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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Jan 29, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.34701 

Artigos

Literatura sobre educação a distância fundamentada em Paulo Freire: uma abordagem crítica?

Literatura de educación a distancia fundamentada en Paulo Freire: ¿un enfoque crítico?

Distance learning literature based on Paulo Freire: a critical approach?

Vanessa Batista de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-3149-0554

Jaciara de Sá Carvalho2 
http://orcid.org/0000-0003-1497-3930

1Mestra em Educação pela Universidade Estácio de Sá (2020). Integrante do Grupo Conexões: Estudos e Pesquisas em Educação e Tecnologia (CEPETec). Técnica em Assuntos Educacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2015). Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá (UNESA). Líder do Grupo Conexões: Estudos e Pesquisas em Educação e Tecnologia (CEPETec).


Resumo

Este artigo apresenta achados de uma pesquisa exploratória que analisou como a pedagogia desenvolvida por Paulo Freire vem sendo incorporada em artigos sobre educação a distância, examinando sua aderência a trabalhos críticos. Foi realizada uma análise de conteúdo na amostra a partir de questões definidas a priori. Entre os achados, a análise sugere que, apenas parcialmente, os trabalhos foram desenvolvidos sob uma abordagem crítica. Um dos motivos pelos quais Paulo Freire está presente nessas discussões seria o fato de sua obra oferecer referenciais para discutir questões caras à modalidade a distância, para que possa ser desenvolvida de forma problematizadora.

Palavras-chave Educação a Distância; Paulo Freire; Tecnologias; Abordagens Críticas

Resumen

Este artículo presenta hallazgos de una investigación exploratoria que analizó cómo la pedagogía desarrollada por Paulo Freire ha sido incorporada en artículos sobre educación a distancia, examinando su adhesión a perspectivas críticas. Se realizó un análisis de contenido de la muestra en base a preguntas definidas a priori. Entre los hallazgos, el análisis sugiere que los trabajos solo se desarrollaron parcialmente desde un enfoque crítico. Una de las razones por las que Paulo Freire está presente en estas discusiones se debe a que su trabajo ofrece referencias para discutir temas importantes en la modalidad a distancia, para que se pueda desarrollar de forma problematizadora.

Palabras clave Educación a distancia; Paulo Freire; Tecnologías; Enfoques críticos

Abstract

This article shows some findings of an exploratory research that investigated how the pedagogy developed by Paulo Freire has been incorporated into articles on distance learning, examining its adherence to critical works. A content analysis was carried out in the sample based on questions established a priori. In the set of findings, the analysis suggests that the studies were developed only partially under a critical approach. One of the reasons why Paulo Freire would be present in the discussions would be related to the fact that his work offers references to discuss some very important issues to the modality of distance learning, so that it can be developed in a problematizing way.

Keywords Distance learning; Paulo Freire; Technologies; Critical approaches

Introdução

O distanciamento social provocado pela pandemia resultante do novo coronavírus colocou em destaque o uso de tecnologias digitais para a educação remota. Praticamente de uma semana para outra, em meados de março de 2020 no Brasil, milhões de estudantes, professores e toda a comunidade tiveram suas experiências educacionais suspensas. Nenhum dos níveis de ensino, desde a educação básica à superior (Coutinho et al., 2020), ficou imune ao discurso da necessidade iminente de continuidade do ano letivo e/ou de apoio aos estudantes, em geral, com a integração de artefatos digitais. A pandemia teria escancarado ainda mais as desigualdades já existentes no Brasil. Nesse contexto, alguns pesquisadores vêm comentando que “as escolas particulares estão ensandecidas” (Piva, 2020), descarregando conteúdos pela internet. Já para muitos estudantes pobres, normalmente de escolas públicas, faltam desde a conexão à internet até o material básico (Palhares, 2020).

