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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Feb 18, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.35389 

Artigos

Inclusão no ensino superior: possibilidades docentes a partir da Teoria Histórico-Cultural

Inclusión en la educación superior: posibilidades de enseñanza desde la Teoría Histórico-Cultural

Inclusion in higher education: teaching possibilities from the Historical-Cultural Theory

Paula Maria Ferreira de Faria1 
http://orcid.org/0000-0001-6804-8711

Ana Carolina Lopes Venâncio2 
http://orcid.org/0000-0002-8733-2969

Juliana Corrêa Schwarz3 
http://orcid.org/0000-0001-8296-5364

Denise de Camargo4 
http://orcid.org/0000-0001-9092-9988

1Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2018). Psicóloga (Universidade Tuiuti do Paraná, 2003) e pedagoga (Centro Universitário Claretiano, 2018).

2Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2017). Professora do Programa de Escolarização Hospitalar e Pedagoga especializada na área de avaliação da Rede Municipal de Curitiba. Desenvolve pesquisas nas áreas de Literatura, Escolarização Hospitalar e Inclusão Educacional. Membro do GP Direitos Humanos (CNPq/FAE).

3Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2020). Docente na UniOpet.

4Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997). Professora Sênior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Professora Titular no Mestrado em Psicologia da Universidade Tuiuti do Paraná.


Resumo

Diante do cenário educacional contemporâneo no Brasil, este artigo, de cunho teórico reflexivo, tem por objetivo problematizar as diferentes esferas de exclusão no ensino superior, enfatizando as possibilidades de (transform)ação docente nesse contexto. Fundamentado na Teoria Histórico-Cultural, o artigo discute as especificidades dos processos de inclusão e exclusão que se estabelecem no ensino superior e tece reflexões sobre o trabalho docente, com vistas à consolidação de ambientes educacionais efetivamente inclusivos nos quais se possa reconhecer, valorizar e promover a presença, a participação e a aprendizagem de cada estudante.

Palavras-chave Educação; Ensino superior; Inclusão educacional; Professores; Teoria Histórico-Cultural

Resumen

En vista del escenario educativo contemporáneo en Brasil este artículo, de carácter teórico reflexivo, busca problematizar las diferentes esferas de exclusión en la Educación Superior, enfatizando las posibilidades de acción/ transformación docente en este contexto. A partir de la Teoría Histórico-Cultural, el artículo discute las especificidades de los procesos de inclusión y exclusión que se establecen en la Educación Superior y reflexiona sobre la labor docente, con miras a la consolidación de entornos educativos efectivamente inclusivos en los que se pueda reconocer, valorar y promover la presencia, participación y aprendizaje de cada alumno.

Palabras clave Educación; Enseñanza superior; Inclusión educativa; Maestros; Teoría Histórico-Cultural

Abstract

In view of the contemporary educational scenario in Brazil this article, of a reflective theoretical nature, seeks to problematize the different spheres of exclusion in Higher Education, emphasizing the possibilities of action/ transformation in this context. Based on the Historical-Cultural Theory, the article discusses the specificities of the inclusion and exclusion processes that are established in Higher Education and reflects on the teaching work, with a view to the consolidation of educational environments that are effectively inclusive in which it is possible to recognize, value and promote the presence, participation and learning of each student.

Keywords Education; Higher education; Educational inclusion; Teachers; Historical-Cultural Theory

Introdução

A inclusão educacional muitas vezes remete à questão dos estudantes “público-alvo da Educação Especial” (PAEE), tal como prevê a legislação brasileira. Entretanto, esse não é o único público que vem sendo sistematicamente excluído de modo perverso de nossos sistemas educacionais. É preciso considerar as necessidades específicas de cada estudante que se estendem para além da educação básica e permeiam também o ensino superior, tais como àquelas relacionadas à inclusão social e digital, que exprimem a diversidade linguística, étnica, cultural, social e econômica que compõe o nosso país. Trata-se de uma concepção ampla de inclusão que envolve não apenas as pessoas com deficiência, tendo em vista o acesso e as condições de permanência e aprendizagem nos ambientes de ensino a todas as pessoas que sofrem exclusão e são marginalizadas em seu direito educacional. Esse cenário tem sido agravado pela pandemia da Covid-19, que levou os sistemas educacionais a utilizar amplamente as tecnologias de informação e comunicação que demandam equipamentos digitais e a conectividade à Internet, expondo uma realidade distante de muitos estudantes e ampliando o abismo estrutural que se impõe entre os que têm acesso e aqueles que não dispõem desses recursos de aprendizagem.

Frente à pungente realidade contemporânea do ensino superior público brasileiro, é imperativo buscar novas formas de reflexão e de ação que visem o enfrentamento a esse estado de coisas com vistas à sua transformação, tendo em vista a real inclusão, que abrange não somente o acesso, mas também a permanência e, sobretudo, o sucesso, ou seja, a aprendizagem de todos e de cada estudante. A história educacional brasileira recente revela vários incentivos que buscaram minimizar/superar barreiras e permitir melhores condições de acesso, permanência e aprendizagem a todos os estudantes; dentre esses dispositivos equitativos, pode-se citar a criação de sistemas de cotas, vestibulares diferenciados, programas de acompanhamento e monitoria pedagógica, além dos núcleos de apoio às pessoas com deficiência. Entretanto, atualmente se impõe um novo cenário político-econômico, no qual a dificuldade na manutenção de ações e estratégias de apoio diferenciado e o acesso a verbas e recursos se mostram desafiadores à perspectiva de uma educação efetivamente inclusiva. Nesse sentido, este artigo tem por objetivo problematizar as diferentes esferas de exclusão no ensino superior público, enfatizando as possibilidades de (transform)ação docente nesse contexto. Trata-se de um ensaio reflexivo, de caráter teórico, fundamentado nos princípios epistemológicos da Teoria Histórico-Cultural de Lev S. Vigotski (1997; 2004; 2017).

