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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.35272 

Artigos

Escolarização do negro na província do Pará no final do século XIX

Escolarización de los negros en la provincia de Pará al final del siglo XIX

The Schooling of black people in the Province of Pará in the end of nineteen century

Iza Andrielle Batista Duarte Madeira1 
http://orcid.org/0000-0003-0501-2409

Karla Nazareth Corrêa de Almeida2 
http://orcid.org/0000-0002-0062-3051

Alberto Damasceno3 
http://orcid.org/0000-0003-1620-6735

Lucas dos Santos da Silva4 
http://orcid.org/0000-0002-4312-2644

1Graduada em pedagogia pela Universidade Federal do Pará UFPA (2019). Integrante vinculado ao Laboratório de Pesquisas em Memória e História da Educação (LAPEM) e do Grupo de Estudos em Educação no Pará na Primeira República (GEPRE).

2Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2017). Atualmente é professora Associada II da Universidade Federal do Pará e líder do Grupo de Estudos em Educação no Pará na Primeira República (GEPRE).

3Professor Titular da Universidade Federal do Pará, docente do Programa de Pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB) e do Programa de Pós-graduação em Educação na Amazônia (PGEDA). Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998). Atualmente coordena o Laboratório de Pesquisas em Memória e História da Educação (LAPEM) e é vice coordenador do Grupo de Estudos em Educação no Pará na Primeira República (GEPRE).

4Graduando do Curso de Pedagogia pela Universidade Federal do Pará UFPA, graduado em História pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA) (2019). Bolsista PROEX ( Pró- Reitoria de Extensão) vinculado ao Laboratório de Pesquisas em Memória e História da Educação (LAPEM) e voluntário no Grupo de Estudos em Educação no Pará na Primeira República (GEPRE).


Resumo

O presente trabalho trata da escolarização do negro na província do Pará no final do século XIX. Para o desenvolvimento desta pesquisa, utilizamos a metodologia de natureza bibliográfica e documental. A partir das análises realizadas, podemos concluir que a educação paraense aos negros era excludente e que as ações do Governo em relação à escolarização foram marcadas por uma mínima atuação no quesito inserção escolar. No entanto, foi possível identificar a presença de negros nas iniciativas de instituições particulares. Tais iniciativas eram descontínuas, o que evidenciou a ausência da inserção escolar dos negros.

Palavras-chave Escolarização; Negro; Pará; História da Educação

Resumen

El presente trabajo trata de la escolarización del negro en la provincia de Pará al final del siglo XIX. Para el desarrollo de esta investigación, utilizamos metodología de naturaleza bibliográfica y documental. A partir de los análisis realizados, podemos concluir que la educación paraense para los negros era excluyente y que las acciones del Gobierno en relación con la escolarización estaban caracterizadas por una mínima intervención en el tema inserción escolar. Sin embargo, fue posible identificar la presencia de negros en las iniciativas de instituciones particulares. Tales iniciativas eran discontinuas, lo que puso en evidencia la ausencia de la inserción escolar de los negros.

Palabras clave Escolarización; Negros; Pará; Historia de la Educación

Abstract

This study addresses with the schooling of black people in the province of Pará at the end of the nineteenth century. For the development of this research, was used the bibliographic and documentary methodology. Starting of the analyzes realized is possible to conclude that the paraense education given to black people was excluding and that the government's actions in relation to schooling were marked by a minimal performance in the area of ​​school insertion. However, it was possible to identify the presence of black people in the initiatives of private institutions. Such initiatives were discontinuous, which evidenced the absence of black people school inclusion.

Keywords Schooling; Blacks; Pará; History of Education

Introdução

Em boa parte do desenvolvimento da história da educação brasileira estava ausente a preocupação com a população negra. Para Barros (2018), as obras que são referências para a história da educação pouco se referiam às pessoas negras, quer pela perspectiva da presença, quer da ausência; nas poucas vezes em que isso acontecia, era sob a perspectiva da interdição da escolarização desta população. Felizmente, em tempos mais recentes, esse quadro tem se modificado, e as produções no campo têm abordado esta temática, ainda que de modo insuficiente.

