SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26Infância e pandemia: conhecimento nas ondas do rádio em Parintins/AM“É preciso incluir os bebês!” Sentidos e apostas no diálogo com mulheres-mães índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília jan./dez 2020  Epub 16-Dez-2020

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.34110 

Dossiê: Tempo de pausa ou de crise? Assumir a infância e a educação como prioridades

Infância em tempos de pandemia: cadê o currículo e as práticas pedagógicas?

La infancia en tiempos de pandemia: ¿dónde están el plan de estudios y las prácticas pedagógicas?

Childhood in pandemic times: what about the curriculum and pedagogical practices?

Ana Paula Braz Maletta1 
http://orcid.org/0000-0002-3253-3990

Maria Manuela Martinho Ferreira2 
http://orcid.org/0000-0003-4512-1669

Catarina Almeida Tomás3 
http://orcid.org/0000-0002-9220-964X

1Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Moinas Gerais (2017). Investigadora do COED – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Conhecimento e Educação e do NEPEL- Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Linguagem.

2Doutora em Educação pela Universidade do Porto (2002). Investigadora do CIIE – Centro de Investigação e Intervenção Educativas.

3Doutora em Estudos da Criança (Sociologia da Infância) pela Universidade do Minho (2007). Investigadora do CICS.NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.


Resumo

A Covid-19 impactou quotidianos familiares, econômico-laborais, socioculturais, incluindo a infância. Focadas no período de confinamento e em dois estudos qualitativos no Brasil e em Portugal, analisamos: i) medidas e recomendações oficiais da COVID-19 para a educação infantil (pesquisa documental); ii) como o currículo e as práticas pedagógicas foram reconfigurados por educadoras brasileiras (entrevistas) e educadoras portuguesas (publicações no Facebook). Não generalizando ou comparando realidades sociopolíticas, educativas e profissionais diferentes, reflete-se sobre o valor da educação infantil no bem-estar infantil e discute-se as (im)possibilidades de desenvolver o currículo e as práticas pedagógicas a distância e na impessoalidade tecnológica.

Palavras-chave Infância; Pandemia; Educação Infantil; Currículo; Práticas Pedagógicas

Resumen

Covid-19 impactó la vida diaria familiar, económico-laboral, sociocultural, incluida la niñez. Enfocadas en el período de confinamiento y basadas en dos estudios cualitativos en Brasil y Portugal, analizamos: i) las medidas y recomendaciones oficiales de la COVID-19 para la educación infantil (investigación documental); ii) algunas formas en las que los educadores brasileños (entrevistas) y los portugueses (publicaciones en Facebook) reconfiguraron el currículo y las prácticas pedagógicas. Sin buscar generalizaciones o comparaciones entre diferentes realidades sociopolíticas, educativas y profesionales, se refleja el valor de la educación infantil sobre el bienestar infantil y se discuten las (im)posibilidades de desarrollar el currículum y las prácticas pedagógicas a la distancia e en la impersonalidad tecnológica.

Palabras clave Infancia; Pandemia; Educación Infantil; Currículo; Prácticas pedagógicas

Abstract

Covid-19 impacted family, economic-labour, socio-cultural daily life, including childhood. Focused on the confinement period and on two qualitative studies in Brazil and Portugal, we analysed: i) the official measures and recommendations of COVID-19 for early childhood education (documentary research); ii) how the curriculum and pedagogical practices were reconfigured by Brazilian educators (interviews) and by Portuguese educators (publications on Facebook). Without seeking generalizations or comparisons between different socio-political, educational, and professional realities, the value of early childhood education on child well-being is reflected and the (im)possibilities of developing curriculum and pedagogical practices in the distance and in the technological impersonality are discussed.

Keywords Childhood; Pandemic; Early Childhood Education; Curriculum; Pedagogic Practices

Introdução

Ninguém podia imaginar que, poucos meses após as primeiras informações sobre o novo coronavírus, o seu alcance seria global: 2020 ficará na história como o ano da COVID-19 e dos novos desafios à humanidade para lidar com um perigo invisível de elevado grau de propagação, contaminação e letalidade, ainda aos poucos sendo conhecido pela ciência. O seu profundo impacto nas sociedades contemporâneas está patente na crise inusitada e singular gerada em todas as dimensões da vida social e na urgência de uma ação do estado social, particularmente, na saúde e educação. Um pouco por todo o lado, um mesmo cenário se instaurou ainda que a compassos diversos: num curtíssimo tempo, e no combate à rápida propagação do vírus durante o período entre, sensivelmente, março e junho de 2020, a fase de contenção dava lugar à de mitigação e, com ela, a um novo quotidiano vivido em quarentena. O isolamento e o confinamento sociais quebraram e/ou afetaram significativamente as interações em copresença e proximidade física, alimentando uma imensa insegurança e ansiedade, e aprofundando vulnerabilidades, desigualdades e exclusões socioeconômicas, agora expostas em toda a sua extensão na crueza diária do número de mortes e de infectados divulgados na televisão e da sua seletividade geracional, social, racial e geográfica. Não é, pois, sem razão, que Santos (2020) considera que este fenómeno deixa uma marca indelével neste início de século.

O campo da educação infantil (EI) não ficou imune. Ao invés, foi um dos setores sobre o qual mais prontamente recaíram as atenções e opções sociopolítico-econômicas. Daí que uma das primeiras medidas tenha sido o encerramento de creches e jardins de infância (JI) e o confinamento de milhares de crianças em casa, com reflexos imediatos nos quotidianos familiares e laborais. Também as/os educadoras/es da EI, remetidas/os ao espaço doméstico, tiveram de reconfigurar a sua ação profissional. Neste contexto de elevados risco e incerteza, com a suspensão das atividades educativas presenciais, a urgência de agir não deixando ninguém para trás e a falta de preparação das/os educadoras/es para lidarem, “do dia para a noite”, com mudanças tão extremas nas vidas pessoais, profissionais e societais, como ficaram a infância e a educação? Quais opções pedagógicas se colocaram? Como foram implementadas e quais dimensões curriculares se valorizaram? Quais dilemas, desafios e sentimentos surgiram perante os modos como as relações profissionais e pedagógicas passaram a acontecer? Como se lidou com isso?