Sob os pressupostos vigotskianos, compreende-se que o homem é um ser social que se constitui dialeticamente por meio das constantes relações e interações em seu meio; nas palavras de Meira (2007), “isto significa compreender a relação entre o sujeito psicológico e o contexto histórico, resgatando o sentido subjetivo e pessoal do homem, mas situando na trama complexa das relações sociais” (p. 47). Por isso,

Considerando o homem como ser social, em constante (transform)ação dialética em seu meio, o Ensino Superior brasileiro só pode ser compreendido a partir das relações estabelecidas entre seus múltiplos agentes. Tal compreensão demanda uma análise aprofundada de sua estruturação histórica, social e culturalmente situada e que engloba suas singularidades […]. (Faria et al., 2020, p. 222)

O texto discute as especificidades dos processos de inclusão e exclusão que se estabelecem no ensino superior brasileiro; em seguida, dirige-se à análise do trabalho docente nesse contexto. A partir dessa contextualização, apontam-se possíveis contribuições a esse cenário sob o referencial epistemológico da Teoria Histórico-Cultural e, por fim, tecem-se algumas considerações no sentido de contribuir para a superação do binômio inclusão/exclusão no espaço da universidade. Longe de trazer respostas definitivas ou estabelecer verdades absolutas, a proposta deste artigo é fomentar a reflexão crítica, pautada em subsídios teóricos consistentes, que colaborem à promoção de práticas docentes com vistas à consolidação de ambientes educacionais efetivamente inclusivos nos quais se possa reconhecer, valorizar e promover a presença, a participação e a aprendizagem de todos os estudantes.

Processos de inclusão e exclusão no ensino superior brasileiro

Historicamente, o acesso ao ensino superior no Brasil tem se constituído como um desafio. Frente às dificuldades impostas pelos diferentes contextos de vida, cursar uma graduação muitas vezes ainda é considerado um privilégio ao qual poucos estudantes têm acesso. A despeito das barreiras iniciais ao ingresso, surgem também dificuldades na adaptação às exigências da vida acadêmica relacionadas à nova postura esperada do estudante, que deve agir de modo mais proativo e autônomo. A esse respeito cabe frisar que,

Embora a expectativa dos docentes seja a de que os estudantes iniciem a formação universitária bem preparados, dominando uma série de conhecimentos e habilidades que supostamente os permitiria avançar linearmente na aquisição de conhecimentos, essa não parece ser a realidade. Pelo contrário, o que se observa é a ocorrência de dificuldades de integração dos estudantes em relação à vida acadêmica, que exige deles, de uma hora para outra, uma nova postura: a do trabalho científico […]. Algumas dificuldades de integração à vida acadêmica, inclusive, estão relacionadas às insuficiências nas habilidades de leitura, escrita e interpretação de textos, com as quais os estudantes ingressam no Ensino Superior […]. (Roldão et al., 2020, pp. 40-41)

Desse modo, o contexto universitário demanda dos estudantes o desenvolvimento de novas posturas e habilidades, configurando um rol de exigências que muitas vezes acaba por excluí-los (de modo explícito ou velado) do sistema educacional. Severo et al. (2020, p. 15) enfatizam que um “dos aspectos decisivos para o engajamento e permanência da/o aluna/o no ensino superior é sua satisfação com a organização e com a estrutura da sua instituição de ensino superior”; nesse sentido, a possibilidade de participar de decisões e de se engajar na organização configuram “elementos que tendem a aumentar o zelo, o afeto e a relação de respeito da/o estudante com a instituição, e da instituição para a/o estudante”. Assim, as relações institucionais e docentes de apoio e acolhimento, bem como o uso de estratégias de equidade e suporte à aprendizagem, contribuem para o ingresso e permanência dos estudantes nas instituições de ensino superior.

Para além dessas questões, as especificidades do ensino superior configuram um desafio adicional a alguns estudantes, que integram públicos tradicional e sistematicamente excluídos do sistema educacional brasileiro – pessoas com deficiências e todas as minorias étnicas, linguísticas, socioeconômicas e com qualquer tipo de desvantagem ou limitação que se oponha ao padrão hegemônico dominante.

De acordo com a legislação nacional (Brasil, 2020), os estudantes público-alvo da Educação Especial são os “educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento [1] e altas habilidades ou superdotação”. Referindo-se, especificamente, às pessoas com deficiência, a Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015) assegura a inclusão em “sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem”, garantindo ainda o “acesso à educação superior […] em igualdade de […] oportunidades e condições com as demais pessoas” (Brasil, 2015). Os dispositivos legais têm determinado a implementação de ações que assegurem a inserção desses estudantes no ensino superior, garantindo sua permanência e viabilizando a construção de sua aprendizagem. Tais processos envolvem, para além de recursos físicos e tecnológicos, a participação de “professores capazes de compreender que as configurações das turmas de aprendizes do ensino superior mudaram e demandam novas maneiras pedagógicas para o processo de ensinar, ou melhor, de compartilhar conhecimentos” (Orrú & Nápoles, 2017, s.p.).

