOE/UL, Inglaterra). Marca em seu debate sobre pesquisa etnográfica o comprometimento com os processos de transformação social e com a produção de conhecimento crítico. Por este ângulo, o conhecimento científico alimenta práticas sociais e profissionais que movimentam novas formas de sociabilidade, o que possibilita romper com as manifestações de opressão, desigualdade e exclusão social que afetam indivíduos, grupos sociais, comunidades em dado contexto social e histórico. Cabe destacar, o potencial da etnografia crítica, enquanto metodologia de pesquisa, no processo de formação de pesquisadores que buscam alternativas para desenvolver pesquisas organicamente vinculadas às suas práticas profissionais no âmbito das políticas públicas. É neste espaço interventivo que a pesquisa pode ser recurso para garantir voz à cidadã e ao cidadão, que vivenciam em seu cotidiano múltiplas expressões da questão social.

Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq, é referência na área de sociais e humanidades quanto ao debate sobre ética e epistemologias da Política Educacional[1]. Neste aspecto, destaca-se seu protagonismo como integrante do GT de Ciências Humanas e Sociais da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no período de 2013 a 2015. É editor da Revista Práxis Educativa e da Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa. Foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEPG no período de 2010 a 2014. Desde 2015 é Honorary Senior Research Associate do Instituto de Educação da University College London. Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado no período de 2015 a 2016 no UCL/Instituto of Education (Londres). Desde 2019 é coordenador do Comitê de Assessoramento da área de Educação no CNPq (CA-ED – CNPq).

Como docente e formador de pesquisadores, coordenou os seguintes fóruns: Fórum de Editores de Periódicos da área de Educação (Fepae Sul 2010-2014); Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Educação (Forpred 2012-2014); Fórum Sul de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Educação (Fórum Sul 2010-2012). É coordenador do Grupo de Pesquisa Políticas Educacionais e Práticas Educativas (GPPEPE), cadastrado no CNPq. Entre os destaques presentes em seu Currículo Lattes, desenvolve desde 2016 a pesquisa continuada “A produção de conhecimento acadêmico em Política Educacional: uma análise a partir dos Grupos de pesquisa cadastrados no CNPq” e, desde 2018, a pesquisa “Formação de pesquisadores para o campo da Política Educacional”.

Por fim, trata-se de uma relevante oportunidade apresentar a entrevista[2] realizada com o Professor Dr. Jefferson Mainardes, que objetiva socializar reflexões sobre os elementos que compõe esta metodologia de pesquisa, bem como os seus desafios.

Entrevistadores (E): O que é etnografia?

Professor Jefferson Mainardes (JM): Originalmente, etnografia é o registro e análise de uma cultura ou sociedade, geralmente baseada na observação participante, resultando em um relatório escrito a respeito de pessoas, grupos, lugares ou instituições. A etnografia pode ser considerada como um método de pesquisa que se utiliza vários procedimentos de coleta, geralmente a observação que seria a técnica principal, mas também, as entrevistas, a coleta de documentos, de materiais, de conversas informais. Então, a principal característica da etnografia é a inserção num contexto específico, numa cultura específica e o que vai determinar a densidade dos dados da etnografia é o tempo que o pesquisador ficará no campo. A etnografia não é uma única visita, uma única observação. Para que ela tenha validade, a etnografia precisa de uma duração no tempo, uma permanência no espaço da escola ou no espaço que esteja sendo investigado. A maioria das pesquisas etnográficas deseja conhecer uma cultura específica. Nesse sentido, os pesquisadores vão para o campo e lá eles vão ficar por um tempo longo, vão fazer anotações no diário de campo, coletarão documentos, folhas de trabalho que são utilizadas, etc. Muitas vezes, o pesquisador fotografa ou filma situações, sempre com a devida permissão dos participantes da pesquisa.

E: Qual a situação da literatura sobre etnografia no Brasil?