Nesta perspectiva, baseados na necessidade de investigar a temática da educação do negro, por meio deste estudo pretendemos auxiliar no preenchimento de uma lacuna ainda existente na história da educação no Pará, que se refere a esse estrato da população paraense durante a segunda metade do século XIX. Neste período, o Brasil tinha a economia baseada na atividade extrativista desenvolvida pelos escravizados e mantinha intensas relações comerciais e políticas com a Inglaterra, que por sua vez via crescer sua produção industrial e precisava de novos consumidores de suas mercadorias. Entre outras razões, esse processo resultou em forte pressão para que o Brasil abolisse a escravidão.

Para responder a essa tensão, o Império brasileiro decretou algumas leis para atender a demandas específicas e manter a parceria com os ingleses. Nesse contexto, passamos a ter um conjunto de leis que, a princípio, foi gradualmente materializando o processo de abolição da escravidão, respondendo também às disputas políticas entre os grupos escravistas e abolicionistas. Entre essas leis podemos citar: a Lei Eusébio de Queiroz (Brasil, 1850), que proibiu o tráfico negreiro, mas não coibiu o comércio interno de escravizados entre as províncias; a Lei do Ventre Livre (Brasil, 1871) que, desde sua edição, considerou libertos os filhos [1] nascidos de escravas, embora estes ainda ficassem sob o jugo e a criação de seus senhores [2] ou se tornariam os “novos abandonados”; a Lei do Sexagenário (Brasil, 1885), que concedeu a liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade, apesar de a vida do negro escravizado não chegar com integridade até aos 40 anos devido ao esgotamento físico e à precariedade das condições de trabalho.

Se as leis abolicionistas fizeram parte da transição gradual do fim do trabalho escravo no Brasil, também marcaram algumas mudanças no âmbito social, pois sua sanção evidenciou a vitória dos conservadores sobre os liberais abolicionistas. Isso porque a liberdade dos escravizados ocorreu sem nenhuma indenização ou política de integração social. Tratava-se apenas de ex-escravizados, negros abandonados à própria sorte.

Diante das medidas do Império brasileiro, a resistência negra foi impulsionada pelo desejo de liberdade e pelos movimentos abolicionistas crescentes na província paraense, resultando em inúmeras e frequentes fugas de escravos, conforme notificavam as mídias da época. Na revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), publicada em 1938, o autor Hunley (1938) descreve que, em 1858, existia na província do Pará a Sociedade Ipiranga, a qual se dedicava aos ideais de abolição da escravatura e da filantropia. Em relação a esta sociedade, Salles esclarece que:

A defesa da causa dos escravos só adquiriu forma organizada e consequente com a criação das sociedades emancipadoras. Em 1858 o médico Antônio David Vasconcelos Canavarro, o Jornalista João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha e o professor Jose Teodoro Saraiva da Costa agitaram a idéia da criação da Sociedade Ypiranga, que tinha por fins promover a libertação dos escravos. (Salles, 2005, p. 341)

Hunley (1938) informa que, antes da proclamação da Lei Áurea (Brasil, 1888), metade da população escrava na Província do Pará estava livre:

A 21 de abril de 1888, o dr. Cordeiro de Castro comunica á Liga Redemptora dos Captivos da Provincia do Pará, em Belém, sob a presidência do conselheiro Tito Franco de Almeida, que na villa do Pinheiro todos os escravos estavam livres. [...] O Mosqueiro proclamou a liberdade de todos os seus escravos a 6 de maio; o Mojú a 25 de abril e o Una, propriedade de d. Izabel Araujo Danin Lobo fez sua festa de redempção dos escravos no dia 29 de abril, no mesmo dia que o Pinheiro. Quando nos veiu a lei aurea mais de metade da população escrava do Pará estava livre. (Hunley, 1938, p. 203)

Quando foi promulgada a lei que extinguiu a escravidão no Brasil, não foram asseguradas a este novo cidadão as condições necessárias para uma reparação ou indenização relativa a sua inserção social e política. Por outro lado, com a libertação dos escravizados, instaurou-se uma crise na política, na economia e na sociedade, fator que levou à adesão da República proclamada em 15 de novembro de 1889, dando fim ao Governo Imperial.

