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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.26  Brasília ene./dic 2020  Epub 27-Mayo-2021

https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.36176 

Dossiê: Tempo de pausa ou de crise? Assumir a infância e a educação como prioridades

Hora da roda: as experiências cotidianas das crianças no contexto da Pandemia

Hora de la rueda: las experiencias cotidianas de los niños en el contexto de la pandemia

Circle time: children's daily experiences in the context of the pandemic

Patrícia Gonçalves Nery1 
http://orcid.org/0000-0003-0273-297X

1Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo – USP (2019). Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Infância(s), Crianças e Educação (GEPICE), da Universidade do Estado de Minas Gerais (FaE/UEMG).


Resumo

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada com um grupo de crianças entre 7 e 9 anos, na cidade de Belo Horizonte, MG, cujo objetivo foi compreender, a partir dos seus pontos de vista, como foram as experiências cotidianas no contexto pandêmico provocado pela COVID-19. A investigação contou com estratégias metodológicas que envolveram a criação de espaços de narrativas, nos quais as rodas de conversa e as produções multimodais ganharam destaque, permitindo compreender como as crianças lidaram com o tempo das incertezas, dos medos, como se sentiram e compreenderam a complexidade da realidade vivida, como se relacionaram com as escolas e reorganizaram seus mundos.

Palavras-chave Infância; Crianças; Pandemia; Experiências Cotidianas; Escola

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar los resultados de una encuesta realizada a un grupo de niños de entre 7 y 9 años de edad, en la ciudad de Belo Horizonte, MG, cuyo objetivo fue comprender, desde sus puntos de vista, cómo fueron sus experiencias cotidianas en el contexto de la pandemia provocada por el COVID-19. La investigación se basó en estrategias metodológicas que involucraron la creación de espacios narrativos, donde las ruedas de conversación y las producciones multimodales ganaban protagonismo y permitían a los niños comprender cómo afrontaban el tiempo de las incertidumbres, de los miedos, cómo sentían y comprendían la complejidad de la realidad vivida, cómo se relacionaban con las escuelas y reorganizaban sus mundos.

Palabras clave Niñez; Niños; Pandemia; Experiencias cotidianas; Escuela

Abstract

This article aims to present the results of a survey conducted with a group of 7- to 9-year-old children, in the city of Belo Horizonte, MG, to understand, from their point of view, their daily experiences in the pandemic context caused by COVID-19. The research included methodological strategies involving the creation of narrative spaces, in which the conversation circles and multimodal productions gained prominence and allowed us to understand how children to understand dealt with the time of uncertainties, fears, how they felt and understood the complexity of reality, how they related with schools, and reorganized their worlds.

Keywords Childhood; Children; Pandemic; Daily Experiences; School

Introdução

O ano letivo de 2020 iniciou-se em fevereiro e as aulas recomeçaram em Minas Gerais. Recomeçar pode significar muitas coisas. Contudo, recomeçar o ano letivo é reviver processos anteriores, rever colegas e professores, encontrar a nova sala com velhos e novos arranjos, alguns murais já prontos, livros didáticos à espera, conteúdos estruturados e graduados. Enfim, trata-se de uma experiência em que o novo não vem só, surge a partir do velho e com ele mantém fortes relações. No entanto, a sensação do novo é sempre insuflada pelo otimismo. Será um ano diferente, novos desafios, quem sabe, novos amigos, professores outros. No entanto, o que se vivenciou, em escala planetária, no ano de 2020, provocou uma ruptura na visão que Sacristán (2001) denominou naturalizada da escola. A instituição escolar é uma experiência, afirma o autor,

[...] tão natural e cotidiana que nem sequer tomamos consciência da razão de ser de sua existência, da sua contingência, de sua possível provisoriedade no tempo, das funções [...], do significado que tem na vida das pessoas, nas sociedades e na cultura. (Sacristán, 2001, p. 11)

Pensar os sentidos ontológicos e históricos da escola não é um exercício que se faz na vida cotidiana, faz parte dos estudos adensados dos campos da pedagogia, da sociologia, da filosofia e da política. Segundo Sacristán (2001, p. 35), a escola é uma das realidades diluídas “[...] no cotidiano das coisas que parecem acontecer por necessidade”, sendo que somente aqueles que não dispõem dessa experiência “[...] apreciam com mais vivacidade o valor de sua ausência”. Na rotina das crianças, a escola ocupa um lugar central. É a partir do eixo escola que elas, em seus contextos familiares, organizam-se e constroem diferentes experiências no dia a dia. O que ocorre, então, quando essa escola é posta em suspensão?

Em 19 de março de 2020, as aulas das redes públicas e privadas, em Minas Gerais, foram suspensas, por tempo indeterminado, em razão do quadro pandêmico provocado pela COVID-19. Consequentemente, as crianças, os jovens e os adultos estudantes vivenciaram o fechamento das escolas e a interrupção dos estudos após um mês e meio de aulas. No decorrer do ano, critérios como o estágio de evolução da doença e as condições sanitárias locais levaram o estado e os municípios a tomarem medidas diferentes sobre a reabertura das escolas. Em Belo Horizonte, as escolas públicas e privadas mantiveram-se fechadas desde março e continuam até o presente momento (janeiro/2021).

A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus denominado SARS-CoV-2, de rápida propagação e que pode provocar infecções respiratórias graves. A doença já ceifou a vida de mais de 2 milhões de pessoas no mundo e entre elas mais de 200.000 brasileiros(as), o que nos “[...] exige reconsiderar o valor da vida, o lugar do luto e da morte” (Starling & Schwarcz, 2020, p. 12).

É nesse cenário disruptivo, no qual as realidades foram se configurando como espaços/tempos de fragilidades e resistências, que a pesquisa apresentada neste artigo se inscreve. O estudo em tela, realizado entre os meses de novembro e dezembro de 2020 e janeiro de 2021, em Belo Horizonte, Minas Gerais, buscou compreender, a partir dos pontos de vista das crianças, como foram as suas experiências cotidianas no período pandêmico. Que vivências construíram nesse período? Como compreenderam essa nova realidade? Que novos tempos e espaços foram praticados? Como se sentiram? Como se relacionaram com as escolas? Que novas aprendizagens construíram?