Essa situação trouxe à tona novamente um debate que não é novo na literatura acadêmica e expôs antagonismos da relação entre educação e tecnologia na qual pode-se incluir a modalidade a distância. Com pesquisas internacionais na área, Selwyn (2014, pp. 1-2) alerta que grande parte da discussão acadêmica sobre tecnologia educacional vem se dividindo entre uma assimilação passiva e uma aposta otimista nas benesses atribuídas à tecnologia para a educação. Os avanços positivos que a tecnologia tem proporcionado a colocaram num patamar “salvacionista” (Morozov, 2013), considerando que problemas poderão ser solucionados por ela, sem atentar para questões e situações que não passam pela tecnologia, além de novos problemas que poderão surgir. Ademais, “o processo de globalização tem modificado a maneira como a ciência e a tecnologia moldam a sociedade contemporânea. No contexto atual, tratar as facetas natural, social e tecnológica não é suficiente para abarcar os desafios da vida coletiva” (Pietrocola & Souza, 2019, p. 59).

No Brasil, não seria diferente. Rosado et. al (2017), por exemplo, analisaram um recorte da literatura acadêmica em língua portuguesa sobre educação e tecnologia e identificaram uma tendência semelhante nas concepções de tecnologias e educação com grande ênfase na “inevitabilidade da mudança e dos benefícios da ‘inovação’ que move muitos estudos na área”. Os pesquisadores analisaram 193 artigos de 28 periódicos e, entre os trabalhos que se dedicaram a campos empíricos, 27% envolviam educação no formato totalmente a distância (21,08%) ou semi-presencial (5,2%), universo amostral próximo aos 35% que tratavam apenas do ensino presencial.

Ao relutar “em pensar criticamente sobre as tecnologias digitais na educação”, a literatura na área “contrasta fortemente com a natureza política da tecnologia” (Selwyn, 2014, p. 1). Seriam necessários mais estudos sobre abordagens críticas preocupados em interpretar com maior profundidade os conflitos de poder e de dominação, a promoção das pautas de grupos hegemônicos, além de outras ações que proponham possibilidades alternativas.

O estudo exposto neste artigo buscou, entre seus objetivos, saber se um recorte da literatura sobre a modalidade a distância desenvolvido sob uma abordagem crítica fugiu a este discurso hegemônico. Como são muitas as perspectivas críticas, a investigação (Oliveira, 2020) se debruçou sobre trabalhos que explicitaram terem recorrido à obra de Paulo Freire (1921-1997) como referencial teórico. Freire vem sendo revisitado por conta de seu centenário de nascimento (1921-2021). A pesquisa exploratória apresentada nesse artigo também buscou apontar como a obra de Freire vem sendo apropriada por autores que discutem essa modalidade com base em questões previamente definidas.

Procedimentos metodológicos e referenciais de análise

A pesquisa comunicada nesse trabalho deteve-se em artigos publicados em revistas catalogadas como A1 e A2 pelo sistema “Qualis Periódico” (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [CAPES]), no quadriênio de 2013-2016. Os periódicos selecionados foram do estrato A, considerando que possivelmente pesquisadores mais experientes escrevam para essas publicações. O recorte adotado refere-se ao período de 2007 a 2017. Isso se deve ao fato de que, em 2018, Pedagogia do Oprimido (Freire, 1987) completou cinquenta anos de publicação e acreditávamos que essa efeméride poderia impulsionar pontualmente as revisitações críticas à obra, inflando artificialmente a amostra aqui coletada.

Inicialmente, foi realizado um apanhado de todas as revistas A1 e A2 por uma integrante do Grupo de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ao qual essa pesquisa está vinculada. Foram identificados 501 Números Internacionais Normalizados para Publicações Seriadas (ISSN) de revistas A, sendo 121 de A1, e 380 de A2. A análise foi realizada por essa integrante a partir dos sites das próprias revistas, algumas delas “hospedadas” apenas na ScientificElectronic Library Online (SciELO). Esta lista de periódicos foi utilizada até esta etapa para esse trabalho, mas a integrante (Pellon, 2019) se dedicou a outro tópico, enfocando as discussões sobre educação e tecnologia, e não sobre educação a distância.

