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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 14-Out-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.34622 

Dossiê: Tempo de pausa ou de crise? Assumir a infância e a educação como prioridades

Assumir a infância e a educação como prioridades

Lisandra Ogg Gomes1 
http://orcid.org/0000-0002-3601-7758

Monique Aparecida Voltarelli2 
http://orcid.org/0000-0003-2605-0930

1Professora Adjunta no curso de graduação em Educação, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Território dos Estudos da Infância (TEI/UERJ).

2Doutora em Educação pela USP. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, e do Programa de Pós-Graduação em Educação Modalidade Profissional (PPGEMP-UnB), e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Sociologia da Infância e Educação Infantil (GEPSI/ FEUSP).


[…] as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas se volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo das coisas, um pequeno mundo inserido no grande (Benjamin, 2002, p. 57-58[1]).

Nos dias de hoje, que rosto o mundo das coisas tem voltado para as crianças? Que relações novas e incoerentes as crianças têm (re)estabelecido com o mundo e as pessoas? Que mundo as crianças têm formado que ainda não conhecemos? Esse mundo, das coisas e pessoas, assumiu a infância e a educação como prioridades?

A citação que abre a apresentação deste Dossiê tem como propósito retomar o antigo para pensarmos o novo, o simples, mas não simplório, retomar algo que elucide as formas de perceber e recriar as relações sociais, no sentido de, a partir de uma dimensão “clássica”, pensar e formar algo outro que se compõe como uma constelação com funções diversas e para realização de uma diferente figura (Cicu, 2005 [2] ). Dessa forma, queremos conduzir as/os leitoras/es a colocarem em destaque uma rede de correlações e constelações para formar uma figura diferente, a qual possibilite perguntas e reflexões.

De antemão, sabemos que não temos respostas para essas questões, mas, para além delas, o mais complexo é fazer perguntas que nos façam parar, refletir e pensar o nosso mundo. Perguntas, trocas e encontros que permitam verdadeiros diálogos com as crianças e com a infância, portanto que possamos compreender que interações estão interagindo com esse tempo (Rosemberg, 1976 [3] ). Foi assim que partimos da premissa de que não existe ação sociocultural, política ou econômica sem as crianças e a infância, e que colocá-las na condição de estar em primeiro lugar em importância é compreender que isso dá por formarem um grupo minoritário, sem altos e maiores privilégios, com características físicas ou culturais que as singularizam, as tornam invisíveis e as colocam à parte da sociedade, com um tratamento diferencial, desigual e com atitudes paternalistas “no sentido de uma estranha combinação de amor, sentimentalismo, senso de superioridade em relação à compreensão equivocada das capacidades infantis e à marginalização” (Qvortrup, 2011, p. 210 [4] ).

Esta discussão a respeito da condição minoritária, marginal, e também sobre estabelecer as crianças e a infância como prioridade na sociedade e tornar visíveis suas ações e falas não é algo novo, são proposições que fundamentam os Estudos da Infância, assim como também embasam os debates em nossos grupos de pesquisa, com nossos interlocutores teóricos e em nossas investigações. É um debate constante e militante, o qual possibilitou que a infância e as crianças fossem aos poucos ganhando corpo como categoria e sujeitos de direitos, sobretudo após a redemocratização política brasileira. Porém, a partir do golpe jurídico-parlamentar de 2016 e a chegada ao poder de um governo de extrema-direita, a prioridade passou a ser de outra ordem, com um viés ideológico de tutela, depreciação e desconsideração de qualquer ação infantil, tratando a infância como futuro possível de ser moldado e controlado.

Esse cenário gera tensões, incertezas e embates para o atual momento, que foi agravado pela crise epidêmica e afetou de maneira profunda a infância e as crianças. Foi a partir desse quadro que organizamos este dossiê, para tratar das políticas destinadas à infância e educação, às novas exigências socioculturais para as crianças e suas relações com adultos, jovens e velhos e sua posição e atuação na sociedade de hoje. Assim, ponderamos que para tratar destas questões seria preciso privilegiar diferentes campos das ciências humanas, a fim de buscar um diálogo presente, mas pautado em produções teóricas e caracterizado por revisões, ponderações e reorganizações das práticas e dos discursos socioculturais e educacionais.

Também entendemos que era preciso registrar esse momento de crise, considerando, conformando e ponderando os vários interesses em jogo quando a vida cotidiana entra em estado de espera, temor e incerteza, e mostra-se muito mais frágil do que se pensava. Escolas fechadas, isolamento social, encontros virtuais, famílias ilhadas, trabalhos em semi-suspensão, desemprego etc.; é, sem dúvida, um estado de exceção que nos exige parar e pensar no querer coletivo, naqueles que estão à margem e naquilo que desejamos construir enquanto sociedade. Dessa forma, nos questionamos: O que na atual conjuntura devemos valorizar? Como as relações sociais estão se desenvolvendo? Quais outras possibilidades despontam? Quais novas estruturas temporais e espaciais serão estabelecidas? O que há no amanhã?