A pesquisa, de cunho qualitativo/participativo, construída na perspectiva da Sociologia da Infância e da Sociologia do Cotidiano, foi desenvolvida com um grupo de crianças entre 7 e 9 anos. As estratégias metodológicas envolveram a criação de espaços de narrativas e brincadeiras nos quais as rodas de conversa e as produções multimodais ganharam destaque[1]. Por meio das conversas com as crianças e das atividades realizadas sobre suas experiências, foi possível embrenhar pelas rotas construídas por elas no dia a dia, perceber elementos significativos presentes em suas rotinas, recolher informações e analisá-las de forma interpretativa. Trata-se, no entanto, de uma aproximação ao social, pois “[...] a realidade apenas se insinua, não se esgota, não se entrega, [...] ela tem que ser imaginada, descoberta, construída” (Pais, 2003, p. 27).

Foi possível perceber, por meio dessa investigação, como as crianças lidaram com o tempo das incertezas, dos medos, como se sentiram e como compreenderam a complexidade da realidade vivida. Também foi possível compreender os modos como as escolas garantiram ou não às crianças a continuidade dos estudos. Por meio de suas múltiplas experiências de brincadeiras e, principalmente, com o uso das mídias, as crianças nos deram pistas de como veem a escola e de como ela pode se constituir como um espaço/tempo de aprendizagens criativas. Enfim, de como o novo pode ser de fato revisto e reinventado.

O artigo está organizado em duas partes. A primeira traz o contexto da investigação: o espaço/tempo da realização da pesquisa, o modo como foi possível nos aproximar das crianças e de suas famílias, as maneiras como as crianças se identificam e como as atividades foram realizadas. A segunda parte discorre sobre o que se entende por cotidianidade, visto que a pesquisa se assenta nas experiências cotidianas das crianças, e apresenta as seções com as análises realizadas no decurso da pesquisa.

Vamos abrir a roda?

Antes de abrir a roda, é importante considerar que a metodologia que delineia e integra esta pesquisa busca, no quadro de uma permanente reflexividade e condução ética, valorizar e assegurar a participação das crianças, compreendo-as como atores sociais competentes que, por meio de seus modos de agir, pensar e sentir, informam-nos a respeito dos seus próprios mundos. As crianças também nos revelam o quanto são capazes de, nos espaços/tempos da pesquisa, reinventar, refazer e ressignificar as suas próprias experiências. Daí, podermos falar de uma participação infantil ativa e também transformadora.

Para fazer a roda da pesquisa girar, vários desafios foram enfrentados. O primeiro e talvez o maior foi, no contexto da pandemia, encontrar e reunir as crianças. Como achá-las se as escolas estão fechadas e seus espaços de circulação estão restritos? O segundo desafio foi encontrar um espaço seguro, no qual as crianças se sentissem à vontade para ficar e participar do estudo, e o terceiro foi contatar as famílias para apresentar-lhes a pesquisa e convidar as crianças.

Nesse sentido, em busca de condições favoráveis para realizar a pesquisa, solicitei ajuda a duas pessoas da minha família que moram na região sudoeste de Belo Horizonte. Considerei que elas eram as pessoas ideais para realizar a aproximação com as crianças, pois são conhecidas na vizinhança ao longo de muitos anos. A casa delas é um espaço aberto, amplo, com quintal que dispõe de mesas grandes, várias cadeiras e, ainda, tem um canto para brincadeiras. Gentilmente, elas se disponibilizaram para auxiliar desde o planejamento das visitas às famílias até o acompanhamento das crianças durante a pesquisa.

As famílias receberam muito bem a proposta da pesquisa, concordaram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi possível reunir seis crianças, de famílias diferentes, com as idades entre 7 e 9 anos, dois meninos e quatro meninas. Nesses encontros, algumas famílias falaram um pouco sobre os impactos da pandemia em suas vidas. Nenhuma família passou pela situação de adoecimento pela COVID-19, no entanto, algumas consideraram que este tem sido um momento muito difícil, “péssimo”, nas palavras de uma mãe, cuja rotina se desorganizou por completo. Para outras, apesar dos momentos iniciais difíceis, “a vida foi se ajeitando”.

Foram organizados dois encontros, marcados em um único final de semana, no horário da manhã. No primeiro encontro, as crianças foram recebidas na roda para apresentação da pesquisa e para que, naquele momento, diante das informações sobre o porquê de estarem ali, qual o propósito da investigação, o que iriam fazer e como iriam participar, além de compreender que poderiam desistir a qualquer momento, assentissem suas participações. Todas quiseram ficar. Hora de começar! Os dois encontros foram iniciados com brincadeiras. No primeiro dia, a brincadeira com bolas teve como objetivo a apresentação de cada uma no grupo; no segundo dia, a brincadeira de caça-tesouro foi um momento inicial de descontração e interação entre elas.

A pesquisa envolveu, além das brincadeiras, uma atividade chamada “descricionário” que, como as próprias crianças inferiram, trata-se de uma palavra inventada que mistura a ideia de um dicionário com a função de descrição, e outra atividade que envolveu as crianças na construção de cartões, para um mural, nos quais elas falavam sobre o ano de 2020. Nos dois dias, a atividade principal foi a roda de conversa, com duração de 40 minutos cada uma. No primeiro dia, o tema foi as experiências das crianças tecidas no dia a dia e, no segundo dia, a escola. Para conversar sobre esse último assunto, as crianças levaram os materiais escolares que haviam usado durante o ano e que gostariam de apresentar na roda.

As rodas de conversas foram um verdadeiro exercício para todos os participantes. As falas, algumas tímidas e contidas e outras entusiasmadas, entraram no fluxo da comunicação verbal e não verbal. A roda é sempre um convite e, nesse sentido, as crianças, animadas, foram contando, explicando e ilustrando suas histórias, riram, avaliaram e admiraram-se diante das falas das outras crianças.

Na atividade do “descricionário”, as crianças puderam se desenhar, escrever sobre como são, os lugares onde moram, as pessoas com quem moram e os lugares onde estudam. A partir dessa atividade, elas puderam também criar um nome fictício, cujo uso serviria para identificá-las nos registros na pesquisa. Assim, elas se identificaram:

Fonte: Desenho elaborado pela criança, 2020.