Portanto, havia 501 revistas A1 e A2 somadas. Após a retirada de ISSN duplicados, restaram 431. Posteriormente, foi feita a exclusão daquelas apenas impressas, estrangeiras, com título duplicado e cujas páginas estavam fora do ar (sobraram 95 revistas) para, assim, ser feita a seleção dos artigos com base na combinação das palavras-chave “Freire” e variações que se refiram à modalidade a distância em todos os campos de busca disponíveis nos sites das 95 revistas, quais sejam: “distância”, “online”, “on-line”, “educação virtual” ou “e-learning”. Foram selecionados artigos que continham “Freire” no título, no resumo e/ou nas palavras-chave, e ao menos uma das expressões citadas acima.

Após este procedimento, foram identificadas 9 revistas com 10 artigos, mas decidiu-se pela não inclusão de 2 destes, pois foram produzidos pela líder do Grupo de Pesquisa. Assim, a amostra final se constituiu de 8 artigos que passaram, inicialmente, por uma análise de conteúdo a partir de considerações de Bardin (1977) e de questões previamente formuladas.

Vejamos os artigos que fizeram parte do estudo.

Fonte: os autores

Quadro 1 Artigos analisados 

Conhecendo melhor a amostra

A pesquisa exploratória (Oliveira, 2020) que deu origem a esse artigo buscou identificar como a pedagogia desenvolvida por Paulo Freire vem sendo incorporada em artigos sobre educação a distância a partir de características comuns a abordagens críticas. Nesta seção, serão apresentados brevemente os achados de pesquisa a partir de questões que orientaram a análise e, ao final, as considerações sobre abordagem crítica ou não dos trabalhos. A análise foi orientada por algumas questões que serão apresentadas com os achados identificados.

Quais principais autores da área de EaD são relacionados a Freire nos trabalhos e o que essa relação sugere? Os mais citados foram, em ordem alfabética, Belloni (Ferrari et al, 2009; Pinto & Bastos, 2012), Kenski (Ferrari et. al, 2009; David et al., 2014a) e Pretti (David et al., 2014b). Porém, a partir da análise, não se concluiu que estes autores, embora presentes na discussão, figurassem ao lado de Freire como referencial teórico. Na verdade, eles teriam contribuído com informações e concepções sobre a educação a distância e não seriam autores associados a perspectivas críticas.

Por que recorrer à obra de Freire para discutir EaD? Não foram encontradas justificativas para a utilização de Freire para discutir a modalidade, mas a apropriação de categorias desenvolvidas por Freire sugere que seriam atuais para abordar características e problemáticas da modalidade. Exemplificando: ao tratar do diálogo, os autores apontam que os cursos ofertados a distância terão mais êxito se os professores/tutores estimularem os cursistas a não dar apenas respostas automáticas nos fóruns de discussão, mas incentivá-los a que sejam capazes de escutar os outros participantes para, então, estabelecer um diálogo que enriqueça a reflexão e debate dos temas dos fóruns. Ainda que esse recorte não seja necessariamente o mesmo do diálogo em Freire (1987), mais próximo do diálogo-dialético, os autores que recorreram a esta categoria encontraram nessa concepção freireana um horizonte para fundamentar a discussão e/ou o processo educativo.

Embora não tenha se debruçado sobre a temática da Educação a Distância, uma das razões pelas quais Paulo Freire se faz presente nesses colóquios são os referenciais que sua obra oferece para a abordagem de aspectos afeitos à modalidade, como a autonomia dos estudantes e o diálogo entre eles e com o professor/tutor, sempre segundo um olhar de que é possível conceber a EaD de forma problematizadora e não bancária.