A princípio, este marco possibilitaria novas perspectivas ao país – inclusive à população negra liberta, caracterizando-a como os novos cidadãos -, porém, mostrou-se historicamente cheio de limites, a ponto de a cidadania do negro na sociedade brasileira ser marcada até nossos dias pela exclusão e invisibilidade. A esse respeito, Fernandes afirma que:

[...] a desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva. (Fernandes, 2008, p. 18)

Após passar pela violência da escravidão, desprovido de dignidade e direitos, e diante da nova conjuntura republicana, o negro brasileiro teve que competir e lutar com os demais brasileiros e imigrantes pela garantia de seus “novos direitos”, como o trabalho assalariado e o acesso à educação. Entretanto, os dispositivos legais sobre a instrução pública no Brasil, no final do século XIX, garantiam o direito para apenas uma parte da população; por outro lado, proibia o acesso de doentes e negros escravizados à escola pública.

De acordo com Barros (2016), a década de 1870 foi um período de intensas transformações no Brasil. Logo após a Lei do Ventre Livre, em 1871, houve a interferência dos debates acerca da importância da instrução para a construção da nação e a introdução do ensino noturno. Nesse mesmo período, a presença de escravizados nas escolas era omitida nas leis, sendo “singular que, na legislação educacional a proibição a escravos permaneça em todas as províncias que aprovaram leis e regulamentos nessa década” (Barros, 2016, p. 600).

Barros (2016) também informa que a legislação educacional de 1870 da Paraíba criou uma aula noturna primária que não proibia a matrícula a nenhum tipo de aluno. Em Alagoas, as políticas educacionais ratificavam a proibição das matrículas para menores de seis anos e maiores de quinze, para os escravos e para os que sofriam de moléstias contagiosas. Assim como no Paraná, onde os escravos eram proibidos de realizar matrícula em escola pública. Em Santa Catarina, o ensino noturno não extinguiu a proibição aos escravizados, no entanto, admitiu a matrícula dos escravizados mediante a licença dos seus senhores. Em outros estados, observavam-se movimentos semelhantes:

[...] no Rio Grande do Norte, o regulamento de 1872 não proibia a matricula de escravos. O mesmo ocorreu no Mato Grosso: o regulamento Orgânico da Instrução Pública de 1873 determinava a obrigatoriedade do ensino e criava aulas noturnas na capital. Junto a isso, desapareciam as referências à proibição de escravos nas escolas oficiais, presentes na legislação anterior. Ainda nesta província uma nova lei Regulamentar do Ensino Público e Particular foi aprovado em 1875 e também não fazia referências aos escravos entre os proibidos de se matricular. (Barros, 2016, p. 601)

Diante de tais informações, propusemo-nos a: responder quais os indícios da escolarização do negro paraense nos dispositivos legais e oficiais, além dos não oficiais; descrever as referências de inserção escolar da população negra na Província do Pará; identificar quais eram os sujeitos e as instituições que se destacaram no processo de escolarização no final do século XIX. Para responder a essas indagações, valemo-nos de fontes primárias e secundárias, tais como os periódicos da época (jornais, almanaque e revistas), documentos oficiais do Governo, como relatórios, mensagens dos presidentes da província e regulamentos de instrução pública.

Para o desenvolvimento dessa pesquisa, fez-se necessária a utilização de uma abordagem teórico metodológica da história cultural no campo da história da educação. Segundo Castanho (2010),

[...] um dos grandes problemas a atormentar os que trabalham a história da educação pela via da cultura escolar é o das fontes, porque, salvo os atos institucionais formais e os do sistema educativo, os demais raramente se reduzem a termo escrito. Daí a busca por fontes alternativas, que incluem a iconografia, a oralidade, plantas arquitetônicas etc. (Castanho, 2010, p. 92)

A dificuldade de achar e processar fontes sobre a inserção escolar do negro nos levou a verificar documentos diversos, como menciona Castanho (2010). Desse modo, do ponto de vista historiográfico, optamos pelo método indiciário [3] de Carlo Ginzburg (1989, p. 52), que o caracteriza como “capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontamos a uma realidade complexa não experimentável diretamente”. A pesquisa histórica se vale desse método para que a leitura de fontes possa reconstruir o passado, desde a pesquisa dos pormenores que eram antes ignorados, para agora revelar o contexto geral e a profundidade do problema que estavam incógnitos.