Figura 1 Lila 

Lila, de 9 anos, está no 3º ano do Ensino Fundamental, tem “cabelo curto, dente separado e criatividade”, mora com a mãe, o pai e o irmão.

Fonte: Desenho elaborado pela criança, 2020.

Figura 2 Ronaldo 

Ronaldo, tem 8 anos, está no 3º ano do Ensino Fundamental, é “inteligente e amigável’, mora com a mãe, o irmão, a cachorra Lupita e a vizinha (citada, porque mora no mesmo lote). Sua escola é grande, muito legal de se brincar e de estudar.

Fonte: Desenho elaborado pela criança, 2020.

Figura 3 Marina 

Marina, tem 8 anos, está no 2º ano do Ensino Fundamental, é “bonita e muito feliz”, mora com a avó, com a tia e a prima. Sua escola é grande e tem muitas salas.

Fonte: Desenho elaborado pela criança, 2020.

Figura 4 Maria 

Maria, tem 7 anos, está no 1º ano do Ensino Fundamental, gosta muito de videogame, mora com o pai, a mãe e o irmão. Sua escola tem parquinho, refeitório, sala de livros e sala de computador.

Fonte: Desenho elaborado pela criança, 2020.

Figura 5 Valentina 

Valentina, tem 7 anos, está no 1º ano do Ensino Fundamental, é “bonita, gosta de brincar de boneca e de casinha”, mora com o pai e a mãe. Sua escola é legal e é onde gosta de brincar com os amigos.

Fonte: Desenho elaborado pela criança, 2020.

Figura 6 Pando 

Pando, tem 9 anos, está no 4º ano do Ensino Fundamental, é “engraçado, obscuro, brincalhão, bravo e inteligente”, mora com a mãe, o pai e a irmã. Sua escola é grande, tem várias turmas e várias salas.

As crianças se veem de forma bastante positiva e conseguem destacar o que consideram ser mais relevante em suas características. Todas moram em casas, estudam em escolas públicas da rede municipal de Belo Horizonte, integram famílias pequenas de, no máximo, quatro membros, são de maioria afrodescendente e pertencem aos segmentos socioeconômicos baixos e médios da população.

Por que falar do cotidiano?

O tema central desenvolvido durante os encontros da pesquisa foram as experiências cotidianas das crianças no decurso do ano: o que foi feito no dia a dia, o que ganhou destaque, o que ficou para trás, o que não foi feito, o que se inovou, o que se descobriu, os sentimentos sobre os acontecimentos, os tempos e espaços praticados, as interações com os familiares e com os amigos, as relações com a escola, em síntese, na poética de Manuel de Barros, falamos sobre os “cheios e os vazios” tecidos cotidianamente.

Por que falar com as crianças sobre suas experiências do cotidiano? O cotidiano ou a cotidianidade aproxima-se da ideia de rotina e, nesse sentido, pode ser associado aos “[...] aspectos repetitivos, frívolos e anódinos da vida social”. Contudo, a rotina é “[...] um elemento básico das atividades sociais do dia a dia” (Pais, 2003, p. 28). Manifesta-se como um campo de ritualidades que se caracteriza por certa “[...] regularidade, normatividade e repetitividade” e, por isso, cumpre uma importante função reguladora das interações sociais. Nesse sentido, a rotina fornece uma segurança ontológica, “[...] a certeza de que a realidade é o que aparenta ser” (Pais, 2003, p. 29). No entanto, “[...] as raízes etimológicas de rotina apontam para outro campo semântico, associado à ideia de rota (caminho), do latim via, rupta, donde derivam as expressões ‘rotura’ ou ‘ruptura’: acto ou efeito de romper ou interromper: corte, rompimento, fractura” (Pais, 2003, p. 29).

Ao oferecer confiança a determinadas ações e condutas, a rotina pode constituir-se como condição sine qua non para a criação. Nesse sentido, “[...] o cotidiano banal, trivial, repetitivo faz parte de um outro cotidiano. [...] a vida cotidiana não é apenas feita de rebotalho, [...] é também lugar de inovação, [...] é o cruzamento de múltiplas dialéticas entre o ‘rotineiro’ e o ‘acontecimento’” (Pais, 2003, p. 74).

Oliveira e Sgarbi (2008, p. 87) definem a vida cotidiana como o espaçotempo do complexo, do enredado, no qual “[...] o sistema social, as normas e regras de interação social ganham sentidos diferenciados em função dos modos como os praticantes da vida cotidiana agem [...]”. Para os autores, é importante considerar o cotidiano “[...] não como uma instância do real dissociada das estruturas nas quais se inscreve, mas como o campo no qual essas últimas se efetivam, sempre de acordo com as possibilidades e circunstâncias específicas de cada espaçotempo” (Oliveira & Sgarbi, 2008, p. 69).

Nessa perspectiva, ao pensar o cotidiano das crianças, compreendemo-lo como o espaço/tempo no qual elas produzem e participam de suas próprias culturas e das culturas dos adultos, desenvolvem múltiplas linguagens, constroem relações afetivas, tecem saberes e conhecimentos sobre seus mundos sociais, brincam, constroem suas identidades, sendo que essas ações ocorrem de modo relacional com as instituições sociais como a família, a religião, a escola, a mídia, em contextos históricos, políticos e econômicos situados. O cotidiano é, pois, o tecido das ações sociais, de ser e estar no mundo (Pais, 2003) e, como tal, constitui-se em matéria prima para o conhecimento das experiências construídas pelas crianças.

Começando pelo final: como foi o ano 2020 para vocês?

No final dos nossos encontros, diante da pergunta “Como foi o ano de 2020 para vocês?”, as crianças colocaram-se a construir um mural, cujo objetivo foi expressar as percepções e os sentimentos a respeito do ano vivido. Fiquei com a tarefa de cobrir a parede com papel craft e as crianças com a tarefa de fazer seus registros em cartões. Algumas escolheram somente desenhar, outras preferiram escrever um texto, algumas o ilustraram, outras não. Fizeram uso de retalhos de papel, montaram figuras, pintaram os desenhos, intitularam suas produções e apresentaram seus cartões, fixando-os no mural.