JM: Ótima pergunta, porque no Brasil a bibliografia sobre pesquisa é um pouco limitada com relação à etnografia. A maioria dos livros de metodologia da pesquisa tem pouca informação sobre a pesquisa etnográfica, como utilizá-la, das questões éticas envolvidas. São textos muitos abreviados. No livro “Pesquisa social: reflexões teóricas e metodológicas” (Mainardes, 2009), há um capítulo sobre etnografia. Tomamos por base o livro de Hammersley e Atkinson (1995) que se chama “Etnografia: princípios na prática”. É um livro em inglês que é considerado um dos principais livros de etnografia e é muito usado na área de educação. Esse livro é do ano de 1986, mas ele sofreu várias adaptações e ampliações. É um livro muito importante na área de educação, principalmente, porque, ele traz todos os princípios da etnografia – como fazer a etnografia, como escrever o relatório de pesquisa e as questões éticas envolvidas no trabalho da pesquisa etnográfica. Mas a literatura inglesa é muita ampla, então, sempre que nós vamos escrever algo na tese, na dissertação ou em algum texto, é importante verificar o que existe na língua inglesa, também em outras, na língua francesa, na língua espanhola, para que nós possamos ampliar a discussão no Brasil. Há também poucos textos sobre tipos específicos de etnografia, como por exemplo, a etnografia crítica.

E: Qual o papel da teoria na análise dos dados de uma pesquisa etnográfica?

JM: É uma pergunta muito interessante. Temos trabalhado bastante com essa questão do papel da teoria, principalmente na Red de Estudios Teóricos y Epistemológicos em Política Educativa (Relepe). Um dos objetivos dessa rede é justamente enfatizar o papel da Epistemologia e da teoria na pesquisa. Muitas vezes, a teoria é deixada um pouco de lado no processo de pesquisa e sem uma boa teoria nós não temos uma boa análise, uma boa pesquisa. Bachelard, G. (1996) dizia que uma pergunta fraca admite uma resposta fraca ou abstrações vagas e imprecisas. Por analogia, temos refletido que teorias mais fracas levam a análises fracas, teorias fortes levam a análises fortes, ou teorias de gramática forte, como dizia Bernstein (1999), levam a uma teorização mais adequada. Obviamente que há limites e ressalvas, pois depende muito como o pesquisador opera com as teorias que ele adota. Nem sempre os pesquisadores operam de forma satisfatória com as teorias, mas de modo geral, quando debatemos conceitos como vigilância epistemológica, reflexividade, entre outros, estamos trabalhando com um nível mais elevado de consciência das perspectivas teórico-epistemológicas que utilizamos (Mainardes, 2017; 2018b). É também desafiador criar critérios para definir o que é uma teoria de gramática forte e de gramática fraca. Assim, como em qualquer outra pesquisa, a teoria ocupa um papel fundamental na pesquisa etnográfica.

Eu creio que o rigor na pesquisa começa desde o projeto até a divulgação dos resultados. O rigor tem a ver com a existência de uma teoria de base que vai fundamentar aquele estudo. Então, por exemplo, eu posso fazer uma pesquisa etnográfica, mas eu tenho uma teoria. Essa teoria está associada a alguma epistemologia e essa epistemologia, ela está associada, por sua vez, a pressupostos ontológicos mais amplos que tem a ver com uma determinada visão de mundo, de sociedade, de educação, etc. Quando nós temos uma teoria de base nós temos uma linguagem de descrição para nossos objetos empíricos.

E: Quais os seus principais apontamentos em relação à etnografia crítica?

JM: A etnografia crítica foi formulada, principalmente, por um autor americano que se chama Carspecken (1996), que desde os anos 1990 desenhou essa metodologia. A etnografia crítica é geralmente voltada para contextos adversos, contextos de desigualdade, de exploração, de injustiça. Então, o compromisso do pesquisador que faz etnografia crítica é justamente conhecer aquela realidade de forma aprofundada, ter muito intercâmbio com os sujeitos que estão envolvidos naquela situação, para que juntos eles possam tentar propor alguma transformação. Eu tenho interesse pela etnografia crítica principalmente porque ela não é feita somente pelo pesquisador. Na análise, o pesquisador precisa voltar para o campo e junto com os participantes verificar se aquelas relações que ele estabeleceu são adequadas para aquele contexto. Numa das etapas da etnografia crítica – que são cinco – quando o pesquisador já tem os dados e já tem as categorias de análise – os sistemas de relação que ele descobriu – ele volta para o campo, discute aquelas ideias, na linguagem obviamente apropriada para os participantes, e juntos analisam esses dados e, no final, buscam uma explicação para aqueles fenômenos, para aquela realidade de exploração, de opressão e juntos buscam pensar formas de transformação, autossuperação ou como aquela situação poderia ser vista/compreendida de outra forma.