Explorando esses indícios, as fontes consultadas nos possibilitaram buscar respostas para as nossas indagações, que buscaram privilegiar o que a história da educação não mencionou ainda sobre a educação da população negra no Pará. Assim, nossa pesquisa articula-se à discussão da história da educação na província do Pará no final do século XIX. Dessa forma, nosso objeto de pesquisa foi a escolarização da população negra paraense no período de 1870 a 1890, período que engloba um ano antes da Lei do Ventre Livre e um ano após o fim do Governo Imperial.

Nosso objetivo geral foi analisar os indícios de escolarização do negro na Província do Pará na segunda metade do século XIX. Como objetivos específicos, propomo-nos a levantar referências sobre os indícios da escolarização do negro paraense nos dispositivos legais e oficiais e não oficiais, assim como descrever os sujeitos e as instituições envolvidos no processo educacional do negro.

Realizamos uma revisão bibliográfica para apresentar não só como a literatura aborda a escolarização do negro no Brasil e no Pará, mas também o que traz à discussão da história educacional do negro nos processos de mudanças políticas e sua inserção na escola durante o período de 1870 a 1890.

Fonseca e Barros (2016) abordaram a experiência social dos negros no processo de desenvolvimento da sociedade brasileira a começar por uma interpretação sobre a atuação de organizações coletivas de negros na cidade de São Paulo. Os autores destacam que a educação foi sendo elaborada enquanto elemento constitutivo de um padrão de cidadania e de uma dimensão da esfera pública construída pelos negros paulistanos. Os movimentos sociais organizados por negros na cidade de São Paulo também são destacados e apresentam a Frente Negra Brasileira, uma das instituições mais importantes do movimento negro, com ampla atuação sobre o projeto educacional.

Felipe e Teruya (2015) discutiram a relação entre a educação da população negra e a formação da identidade nacional brasileira, na qual a educação escolar foi vista como um dos caminhos que levaria o país ao desenvolvimento econômico e à equiparação às nações europeias. Entretanto, segundo os autores, houve uma série de dispositivos de marginalização da população negra, como as políticas de branqueamento, o mito da democracia racial e os discursos sobre a miscigenação. Nessa perspectiva, o projeto de construção da brasilidade excluiu, marginalizou e subalternizou uma parcela significativa da população.

Abordando a escolarização da população negra em São Paulo entre os anos 1870 a 1920, Barros (2005) enfatiza as concepções de ação branca e ação negra, respectivamente estratégia e tática. A ação branca contempla a necessidade de destinar escolarização para os negros como etapa importante para a modernização em curso no país. Por outro lado, a ação negra buscava o acesso à escola, o que projetou alguns negros a alcançarem patamares elevados e de destaque na cultura letrada. Barros (2005) afirma que existiram poucas oportunidades educacionais para os segmentos sociais negros no período pós-abolição, apesar do aumento considerável do número de escolas públicas e particulares. As dificuldades de inserção nessas escolas vão desde o déficit econômico das famílias até a discriminação racial no interior da escola.