Como falar de experiências vividas com as crianças propondo pensar a complexidade do espaço/tempo transcorrido de um ano? Ou seja, nos termos de Mead (1982, como citado em Pais, 2003), como transcender o mundo de alcance efetivo e abarcar a zona das coisas distantes?

Se considerarmos o tempo e o espaço como fenômenos sociais totais e não como uma estrutura que se configura por uma sequência de dia após dia, vamos encontrar experiências vividas com forte intensidade, duravelmente estabelecidas que “[...] materializam certas formas de existência e de relação social [...]” (Pais, 2003, p. 87). Nesse sentido, falar sobre as experiências vividas durante o ano possibilitou às crianças a expressão daquilo que mais significou, isto é, das marcas do cotidiano.

Em seus registros, as crianças centraram-se, quase que em sua totalidade, nas experiências de um mundo contaminado pelo Coronavírus. Desenharam-se com máscaras, descreveram “os cuidados contra o COVID-19” e definiram o ano como o da quarentena. Maria, contudo, abstraiu a complexidade da proposta, registrando a sua experiência particular de jogar videogame.

Fonte: Elaborado pela criança, 2020.

Figura 7 Cartão produzido por Pando 

Embora as crianças tenham expressado modos diferentes de lidar com a realidade, foi possível perceber, em suas manifestações, a presença de duas sensibilidades entrelaçadas: a primeira refere-se aos sentimentos e percepções que caracterizam o ano como ruim, pois a presença do vírus que “infectou muitas e muitas pessoas” e que “é mais perigoso para os idosos”, como afirma Ronaldo, de forma acentuada, marcou suas experiências; a segunda sensibilidade mostra-nos um outro lado, como fez Valentina ao afirmar que o ano também foi legal, pois teve mais oportunidades de se encontrar com os primos e de exercitar o que mais gosta de fazer: brincar.

Essa ambivalência que as crianças nos revelam ao analisar a realidade como “ruim demais, mas muito legal” aponta-nos para o modo como conseguem interpretar a dinâmica social dos acontecimentos para além da sua experiência imediata e que, sem se desprender dessa experiência, são capazes de associá-la à dimensão mais complexa da realidade humana como algo que compreende cada um em sua particularidade e, ao mesmo tempo, todos coletivamente.

Para Ronaldo, as percepções e os significados do que se viveu em 2020 não se fixam no limite temporal e espacial proposto, transgredindo qualquer ordenamento desse tipo e, nesse sentido, ganha uma dimensão projetiva: “O ano de 2021 vai ser pior”. Ronaldo assim segue em seu registro: “O COVID-19 vem da China, a China que criou o Coronavírus ou COVID-19[2]. Foi muito perigoso. Todas as pessoas tinham que usar máscara para ir para a rua. Alguns nem acreditam”. Sua forma de compreender a realidade está impregnada pelo vivido, intensamente marcado pelo modo de perceber e sentir os acontecimentos. “O ano de 2020 foi péssimo”, disse Ronaldo no entremeio de uma conversa com as outras crianças durante a roda. Suas falas nos sinalizam uma realidade complexa que não se desfaz facilmente, como na passagem de um ano a outro, e que, mesmo sendo vivida em escala global, não é percebida do mesmo modo por todos, sendo que há aqueles que não compartilham da mesma compreensão, da mesma atenção, dos mesmos cuidados e, como afirma, “alguns nem acreditam”.

Fonte: Elaborado pela criança, 2020.

Figura 8 Cartão produzido por Valentina 

O diário eletrônico de Pando

Durante a nossa primeira roda de conversa, Pando pediu para mostrar o que tinha no celular: eram textos, em formato de diário, que havia escrito no próprio telefone. Em seguida, disse-nos: “Um dia, sei lá, me deu um treco e eu resolvi escrever do nada o que estava acontecendo neste ano. Aí, escrevi do dia 31 de 2019 até 18 de 2020”. Isso entusiasmou e despertou a curiosidade do grupo. Marina bateu palmas: “Fez um texto no celular dele!”. Um pouco mais adiante, Lila pediu: “Fala só uma partezinha!”.

Os registros iniciais começam com a passagem do ano de 2019. Pando considera que 2020 é um ano esperado ansiosamente por todo mundo, porque nele foram depositadas esperanças de que seria o melhor de todos. No entanto, ele próprio elabora uma teoria que soa como um prenúncio: “[...] mau eles sabiam que seria o pior ano porque, não tenho certeza, mas minha teoria é que todos os anos que terminam com 20 vai acontecer coisas inacreditáveis”. É possível que Pando tenha escrito essa passagem de modo retrospectivo, com os acontecimentos provocados pela COVID-19 em curso. Na roda de conversa, ele explica com mais detalhes a sua teoria:

Pando: Porque eu penso que essa teoria, porque eu acho que é, né, porque em 1820 teve a Peste Negra[3]. Em 1920, teve outra doença lá que eu esqueci.

Ana Carolina (que estava na roda apoiando os aparelhos de gravação): A gripe espanhola?[4]

Pando: Isso! E, em 2020, o Coronavírus. Muito estranho, não é? É uma teoria, a gente não sabe se é verdade!

Percebe-se que Pando esforça-se para dar sentido ao desconhecido, apropria-se da realidade que vai se configurando e, para compreendê-la, recorre tanto a elementos factuais como ficcionais e míticos. Para Moles (Moles, 1985, p. 9, como citado em Oliveira & Sgarbi, 2008, p. 24), “[...] viver é confrontarmo-nos com coisas vagas [...]”, imprecisas, perpetuamente variáveis diante das quais “[...] é necessário decidir, reagir ou agir, tomar posição”. Ao surgir em nossa consciência, transformamos as coisas vagas em objetos conceituais, nomeamo-las e efetuamos sobre elas operações mentais e práticas, à nossa conta e risco. Pando age, conjectura diante do desconhecido, mas não o faz de forma isolada. Ao coletivizar o sujeito da ação na expressão “É uma teoria, a gente não sabe se é verdade!”, ele traz as vozes dos outros sujeitos que com ele compartilham as práticas sociais e culturais cotidianas.