Ao falar em processos de exclusão e inclusão no contexto do ensino superior é preciso considerar que a singularidade de cada sujeito e o modo como interage em seu meio frente às limitações físicas, sociais, econômicas e ideológicas que esse meio lhe impõe, pode determinar suas trajetórias, se não houver mediação qualificada que venha a prover apoio e subsidiar o uso de estratégias de minimização e/ou superação das barreiras detectadas. Nesse sentido, “tornar a universidade acessível é repensar de maneira ampla toda a sua conjuntura, desde os aspectos físicos até aqueles de categoria tecnológica e, principalmente, pedagógica” (Orrú & Nápoles, 2017, s.p.), considerando que a sociedade é diversa, assim como diversos são os estilos e rotas de aprendizagem de cada estudante.

Nesse sentido, Severo et al. (2020, p. 3) ressaltam o fato de que as universidades, historicamente, “foram se constituindo como uma importante força organizadora da vida cultural e produtiva da sociedade, assumindo um papel institucional vinculado à produção, difusão do conhecimento científico e à formação de pessoas para complexos âmbitos de trabalho”. Sob essa perspectiva, o trabalho constitui uma dimensão essencial à vida humana à qual o ensino superior contribui – pois a organização universitária tem auxiliado “a construir profissões reconhecidas socialmente, conforme interesses políticos e econômicos acionados em cada contexto” (Severo et al., 2020, p. 3). Explicita-se, dessa forma, a importância da formação universitária e seu viés inclusivo no sentido da inserção social e digital que se revelam em maiores chances de acesso legitimado ao trabalho amparado na formação ofertada que permite alcançar uma titulação com valor simbólico e real. Dessa forma, as instituições de ensino superior tornam-se espaços de suma importância para a inclusão social mediante o trabalho; por meio do acesso ao saber, promovem participações legitimadas por saberes e práticas que constituem identidades profissionais concordes com os valores e ideais em circulação (Severo et al., 2020). Nesse cenário, frente à hierarquização de conhecimentos e profissões, a mobilidade social é balizada – e muitas vezes definida – por critérios arbitrários devido ao escalonamento de atividades humanas sob um viés mercadológico, ideologicamente moldado e sustentado.

Sob esse prisma, compreende-se que a formação universitária é moldada sob influências, diretas e indiretas, de interesses políticos e econômicos que ocasionam, dentre outras consequências, a hierarquização entre os cursos, que promove uma maior concorrência frente a profissões socialmente mais valorizadas – fator que limita a inserção de grupos socialmente desfavorecidos nesses campos específicos. Assim, a universidade é um campo de forças no qual questões de classe, étnicas e linguísticas, dentre outras, interferem no desempenho dos estudantes, depreendendo a necessidade de apoios estruturados direcionados a grupos que fogem aos padrões estabelecidos para a superação de áreas deficitárias ocasionadas pelo acesso restrito à cultura e decorrentes de lacunas de aprendizagem, considerando a precariedade das condições de produção do ensino na escola brasileira, não somente na escola pública, mas também em relação às redes privadas de ensino. Todavia, apesar das limitações, cabe reiterar que a educação é campo que não esmorece a luta coletiva e colaborativa pela formação de qualidade. Esse campo, que se refaz e reinventa sob condições sofríveis, continua a ‘esperançar’ e oferecer a todos os estudantes ambientes e estratégias que produzam condições de aprendizagem dignas e diversificadas, visando superar a exclusão e vivenciar a inclusão.

Urge, portanto, reconhecer e problematizar as diferentes esferas de exclusão no ensino superior sob referenciais epistemológicos que não se limitem à culpabilização dos estudantes por seu fracasso ou se restrinjam a apontar déficits, mas conduzam a uma compreensão crítica e contextual da realidade e enfatizem, para além das dificuldades, possibilidades de ação e de transformação. Com esse intuito, este artigo tece reflexões acerca do ensino, do trabalho docente e da inclusão educacional sob os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, considerando o potencial teórico e prático que esse referencial epistemológico proporciona a uma visão de mundo, de homem e de ensino que defende a interação social, a promoção da aprendizagem e o desenvolvimento humano em sua plenitude, não compactuando com práticas excludentes que, muitas vezes, se destinam mais a exigências e interesses outros do que a promover o real desenvolvimento das potencialidades e possibilidades de cada estudante.

Contribuições da Teoria Histórico-Cultural à inclusão educacional

A Teoria Histórico-Cultural considera a essencialidade da interação social na constituição e no desenvolvimento humano. Nesse sentido, os processos psicológicos realizam primeiro no plano social e, posteriormente, são apropriados ativamente pelo sujeito, ou seja, o desenvolvimento interpsicológico se torna intrapsicológico.

Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos. (Vigotski, 2017, pp. 57-58)

A concepção eminentemente social de Vigotski (2017) se contrapõe às abordagens cujo foco reside sobre o desempenho individual e uma postura passiva do ser humano, como mero receptor que aguarda a maturação do organismo para se desenvolver. Considerando a constante interação dialética entre o homem e seu meio, portanto, “o desenvolvimento humano não pode ser tratado como um fenômeno universal, visto que se relaciona e é determinado pelo contexto sócio-histórico no qual os indivíduos estão inseridos” (Meira, 2007, p. 49).