Em 2011, em um artigo publicado na Revista Educação e Realidade (UFRGS), apresentamos as ideias principais e exemplos[3]. Um dos exemplos é a pesquisa de Maria Helena Souza Patto (1990), que é uma professora já aposentada da USP da área de Psicologia. Ela fez um estudo sobre o fracasso escolar, as histórias de submissão e rebeldia, analisando casos de crianças que eram reprovadas várias vezes no primeiro ano de escola. E analisa essas histórias todas e no final da pesquisa mostra quais as possibilidades, o que seria necessário para que aquela história fosse diferente. Então, a etnografia crítica tem muito esse caráter de transformação. Não é só coletar dados e nunca mais voltar para aquele campo. Geralmente, os pesquisadores etnografia crítica estão muito engajados com os grupos com quais investiga.

Quando eu fiz a minha pesquisa de Doutorado, eu tinha um compromisso com aqueles professores e professoras, com a realidade da escola em ciclos, com a alfabetização. E quando eu voltei, eu não me sentia um pesquisador à distância, mas eu me sentia parte daquele processo. Eu considerava que era importante ter uma resposta para aquele contexto, pensando como poderia ser melhor, como as práticas poderiam ser melhores, como a política de ciclos poderia ser mais bem desenvolvida no contexto pesquisado ou em outros contextos. Então, eu gosto muito dessa abordagem da etnografia crítica por conta do engajamento para a compreensão da realidade para a sua transformação.

E: E como é a devolutiva da pesquisa para a escola e os professores quando é desenvolvida a partir da etnografia crítica?

JM: Toda pesquisa necessita voltar para o campo e ser apresentada e discutida, mas a etnografia crítica, desde a sua realização, já conta com a presença e a participação dos sujeitos, e ela conta com a participação deles na análise. Por exemplo, numa das etapas da pesquisa, depois que eu havia descoberto e investigado várias questões dos ciclos e das salas de aula, eu voltei pras escolas para discutir com os professores, para ver se aquela avaliação que eu estava fazendo era correta, se eles concordariam com aquela minha análise. Então, a devolutiva já se deu no processo, e houve uma intervenção no processo, e depois de terminada a pesquisa, eu também retornei às escolas, não em todas elas, mas houve um espaço para que eu pudesse apresentar os dados.

E: A presença do(a) etnógrafo(a) no campo de investigação convida os indivíduos ou os grupos pesquisados a pensarem sobre suas práticas cotidianas?

JM: O objetivo inicial da etnografia não é exatamente levar os participantes a pensarem sobre as práticas cotidianas embora, no processo, possa levar a isso. Na etnografia, a presença do pesquisador, que é um sujeito estranho no campo, sempre vai interferir no contexto. Assim, a presença de alguém observando a escola ou a sala de aula vai interferir naquele espaço. Por essa razão, muitas vezes, na etnografia, nós não revelamos todos os objetivos da pesquisa, para evitar mudança no comportamento natural das pessoas ou nas práticas. É claro que pesquisa é processo, então durante o processo de pesquisa pode ser que seja necessária alguma intervenção, se o pesquisador for convidado e se ele se sentir capacitado para interferir, para responder algo, porque o objetivo dele não é fazer exatamente interferir, o que é mais apropriado para as pesquisas participativas. Na pesquisa etnográfica, o pesquisador busca compreender um fenômeno, uma realidade.

E: Poderia nos contar como foi realizar etnografia na sua pesquisa de doutorado, participar da dinâmica da escola, estabelecer contato direto com os sujeitos e os grupos com o qual dialogou.