Os relatos diários de Pando são breves e com grandes saltos temporais. No mês de janeiro, relata a iminência de uma grande guerra: “[...] começou agora estamos em 2020, janeiro quase aconteceu a terceira guerra mundial entre EUA e Iraque[5] , mas não teve, graças a Deus”. No mês seguinte, registra o surgimento “[...] de uma doença de morcego chamada COVID 19, está em todo planeta, temos que usar máscara, evitar contato com as pessoas, higienizar as coisas, passar álcool em gel, etc.”.

É possível perceber, em sua escrita, a sensibilidade e a preocupação com os eventos de ordem mundial que impactam a vida local, a política, a economia, a saúde, a educação, as relações sociais e afetivas, demonstrando a sua participação ativa na vida social. Pando não só registra os acontecimentos como também se ressente e conforta-se diante deles. Percebe-se que essa participação, diante do vasto mundo que ele busca compreender, exigi-lhe lidar com as inseguranças, os medos e as tensões que essa mesma participação implica.

A partir daí, os relatos de Pando ganham a dimensão do corriqueiro, do dia a dia. O tempo é lânguido, da espera, da incerteza, “[...] um tempo aborrecido e escorregadio” (Pais, 2003, p. 88). O tempo da quarentena, do silêncio, sem bioescrita. Mas, não é um tempo homogêneo e nem linear, por ele fluem e deslizam ritmos diferentes e concorrenciais, os quais configuram-se por inusitadas surpresas, ilusões e esperanças que reavivam o cotidiano. São esses momentos do dia a dia que Pando registra em seu diário eletrônico. Mesmo entremeada por lamentosas expressões que sugerem um “nada para fazer” a quase todo tempo, o que, possivelmente, explicaria os grandes saltos temporais em seu diário, a narrativa segue com passagens da vida cotidiana carregadas de surpresas e suspiros.

Os registros ganham passagens como receber de surpresa um doce Kinder Joy após ir vacinar e encontrar Gamorra, sua cachorrinha, em seu quarto. Em dezembro, os registros ocorrem em uma sequência significativa de dias. No dia cinco, Pando narra a sua expectativa com relação à festa de aniversário de uma amiga e, no dia seguinte, registra que a festa foi muito boa, mas que naquele dia não havia nada para fazer. A aproximação do fim do ano é a esperança de romper com a banalidade e a repetitividade que predominam no seu dia a dia: “está quase acabando o ano, graças a Deus kkkkkkk.” No entanto, uma série de acontecimentos reavivam o seu cotidiano nos dias seguintes: são as brincadeiras e os encontros com os primos: “[...] hoje estou na casa da minha melhor amiga, nós estamos brincando de caça ao tesouro, tá muito legal [...]” (09/12); “estou em casa com minhas primas e meu primo, eu e minha prima estamos brincando de desenho kkkk” (17/12).

É interessante considerar que Pando, durante a roda de conversa, disse-nos que não brinca sozinho no dia a dia, mas, aqui, em seu diário eletrônico, a brincadeira, em meio a outras crianças, aparece como um topos capaz de revivificar o tempo da infância. As brincadeiras o deslocam para outro universo e a experiência se transforma, o tempo converte-se no tempo buliçoso de um presente intensamente vivido. Nesse sentido, Kohan (2019) lembra-nos:

[...] o tempo da infância é aión, que segundo o dicionário significa a intensidade do tempo na vida humana, um destino, uma duração, um estado de intensidade não numerado (LIDDELL; SCOTT, 1966, p. 45). Aión é o tempo da arte (pela arte), da brincadeira (pela brincadeira), do pensamento (pelo pensamento). Aión, afirma Heráclito (22 DK 52), é uma criança que crianceia, brinca [...] aión é um reino infantil [...] (Kohan, 2019, p. 13)

Percebe-se, em suas escritas, que foram os momentos de (re)encontros com os amigos e com os primos, preenchidos por situações de surpresas e brincadeiras, que imprimiram novos ritmos à rotina, irrompendo a circularidade do tempo da espera.

Fonte: Arquivos da pesquisa, 2020.

Figura 9 Diário eletrônico de Pando 

Entre as brincadeiras, o Tik Tok é a sensação

Na rotina das crianças, o que mais predominou, segundo elas próprias, foi o uso das tecnologias. Mas essa não foi uma opinião unânime. Diante da pergunta: .o que vocês mais fizeram durante o ano?”, as respostas despontaram de todos os lados: “jogar, comer, brincar, conversar”. Na hora, lembrei-me da obra literária de Elizabeth Gilbert, “Comer, rezar, amar”, publicada em 2006. Sim, esse poderia ser um dos títulos para narrar as experiências das crianças: “Comer, conversar, brincar e jogar”. No entanto, nas rodas de conversa, os usos e as brincadeiras com os aparelhos tecnológicos, o celular e a TV, foram os mais intensamente comentados por elas. Entre as tecnologias, o celular ganhou destaque:

Pesquisadora: Gostaria que vocês me falassem sobre o que fizeram ontem desde que acordaram até dormir.

Pando: Vamos falar de ontem. Uai, a primeira coisa que a gente faz quando acorda, o que é? (Dirigindo-se à pesquisadora).

Pesquisadora: Uai, é você que vai me dizer.

Pando: Fala.

Pesquisadora: Você quer saber o que eu faço? Daqui a pouco eu conto, conta pra mim primeiro.

Pando: Primeira coisa que a gente faz quando acorda [...] mexe no telefone!!! (Todas as crianças riram e bateram palmas).

Pando: Depois, a gente acorda.

Essa inserção intensa e ubíqua das mídias na vida cotidiana diz-nos de uma nova forma de sociabilidade, vivida pelas sociedades atuais, a qual tem as tecnologias como processo deflagrante. Essa nova sociabilidade caracteriza-se por um novo modo de ser e estar no mundo. Nesse sentido, de acordo com Faxina e Gomes (2016, p. 187), “[...] a pessoa não é um ‘eu’ que utiliza instrumentos como extensão do seu corpo, mas um indivíduo que se autocompreende como um ser que preza as suas relações e conexões através da existência dos instrumentos tecnológicos da comunicação”. Apesar dessas mudanças não alterarem o próprio sentido de sociedade, segundo Sodré (2006, como citado em Faxina & Gomes, 2016), elas criam novos hábitos que afetam o cotidiano da vida pessoal e coletiva.