Procurando correlacionar infância, EI, currículo, práticas pedagógicas e direitos em tempos de pandemia, este texto parte das perspectivas da Sociologia da Infância e dos Estudos do Currículo e reporta-se à experiência recente vivida no Brasil (BR) e em Portugal (PT), procurando: i) contextualizar a EI e o currículo; ii) caracterizar as medidas oficiais durante o período de confinamento, entre março e junho; iii) analisar as práticas pedagógicas de educadoras/es das redes pública e privada em entrevistas online (BR) e em publicações num grupo no Facebook (PT). Refém das recomendações oficiais e das opções das/os educadoras/es para as reconfigurarem, tais aspectos permitem refletir a EI em momentos de crise naquilo que são as (im)possibilidades de desenvolver o currículo e as práticas pedagógicas a distância e na impessoalidade tecnológica, nos papéis que crianças e famílias ocupa(ra)m nesta nova ordem e, portanto, o seu lugar no bem-estar infantil.

Infância, educação infantil, currículo e direitos .questões teóricas

O século XX instaurou como legado civilizacional o reconhecimento do lugar social da infância e das crianças como cidadãs com direitos (Convenção dos Direitos da Criança, 1989), afirmando uma norma da infância assente num conjunto estruturado de instituições, regras e prescrições que se encarregam da educação da criança – atente-se à crescente institucionalização socioeducativa da EI em creches e jardins de infância (JI, PT)/escolas de educação infantil (EEI, BR) [1] . O seu reconhecimento nas leis de bases da educação de ambos os países – Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) (Portugal, 1986) e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996) – atribui à EI, primeira etapa da educação básica, o objetivo de garantir às crianças de 0 a 5/6 anos o acesso a conhecimentos e aprendizagens de/em diferentes linguagens e seu usufruto, assim como os seus direitos à proteção, provisão e participação, e isso traduziu-se, entre outros aspectos, na ampliação da rede socioeducativa e no cuidado de crianças, na qualificação da formação inicial de educadores/as da infância ao nível da graduação e especialização (BR) e mestrado (PT), e na definição de orientações curriculares de âmbito nacional – as Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (OCEPE) (Portugal, 1997; 2016) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EI (DCNEI) (BrasiI, 2009).

O termo currículo, do latim curriculum, que significa lugar onde se corre ou corrida, derivado do verbo currere, percurso a ser seguido ou carreira, curso a ser seguido, refere-se a um conteúdo a ser estudado (Pacheco et al., 2007), refletindo uma escolha organizada de conteúdos definidos socialmente, com base em sequências de aprendizagem. Sendo assim, os conteúdos do currículo abrangem todo o saber que a criança deverá adquirir num dado ano e nível de escolaridade. Significa também que as instituições de EI, como instâncias de formação sociocultural, encontram no currículo um conjunto de finalidades e princípios gerais, pedagógicos e organizativos para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças, apoiando a/o educadora/or na organização dos processos de aprendizagem e nas respectivas práticas pedagógicas, como se de uma “bússola” se tratasse, orientando a sua ação educativa junto/com as crianças, as famílias e a comunidade.

Sendo um conceito polissêmico, complexo e multifacetado, e sabendo que lhe subjaz sempre uma dada orientação das funções da educação, do conhecimento valorizado, da concepção de criança a promover e da intencionalidade da ação pedagógica das/os educadoras/es, o currículo tem sido objeto de diversos discursos sobre as possibilidades de materializar a construção do conhecimento, competindo entre si muitas vezes. Além de concepções e definições, o currículo apresenta ainda proposições sobre a intencionalidade e formalização do processo educativo – o que se deve ensinar, para quê, como, quando… – que é indissociável da ação pedagógica e da sistemática transmissão, da troca e circulação de conhecimentos.

Assim, nos contextos educativos, tendem a coexistir três tipos de currículo: i) o formal/oficial, estabelecido por sistemas de ensino e instituições socioeducativas, representando uma organização do conhecimento a ser transmitido; ii) o real, desenvolvido no dia a dia, em função das concepções das/os educadoras/es, de suas reinterpretações e usos do currículo oficial e suas percepções das crianças, incluindo escolhas socioculturais seletivas, hierarquias de valores, de conteúdos, de atividades e controle adulto; iii) o oculto ou informal, não prescrito e implícito, mas integrante da aprendizagem, presente mediante aquisição de valores, atitudes, processos de socialização e formação moral.

Ora, qualquer currículo apresenta, de modo explícito ou não, uma estrutura de relações entre todos ou alguns de seus componentes. Entre muitos, destacam-se os modelos baseados em disciplinas/áreas de conteúdo e os centrados na criança. No primeiro, a relação pedagógica vertical dirige-se ao coletivo de crianças, tido como homogêneo (Ferraço, 2017). Sobressai uma organização controlada, rígida, racional de saberes a transmitir, de tipo “coleção” (Bernstein, 1996), padronizados e justapostos, instrumentalizada e performativa face a fins acadêmicos que se querem eficazes. Neste modelo, predominam as concepções de criança em desenvolvimento, criança aprendente, criança abstrata, criança incompetente, criança ouvinte, receptora… O segundo assente no conhecimento dos interesses e das necessidades das crianças, perspectiva de que elas se desenvolvem e aprendem na interação com o meio material/social. O currículo e seus conteúdos podem ser aprendidos em qualquer contexto porque propõem oportunidades educativas desafiadoras em termos sociais e culturais – áreas de atividade/centros de interesse –, dentro e fora da sala. É, pois, uma organização curricular flexível e conjuntural, com planificações do “passo a passo”, baseadas na observação das crianças, valorizando objetivos do “processo” e não tanto os “produtos” da aprendizagem. Nestes currículos, integrados e holísticos (Nowak-Lojewska et al., 2019), as crianças têm saberes e modos próprios de interpretar o mundo, de pensar, agir, sentir, e competências para discursarem diferentemente (Tomás, 2014); a sua participação ativa e crítica nas experiências quotidianas e nos processos de socialização com crianças e adultos contribui para a vida coletiva (Barbosa et al., 2016; Ferreira, 2004; James & Prout, 1990) e serve de referência e fonte para a tomada de decisões em relação a fins educativos, ao currículo e às práticas pedagógicas que também constroem socialmente a infância nas instituições de EI.

Estes modelos de organização curricular não existem, na prática, sob forma pura, estando sujeitos a mesclas e à hipótese de recombinações face a realidades concretas. Daí que na EI, no Brasil e em Portugal, sobressaia um conjunto de modelos em que o High-Scope (BR e PT) e o Movimento da Escola Moderna (PT) e Projeto de Reggio Emilia (BR e PT) têm sido amplamente divulgados e adotados (Maletta, 2017).