O não saber que se instaurou se relaciona à crise econômica e política que vivíamos antes da crise pandêmica – com as reformas trabalhistas e da previdência, cortes orçamentários para a educação e saúde, ensino doméstico ou domiciliar e escola sem partido – agora paira sobre nós outros retrocessos ainda mais significativos, que são pautas de estudiosos/as e pesquisadores/as de diversas áreas, reunidos aqui com suas análises, críticas, ponderações e questionamentos. É uma perspectiva crítica à modernidade e um posicionamento político a respeito da infância e da educação em tempo de crise e de pausa.

Visibilidade e prioridade: quais crianças estão sendo notadas?

As questões que envolvem este Dossiê visam dialogar, a partir de diferentes perspectivas, sobre as situações que perpassam a vida das crianças em cenário de crise, principalmente em um momento em que as circunstâncias e as condições de vida das crianças estão sendo agravadas diariamente.

O conjunto de direitos explicitados pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em 1989 (Brasil, 1990) [5] , o qual foi ratificado por 196 países, reconhece a necessidade de melhorar a situação de vida das crianças, principalmente em todos os países em desenvolvimento. No Brasil, de acordo com o Art. 227 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988 [6] ), as crianças devem ter seus direitos fundamentais assegurados, com absoluta prioridade, por meio da família, da sociedade e do Estado, ressaltando a proteção diante de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

De acordo com o Observatório da Criança e do Adolescente (2020 [7] ), em 2019 estimava-se que cerca de 69,3 milhões de crianças e adolescentes compunham a população brasileira, sendo que destas, 26,3 milhões estão em famílias que vivem em situação de pobreza e miséria no país. Outros dados, de acordo com esse documento (Observatório da Criança e do Adolescente, 2020), demonstram situações preocupantes em que as crianças se encontram: 4,1% das crianças de 0 a 5 anos estão em situação de desnutrição; a taxa de mortalidade infantil perpassa 12,2 %, com indicadores agravantes no Nordeste; apenas 28,6% das crianças de 0 a 3 anos estão matriculadas em creches; 188.216 mil crianças entre 6 e 14 anos estão fora da escola; 86,7% de notificações registradas de meninas violentadas sexualmente; 2.390.846 milhões de crianças de 5 a 17 anos de idade trabalham; no último ano, houve um aumento nas taxas de homicídios entre crianças negras, apontando quatro vezes mais já registrados na história, demonstrando os efeitos do racismo e da discriminação no Brasil, atingindo em especial as crianças e os jovens.

Esse panorama demonstra o caráter paradoxal com que as crianças são consideradas pela sociedade adultocêntrica (Sarmento & Pinto, 1997, p. 2 [8] ), uma vez que, no discurso legal, a demonstração de preocupação e compreensão da prioridade de ações que garantam os direitos das crianças é claro, entretanto, as lacunas para a efetivação dos direitos têm deixado rastros complicadores e desfavoráveis para a vida delas.

A compreensão das crianças enquanto um vir a ser cidadão e a “promessa futura para uma sociedade melhor” tem negligenciado suas vidas no tempo presente, com inconsistências de uma agenda pública, com ações incoerentes e que desconsideram as necessidades reais vividas cotidianamente por elas em tempos de crise, e que ficaram mais evidentes com os efeitos causados pela pandemia da COVID-19.

Pensar a infância enquanto categoria geracional na estrutura social se torna uma conceitualização necessária e urgente, principalmente em tempos de crise em que se nota, de forma mais manifesta, como as crianças e os adolescentes sofrem com os impactos econômicos, políticos e pandêmicos, pois dependem de alimentação, educação, proteção para sobreviverem e se desenvolverem. Além disso, o confinamento demonstrou a distinção dos cenários em que as crianças vivem, ressaltando a desigualdade social diante dos recursos materiais e tecnológicos para acessar ao ensino remoto; com diferenças marcantes nas taxas de contaminação de crianças em situação de vulnerabilidade; aumento da violência física, sexual e psicológica por estarem confinadas com familiares e/ou responsáveis agressores e vitimados como elas; dentre outros aspectos que demonstram a falta de atenção e direcionamentos de ações governamentais para com as crianças. Como pontuado por Nelson Mandela: “Não existe revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como esta trata as suas crianças” (Le Monde, 2020 [9] ).

Observa-se, constantemente, os direitos das crianças sendo negados e/ou postergados e estas têm se tornado reféns dos efeitos da globalização e das decisões que não consideram as implicações para suas vidas (UNICEF, 2011 [10] ).