Quais conceitos/categorias da obra de Paulo Freire são mais recorrentes nos trabalhos da amostra? Não seria de se estranhar que a categoria “diálogo/dialogicidade” seja a mais recorrente na amostra, afinal, seria um dos princípios fundamentais de seu pensamento (Freire 1987; 2002). A categoria foi identificada em 6 artigos; seguida por “educação bancária/educação problematizadora”, que ocorreu em 5 artigos. O terceiro mais citado foi “autonomia”, fazendo-se presente em 4 artigos. Acreditamos que esses conceitos tiveram destaque por se referirem a questões-chave das discussões que vêm acompanhando a modalidade ao longo de sua história.

Pudemos constatar que os autores recorreram à categoria “educação bancária” para se referir a experiências de ensino/aprendizagem a distância que promovem uma “educação problematizadora”. Freire forneceu os princípios gerais, concernentes a uma perspectiva de educação emancipatória, que podem subsidiar a elaboração de processos de ensino a distância, diferentemente de autores que abordam o tema em “teorias” de EaD.

A análise sugere que o diálogo seria fundamento para uma educação a distância problematizadora, pois esta depende do diálogo entre os homens “mediatizados pelo mundo” (Freire, 1979, p. 42). Sem diálogo, haveria o risco de se degenerar para uma educação bancária, ainda que os materiais potencialmente ensejem reflexões críticas. O diálogo crítico defendido por Freire seria um dos alicerces na construção da autonomia pelos sujeitos.

Chegamos, dessa forma, à terceira categoria mais presente: “autonomia”. Ela teria sido utilizada para problematizar a postura dos estudantes, apontando para a necessidade de os discentes construírem sua autonomia nesse processo, não sendo dependentes do professor/tutor para desenvolver as atividades do curso em que estejam matriculados. Além desta necessidade, os autores, em sua maioria, acreditam que a modalidade estimula a autonomia.

A autonomia constrói-se precisamente pelo diálogo crítico entre os colegas e os professores/tutores. Opostamente, em ambas as modalidades, o ensino pode ser concentrado em “pacotes de conteúdos” ministrados por professores que se consideram portadores de conhecimentos a serem “disseminados” aos estudantes, meros “depositários”.

Acredita-se que os trabalhos seriam coerentes com a perspectiva teórico-filosófica de Paulo Freire por considerarem categorias de seu pensamento, articulando-os em suas pesquisas empíricas e discussões de caráter teórico. Em alguns artigos que compuseram a amostra, parte dos autores deixa explícito que certos conceitos freireanos são muito importantes para que os estudantes desenvolvam autonomia e criticidade. Exemplo disso são as considerações de Silva e Pedro (2010, p. 74), para quem as tecnologias de informação e comunicação (TICs) oferecem possibilidades de estímulos e desafios para o exercício da curiosidade, o que pode auxiliar o aluno na construção de sua autonomia.

A educação proposta por Freire, que contribui para o desenvolvimento permanente da criticidade e da autonomia pelos sujeitos, não poderia deixar de discutir relações de poder, exploração e dominação presentes na sociedade e, assim, nos próprios processos educacionais. Freire (1987), ao conceber uma educação baseada no diálogo-dialético comprometido com uma pedagogia que partisse do oprimido, e não destinada ao oprimido, promoveu e enfatizou o questionamento dessas relações nos processos de ensino-aprendizagem.

Sua perspectiva teórica-metodológica pode ser situada na pedagogia crítica – corrente que busca evidenciar dominação, opressão, desigualdades sociais, culturais, econômicas e os desdobramentos que surgem a partir dessas amarrações. Segundo Apple e Au (2012, p. 416, grifo nosso), educadores e pesquisadores orientados pela tradição da pedagogia crítica devem se ocupar de: 1) elucidar vínculos existentes entre a “política e a prática educacional com as relações de exploração e dominação na sociedade”; 2) expor contradições e espaços de ação possíveis; 3) redefinir o conceito de pesquisa, com a intenção de agir em favor de pessoas e movimentos sociais envolvidos em questionar desigualdade de poder; 4) dar continuidade à “tradição do trabalho radical”, frente aos ataques às “memórias coletivas de diferenças e de lutas”; 5) atuar junto aos movimentos sociais progressistas.