Sem desconsiderar os fatores biológicos, Vigotski (2017) ressalta a importância do meio social para que o ser humano se desenvolva em todas as suas esferas, incluindo a aprendizagem. Ao compreender a aprendizagem como parte primordial ao desenvolvimento humano, Vigotski (1997; 2004; 2017) concebe a educação como campo intencionalmente estruturado e qualitativamente mediado em direção aos processos de ensino e aprendizagem que favorece a criação (em maior ou menor monta) de condições de construção e reelaboração de saberes e práticas. Desse modo, a educação configura um fator imprescindível à legitimação social, assegurando oportunidades de participação que promovem a inclusão em seu sentido amplo.

Abordando especificamente a questão da Educação Especial, Vigotski (1997) reitera o caráter social da educação, defendendo que todo o desenvolvimento se volta à superação não das limitações inerentes à própria deficiência, mas impostas pelo meio social em relação a ela. Nesse sentido, a deficiência se constitui enquanto tal a partir das relações culturais e históricas com o meio – sua superação, portanto, demanda não apenas lidar com as questões orgânicas, mas, sobretudo, ultrapassar os obstáculos sociais que limitam ou impedem o desenvolvimento sociocultural. Sob a perspectiva vigotskiana, a educação não poderia pressupor a deficiência como um defeito, mas deveria vislumbrar o potencial qualitativamente diferenciado de desenvolvimento que a deficiência proporciona.

O caráter ativamente social da concepção de Vigotski (1997; 2004; 2017) opõe-se à cultura tradicional assistencialista, defendendo uma educação social que permita a ampla comunicação com o mundo e a participação plena de cada estudante em todos os contextos de vida. Para o autor, por meio de um processo de ensino que privilegie a interação e a cooperação coletiva, “é possível superar as consequências secundárias da deficiência e desenvolver os processos psicológicos superiores, possibilitando não só a vida em sociedade, mas a plena participação social” (Faria & Camargo, 2018, p. 24).

É importante reiterar que os processos de exclusão que permeiam o ensino superior brasileiro atingem não somente os estudantes público-alvo da Educação Especial, mas todos aqueles que por algum motivo são privados das condições necessárias ao seu pleno desenvolvimento dentro da instituição. Ressalta-se que a legislação brasileira determina, dentre as finalidades da educação superior, “estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo” e “promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação” (Brasil, 2020). Nesse sentido, cabe questionar se essa função está sendo efetivamente cumprida – e quais os grupos que mais têm sido privados desses direitos.

Para a Teoria Histórico-Cultural a aprendizagem é essencial ao desenvolvimento, compreendida enquanto transmissão do saber culturalmente acumulado pela sociedade em determinado tempo e espaço histórico. Tal compreensão “estabeleceu as bases para uma discussão inteiramente nova não só em relação à aprendizagem, mas também no que se refere ao desenvolvimento e as funções do ensino” (Meira, 2007, p. 51), e a partir dela pode-se problematizar: “se a condição para a concretização da humanidade em cada homem é a apropriação das aquisições na cultura humana, coloca-se como central a questão da efetivação do direito de todos os cidadãos a uma educação de qualidade” (Meira, 2007 p. 55).

Vigotski (2017) ressalta que o processo de aprendizagem organizado de forma adequada resulta em desenvolvimento. O bom ensino, portanto, antecipa-se ao desenvolvimento e o promove; em outras palavras, parte do referencial já consolidado pelo estudante para conduzi-lo à construção de novos conhecimentos.

[…] o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas. (Vigotski, 2017, p. 103)

Superando a perspectiva tradicional segundo a qual o professor deve aguardar a prontidão do estudante, propõe-se a compreensão da função docente enquanto promotora do desenvolvimento, atuando sobre a zona de desenvolvimento proximal de cada jovem no sentido de desenvolvê-la e ampliá-la, por meio da proposição de desafios cognitivos aos estudantes que possam ser solucionados “a partir dos referenciais que eles já possuem, para que se mantenham interessados, mesmo que ainda não sejam capazes de realizar sozinhos, estimulando a busca por respostas e a interação entre pares, de forma colaborativa e corresponsável” (Faria et al., 2020, p. 224).

O aspecto da colaboração nas interações sociais assume papel especialmente importante, referindo-se a “compreender e internalizar os modos de ação de alguém mais capacitado” (Schwarz & Camargo, 2019, p. 71), que no contexto educacional pode envolver colegas mais experientes ou o professor. Nesse sentido, a zona de desenvolvimento atual de cada estudante constitui-se não somente pelo que ele é capaz de realizar individualmente, mas também abrange “o que o estudante consegue realizar com colaboração, pois esse dado aponta o que, em breve, poderá fazer de forma independente” (Schwarz & Camargo, 2019, p. 71). A partir da zona de desenvolvimento atual, a mediação adequada poderá conduzir o jovem a alcançar um novo patamar de desenvolvimento, ainda latente – a zona de desenvolvimento proximal. Desse modo, por meio de progressivos saltos qualitativos, o desenvolvimento vai ocorrendo; zonas de desenvolvimento iminentes tornam-se atuais e novas possibilidades desenvolvimentais vão surgindo.