JM: A etnografia é sempre muito rica e muito desafiadora. Nós aprendemos muito com ela. No meu caso, observei escolas e salas de aula e pude olhar muito alguns traços da cultura escolar, de como os professores ensinavam, quais eram as dificuldades que eles tinham para lidar com os elementos da organização da escola em ciclos, a questão da não reprovação, a questão da avaliação formativa, das práticas de alfabetização. Só que aquele contexto que eu pesquisava era um contexto familiar para mim, porque durante alguns anos, desde a metade dos anos 80, eu atuei como professor dos anos iniciais na Rede Estadual do Paraná, como professor de classe de alfabetização. Assim, eu já havia trabalhado na implantação do ciclo básico nas escolas estaduais no Paraná, tinha feito pesquisa de Mestrado sobre isso. Aquele contexto era familiar e eu precisava ver o estranho. Eu precisava olhar aquele contexto e ver o que era relevante e novo para dar sentido à pesquisa.

Duas observações que eu fiz no campo permitiram um salto qualitativo na análise. A primeira delas, que são coisas muito específicas da sala de aula, é que as turmas eram heterogêneas, havia diferentes níveis na sala de aula, e o ensino era homogêneo. Então, havia necessidade de atender de forma satisfatória os diferentes níveis na sala de aula e que, de modo geral, se dá com a pedagogia diferenciada ou com a diversificação das tarefas. E a segunda questão que eu observei é que havia, nas salas de aula, processos de exclusão interna, ou seja, alguns alunos passavam de um ano para o outro, mas apresentavam lacunas significativas na aprendizagem. Como nem sempre recebiam a mediação necessária, acabavam ficando excluídos do processo de aprendizagem. Assim, o princípio da aprendizagem como um processo contínuo, que é essencial na escola em ciclos, não se efetivava. Todos esses dados foram desenvolvidos justamente, porque eu precisei me policiar muito nesse contexto, que já era familiar, para ver aquilo que era interessante, novo, que eu ainda não tinha observado e uma das coisas que eu mais observei foi a questão das classes heterogêneas e do trabalho homogêneo. A partir disso, houve uma intervenção, a pedido de duas professoras. Desenvolvemos um uma espécie de subprojeto dentro da pesquisa da tese. Trata-se do “Projeto DiferenciAção: criando classes mais igualitárias por meio do trabalho diversificado” (Mainardes, 2007a), elaborado em 2003 e ampliado nos anos seguintes. Toda a base do projeto só se tornou possível devido às provocações da pesquisa e a abertura de um espaço de construção conjunta de um projeto de intervenção. Posteriormente, lendo um livro de José de Souza Martins (1997), aprendi que o que chamamos de exclusão é, na verdade, uma inclusão frágil, instável, marginal. Mas, de modo geral, a etnografia trouxe inúmeros outros insights, gerando várias demandas de autopesquisa. Um exemplo disso é a questão das práticas sistemáticas na alfabetização. A etnografia mostrou-me que, nos contextos onde as práticas são pouco estruturadas, muitas crianças têm mais dificuldade para a apropriação da leitura e da escrita. Na conclusão da tese, publicada em Português, defendo a prática pedagógica mista e o ensino explícito, com base em estudos empíricos bem conduzidos. A partir deles e de uma série de outras vivências, desenvolvi melhor a ideia das práticas sistemáticas significativas (Mainardes, 2018a). Creio que essas novas ideias, projetos, verbetes não seriam possíveis sem o trabalho minucioso, detalhista e exaustivo que a etnografia requer. É um aprendizado e uma experiência.

Então, a etnografia é muito rica, mas temos que tomar certo cuidado para que não se torne uma intrusão indevida. Quando nós estamos no campo e somos convidados a participar mais ativamente, temos que respeitar integralmente os participantes da pesquisa, a história dos sujeitos, da escola, refletir se realmente aquela ação está sendo necessária, se nós temos preparo para executá-la ou não, se ela é viável ou não. Naquele contexto, eu me senti na obrigação de me envolver, porque houve um convite de duas das professoras das classes que eu observava. Como eram aspectos relacionados à alfabetização, eu achei que poderia fazer algo. O resultado foi positivo para aquele contexto e para as ações que pude desenvolver posteriormente, em outros contextos ou com meus alunos e alunas da Graduação em Pedagogia.