Nesse sentido, um dos interesses de pesquisa foi identificar se os artigos da amostra incluíam em suas discussões sobre EaD, com referencial de Freire (conforme anunciavam), relações de poder, dominação e exploração, ainda que a discussão não se referisse diretamente à modalidade e às suas práticas pedagógicas, por exemplo, discutindo os contextos socioeconômicos, políticas públicas de educação etc. Afinal, a educação não é uma área “fora” da totalidade social.

Muitas seriam as formas de se analisar o caráter político de trabalhos sobre Educação a Distância com referencial freireano. Nesta investigação, relações de poder, dominação e exploração foram buscadas, observando-se se apresentavam em nível macro e/ou nível micro. Para efeitos de análise, de acordo com o recorte, as mais amplas são aquelas que se referem, por exemplo, a diferentes classes sociais, entre aqueles que detêm os meios de produção do sistema capitalista e os que estão à margem desse sistema. Já em nível micro, foram observadas aquelas que são construídas em relações sociais mais restritas, mesmo entre professores/tutores e estudantes.

Em Ferrari et al. (2009) não houve reflexão acerca dessas relações. Já em David et al. (2014a), ainda que indiretamente, foram feitas observações em relação a questões de desigualdade entre os cursistas e à forma de comunicação dos tutores. No texto, quando há referência à igualdade e desigualdade, infere-se que os estudantes devem se sentir próximos aos tutores, numa relação fundamentada na igualdade.

Já em Scorsolini-Comin (2014, p. 253), essas relações foram discutidas em nível macro. Para o autor, reconhecer o outro como igual não significa desconsiderar a diversidade constitutiva dos seres humanos. Ao contrário, significa a busca por uma simetria em termos sociais. Esse olhar resgata os pressupostos da educação como prática de libertação. Ao tratar da “diversidade constitutiva dos seres humanos”, o autor concorda que, evidentemente, as pessoas são diferentes entre si, mas que “a simetria em termos sociais deve ser buscada”. Ou seja, os indivíduos devem ter as mesmas oportunidades para que possam lutar, por exemplo, por moradia, emprego e renda.

Em Paixão et al. (2011, p. 945), indiretamente, houve reflexões a respeito das desigualdades sociais a partir do momento em que os autores abordaram um projeto de infoinclusão. Segundo eles, a concepção de infoinclusão social sugerida como política de governo deve fazer parte do dia a dia dos sujeitos, nas trocas socioculturais que caracterizam a vida em sociedade. Se tais projetos são necessários, é porque existem desigualdades sociais que não permitem que todos tenham acesso de maneira plena à saúde, educação, emprego e moradia, por exemplo.

Baseando-se no referencial freireano, David et al. (2014b, p.1051) consideraram as relações de poder em nível micro entre estudantes e professores. Segundo as autoras, à medida que o estudante não vê o professor como aquele que é superior, ele se sente mais confiante para se expressar – o que pode colaborar com o aprendizado.

Entretanto, em Pinto & Bastos (2012) e Vargas et al. (2016) não houve discussão a respeito de relações de poder e/ou desigualdade. Esse debate ocorreu em nível micro em Silva & Pedro (2010), uma vez que o artigo teceu comentários a respeito da relação entre discentes e docentes. De acordo com Silva & Pedro (2010, p. 75), o professor deve ouvir os alunos e respeitar o entendimento que eles têm da realidade, aproveitando suas experiências prévias nas vivências de sala de aula. Para que isso se viabilize, o professor não pode se colocar em posição de superioridade em relação aos demais, como um fornecedor de saberes para seres desprovidos de conhecimento. Ao invés disso, ele deve conservar uma postura de humildade, de quem comunica saberes relativos a outras pessoas que também possuem outros saberes relativos.