Sob a concepção vigotskiana, portanto, o ensino deve considerar o nível desenvolvimental atual de cada estudante e antecipar-se ao desenvolvimento, propiciando condições para que ele ocorra. Trata-se de um processo que não se restringe à mera transmissão de conhecimentos, mas demanda a participação ativa e integral – ou seja, não apenas da cognição, mas também dos desejos, necessidades e emoções – de cada estudante em seu meio cultural e histórico. Desse modo, a função precípua do ensino é conduzir ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores, promovendo a apropriação e o desenvolvimento histórico e cultural do estudante, conduzindo-o a formas qualitativas de apreender e vivenciar a realidade (Faria et al., 2020). Assim, para a Teoria Histórico-Cultural a educação é, além de uma atividade eminentemente social e humanizadora, uma prática prospectiva que não enfatiza as dificuldades, mas que, partindo da zona de desenvolvimento real, ou seja, dos conhecimentos já conquistados pelo estudante, avança em direção à sua zona de desenvolvimento proximal. Desse modo, contribui para que o estudante possa ir além, reelaborar saberes, rever ações e atitudes, problematizar o cotidiano e contextualizar os saberes, inter-relacionando-os de forma a tecer redes de sentidos e significados que tornem o ensino uma ação dialógica, contextual e significativa, vinculada aos desejos, curiosidades e necessidades dos aprendizes.

Os pressupostos de Vigotski (1997; 2004; 2017) enfatizam a função essencial do professor: “realizar o trabalho de mediação entre o aluno e os conhecimentos […] para que possam ser apropriados pelos alunos mediante a utilização de metodologias de ensino adequadas” (Meira, 2007, p. 57). Em outras palavras,

[…] a despeito dos conhecimentos espontâneos e naturais (isto é, aqueles que o estudante já domina), o objetivo principal da educação e dos professores é mediar o processo de apropriação de novos conhecimentos. Ou seja, o professor precisa oferecer subsídios qualitativamente e quantitativamente superiores aos já dominados pelos estudantes, para que possam formar novas sínteses e dar um salto qualitativo em seu desenvolvimento psicológico. (Roldão et al., 2020, p. 48)

Cabe, contudo, frisar que a ação docente não se dá de modo isolado – tampouco é o professor o responsável exclusivo pelo sucesso ou fracasso do processo de ensino e aprendizagem. A busca por estratégias que resultem no êxito educacional dos estudantes concretizado no ensino superior pela conclusão do curso de graduação é tarefa da instituição de ensino como um todo, compreendida em suas diferentes instâncias – que, para além do professor, envolvem toda a comunidade acadêmica, incluindo gestores, tutores, agentes educacionais, estudantes e suas famílias. Não pode prescindir, portanto, de uma macrovisão do processo educacional que vislumbre não apenas a esfera direta da ação docente, mas considere também os aspectos políticos, socioeconômicos, culturais e históricos que a permeiam e mantêm;

[…] supera-se, assim, a visão simples e determinista de que o estudante (sobretudo no Ensino Superior) é o único responsável por seu desenvolvimento – expressa, em tantos professores universitários, em afirmações que culpabilizam as dificuldades de aprendizagem por falhas anteriores na jornada acadêmica dos estudantes. Tal ideia apresenta viés excludente e é inadmissível se almejamos exercitar as premissas da inclusão escolar/educacional, ideal que se estabelece na defesa de não deixar ninguém de fora dos ambientes de ensino. Trata-se de atender necessidades específicas sob a compreensão de que nossas trajetórias, únicas, histórica, social e culturalmente particulares, moldam diferentes formas de agir, sentir e pensar. (Faria et al., 2020, p. 223)

Frente à realidade perversa que institui a exclusão como regra e camufla processos notadamente voltados à manutenção de interesses hegemônicos no interior da universidade brasileira, é urgente repensar os modos como os processos de exclusão/inclusão têm sido estruturados e mantidos no contexto do ensino superior, identificado a quais interesses eles servem e de que formas podem ser expostos/enfrentados/superados. Nesse sentido, a Teoria Histórico-Cultural constitui um aporte fundamental, contribuindo “para esse enfrentamento ao propor a mediação qualificada do professor como a principal estratégia para auxiliar os estudantes universitários, especialmente àqueles que não possuem recursos próprios suficientemente desenvolvidos para alcançar o sucesso acadêmico” (Roldão et al., 2020, p. 56). Embora este artigo focalize o contexto da universidade pública, cabe ressaltar que a mediação qualificada se dirige a todos os estudantes universitários, quer de sistemas públicos ou privados de ensino, tendo em vista a consolidação efetiva dos pressupostos de uma educação inclusiva.

O conhecimento só se produz na interação – com o conhecimento, entre os estudantes, na relação professor-aluno – e é por meio dela que a aprendizagem pode se concretizar na transformação ativa da realidade, em um processo no qual as relações socioculturais constituem a base para o crescimento qualitativo pessoal. A partir dos referenciais da Teoria Histórico-Cultural é possível compreender o papel do professor inserido no âmbito do ensino superior enquanto mediador do conhecimento e promotor de desenvolvimento humano, fomentando o pensamento crítico e reflexivo que promova o desenvolvimento das funções psicológicas superiores de cada estudante. Nesse sentido, “a concepção de Vigotski nos permite compreender e contextualizar o papel do professor universitário brasileiro. A atual situação da carreira do magistério, o desprestígio e a desvalorização social revelam a fragilidade dessas relações na atualidade” (Faria & Camargo, 2020, p. 75). Sob essa perspectiva, o trabalho docente também precisa ser considerado em suas especificidades culturais e históricas. Faz-se necessário, portanto, aprofundar a compreensão do papel do professor no contexto do ensino superior inclusivo, atentando para os elementos que mobilizam – ou impedem – a ação docente.