Esses modelos curriculares para a EI (BR e PT) são fortemente influenciados pelas bases da psicologia do desenvolvimento e marcados por reformas educacionais efetuadas na década de 1990, quando a problematização sobre as concepções de currículo e da educação de qualidade das crianças pequenas foi amplamente discutida. Moss (2018), mais recentemente, contribui para a discussão ao apontar a necessidade de narrativas alternativas, dando a primazia a uma prática política democrática na El, a critérios importantes de cidadania e para uma tomada de decisões sobre o desenvolvimento de um currículo que assegure um ambiente favorável à produção do conhecimento pelas crianças e ao exercício dos seus direitos.

No entanto, como afirma Sacristán (2000), se o currículo é um modo de organizar uma série de práticas educativas, ele não está fora nem é prévio às experiências humanas, tampouco pode ser compreendido longe de suas condições reais de construção e implementação. As articulações entre modelos curriculares disponíveis, concepções das/os educadoras/es e interpretações que fazem daqueles interferem nas suas escolhas e ações e criam determinadas condições sociopedagógicas para a dinamização e gestão de um dado currículo real e informal. Sendo as práticas pedagógicas ações mediadoras entre os conhecimentos científicos que circulam na cultura mais ampla, o currículo da EI, as experiências e os conhecimentos das crianças, quais práticas foram valorizadas durante o período de confinamento e isolamento social decorrente da COVID-19? Como ficaram as crianças e seus direitos nesta nova ordem?

Metodologia

Sem pretender generalizações ou comparações entre realidades sociopolíticas, educativas e profissionais diferentes, esse artigo, de feição qualitativa, envolve dois estudos exploratórios, não sistemáticos, limitados e circunscritos no tempo, espaço, na abrangência e diversidade dos/as participantes e dos meios de recolha de dados, no Brasil e em Portugal.

Considerando o período de confinamento, em que as instituições de EI fecharam em 18 de março (BR e PT), reabrindo em 1 de junho em Portugal, se trata de uma temporalidade prudente de análise às primeiras medidas e recomendações socioeducativas e às narrativas de educadoras/es de infância para “levantar a ponta do véu” de uma realidade em curso, partilhada por investigadoras e sujeitos de investigação. Daí que as contingências do momento implicaram adotar recursos e estratégias metodológicos não presenciais, mas a distância: pesquisa de documentos e nas redes sociais, e entrevistas.

No caso do Brasil, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais (BH/MG), tomou-se como ponto de partida a pesquisa e análise das publicações do Ministério da Educação (MEC) e das diretrizes aprovadas pelo Conselho Nacional da Educação (CNE), Parecer CNE/CP n.º 5/2020, de 28 de abril (Brasil, 2020). Acresce o Plano de Estudo Tutorado (PET) proposto pela Secretaria de Estado de Educação para ser aplicado. Na busca por uma aproximação das experiências vividas por educadoras nas redes pública e privada, foram realizadas três entrevistas. a uma educadora da rede privada (grupo de crianças de 4 anos) que prosseguiu a sua atividade a distância; e a duas educadoras da rede pública, formadoras nas Escolas Municipais, por terem desencadeado ações de aproximação remota às famílias e crianças.

No caso português, a pesquisa documental assumiu duas frentes: uma explorou o site do Ministério da Educação (ME) e da Direção-Geral de Saúde (DGS), além de fontes primárias de documentos oficiais e recomendações acerca da COVID-19, buscando medidas para o JI. A outra explorou as redes sociais de caráter público para identificar discursos de educadoras/es, tendo encontrado um grupo no Facebook e recolhido as publicações efetuadas no período de encerramento dos JI. O Facebook foi escolhido por ser a rede social que domina a vida pós-moderna, um espaço “relacional” em comparação com aqueles que têm uma orientação mais política e de opinião (Twitter ou sites de promoção pessoal), continuando a ter um sucesso notável e expandindo-se diária e globalmente (Bhutta, 2012). Os critérios para a escolha desse grupo foram: a dimensão (26300 membros), representatividade e o caráter público e ativo. Por motivos éticos, não serão identificados o grupo nem as/os participantes, embora se caracterizem por serem majoritariamente mulheres, educadoras em creche e/ou JI, da rede privada.

A análise empírica incide sobre as publicações sobre COVID-19, entre 16 março e 29 de maio de 2020, relativamente ao JI (n=117). Todas as informações das publicações, descritivas (data e autor/a) e substantivas, foram organizadas e sujeitas a uma análise categorial do seu conteúdo e comentários, e quantificação de gostos, comentários e partilhas. Das quatro categorias identificadas – divulgação de informação, pedidos de informação, subjetividades e questões pedagógicas – foram analisadas mais detalhadamente as questões pedagógicas.

Contextos curriculares e pedagógicos no Brasil e em Portugal – breve caracterização

Tanto o Brasil quanto Portugal buscam, há mais de três décadas, reconceitualizar a infância, implementando dispositivos institucionais que reconheçam as crianças como sujeitos do processo educativo e defendam a construção articulada dos saberes com a experiência infantil.

No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), a inclusão de creches e pré-escolas no sistema de ensino e na escola básica registra, desde então, avanços na EI: elevação do nível de formação das/os seus/suas educadoras/es e criação de instrumentos orientadores para o trabalho pedagógico. Nessa posição, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (Brasil, 2009) representam uma valiosa oportunidade para se pensar como e em que direção articular o processo de ensino-aprendizagem das crianças de 0-5 anos de idade. Se a EI é parte integrante da educação básica, segundo o que expressa o art.º 22, da Lei nº. 9.394/96 (Brasil, 1996), a questão pedagógica tem como finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e nos estudos. As orientações curriculares visam assim a ampliar o universo de experiências, conhecimentos e habilidades das crianças, diversificando e consolidando novas aprendizagens, atuando de maneira complementar à educação familiar (Brasil, 2018).

A função sociopolítica e pedagógica das instituições de EI objetiva, entre outras, promover a igualdade de oportunidades educacionais entre crianças de diferentes classes sociais no acesso a bens culturais e às possibilidades de vivência da infância, oferecendo condições para que usufruam de seus direitos; possibilitar a convivência entre crianças e adultos, ampliando saberes e conhecimentos de diferentes naturezas, construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa (Brasil, 2010). Tal requer uma forma de organização dos processos de aprendizagem que toma a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) onde constam os Direitos e os Objetivos de Aprendizagem e o Desenvolvimento como orientação para a elaboração dos currículos para a EI.