Retomando-se a pergunta, os artigos foram desenvolvidos sob uma perspectiva crítica? Vejamos o quadro a seguir.

Fonte: os autores

Quadro 2 Síntese dos artigos 

Do total de 8 artigos, em apenas 2 os autores trataram de relações de exploração em nível macro e 3 em nível micro. Dessa forma, embora a maioria dos artigos seja coerente com a perspectiva freireana, muitas vezes ficaram restritos a aspectos mais voltados às questões entre tutor/professor X discente, sem considerar a politicidade implícita nessa relação. Portanto, apenas parcialmenteos artigos teriam sido desenvolvidos a partir de uma abordagem crítica nos limites desse trabalho. As razões para isso não foram identificadas nesta fase da investigação, sendo interesse das pesquisadoras a continuidade dos estudos da amostra também com este objetivo.

As categorias relações de poder, dominação e exploração orientaram a análise em profundidade, a partir da leitura exaustiva dos textos da amostra. No entanto, seria necessário sublinhar que autores referenciados em Freire têm seus estudos orientados por interesses diversos, cujo destaque às características de uma abordagem crítica, como as tratadas aqui, pode não ser necessariamente uma preocupação deles. Entretanto, no escopo desta investigação, entende-se que recorrer a Freire em análises implicaria não desconsiderar a politicidade inerente à sua obra.

Intelectual que trabalhou muitos anos com Freire, Henry Giroux lembra em entrevista (Figueiredo et al., 2021, p. 3, tradução nossa) que Freire era contrário a uma “educação politizada”, mas defendia a “aprendizagem do poder”. Segundo Giroux, entre outras aprendizagens, “Paulo queria que as pessoas fossem […] capazes de trabalhar coletivamente com outras pessoas em torno de preocupações comuns que aprofundariam e tornariam mais significativas para elas a própria noção de democracia.” Este era o sentido de “educação política” na pedagogia de Freire, que era totalmente contrário a uma “pedagogia da doutrinação”.

Considerações finais

A modalidade a distância ganhou ainda mais evidência a partir da pandemia causada pelo novo coronavírus, quando houve a intensificação do uso de tecnologias digitais e a conexão para o desenvolvimento de processos formativos realizados em espaços físicos diante da necessidade de isolamento social. Ainda que não se deva confundir a modalidade EaD com processos que ficaram conhecidos como “ensino remoto” (Saldanha, 2020), seria necessário reconhecer que as fronteiras entre presencial e a distância estão cada vez mais dissolvidas com a apropriação crescente de tecnologias digitais na educação.

Se a expressão “Educação a Distância” corre o risco de ser superada com a convergência crescente, a matriz teórico-metodológica de Freire permanece atual, oferecendo contribuições para o desenvolvimento de uma educação crítica por tecnologias digitais. Constata-se que a dominação vem se expandindo, sobretudo por meio do aumento de políticas autoritárias promovidas em vários países, assim como formas particulares de opressão. Giroux se refere a um “facismo neoliberal” que tem mobilizado as pessoas por meio de uma cultura de medo, de ódio, de demonização, amplificada pelas tecnologias digitais (Figueiredo et al., 2021, p. 5, tradução nossa).

Freire dizia que “a deficiência de uma Educação a Distância é a mesma deficiência de uma Educação não a distância pra mim” (Freire, como citado por Carvalho, 2015, p. 15). Muitas educações podem ser promovidas por meio da modalidade, do chamado “ensino remoto”, através de qualquer tecnologia. Se freireana, urgente que não desconsiderem relações de poder, dominação e exploração atualizadas nesse início de milênio.

Referências

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Recebido: 14 de Outubro de 2020; Aceito: 25 de Janeiro de 2021

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