Docência no ensino superior: um olhar para o professor universitário

O professor é um dos pilares essenciais para que o desenvolvimento entre os estudantes ocorra e é quem, na sala de aula, pode atuar para favorecer – ou não – a inclusão destes em sua diversidade e a colaboração entre pares. A despeito de sua importância cabe frisar que não é o único responsável pela inclusão e pelo êxito dos estudantes no âmbito do ensino superior, pois de nada adianta culpabilizar o professor por todas as mazelas da educação nas universidades e ignorar a responsabilidade de todo o coletivo, que perpassa os estudantes, docentes, gestores e envolve também as diretrizes institucionais e as políticas educacionais. Para desenvolver sua profissão, os professores precisam ter condições dignas e apoio emocional e prático para superar desafios e contingências do cotidiano.

A saúde emocional docente é um fator que afeta tanto as relações estabelecidas com os estudantes e equipe educacional de modo geral, como também o processo de ensino e aprendizagem. Portanto, é essencial criar, coordenar e acompanhar de forma criteriosa apoios direcionados aos docentes. Nesse sentido, faz-se necessário, então, “repensar a situação do professor universitário e considerar, além das situações de estresse físico e cognitivo que envolvem o exercício profissional, também o desgaste emocional ao qual está submetido” (Faria & Camargo, 2020, p. 72). Essa problematização pode ensejar novos caminhos a serem trilhados, de forma coletiva e colaborativa. O apoio mútuo entre docentes e entre membros de uma mesma instituição detém potencial de formar comunidades de prática nas quais se promova o engajamento frente a objetivos assumidos coletivamente por meio do apoio estruturado e articulado para sua consecução, tornando o caminho menos árduo pelo esforço colaborativo. O suporte prático, instrumental, informacional e emocional oferecido ao professor possibilita que ele se torne uma referência de apoio ao estudante com qualquer tipo de desvantagem educacional, e inclusive frente ao processo de inclusão.

As instituições de ensino superior são espaços formativo nos quais, por meio do trabalho docente, são planejadas e operacionalizadas atividades que geram e promovem reflexões e modificação de saberes e práticas que detém potencial para assegurar a inclusão social, digital e no mundo do trabalho, assegurando, em paralelo, a legitimação da participação – que é sinônimo de inclusão real, pois incluir é garantir oportunidades de participar e decidir no âmbito social, de forma crítica e consciente. Sendo um local de desenvolvimento da excelência do ser humano, a universidade necessita ter sua estrutura física, suas regras e ritos e práticas constantemente revisitados, pois se define como ambiente geográfica, cultural e historicamente estruturado. Desse modo, a reflexão sobre os desafios de cada época e de cada comunidade são aspectos imprescindíveis à atualização constante de saberes e práticas que direcionam o ensino e a aprendizagem a interesses declarados e implícitos, simbolica e objetivamente moldados.

Um dos pontos a ser urgentemente repensado, nessa perspectiva, diz respeito ao uso das tecnologias e ao acesso à internet e equipamentos eletrônicos. A realidade contemporânea, especialmente os desafios vivenciados frente à pandemia da Covid-19, expôs o fato de que a exclusão social é gerada e mantida pelo acesso restrito a esses bens. Embora se considere que a tecnologia nunca poderá prescindir a mediação humana, pois a relação entre pessoas é fator essencial à aprendizagem e ao ensino, há que se pensar na forma de apresentar os conteúdos, de modo a instigar e fomentar a motivação e o interesse pelo aprender. Pretende-se, assim, desafiar o estudante a ultrapassar a “sumarização no processo de estudo e construção dos seus conhecimentos, trabalhando com as teorias, compreendendo as epistemologias, dialogando com seus pares e com os docentes sobre os significados e as implicações da aquisição dos conceitos apreendidos” (Roldão et al., 2020, pp. 54-55), levando-o a produzir novos sentidos para as vivências que constrói no contexto universitário.

Além da fundamental consideração do contexto de vida que se apresenta, um ponto de destaque da teoria vigotskiana diz respeito à essencialidade da mediação qualificada, ação que permite desenvolver a excelência das potencialidades de cada sujeito, com os professores sendo profissionais mediadores das relações de ensino e aprendizagem. Mediar envolve diversos elementos: perpassa o conhecimento (tanto do professor quanto do próprio estudante) da zona de desenvolvimento atual do estudante; a escuta ativa a respeito do que os estudantes têm a dizer sobre suas necessidades, dificuldades, facilidades e projetos; o encorajamento à atividade de reflexão acerca de si, do meio que o cerca e dos conteúdos científicos que entra em contato; e a apresentação dos “signos, instrumentos, modos de agir, de estudar e de se relacionar próprios da universidade e da área profissional escolhida” (Schwarz, 2020, p. 141). Além disso, é preciso que seja estabelecida uma relação dialógica e próxima junto ao estudante, para que este encontre estratégias que viabilizem a apropriação de modos de ação diversificados para desenvolver hábitos de estudo.