Em pesquisa anterior (Nery, 2019), verificou-se como muitas famílias valorizam a interatividade midiática, participam inteiramente dela e fornecem às crianças meios para que também possam participar. Trata-se de uma forma de inserção assertiva e qualificada na cultura, visto que de uma forma global, “[...] a vida moderna é uma experiência midiática” (Gómez, 2014, p. 114).

Entre as telas digitais, foi possível perceber a predominância do celular no grupo pesquisado, cujo acesso ocorre pelo compartilhamento entre os membros da família, principalmente as mães. Por meio do telefone celular, as crianças da pesquisa jogam e assistem aos canais de YouTube. Porém, a grande sensação é “fazer TikTok”:

Pesquisadora: Agora, eu gostaria de saber das brincadeiras. Do que vocês mais brincaram?

Marina: Eu brinquei de pipa, eu brinquei de corda e de TikTok, porque o TikTok é a minha vida!

Lila: É a minha também!

Ronaldo: É a minha também!

Pesquisadora: Eu não conheço o TikTok!

Marina: É um app de fazer vídeo.

Pesquisadora: O que vocês fazem no TikTok? (Muito burburinho e riso entre as crianças).

Pando: Dança, vídeo.

Marina: Tudo o que você quiser você faz....

Ronaldo: Tem uns efeitos.

Marina: No TikTok, eu fico de dia até de noite, né!

Ronaldo: Eu, o dia inteiro! (Burburinho e riso entre as crianças).

Mariana: Ele virou minha escola. Ele faz eu aprender tudo o que eu quero aprender..., mas umas coisas é bobeira, né!

Lila: Mas ele não é santo!!!

O TikTok é um aplicativo de compartilhamento de vídeos curtos, de menos de um minuto, que tem hoje mais de 1,5 bilhão de usuários (Felix, 2020). A ferramenta permite, entre várias outras funções, produzir vídeos performáticos de música e dança com amplos recursos de edição.

A sensação que as crianças demonstram diante do TikTok é da ordem do extraordinário, o que talvez possa ser relacionado, para entendermos melhor esse sentimento, à ideia de “fazer explodir a aprendizagem”, de acordo com Gómez (2014, p. 76). Não se trata, aqui, da aprendizagem formal e sim das aprendizagens decorrentes das interações midiáticas e tecnológicas que conduzem, de modo quase interminável, à exploração, à experimentação, à tentativa e ao erro, mediante produções criativas e motivadas pela transformação e pela inovação (Gómez, 2014). Trata-se, pois, do que se denomina como interatividade, mais do que interação. Segundo Gómez (2014, p. 78), a interatividade é “[...] o elemento essencial que separou velhas e novas tecnologias de informação e se diferencia das atuais”. A interação multimediada e não linear faz parte de todo processo de recepção. No entanto, a interatividade:

[...] acrescenta a possibilidade de desconstruir, entendido literalmente como: destruir e voltar a construir, ou seja, reconstruir sobre o referente mesmo, não apenas sobre a própria interpretação do referente, feita pelo usuário, neste caso, ou pelo membro da audiência em sua relação com as telas midiáticas. O referente midiático da interatividade é construído tanto pelo criador original quanto por cada um dos usuários posteriores [...] (Gómez, 2014, p. 78)

Daí, possivelmente, o grande furor por essa ferramenta midiática: além do seu caráter de novidade, promove grande interatividade. Ademais, ao observar como as crianças riem e se agitam durante as falas sobre o TikTok, é possível inferir que se trata de contextos de entretenimento, de riso, de sátira, como diz Ronaldo, “são vídeos muito loucos”. Nesse sentido, é importante considerar que o humor é valioso na vida cotidiana, uma vez que permite, através do riso, o relaxamento e a reenergização de forças (Fuenzalida, 2008). Mas, Lila e Marina advertem: “O TikTok não é santo!”, “Umas coisas é bobeira!”.

É interessante perceber as ideias e noções de aprendizagens que surgem nas narrativas das crianças quando elas falam de suas experiências de interatividade com as mídias: “Ele virou minha escola. Ele faz eu aprender tudo o que eu quero aprender”, diz Marina ao falar do TikTok. Pando, logo após a fala da Marina, segue a conversa:

Pando: Tem um canal na internet “Você sabia[6]”! [...] é muito, muito melhor que escola, você aprende muito mais que na escola.

Lila: É coisa que você não sabia na vida [...] e coisa que existia e você nunca conheceu!

Pando: Vendo aula online, qualquer hora você não vai saber de nada, mas se você vê um minuto daquele vídeo, sua mente vai explodir.

Lila: De tanta coisa interessante que é.

Aqui, as crianças, a partir de suas experiências midiáticas, fornecem-nos pistas para pensar a escola como uma ambiência multiconectada, na qual a curiosidade é aguçada, o mundo das coisas desconhecidas é explorado e as aprendizagens são tecidas conjuntamente, por seus atores, por meio da exploração, da criação, da simulação e do encantamento.

As brincadeiras comentadas pelas crianças como brincar de corda, de pipa, de pega-pega, andar de bicicleta, entremeadas pelas experiências com o celular e com a TV compõem o cenário lúdico das crianças do grupo pesquisado. Tais experiências com as mídias mantêm com as demais brincadeiras uma relação de intertextualidade e mutabilidade. Ou seja, as crianças carregam os referentes construídos em suas experiências midiáticas e os transformam de forma criativa nas brincadeiras. O contrário também ocorre, fazendo com que tais referentes transformados expandam a espacialidade e a temporalidade do ato de brincar, pois encontram-se na dimensão do intangível, isto é, do imaginário, cujas fronteiras são indômitas.

A relação com a escola: quando o tempo de pausa agrava a crise

No segundo dia, o tema foi a escola. Para iniciarmos a conversa, pedi às crianças que colocassem no centro da roda os materiais escolares que elas haviam levado para apresentar ao grupo. Comecei perguntando se elas já estavam de férias e ouvi um uníssono “Não”. Lila, no entanto, respondeu: “Eu tô o ano inteiro!”. No primeiro dia de encontro, durante a atividade do “descricionário”, Lila precisou de auxílio para escrever, não conseguiu descrever a escola e assim justificou a falta da lembrança: “[...] porque tem muito tempo que eu não estudo. Na minha escola, não é obrigatório estudar. [...] Não me lembro muito bem da escola, porque faz muito tempo que eu não vou lá”.