Em Portugal, na sequência da LBSE (Portugal, 1986) e da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar, Lei n.º 5/97, de 10 de fevereiro (Portugal, 1997), a educação pré-escolar (EPE) é definida como a primeira etapa da educação básica no processo de educação permanente, complementar à ação educativa da família, com quem coopera, favorecendo a formação e o desenvolvimento equilibrado da criança, tendo em vista a sua plena inserção na sociedade como ser autônomo, livre e solidário. No entanto, sua frequência é facultativa: destina-se apenas a crianças dos 3 anos até o ingresso na escolaridade obrigatória, estando consagrada a sua universalidade para as que prefazem 4 anos. A EPE presta serviços vocacionados para o desenvolvimento da criança, proporcionando atividades educativas e de apoio à família, tendo como objetivos gerais: promover o seu desenvolvimento global, pessoal e social; fomentar a sua inserção em grupos sociais diversos; contribuir para a igualdade de oportunidades; ampliar a expressão-comunicação; despertar a curiosidade e o pensamento crítico; assegurar ocasiões de bem-estar e segurança; despistar inadaptações, deficiências ou precocidades e incentivar a participação das famílias no processo educativo. Para alcançar esses objetivos, o desenvolvimento do currículo reporta-se às OCEPE – um conjunto de princípios gerais pedagógicos e organizativos de apoio ao/à educador/a na condução do processo educativo a desenvolver com as crianças, e comuns à Rede Nacional.

Em face das características desses contextos de EI e suas orientações curriculares, e considerando que estas só se realizam mediante práticas pedagógicas, quais são as (im)possibilidades por ocasião da COVID-19? Na tentativa de elucidar tal questão, sistematizamos as medidas adotadas no Brasil e em Portugal.

Educação de Infância em tempo de COVID-19: medidas decretadas

Atendendo à emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde no dia 30 de janeiro de 2020, bem como à classificação do vírus como uma pandemia, no dia 11 de março de 2020, várias medidas foram decretadas nos vários países. No Brasil, as primeiras notícias ligadas à pandemia começaram em fevereiro, quando o país teve seu primeiro caso de contaminação confirmado. Nessa altura, a Europa já admitia centenas de casos e encarava com alarme o número das mortes diárias. Em Portugal, os primeiros casos foram confirmados pela DGS no início de março e, quinze dias depois, dia 16, foi decretado o encerramento de todas as instituições educativas, do ensino superior às creches.

Para orientar instituições de ensino da educação básica sobre as práticas a serem adotadas, o MEC brasileiro homologou um conjunto de diretrizes – Parecer CNE, nº. 5/2020 aprovado em 28 de abril (Brasil, 2020) – sugerindo a manutenção de atividades escolares não presenciais para o cumprimento da carga horária durante a situação de emergência, bem como alternativas para minimizar a necessidade de reposição presencial de dias letivos após a pandemia, como videoaulas, plataformas virtuais, redes sociais, programas de televisão e rádio e material didático impresso entregue aos responsáveis. Das recomendações para a EI, destacamos propostas de atividades e materiais educativos de orientação às famílias com caráter recreativo, criativo e interativo, para realizarem com as crianças em casa; a aproximação e o estreitamento de vínculos. No caso da pré-escola (4/5 anos), as orientações indicavam como atividades de estímulo às crianças leitura de textos, desenho, brincadeiras, jogos, músicas infantis e, se possível, uso de meios digitais. Em todas, recomendava-se o envolvimento das crianças nas atividades rotineiras, transformando os momentos cotidianos em espaços de interação e aprendizagem.

Em Portugal, o Governo aprovou um conjunto de medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus, conforme o Decreto-Lei nº. 10 – A/2020, de 13 de março (Portugal, 2020b), tendo todas as instituições educativas que implementar localmente um plano de contingência a fim de precaver e conter eventuais casos que ocorressem. Logo a seguir, em 18 de março, por via do Decreto do Presidente da República n.º 14 – A/2020 (Portugal, 2020a) e um conjunto de medidas: encerramento das instituições socioeducativas, confinamento e isolamento social da população. A exceção a este cenário foi a existência de creches/JI que se mantiveram abertas para acolher crianças filhas de profissionais de saúde, de serviços de segurança e socorro. Foi ainda determinado que as entidades empregadoras promovam, sempre que possível, a disponibilização de meios que permitam o teletrabalho, tendo o Governo procedido, de imediato, à sua regulamentação, tal como consta do Decreto-Lei n.º 2 – A/2020, de 20 de março (Portugal, 2020c).

Neste contexto, a Direção-Geral de Educação (DGE) divulgou um documento, “Perto ou longe, a Educação é um direito!” (Portugal, 2020d), em que indicava um conjunto de recomendações às/aos educadoras/es: manter regularidade de contatos com outros/as profissionais e com famílias e crianças, em particular aquelas sem acesso a internet ou equipamentos; privilegiar processos de ensino simples e não exigentes de muita tecnologia ou de livre acesso e sem requerer elevadas competências digitais; manter contato diário com as crianças e iniciar uma dinâmica que, gradualmente, introduzisse processos e ferramentas mais complexas de interação; propor atividades a serem intermediadas, sempre que possível, pelos/as encarregados/as de educação. Disponibilizou também um curso às/aos educadoras/es para utilização de metodologias de ensino remoto e um conjunto de recursos de apoio à continuidade dos processos de ensino-aprendizagem (seleção de filmes no Youtube, livros digitalizados, ideias de atividades, incluindo motoras, culinárias, experiências de ciências, visitas a museus virtuais, danças, jogos de ilusões de ótica, guia para crianças com necessidades especiais…), e um espaço de partilha de práticas [2] .

A DGE apresentou também uma proposta de planificação de atividades para a EPE, sugerindo uma rotina diária que incluía um momento de planejar o dia em família; atividades diversas; hora do conto; atividades e balanço do dia. Ao mesmo tempo, alertava os pais para a importância de escutar as crianças e de proporcionar “uma dose extra de atenção e carinho”.

Entre 15 de março e 31 de maio, as/os educadoras/es mantiveram contato com as crianças e suas famílias, tendo reiniciado atividades presenciais em 1 de junho.

Cadê o currículo e as práticas pedagógicas?

Para garantir às crianças seus direitos de aprendizagem conforme as diretrizes no contexto da COVID-19, analisa-se agora as reconfigurações das práticas pedagógicas mediante um currículo para elas repensado e que teria de prosseguir rompendo com barreiras nunca antes imaginadas. Começamos pelo desenvolvimento curricular narrado por uma educadora da rede privada – a Vilma –, seguido dos de duas educadoras da rede pública – a Clara e a Olga –, todas de BH/MG-BR e, por fim, os discursos de educadoras/es portuguesas/es publicados no Facebook.