Lobo (2015) discutiu a respeito da liberdade tutelada de ingênuos e órfãos no Pará e as instituições educativas que buscaram atender à “população de cor” recém-liberta. A educação da população pobre e negra, o controle social, a manutenção da ordem e mesmo o desenvolvimento de uma mão de obra qualificada, construídos por meio de uma educação dirigida pelo Estado, são questões abordadas pelo autor, que demonstra os esforços iniciais de inserção desses sujeitos em uma proposta de escola com perspectiva assistencialista e profissionalizante, na busca de desenvolver uma educação que fosse:

[...] um instrumento tanto de formação de mão de obra, quanto de enquadramento das classes pobres nos ideais de civilidade. Ainda sim servindo para a manutenção de hierarquias sócias (sic), visto cada grupo social ter sua respectiva educação, os menores desvalidos, meninos e meninas, estiveram sujeitos ao projeto de construção de uma instrução pública segmentada em níveis sociais. (Lobo, 2015, p. 20)

Esta é uma iniciativa que se enquadra nas reflexões de Nogueira por esclarecer que:

Tais iniciativas eram desenvolvidas por associações literárias, propagadoras de instrução, filantrópicas, pela maçonaria ou por grupos religiosos, além de professores particulares que se identificavam com a prática da benemerência. O objetivo central dessas associações e agremiações era a educação e a instrução da população pobre por meio da difusão das luzes e da civilização. (Nogueira, 2015, p. 132)

Nesse contexto, tivemos na Província do Pará o surgimento de diversas iniciativas de algumas associações. Segundo Nery (2013, p. 108), “as instituições filantrópicas [...] apresentaram grande significado político e social durante o referido século [XIX], pois tiveram uma atuação de grande importância ao assumirem a responsabilidade por diversas iniciativas de assistência social”. Além disso, havia iniciativas particulares de propagação da instrução aos pobres, adultos, crianças, livres, escravos e libertos. Entretanto, essas instituições corroboravam o objetivo de formar o cidadão útil à pátria, o que “no plano político, impediria o surgimento dos pensamentos considerados subversivos e revolucionários, especialmente no que diz respeito às propostas de mudanças de sistema de governo” (Nery, 2013, p. 109).

Instrução pública primária no Pará

Segundo Sarges (2010), as transformações econômicas e sociais na Amazônia a partir da economia gomífera resultaram na modernização da cidade de Belém. Como consequência disso, a interferência do poder público refletiu-se diretamente no cotidiano da população paraense. Uma das faces dessa modernização está nas restrições no Código de Posturas [4] , se relaciona com a criminalidade e se direciona principalmente à população pobre e negra, em especial no que se refere aos batuques e sambas, elementos que constituíam o sincretismo da cultura africana em solo brasileiro. Para o governo, a materialização desse ordenamento nos rumos da modernização e da civilidade exigia o disciplinamento dos “maus hábitos de uma população indisciplinada e fétida” (Sarges, 2010, p. 160).

Ademais, havia políticas eugenistas [5] com a finalidade do aperfeiçoamento moral e físico da espécie humana, compondo práticas de educar, instruir, fortificar e sanear, que eram adotadas como atitudes essenciais para a civilidade, sobretudo, da população negra.

Williams (2011) trata a hegemonia como sistema de significados e valores que organizam a vida comum em qualquer sociedade e em qualquer período, de modo a universalizar valores e sentimentos, práticas e significados, impondo as vontades e os interesses das classes dirigentes às demais camadas sociais para consolidar sua posição dominante. A reprodução dessa hegemonia também se encontra na produção cultural e na literatura como meios de disseminação da ideologia, cujo processo de formação se constitui na seleção de “certos significados e práticas que são escolhidos e enfatizados, enquanto outros significados e práticas são negligenciados e excluídos” (Williams, 2011, p. 54). Por isso as instituições educacionais são agências prioritárias, uma vez que são as principais agências de transmissão da cultura dominante.

As elites, dedicadas à construção de uma nação civilizada, viam como necessária a seleção de novas tradições, culturas e costumes para todos, por meio da inserção de elementos culturais dominantes que, de forma efetiva, deveriam se consolidar por meio da transmissão de valores significativos aos demais. Daí a importância da ideia de educar homens civilizados e cultos para abandonarem a barbárie e serem úteis à sociedade, em um processo formativo que se daria por meio da instrução escolar. Esse processo possibilitaria que a população brasileira fosse civilizada e desenvolvida de modo semelhante aos países [6] da América do Norte e da Europa.