No dicionário da clássica obra de José Paulo Paes, Poemas para Brincar, de 1991, as aulas são definidas como o período de interrupção das férias. Seguindo a irreverência do poeta, logo, se não há aulas, as férias não terminam. Assim, sente-se Lila: em intermináveis férias. Para outras crianças, no entanto, como se verá adiante, se não há escola, não há férias.

Mesmo estudando no mesmo sistema público de ensino do município de Belo Horizonte e na mesma regional, foi possível perceber as distintas relações que as crianças construíram com as escolas, durante o período pandêmico. Os materiais escolares que as crianças levaram para a roda falam-nos dessas relações.

Lila, Ronaldo e Marina estudam na mesma escola pública. Para a roda, Lila e Ronaldo, do 3º ano do Ensino Fundamental, levaram os mesmos materiais escolares: os livros didáticos do 2º ano, guardados em suas casas no ano anterior. Segundo Lila, ninguém ficou com os livros do terceiro ano. Ronaldo levou apenas o livro de ciências para a roda e, ao mostrá-lo, disse-nos que refez algumas atividades e que, além dos livros do segundo ano, recebeu, da sua tia, um livro do quarto ano. Diante da presença dos materiais levados pelas demais crianças, contou-nos que a escola não lhe havia enviado nenhum material, nenhuma apostila. Lila, apesar de levar para a roda todos os livros do segundo ano, disse-nos que não realizou nenhuma atividade, porque a escola mesma havia dito que não era obrigatório. Marina, estudante do 2º ano do Ensino Fundamental, levou um caderno, mas não quis mostrá-lo ao grupo e nem o colocar no centro da roda: ficou com ele, durante todo o momento, guardado entre os braços.

Maria e Valentina estudam no 1º ano do Ensino Fundamental em outra escola pública. As duas levaram o mesmo bloco de atividades para a roda e mostraram ao grupo os exercícios realizados nas primeiras páginas. Em ambas as apostilas, as atividades tinham sido apenas iniciadas. Maria e Valentina não souberam dizer se havia outros blocos de atividades, mas afirmaram que este deveria ser entregue na escola no mês de janeiro.

Pando estuda no 4º ano do Ensino Fundamental em uma terceira escola pública municipal. Ele levou para a roda sua pasta de apostilas e disse-nos “muita coisa, não é?”. Pando contou-nos que a escola enviava, toda quarta-feira, pelo Facebook, uma apostila com todas as matérias e o gabarito, na semana seguinte. Sua irmã mais velha foi quem imprimiu as atividades e o auxiliou tanto na realização dos exercícios como na correção. Além disso, disse-nos que estava fazendo uma prova que seria entregue em fevereiro. Em seguida, mostrou-nos as apostilas, apontando-nos detalhes nos textos sobre assuntos estudados como a dengue, a AIDS, o aumento das queimadas no Brasil e a história do telefone e da fotografia.

Percebe-se a relação distante das três primeiras crianças com a escola. Tal distanciamento reflete-se na falta de acesso à materialidade para realização dos estudos, na ausência de atividades, minimamente acompanhadas pela escola e na falta de orientação para organização de rotinas de trabalho escolar. Provavelmente, foram as ações ou a falta delas que imprimiram um sentido de escola não obrigatória para Lila. No entanto, é interessante perceber que tal ausência não é sentida pelas crianças como um problema. Ao contrário, para Marina “foi maravilhoso”, para Lila, “um tempo de férias”. Para Maria e Valentina, apesar do acesso aos blocos de exercícios, buscados pelas mães na escola, os vínculos com a instituição também foram tênues. As atividades disponíveis ficaram à espera de mais motivação ou talvez de alguém que pudesse mediá-las. Pando foi a única criança que apresentou mais entusiasmo ao falar dos seus materiais escolares e de suas atividades ainda em curso. É possível, no entanto, que ele tenha concentrado tanto a realização dos exercícios como da prova mais no período final do ano, uma vez que, em seu diário eletrônico, não há referências sobre as atividades escolares em sua rotina. Ademais, Pando contou com uma rede de apoio, construída por sua família, para o auxiliar nessas atividades, a qual envolveu, além da irmã, uma terceira pessoa contratada para orientá-lo nas atividades, semanalmente, durante duas horas.

As diferentes experiências das crianças mostram-nos os modos diferentes como as escolas lidaram com a escolarização no período pandêmico. No entanto, é possível perceber entre elas uma linha de condução comum que se expressa na frágil relação construída com as famílias e as crianças. Nessa perspectiva, percebe-se mais uma ausência do que ações que buscassem recriar vínculos, oferecer diferentes condições e recursos para que a continuidade dos estudos fosse, de algum modo, garantida às crianças. Somente a oferta de atividades em blocos ou apostilas tem pouco efeito nesse sentido. Se associarmos, por um lado, o modo como se deu a escolarização das crianças nas diferentes escolas e, por outro, as condições e as disposições que elas apresentaram nas práticas de escrita vivenciadas durante a pesquisa, é possível perceber o impacto dessa ausência ou pouca presença da escola em algumas habilidades das crianças. Nesse sentido, destaco a seguinte cena: Marina e Lila, do segundo e terceiro anos, disseram-nos, no primeiro dia de encontro, que não estavam conseguindo escrever e por isso gostariam que uma outra pessoa assumisse essa tarefa para elas; no segundo dia, optaram por não escrever. É importante considerar que a infância e a educação não podem ficar esquecidas, uma vez que o tempo de pausa agrava a crise, isto é, amplia e aprofunda as desigualdades escolares.

Fonte: Arquivos da pesquisa, 2020.

Figura 10 Materiais escolares das crianças 

Afinal, a escola é importante para as crianças? Que sentidos a permeiam? Uma cena inusitada, durante a segunda roda de conversa, permitiu-nos compreender, de um certo ângulo, o significado da escola para as crianças. Diante da pergunta “Vocês tiveram escola neste ano?”, as crianças rapidamente responderam em coro “Não”, mas logo em seguida Pando disse-nos “Sim, em casa, né!” e Ronaldo, sem hesitar, disparou: “Teve, aqui!”. Sem que eu ainda conseguisse entender o que tinha sido dito, todas as crianças seguiram a opinião do Ronaldo gritando “Sim, sim, aqui, aqui!!”. Perguntei para ver se estava realmente entendendo: “Isto aqui é uma escola?”. “Sim”, gritaram todas.