Reflexões que compõem esse Dossiê

Resultado de uma rede de cooperação acadêmico-científica, o Dossiê “Tempo de pausa ou de crise? Assumir a infância e a educação como prioridades” buscou centralizar discussões com autores nacionais e internacionais sobre os estudos da infância de modo a não apenas trazer visibilidade às problemáticas que atravessam a vida das crianças, mas também privilegiar pesquisas do campo das ciências humanas que busquem certo diálogo com o atual período.

O início da pandemia trouxe várias mudanças e muitos desafios, alguns ainda perpassam o cotidiano e outros já foram incorporadas no dia a dia, mas cabe ressaltar que o isolamento social modificou drasticamente a vida social das crianças. Sabe-se que a elas eram permitidos o convívio em espaço público e nas instituições educativas, e com o fechamento das escolas, as relações das crianças com seus pares e com o processo educativo foram modificadas e afetadas pelas possibilidades econômicas familiares. Além disso, os fatores que envolvem a temática sobre a relação da educação e infância demandam considerar o uso das tecnologias, o tempo de exposição diante das telas; crianças em fase de alfabetização; a alteração na socialização entre os pares; o processo de ensino e aprendizagem; a educação dos corpos para se ajustarem às rotinas familiares, bem como o ensino remoto, sendo estes alguns dos aspectos que perpassam as discussões nos textos desse Dossiê.

Preocupações sobre a situação da primeira infância, vulnerabilidades inerentes e estruturais das infâncias; bem-estar das crianças e políticas públicas também estão presentes nos diálogos teóricos a fim de ressaltar os direitos delas, com a pluralidade e diversidade que compõem essa população brasileira. Por isso, atenção foi dada à infância quilombola, ribeirinha, migrante e às crianças sem terrinha que frequentemente são expostas ao descaso das políticas públicas e às ameaças políticas geográfico-territoriais.

Os estudos sociais da infância, neste sentido, contribuíram para problematizar as relações geracionais, trazendo visibilidade para a participação e o protagonismo infantil em diversos contextos, bem como os olhares para os bebês enquanto sujeitos de direitos e atores sociais, que, juntamente com as crianças, têm tido suas vozes silenciadas e não reconhecidas nos cenários sociais, fato que notavelmente é questionado, revisto e criticado pelos autores e pelas autoras diante dos aportes científicos androcêntricos, colonizadores e adultocêntricos que deixaram à margem perspectivas e pontos de vista das crianças nas ciências sociais e humanas.

Diante deste contexto, o presente conjunto de textos que compõe esta edição da Revista buscou refletir sobre a infância, educação e políticas em momentos de tensão. As zonas de invisibilidade continuam perpetuando-se pelo mundo, e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um e uma de nós, seja possível observar os silenciamentos diante de tantas vidas que não são vistas ou consideradas, assim, espera-se que, com as discussões propostas, possamos abrir as janelas, como propõe Boaventura de Sousa Santos (2020, p. 8-9) [11] , de modo a enxergar as sombras que as realidades sociais vão criando.

Boa leitura!

Referências

[1] Benjamin, W. (2002). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Duas Cidades, Editora 34. [ Links ]

[2] Cicu, L. (2005). Le api il miele la Poesia. Dialettica intertestuale e sistema letterario greco-latino. Casa Editrici Università degli Studi di Roma La Sapienza. [ Links ]

[3] Rosemberg, F. (1976). Educação para quem? Ciência e Cultura, 2(12), 1466-1471. [ Links ]

[4] Qvortrup, J. (2011). Nove teses sobre a “infância como um fenômeno social”. Pro-posições, 22(1), 199-211. https://doi.org/10.1590/S0103-73072011000100015Links ]

[5] Brasil. (1990). Decreto nº. 99.710, de 21 de novembro de 1990 (Promulga a Convenção sobre os Direito da Criança). Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htmLinks ]

[6] Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Assembléia Nacional Constituinte. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htmLinks ]

[7] Observatório da Criança e do Adolescente (2020, outubro 02). Cenário da infância. Observatório da Criança e do Adolescente. https://observatoriocrianca.org.br/cenario-infanciaLinks ]

[8] Pinto, M., & Sarmento, M. (1997). As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: Pinto, M., & Sarmento, M. J.(Coords.). As crianças: contextos e identidades. Universidade do Minho. [ Links ]

[9] Le Monde. (2020, outubro 04). Citations. Le Monde. https://dicocitations.lemonde.fr/pensamentos/citacao/3677.phpLinks ]

[10] United Nations Children’s Fund (UNICEF). (2011). Child Outlook: a policy briefing on global trends and their implications for children. United Nations Children’s Fund. [ Links ]

[11] Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almeida. [ Links ]

Recebido: 08 de Outubro de 2020; Aceito: 09 de Outubro de 2020

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