PET e entrevistas online a educadoras (BH/MG-BR)

A partir das recomendações, as práticas postas em ação foram as mais diversas, incluindo o PET e aulas online. O PET é uma das ferramentas do Regime de Estudo não Presencial, desenvolvido pela Secretaria de Estado de Educação (MG), como alternativa para a continuidade ao processo de ensino e aprendizagem durante o período em que as atividades escolares presenciais estão suspensas. O programa para a EI organiza-se em três volumes e apresenta uma série de orientações de práticas para que as famílias possam realizá-las com as crianças. O volume 1 é destinado às vivências em família e às novas aprendizagens por meio de práticas culturais, sobretudo higiene e cuidado pessoal. O volume 2 visa ao desenvolvimento das múltiplas linguagens pelas quais as crianças se expressam: verbal, gestual, musical, dramática, plástica, entre outras. Já o volume 3 apresenta algumas possibilidades de ação/interação voltadas para a rotina diária. No entanto, nem todas as educadoras se socorreram do PET. Esse foi o caso de Vilma, que atua com um grupo de crianças de 4 anos, e que, de acordo com as DCNEI, as recomendações e orientações curriculares vigentes e oficiais, e os currículos nas instituições de EI se referem a dilemas, desafios e sentimentos vividos nos modos como o trabalho remoto interferiu na sua relação profissional e pedagógica:

O primeiro e grande desafio […] foi romper com a ideia de que as crianças pequenas não tinham que ser expostas às tecnologias; e segundo, ter que se apropriar das novas tecnologias num curto período de tempo já que, onde trabalho, a plataforma de aprendizagem foi apresentada para nós numa 5.ª feira, e logo na semana seguinte, as atividades remotas foram iniciadas. Foi um susto muito grande. Foi necessário lançar mão de muita criatividade para conseguir trazer a dimensão lúdica e concreta da EI para o ambiente virtual. (Vilma, educadora, 15.08.2020)

Colocada na condição de aprendiz, que se agrava com os desafios impostos pela distância e impessoalidade tecnológica, tornou-se urgente buscar meios próprios para se apropriar e contatar as crianças e suas famílias, para depois as acompanhar e ensinar:

A primeira medida tomada foi orientar as famílias sobre o uso da plataforma, já que as crianças dependiam totalmente delas para fazer as aulas. Fizemos um vídeo […] sobre como proceder no acompanhamento das crianças durante as aulas. As famílias que conseguiram estar acompanhando de perto, as crianças conseguiram deslanchar. Só funciona se a família e/ou um adulto estiver junto da criança. Por outro lado, as crianças que não tiveram esse acompanhamento das famílias não tiveram o mesmo desenvolvimento. (Vilma, educadora, 15.08.2020)

Nesse sentido, o desenvolvimento curricular apoiou-se, para algumas famílias, na implementação de encontros online de 1 hora por dia, todos os dias da semana, e envio de atividades complementares para fixação do que fora trabalhado online:

A gente selecionou os objetivos de aprendizagem conforme a BNCC para serem explorados nas aulas online. Para cada encontro, é necessário um planejamento. Não dá para improvisar. Os planejamentos têm que ser enviados para a escola providenciar os recursos e materiais para disponibilizar às famílias com 20 dias de antecedência. As orientações também vão para as famílias para que elas possam providenciar os materiais e recursos necessários para o desenvolvimento das aulas. (Vilma, educadora, 15.08.2020)

Um tal planejamento significa que determinadas dimensões curriculares, práticas pedagógicas e recursos, foram valorizados:

O trabalho precisa ser muito visual. Tudo que eu vou falar com as crianças tem uma apresentação interativa no Powerpoint. Por exemplo, no jogo da memória dos alimentos, eu pedia à criança para falar dois números e clicava no número indicado por ela para que pudesse ver se formou o par ou não. O objetivo dessa atividade era reconhecer os números. Quando eu fui trabalhar as estações do ano, propus que as crianças fossem ao armário pegar uma roupa para cada estação. A criança precisa de movimento e interação para aprender. Para que o desenvolvimento dessa atividade fosse possível, tive de enviar o roteiro previamente para as famílias se organizarem, pois 1 hora não seria suficiente. (Vilma, educadora, 15.08.2020)

Em termos de balanço acerca da experiência em curso, Vilma reconhece uma série de vantagens:

Então, o planejamento é fundamental. Outro fator positivo é ter maior clareza e organização das práticas. O contexto resgatou a perspectiva do professor pesquisador, que investiga, busca e cria estratégias para que a aprendizagem da criança seja alcançada. O planejamento se torna, realmente, um elemento orientador da prática. Muitos pais passaram a ocupar um lugar no acompanhamento pedagógico dos filhos, tarefa que antes ficava somente a cargo das mães. […] Sem a mediação da família para acompanhar o desenvolvimento das atividades e da disponibilidade dos recursos para realização das atividades, nada disso seria viável. (Vilma, educadora, 15.08.2020)

As medidas adotadas pela EI da rede privada evidenciam o cumprimento do currículo formal estabelecido (Sacristán, 2000), mediante uma proposta pedagógica que teve como orientação para sua elaboração a continuidade com as práticas habituais. Assim, as dimensões curriculares valorizadas pela educadora Vilma refletem esses objetivos, tendo-se reforçado a intencionalidade pedagógica e a sua formalização pelo planejamento antecipado das experiências de aprendizagem para as crianças, tomando-as como ponto de partida e de chegada. A quebra desta rigidez pela criação de estratégias metodológicas, mesmo online, garantiu que as crianças se movimentassem e interagissem nas atividades propostas a partir de situações da sua vida cotidiana.