E: Por último, você poderia indicar algumas das questões éticas da etnografia?

JM: A etnografia suscita inúmeras questões éticas. Estas vão desde a seleção e acesso ao campo de pesquisa até a análise e publicação dos resultados. Em primeiro lugar, ele necessita do consentimento dos participantes. Dependendo da postura e posicionamento do pesquisador, o campo estará mais ou menos receptivo à participação do pesquisador. Como o pesquisador estará imerso no cotidiano pesquisado, com diferentes níveis de participação, é essencial a garantia do anonimato e a confidencialidade das informações a que têm acesso. Requer, ainda, a análise de dados reflexiva e contextualizada, evitando disseminar uma visão distorcida e limitada daquilo que observou visando evitar análise parciais e caricaturadas da realidade. Assim, envolve questões éticas na interação com os participantes e, sobretudo, na análise dos dados.

E: Agradecemos a oportunidade que nos propiciou ao compartilhar seus conhecimentos e experiência na área da pesquisa social.

Referências

Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico: contribuições para uma psicanálise do conhecimento. Contraponto. [ Links ]

Bernstein, B. (1999). Vertical and horizontal discourse: an essay. British Journal l of Sociology of Education, 20(2), 157-173. http://doi.org/10.1080/01425699995380Links ]

Carspecken, P. F. (1996). Critical Ethnography and Educational Research: a theoretical and practical guide. Routledge. [ Links ]

Hammersley, M., & Atkinson, P. (1995). Etnography: principles in practice. Routledge. [ Links ]

Mainardes, J. (2007a). Projeto DiferenciAção: criando classes mais igualitárias por meio do trabalho diversificado. UEPG. https://www.researchgate.net/publication/282157643_Projeto_diferenciAcao_criando_classes_mais_igualitarias_por_meio_do_trabalho_diversificado_2007Links ]

Mainardes, J. (2009). Pesquisa etnográfica: elementos essenciais. In J. A. Bourguignon (Org.). Pesquisa social: reflexões teóricas e metodológicas. Todapalavra. [ Links ]

Mainardes, J. (2017). A pesquisa sobre Política Educacional no Brasil: análise de aspectos teórico-epistemológicos. Educação em Revista, 33. http://doi.org/10.1590/0102-4698173480Links ]

Mainardes, J. (2018a). Práticas sistemáticas significativas: conceituação e implicações. http://doi.org/10.13140/RG.2.2.28253.05605Links ]

Mainardes, J. (2018b). A pesquisa no campo da política educacional: perspectivas teórico-epistemológicas e o lugar do pluralismo. Revista Brasileira de Educação, 23, e230034. http://doi.org/10.1590/s1413-24782018230034Links ]

Mainardes, J., & Marcondes, M. I. (2011). Reflexões sobre a Etnografia Crítica e suas Implicações para a Pesquisa em Educação. Educação & Realidade, 36(2), 425-446. https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/17004/12916Links ]

Martins, J. de S. (1997). Exclusão social e a nova desigualdade. Paulus. [ Links ]

Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. T a Queiroz. [ Links ]

[1]As informações da apresentação do entrevistado foram retiradas de seu Currículo Lattes, que pode ser consultado em: http://lattes.cnpq.br/1869253922319886

[2]A entrevista realizada no dia 4 de julho de 2018 nas dependências do Programa de Pós-Graduação em Educa da Universidade Estadual de Ponta Grossa foi autorizada pelo Professor Jefferson Mainardes para publicação em periódico. Tratando-se de entrevista, o Comitê de Ética em Pesquisa não se aplica.

[3]Ver Mainardes e Marcondes (2011).

Recebido: 26 de Agosto de 2020; Aceito: 19 de Setembro de 2020

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