O que, possivelmente, aquela experiência de pesquisa com as crianças se assemelhava à escola? A partir dessa reflexão foi possível considerar que a escola relaciona-se, para as crianças, com uma espacialidade e uma temporalidade próprias, delimitadas por um começo e um término, cujas experiências se tecem de modo diferente de outros espaços sociais e culturais cotidianos; a um lugar de encontro com os pares, com os quais se formam grupos de trabalho, realizam-se trocas e brincadeiras e no qual circulam conhecimentos e informações; a uma sequencialidade e a uma organicidade das atividades propostas, à circularidade da escrita, da leitura, da oralidade e da escuta; à presença de um mediador que conduza com elas o trabalho; a um ambiente de múltiplas interações, na qual suas participações têm valor. Em resumo, as crianças veem a escola como um espaço social peculiar, dinâmico, múltiplo, daí a sua indispensabilidade.

Para as crianças, a escola também é o lugar da amizade, do encontro, das várias sociabilidades. Ao perguntar sobre o que mais sentem falta na escola, todas afirmaram que sentem falta dos (as) colegas, das “melhores amigas” e dos amigos. Ronaldo e Maria também falaram que sentem falta das professoras e Valentina acrescentou as matérias. Ao voltar para a escola, querem brincar, estudar, encontrar “os amigos de volta” e, além disso, Pando e Lila disseram que também esperam encontrar na escola mais higiene e mais respeito.

Hora de fechar a roda

Para fechar a roda, destaco três pontos. O primeiro diz da importância dos modos como as crianças constroem suas experiências cotidianas. Diante das adversidades, elas (re)organizam seus mundos, preenchendo-os com o que mais gostam de fazer, participam ativamente na compreensão da realidade local e global e, nesse sentido, ao formularem ideias e expressarem seus sentimentos a respeito de suas experiências, demonstraram-nos como as minudências da vida particular estão imbricadas na complexidade da vida social. As crianças falam, sentem e vivenciam os efeitos deste mundo enredado: angustiam-se, entristecem-se e também se alegram e se divertem.

Em segundo, é fundamental (re)afirmar a infância e a educação como prioridades (Gomes & Voltarelli, 2020). Carlos Starling, médico infectologista, escreveu, em 2020, um conto para o jornal Estado de Minas, no qual narra as suas experiências na escola da infância e dentre elas as epidêmicas, como o sarampo, a catapora e a caxumba, as quais exigiam, entre o surto da doença e as campanhas de vacinação, períodos de pausa, de suspensão das aulas. Contudo, o quadro pandêmico atual é, provavelmente, o caso histórico de maior impacto sobre as escolas, o qual caracteriza-se por sua extensão, isto é, atinge todas as escolas, sua durabilidade e pelos efeitos desiguais que provoca.

Trata-se de um contexto bastante exigente para as escolas, especialmente as públicas, o qual impõe desafios de grande monta. Porém, tais desafios não se ligam unicamente às circunstâncias atuais, mas fazem parte das exigências de uma sociedade em permanente movimento. Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica afirmam: “A escola tem, diante de si, o desafio de sua própria recriação, pois tudo que a ela se refere constitui-se como invenção: os rituais escolares são invenções de um determinado contexto sociocultural em movimento” (Brasil, 2010, p. 16).

As experiências das crianças da pesquisa mostram-nos que é necessário que a escola siga presente em suas experiências cotidianas, com propostas recriadas, modos diferenciados de alcançá-las e motivá-las. Trata-se de um ato pedagógico, político e de esperança, porque, segundo Freire (2000, p. 11), “[...] enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim espera vã”.

O terceiro ponto é relativo à (re)abertura das escolas, compreendendo essa situação não como algo que está por vir, mas que já faz parte tanto do momento presente como do passado, uma vez que, com as experiências atuais, fica patente que “[...] tanto o passado como o futuro fazem parte do mundo mutuamente interativo dos fenômenos, ambos reafirmados e reformados iterativamente uns aos outros com o presente” (Kohan, 2019, p. 11). Nesse sentido, as experiências das crianças apontam-nos para uma necessária abertura da escola como espaço/tempo das sensibilidades acolhidas e acolhedoras; dos reais encontros de quem quer ensinar com quem quer aprender; das conversas que deixam fluir as expectativas e as esperanças; das curiosidades aguçadas; da valorização dos conhecimentos e dos princípios humanos. Um espaço/tempo que insufle ânimos e coragens e que também faça suspirar e rir. Enfim, um lugar onde a vida em conjunto possa vibrar.

Referências

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[1]Os encontros foram realizados, garantindo-se aos participantes o cumprimento de medidas sanitárias como o uso de máscaras e álcool em gel.

[2]Um estudo realizado nos Estados Unidos, Escócia e Austrália traz evidências de que o SARS CoV-2 surgiu a partir de processos naturais de evolução dos seres vivos. Mutações no genoma do vírus surgem aleatoriamente durante sua replicação e tais mudanças são imperfeitas, daí ser improvável a hipótese de terem sido produzidas pelo homem (Bernardes, 2020).

[3]“O primeiro e o maior surto de peste negra ocorreu entre 1348 e 1350, mas outros surtos aconteceram ao longo de todo o século XIV. O último surto, na Europa, foi registrado em Marselha, na França, em 1720”. (Silva, 2020a).

[4]A gripe espanhola foi uma pandemia que aconteceu entre 1918 e 1919, iniciada por uma mutação do vírus Influenza, e que atingiu todos os continentes deixando, no mínimo, 50 milhões de mortos. (Silva, 2020b).

[5]Trata-se da crise entre os Estados Unidos e o Irã, provocada pela morte do general Qassem Soleimani, que ocorreu durante o ataque aéreo estadunidense em Bagdá, no Iraque, no dia 02/01/2020.

[6]"Você Sabia?" é um canal de youtubers brasileiros que apresenta conteúdos educativos e de entretenimento.

Recebido: 23 de Janeiro de 2021; Aceito: 24 de Maio de 2021

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