De modo bastante peculiar, as escolas da rede municipal, desde a suspensão das atividades presenciais, tiveram algumas ações muito pontuais, pois não houve, de início, uma adesão, por parte da rede, ao ensino remoto. Neste sentido, as educadoras Clara e Olga, formadoras de profissionais das instituições da Rede Parceira (Creches) e Rede Própria de EI de BH, relataram algumas práticas pedagógicas adotadas por diretoras e coordenadoras pedagógicas. Segundo elas, logo que as atividades foram encerradas, as educadoras das instituições estavam sobreavisadas e não desempenhando suas atividades laborais, mas houve um movimento das diretoras e coordenadoras que atuavam nas creches e escolas de EI para manterem esse laço afetivo com as crianças e as famílias, e buscarem alternativas para prosseguir o desenvolvimento do currículo em continuidade. De acordo com a educadora Olga:

[…] o movimento de aproximação com as crianças e com as famílias foi iniciado pelas creches, principalmente pelas redes sociais […] as ações realizadas pelas gestoras de uma escola de EI tiveram como ponto de partida os direitos de aprendizagem e de desenvolvimento propostos pela BNCC, e construíram, por meio do Facebook, um mecanismo de aproximação das experiências vivenciadas pelas crianças em casa, mediadas pela escola, por meio da gravação de vídeos das crianças exercendo seus direitos de conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. (Olga, educadora, 24.08.2020)

Por seu turno, a educadora Clara ressaltou que:

todo o movimento de retomada se deu, a princípio, pelo fortalecimento dos laços das educadoras com as famílias. As escolas criaram páginas no Facebook, Instagram, grupos no WhatsApp e começaram a compartilhar vivências das crianças em casa, bem como as propostas de vivências orientadas pelas educadoras […] a pandemia colocou uma lupa nos problemas da Rede, sobretudo em relação à formação das educadoras. Houve um esgotamento das ações, do repertório na proposição de atividades com as crianças. Todas as ações vinham ocorrendo de modo muito informal desde a suspensão das atividades presenciais no município […] (Clara, educadora, 24.08.2020)

Para Sacristán (2000), o currículo prescrito está em constante inter-relação com o currículo moldado e colocado em ação pelas/os educadoras/es, os sujeitos que o efetivam nas práticas pedagógicas. Daí que as prescrições sejam geralmente modificadas para serem adequadas às crianças concretas. Segundo Ferraço (2017, p. 533), “ao entendermos que as práticas são também políticas de currículo, faz-se necessário favorecer tentativas de aproximação-mobilização das diferentes situações vividas nas escolas, assumindo a importância de pensar-se com esses praticantes e não para ou sobre eles”. Logo, o movimento de algumas diretoras e coordenadoras de creches e escolas de EI, com o propósito de buscar e manter aproximações por meio das redes sociais, tornou-se uma alternativa para fortalecer vínculos sociais, afetivos e pedagógicos e, de algum modo, “levar” às crianças um pouco daquilo que são as vivências e aprendizagens da EI, quando o currículo é posto em ação presencialmente.

Educadoras/es de infância no Facebook (PT)

As 117 publicações que se referem aos discursos de um grupo majoritário de educadoras da rede privada, identificadas nos 3 meses analisados, encontram-se desigualmente distribuídas (Tabela 1): 17,9% em março; 35,9% em abril; e 46,2% em maio.

Tabela 1 Análise das publicações, por mês e tipo de publicação 

Mês Total n (%) Tipo de publicação
Divulgação de informação

Pedidos de informação

Subjetividades

Questões pedagógicas

Março 21 (17,9)

8 (6,8)

5 (4,3)

2 (1,7)

6 (5,1)

Abril 42 (35,9)

28 (23,9)

5 (4,3)

6 (5,1)

3 (2,6)

Maio 54 (46,2)

34 (29,1)

8 (6,8)

7 (6,0)

5 (4,3)

Total

70 (59,8)

18 (15,4)

15 (12,8)

14 (12,0)

Fonte: Elaboração das autoras.

Durante esse período, 59,8% das publicações foram de divulgação de informação relacionada com a COVID-19 e o JI; 15,4% referiram-se a pedidos de informação; e 12,8% respeitaram as subjetividades, ou seja, narrativas dos sujeitos sobre si na sua relação profissional e pessoal com a pandemia. Por fim, 12% das/os educadoras/es fizeram publicações no âmbito de questões pedagógicas. A maioria das informações publicadas e partilhadas no grupo era relativa à divulgação de informação e remetia para notícias, legislação e recomendações (21,4%) veiculadas pelo ME e DGS. Seguiram-se notícias da área da Medicina e da Psicologia sobre como se propaga a COVID-19 e o que fazer em relação às crianças. O impacto da COVID-19 dava conta dos números de crianças em Portugal com o vírus e notícias sobre o risco de falência de creches e de JI privados. A publicidade (9,4%) remetia para serviços de apoio psicológico, feita por empresas privadas.

No caso dos pedidos de informação, as publicações centraram-se em dúvidas jurídicas sobre direitos laborais (salários, condições de trabalho, funções), sobretudo em JI privados e Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), e direitos familiares (e.g., tempo de acompanhamento a crianças).

Outras publicações, ora eufóricas, ora lacônicas, permitiram apreender, de alguma forma, subjetividades cotidianas (12,8%): o apelo a uma maior atenção ao grupo profissional por parte do governo e a necessidade de refletir sobre o período que estavam vivendo.

Por fim, as questões pedagógicas e educativas assumiram um lugar periférico (9 publicações [3] ), embora se destaque a partilha de atividades (7,7%): histórias infantis (PDF, vídeo), como a publicação dos “sete cabritinhos” (P18, 28.03), algumas delas adaptadas à COVID-19, como “O coelhinho e o coronavírus” (P36, 14.04). Atividades dedicadas à música, desenhos animados (corpo humano), dança, ciências físico-naturais e formas geométricas (1 publicação cada, entre 0 e 7 gostos) enfatizam a dimensão lúdica, sempre associada à aprendizagem de conteúdos: “É um livro de atividades infantis que visa não só entretenimento, como uma aprendizagem sobre o tema” (P32, 28.03).

As publicações que geraram maior interação foram: a partilha de uma música e a informação sobre uma série televisiva:

A minha última canção é, como não podia deixar de ser, sobre o problema que enfrentamos. Vamos seguir estes conselhos, por favor. Uma forma de apelar ao bom senso de crianças e adultos para se manterem em casa durante a pandemia do Covid-19. (P6, 15.03 |56 gostos)

Era uma vez… a Vida! Está de volta à TV e Covid-19 é um bully. (P10, 19.03 | 48 gostos)

Nasquestões pedagógicas e educativas, também se refletem sentidos da educação (6%) em observações sobre a reconfiguração da EI em tempos de pandemia, surgindo publicações de preocupações pedagógicas dirigidas para o distanciamento social e para a planificação, estratégias de ensino e processos de aprendizagem:

ESTOU EM CHOQUE. Educadoras de infância e pais estão contra a intenção de reabrir as creches e o pré-escolar em maio. É precipitado abrir já, com os casos a aumentarem diariamente. […]. Numa sala com 25 crianças por exemplo, como é que mantemos metade de um lado da sala e a outra metade no outro? Não dá, elas não percebem. Para além da dificuldade […], essa separação pode ser contraproducente para as crianças […] Não podemos evitar e limitar os afetos. Vamos pôr em risco toda a comunidade escolar. (P66, 01.05 | 172 gostos; 54 comentários e 62 partilhas)