Principalmente em tempos de Covid-19, a ação do professor precisa ser compreensiva. Como fazer com que aquele estudante com dificuldades de acesso às tecnologias digitais e aulas remotas participe e realize a suas atividades acadêmicas? Não há uma resposta única, pois a solução é encontrada por meio do diálogo entre a comunidade acadêmica como um todo.

Frente a esse cenário algumas alternativas se apresentam sob a concepção histórico-cultural. Por exemplo, Zaretsky (2010; 2016), por meio de sua abordagem de atividade reflexiva, propõe uma metodologia de mediação colaborativa fundamentada no conceito de zona de desenvolvimento proximal: busca-se compreender as causas das dificuldades, falhas, erros ou problemas dos estudantes; reconhecer os recursos próprios, de professores, de colegas e do meio em que está inserido; elaborar novos modos de ação, com base nesses recursos, para agir sobre as causas dos problemas; avaliar se os novos modos de ação foram efetivos e apropriar-se dos novos modos de ação, se a resposta for positiva. Esse processo ocorre por meio de reflexão, diálogo e colaboração entre professores e estudantes e/ou entre pares.

A relação entre professor e estudante é primordial, assim como a relação entre conteúdos e a vida, pois é a vida que deveria balizar o olhar dos professores e gestores de ensino para o planejamento e organização do trabalho pedagógico. Quando a vida, os contextos sociais, culturais, históricos e políticos, as situações de saúde ou doença e os problemas do dia a dia impõem limitações e restrições, é preciso que professores, estudantes e demais atores da comunidade acadêmica busquem modos de ações diferentes e inovadores para dar respostas criativas aos obstáculos que dificultam uma educação inclusiva e de qualidade. O uso de novas tecnologias, aulas remotas e qualquer outro recurso é bem-vindo se conduzir ao objetivo final, que é a inclusão de todos, culminando em aprendizagem e desenvolvimento. Contudo, cabe frisar que “a apropriação dos signos que dão sentido às tecnologias pressupõe interação com pessoas que já os internalizaram” (Bannell et al., 2016), ou seja, a despeito da importância da diversificação de recursos e estratégias de ensino, nada substitui a mediação qualificada da pessoa do professor.

À guisa de conclusão: possibilidades de transform(ação) do binômio inclusão/exclusão

A Teoria Histórico-Cultural não compactua com visões simplistas de fracasso escolar/educacional, tampouco com a culpabilização de sujeitos individuais – professores e/ou estudantes, por presumidos fracassos. Em sentido contrário, enfatiza a importância de analisar a conjuntura histórica, social e cultural de estruturação e produção do ensino e as condições oferecidas para promover a aprendizagem de todos e cada um dos estudantes. Nesse sentido, defende-se a compreensão singularizada e personalizada de cada comunidade de ensino, em seus próprios recursos materiais, humanos e simbólicos, para entender sua dinâmica e atuar de forma partícipe com seus membros na resolução de desafios postos, tendo em mente o objetivo de promover mudanças qualitativamente comprometidas com o processo de inclusão educacional.

Para além de reconhecer a força de dimensões objetivas e subjetivas na estruturação e produção do ensino superior, ressalta-se a essencialidade de considerar as implicações emocionais do professor no âmbito universitário (Schwarz et al., 2020); trata-se de uma ação que “envolve repensar as relações interpessoais, investir em um ser humano sensível, que constrói e é determinado cultural e historicamente e que, para além do cérebro, também é emoção” (Faria & Camargo, 2020, p. 62). Sob essa perspectiva, considera-se primordial o suporte direcionado aos docentes, que considere sua integralidade enquanto ser que age, pensa e também sente. Nesse sentido, o trabalho docente não é um ato isolado, mas uma ação coordenada, coletiva e colaborativamente, que envolve toda a comunidade escolar e estende-se à sociedade; não pode, portanto, prescindir da viabilização de políticas públicas que possibilitem a melhoria das condições de trabalho do professor universitário e, consequente, das possibilidades de aprendizagem dos estudantes.

O ensino superior “precisa estender suas contribuições para além do âmbito acadêmico. A produção de conhecimento e o desenvolvimento gerados a partir do contexto universitário devem impactar os demais ambientes de interação humana nos quais seus estudantes se inserem” (Faria et al., 2020, p. 230). As instituições de ensino superior não podem somente ser locais de transmissão de conhecimentos; são também espaços de discussão e reelaboração de saberes e práticas; espaços de superação de paradigmas, de debate e acolhimento. Nesse contexto as diferenças e os diferentes podem ser incluídos, exercitando a fundamental equidade balizadora da inclusão – não apenas educacional, mas social e digital, imprescindível para garantir participação legitimada nos espaços que estruturam a sociedade brasileira, tão diversa e tão desigual.