ESCOLA PANDEMIA. Nestes tempos de confinamento, muito se tem refletido (sobretudo questionado) sobre modelos de planificação, suportados por estratégias de “Ensino à Distância” que possam ser propostos às famílias […] O que é urgente aprender? […] neste momento, implica abandonar a corrida aos resultados, esquecer as grelhas e as classificações, acabar com julgamentos e penalizações e tentar compreender como nós podemos ajudar, enquanto coletivo, enquanto Humanidade. Talvez seja uma oportunidade para os docentes, enquanto pessoas e profissionais, aprenderem com os seus alunos e as suas famílias. (P54, 22.04 | 9 gostos e 0 comentários)

Cadê o currículo, então? Em Portugal, os discursos das/os educadoras/es do grupo de Facebook em análise denotam a não centralidade das “Questões pedagógicas” como um assunto próprio e expectável. No entanto, tal questão se faz sentir nos discursos “Pedidos de informação”, em que solicitações de ideias para atividades para propor às crianças e aos pais são trocadas, circulando soluções prontas para usar, como por exemplo, histórias em pdf, canções sobre a COVID-19 e apostilas, sobretudo numa fase intermédia e já final do confinamento. Assim, neste grupo específico, questões pedagógicas e educativas, a que urgia assegurar continuidade, surgem à margem das suas preocupações centrais que se dirigiam, por um lado, para as suas próprias questões pessoais, redobradas pela inesperada reorganização familiar e sua articulação com o teletrabalho, acrescidas de grandes anseios face às incertezas laborais, presentes e futuras, sobretudo para quem trabalha no setor privado, e, por outro lado, para a súbita tomada de consciência da pouca familiaridade com as tecnologias e desconhecimentos vários acerca das suas potencialidades para desenvolver propostas para as crianças via telemática. Isto não significa uma ausência de intervenção pedagógica com famílias e crianças, mas tão só que as trocas nas redes sociais assumiram um lugar de suporte essencial para lidarem com todas as incertezas.

(Im)possibilidades de desenvolver o currículo e práticas pedagógicas em tempos de crise – considerações finais

A COVID-19 provocou uma crise pandémica que afetou todas as áreas da vida, incluindo a infância e a EI. Apesar da diferente situação nos dois países, na taxa de letalidade e nas medidas estruturais (i)mediatas adotadas para fazer frente à situação, a análise da EI surpreendeu por medidas e recomendações oficiais semelhantes, reveladoras de que questões educativas e pedagógicas, ou seja, os direitos à educação e à saúde, precisavam ser acautelados e mantidos. No entanto, garantir a igualdade de acesso à educação em tempos de crise tem um preço na sociedade e este traduz-se muito diferente e desigualmente.

A urgência em manter continuidades e proximidades sociopedagógicas com as crianças e suas famílias gerou (im)possibilidades de desenvolver o currículo a distância e na impessoalidade tecnológica. Os modos como a relação profissional e pedagógica passaram a acontecer, via trabalho remoto, permitem refletir sobre a dimensão prática do currículo, podendo as adaptações metodológicas favorecer e/ou minimizar impactos negativos gerados por condições de ensino adversas (Sacristán, 2000) ou ampliá-las. Porém, mais do que isso e do que nunca, fez ressaltar a importância das dimensões relacionais e afetivas da copresença que potencia a dinamização das práticas pedagógicas, jamais superáveis por tecnologias. O mesmo em relação às dimensões contextuais e materiais do cenário educativo da EI, irredutíveis a um écran e/ou a um “clic”. Não obstante, é preciso apostar na formação das/dos educadoras/es num currículo e em metodologias flexíveis e holísticas, “e não apenas como forma ou produto que pode ser objetificado, medido” (Ferraço, 2017, p. 531) e reproduzido, desconsiderando a complexidade de experiências vividas nos cotidianos da EI. Sacristán (2000) ressalta a participação dos sujeitos envolvidos no encontro entre processo educativo e direitos de participação das crianças na vida social e isso só se realiza no âmbito de uma visão da educação como processo de humanização das relações humanas e da EI pública como política de inclusão e justiça social.

Ficou ainda visível que, sem a mediação familiar no acompanhamento das atividades e a disponibilidade de equipamentos tecnológicos para as atividades online, pouco ou nada das propostas pedagógicas seriam viáveis, ficando patente a importância de entender a cultura na EI como multicultural e desigual, um jogo de interesses e poderes para optar e decidir os nexos de sentido entre currículo prescrito/formal e currículo real, em que a transmissão desses conteúdos e a sua compreensão podem assumir continuidades ou agravar dificuldades. Neste jogo, não são indiferentes as diferenças e desigualdades socioculturais das classes dominantes face às dominadas, nem a sua posse e o domínio das tecnologias, nem a sua familiaridade para lidar com a distância e impessoalidade, assim contribuindo para que famílias e crianças de grupos mais desfavorecidos não se identifiquem com a cultura da EI, seu currículo e pedagogia. Daí resultando uma exclusão gerada pela própria EI. Assim, no ensino remoto, as práticas pedagógicas propostas às crianças nas duas realidades analisadas evidenciaram, por parte das/os educadoras/es brasileiras/os, um esforço em acompanhar as crianças e apresentar propostas pedagógicas socorrendo-se da movimentação da criança e da exploração dos seus contextos familiares. No contexto português, assegurar continuidades curriculares e pedagógicas não ficou patente nos discursos publicados no Facebook sendo apenas possível identificar algumas propostas de atividades tradicionais e do tipo escolar – tal escassez de dados pode ficar a dever à fonte primária utilizada.

Seja como for, em ambos os países, ficou visível que esta crise agravou desigualdades preexistentes provocadas pela baixa da renda familiar, da saúde física e mental, lay-off [4], desemprego, expondo a exclusão; ressaltando outras, como a exclusão digital e sociogeográfica, e criou outras tantas novas formas de pobreza das classes médias. Apesar da rápida resposta das/os educadoras/es e instituições, evidenciaram-se diferenças entre as condições materiais das redes privada e pública, entre adultos/as familiarizados/as com as tecnologias e os delas alheios, uns em teletrabalho e outros sem; entre crianças com apoio e acompanhamento familiar e sem essa possibilidade. Os limites que medeiam o cumprimento das recomendações oficiais dão-se, portanto, no campo das impossibilidades de muitas famílias acederem a condições socioeconômicas, culturais, acadêmicas e materiais que lhes permitam apreender, de modo significativo, todas as informações e propostas para auxiliar na educação de seus/suas filhos/as.

Um currículo comum precisa, então, considerar as oportunidades desiguais frente ao mesmo (Sacristán, 2000). Crianças e famílias vulneráveis face ao “currículo cardápio” possuem uma bagagem cultural proveniente de um meio social concreto que, por vezes e de alguma forma, lhes vedam o acesso a oportunidades que, logo de partida, não são para todos, sendo exígua a sua probabilidade de obterem as mesmas condições perante os grupos dominantes. Praticar tal currículo torna-se um desafio multicultural quando se trata de desenvolver a partir da infância, assegurando às crianças seus direitos à educação. Daí que considerando “[n]a realidade à solta e [n]a excepcionalidade da excepção” (Santos, 2020, p. 12) provocada pela COVID-19, falar sobre direitos das crianças é indispensável, pois pensar e agir na EI sob esta ótica, enquanto práxis (Tomás, 2014), implica desocultar e consciencializar a educação como justiça social.

Referências

Barbosa, M. C., Delgado, A. C. C., & Tomás, C. (2016). Estudos da infância, estudos da criança: quais campos? Quais teorias? Quais questões? Quais métodos? InterAção, 41(1), 103-122. https://doi.org/10.5216/ia.v41i1.36055Links ]

Belo Horizonte. (2003). Lei nº 8.679, de 19 de novembro de 2003 (Institui o Plano de Carreira dos Servidores da Área de Atividades de Administração Geral da Prefeitura de Belo Horizonte, estabelece a respectiva Tabela de Vencimentos e dá outras providências). http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=914281Links ]

Bernstein, B. (1996). A Estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Vozes. [ Links ]

Bhutta, C. (2012). Not by the Book: Facebook as a Sampling Frame. Sociological Methods & Research, 41(1) 57–88. https://doi.org/10.1177/0049124112440795Links ]

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Senado. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htmLinks ]

Brasil. (1996). Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República). Casa Civil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htmLinks ]

Brasil. (2009). Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009 (Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil). Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. http://www.seduc.ro.gov.br/portal/legislacao/RESCNE005_2009.pdfLinks ]

Brasil. (2010). Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192Links ]

Brasil. (2018). Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdfLinks ]

Brasil. (2020). Parecer nº. 5/2020 (Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19. Ministério da Educação). Conselho Nacional de Educação. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=145011-pcp005-20&category_slug=marco-2020-pdf&Itemid=30192Links ]

Convenção dos Direitos da Criança (CDC). (1989, novembro 20). Resolução 44/25 de 20 Novembro 1989. Assembleia Geral das Nações Unidas. https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/crc.pdfLinks ]

Ferraço, C. E. (2017). Práticas-políticas curriculares cotidianas como possibilidades de resistência aos clichês e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Linhas Críticas, 23(52). https://doi.org/10.26512/lc.v23i52.19419Links ]

Ferreira, M. (2004). 'A gente gosta é de brincar com os outros meninos!': Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Edições Afrontamento. [ Links ]

James, A., & Prout, A. (1990). Constructing and reconstructing childhood: New directions in the sociological study of childhood. Falmer. [ Links ]

Maletta, A. P. B. (2017). Currículo pensado para, por, entre e com as crianças. aproximações e distanciamentos entre o contexto brasileiro e o português. [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais]. Plataforma Sucupira. https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=5023274Links ]

Moss, P. (2018). Alternative Narratives in Early Childhood. Routledge. [ Links ]

Nowak-Lojewska, A., O’Toole, L., Regan, C., & Ferreira, M. (2019). “To learn with” in the view of the holistic, relational and inclusive education. The Pedagogical Quarterly, 64(1), 151-162. http://doi.org/10.5604/01.3001.0013.1856Links ]

Pacheco, J., Eggertsdóttir, R., & Marinósson, G. L. (2007). Caminhos para a inclusão: um guia para o aprimoramento da equipe escolar. Artmed. https://www.urantiagaia.org/educacional/ponte/caminhos_para_inclusao.pdfLinks ]

Portugal. (1986). Lei n° 46/86 (Lei de Bases do Sistema Educativo). https://dre.pt/pesquisa/-/search/222418/details/normalLinks ]

Portugal. (1997). Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Ministério da Educação. Direção-Geral da Educação. [ Links ]

Portugal. (2016). Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Ministério da Educação. Direção-Geral da Educação. https://www.dge.mec.pt/ocepe/sites/default/files/Orientacoes_Curriculares.pdfLinks ]

Portugal. (2020a). Decreto do Presidente da República n.º 14 – A/2020. https://dre.pt/home/-/dre/130399862/details/maximizedLinks ]

Portugal. (2020b). Decreto-Lei n.º 10 – A/2020, de 13 de março. https://dre.pt/home/-/dre/130243053/details/maximizedLinks ]

Portugal. (2020c). Decreto Lei n.º 2-A/2020. https://dre.pt/home/-/dre/130473161/details/maximizedLinks ]

Portugal. (2020d, março 16). Perto ou longe, a Educação é um direito! Direção-Geral da Educação. https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/informacoes_escolas/espaco_online_apoio_escolas_covid19.pdfLinks ]

Portugal. (2020e, 16 março). Apoio às escolas. Direção-Geral da Educação. https://apoioescolas.dge.mec.ptLinks ]

Sacristán, J. G. (2000). Currículo: uma reflexão sobre a prática. Artmed. [ Links ]

Santos, B. S. (2020). A cruel pedagógica do vírus. Almedina. http://www.abennacional.org.br/site/wp-content/uploads/2020/04/Livro_Boaventura.pdfLinks ]

Tomás, C. (2014). As culturas da infância na educação de infância: um olhar a partir dos direitos da criança. Interacções, 10(32), 129-144. https://doi.org/10.25755/int.6352Links ]

[1]Em Portugal (PT), a creche (0-3 anos) é oferecida por instituições particulares de solidariedade social e privadas, e a educação pré-escolar (3-6 anos), pela rede nacional pública e privada. Na rede pública de Belo Horizonte, as crianças até 5 anos e 8 meses dispõem das atuais escolas municipais de educação infantil (EMEI), conforme previsão na Lei 8.679 (Belo Horizonte, 2003).

[3]Serão designadas por P, seguidas do número que as ordena e data da publicação.

[4]Lay-off consiste no regime que possibilita a redução temporária dos períodos normais de trabalho ou a suspensão dos contratos de trabalho, efetuada por iniciativa das empresas, durante um determinado tempo, em função de determinadas circunstâncias.

Recebido: 14 de Setembro de 2020; Aceito: 15 de Dezembro de 2020

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY 4.0.