A ressignificação e transformação da ordem estabelecida é tarefa difícil, mas não impossível de ser conquistada. Para isso, é necessário buscar novos caminhos e rotas de ação, considerando a plenitude do ser humano em sua unicidade entre sentir, pensar e fazer; compreende-se, assim, o espaço do ensino superior como possibilidade concreta de desenvolvimento integral dos estudantes e de formação de sujeitos críticos e ativos, capazes de agir e de transformar a própria realidade. Sob esse prisma, além de um espaço formativo por excelência, a universidade também é um espaço de relações, que configuram novas maneiras de ser e sentir o mundo e de participar na sociedade. Considerando que, “para a educação atual não é tão importante ensinar certo volume de conhecimento quanto educar a habilidade para adquirir esses conhecimentos e utilizá-los” (Vigotski, 2004, p. 448) é preciso, mais do que ensinar conteúdos, contextualizá-los e mostrar como podem ser aplicados à vida real, concreta, modificando práticas e aprimorando repertórios.

Outro ponto importante são as estratégias com evidências científicas de sucesso para o ensino inclusivo, tais como a diversificação dos métodos e recursos educacionais (Fofonca et al., 2018), a monitoria entre pares (Souza et al., 2019), o plano educacional individualizado (Tannús-Valadão & Mendes, 2018) e o desenho universal de aprendizagem (Zerbato & Mendes, 2018), que incrementam o ensino e aprendizagem e desenvolvem, concomitantemente, o protagonismo de professores e estudantes. O ensino e a aprendizagem são processos interdependentes que se concretizam por meio de relações afetivas e colaborativas; tais relações devem, prioritariamente, enfatizar potencialidades e conhecimentos prévios para, por meio da mediação qualificada, consciente, ativa e transformadora, aprimorar saberes e práticas, conduzindo ao desenvolvimento integral dos estudantes.

No ensino superior, as tecnologias de informação e comunicação podem contribuir para desenvolver novas habilidades e conhecimentos para acessar o mundo; entretanto, deve-se ter em mente que a cognição não se amplia com a pura e simples manipulação desses artefatos tecnológicos. Metodologias ou artefatos de caráter inovador têm seu mérito, mas são apenas ferramentas para inovação da atividade docente e discente; o diferencial dessas atividades é o elemento humano e a mediação qualificada promotora da imersão cultural, social e digital que permite maior participação na sociedade. É a interação entre as pessoas que possibilita o desenvolvimento, cabendo à tecnologia cumprir o seu papel enquanto recurso, e não como finalidade educativa. Dessa forma, a tecnologia não pode prescindir da mediação humana, sendo atividade permeada por relações e afetividade, por ideias e pressupostos em circulação na sociedade; as metodologias devem estimular a curiosidade e a crítica, estimular o protagonismo dos estudantes, por meio de atitudes de colaboração e apoio mútuo nas quais a cooperação e o compartilhamento respeitoso e dialógico de ideias e práticas sejam o pressuposto central e direcionador das relações.

Frequentemente o ensino superior ainda atende a ideais que categorizam pessoas e lhes conferem identidades estigmatizadas, muitas vezes determinando trajetórias de vida pelo simples fato de excluir sua permanência nos espaços escolares e de negar condições de aprendizagem que poderiam assegurar sua plena participação social e desenvolvimento. Frente a essas questões e à constante ênfase na técnica em detrimento das relações e emoções que permeiam o ensino e a aprendizagem no ensino superior, a (re)humanização da educação torna-se urgente. Educar é humanizar, em um processo no qual o professor é afetado pelo estudante e o estudante é afetado pelo professor. Este ato de afetar e ser afetado traz inúmeras e ricas possibilidades. Assim, vinculados afetiva e emocionalmente, pode-se motivar e sustentar a atividade docente e discente, ou, em sentido contrário, paralisá-las. Urge, portanto, tornar as relações nos espaços educacionais mais humanas, mais sensíveis às diferenças, mais concordes com uma visão intercultural de ensino e de sociedade em que cada um possui bagagem cultural, social e histórica única, com uma história de vida que lhe confere identidade singular, ainda que inserida em um grupo maior, socialmente estruturado.

Frente aos novos tempos de isolamento social e de ressignificação das tecnologias e modos de ensinar e aprender, torna-se essencial repensar todos os ambientes de ensino, incluindo as instituições de ensino superior, concebendo-as como espaços de formação e desenvolvimento em constante transformação, que devem criar condições dignas para que a aprendizagem seja um processo ativo. Para concretizar tal visão de aprendizagem a mediação humana, a afetividade e as relações não podem ser desconsideradas, pois nenhuma técnica pode prescindi-las.

Todos os membros da comunidade formada no ensino superior devem ter lugar de voz e direito a apoios práticos e emocionais para minimizar barreiras e assegurar a real inclusão de cada estudante. Nesse sentido, a colaboração constitui um elemento essencial ao sucesso das atividades de ensino e aprendizagem. Desse modo, rever políticas públicas e criar dispositivos para prover recursos materiais, humanos e físicos e assegurar formações contínuas e qualitativamente comprometidas com as reais necessidades de cada comunidade, em sua singularidade, são ações que necessitam ser implementadas se o objetivo for, verdadeiramente, assegurar a inclusão social, digital e educacional que garanta uma inserção no mundo legitimada e humanizadora que concretize a fundamental equidade, balizadora e centro da inclusão como projeto de vida e de sociedade.

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[1]Essa terminologia foi revisada pela American Psychiatric Association (APA, 2015), que unificou vários transtornos classificados como Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) ao Transtorno do Espectro Autista (TEA) e agrupou diagnósticos relacionados ao autismo aos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento.

Recebido: 01 de Dezembro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2021

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