A ênfase na modernização e civilização se justificava por se tratar de progresso que só seria possível pela disseminação da instrução pública primária. Por meio das mudanças ocorridas no cenário político e econômico, a elite paraense também expressava sua preocupação com a instrução, de modo que a escolarização dos paraenses se tornou pauta frequente entre os legislativos no final do século XIX.

Um exemplo foi o Regulamento de Instrução Pública Primária de 1871, que estabelecia, no Artigo 34, a obrigatoriedade do ensino primário, a qual poderia ser domiciliar, em escolas públicas ou particulares. No referido artigo constava que pais, tutores, curadores, amos e protetores que tivessem em sua companhia meninos de 7 a 15 anos, sem impedimento físico e moral, precisavam enviar as crianças à escola ou pagariam multa. No mesmo documento, o artigo 42 instituía que, no ensino primário paraense, “não poderão ser matriculados aquelles que não forem livres” (Pará, 1871, p. 23). Isso evidencia a interdição da escolarização à população negra escravizada.

O relatório do presidente provincial, Abel Graça, registrava que “escolas noturnas na capital e nas cidades do interior para adultos, que ocupados durante o dia no trabalho d’onde teram a subsistencia, só á noite poderão cultivar a inteligência que na infância ficou abandonada” (Pará, 1872a, s.p.). Nessa linha de raciocínio, a escola noturna seria uma maneira de reparação pela ausência de escolarização da infância, contribuindo e tornando a população de adultos hábil ao convívio social.

No relatório mencionado, Graça destaca a vantagem do curso noturno pela aceitação e frequência dos alunos adultos, além da ausência de restrição à presença de escravizados, o que na sua opinião seria positivo para a sua emancipação.

[...] os cursos nocturnos permitem ainda que os escravos recebam alguma instrucção, o que é de grande alcance nesta época, em que os poderes públicos trabalham com denodado patriotismo na importante obra de emancipação do elemento servil: fora do estado de servidão e entrando para a sociedade livre o homem liberto deve levar algumas luzes, alguns rudimentos de moral e bons costumes, para lhes servir de guia. (Pará, 1872a, s.p.)

Abel Graça assegurou não só o acesso de escravos às escolas noturnas, como também instituiu a construção de casas próprias para a instrução pública e uma aos escravos, em “especial no commercio, para promoverem uma subcripção, que será destinada áquelle grandioso fim” (Pará, 1872a, s.p.). Esse processo ressaltava o desejo de incluir a província paraense na obra patriótica da emancipação do elemento servil.

Em outro relatório provincial (Pará, 1872b), encontramos o registro sobre a presença de escravizados em uma escola noturna destinada exclusivamente ao ensino de escravizados, com a frequência de 55 alunos. No referido relatório, são contabilizadas 12 escolas noturnas - 7 públicas e 5 particulares, com respectivamente 98 e 268 alunos matriculados. Mesmo com a interdição da criança negra, estabelecida no Regulamento de Instrução Pública do Pará de 1871, a escola noturna se mostrou uma alternativa importante para a inserção escolar da população negra.

Instituições de escolarização dos negros paraenses

Desde a metade do século XIX, algumas iniciativas que envolviam direta ou indiretamente o indivíduo negro já se faziam notar, em sua grande maioria por parte de entidades filantrópicas governamentais, atuando para promover sua emancipação ou instrução.

A primeira dessas iniciativas aconteceu em 1855, com a criação da Companhia de Aprendizes Marinheiros, instituída no Pará pelo Decreto nº 1.517 (Brasil, 1855) do mesmo ano. O Regulamento da instituição, no artigo 1º, estabelecia a capacidade de atender a 200 aprendizes marinheiros, que poderiam ser menores voluntários ou contratados, além de órfãos ou desvalidos remetidos pelas autoridades competentes, segundo o artigo 10º. No artigo 8º, o dispositivo se refere aos requisitos necessários para a admissão dos aprendizes: estes deveriam ser brasileiros, possuir de 10 a 17 anos de idade, dispor de “constituição robusta, e própria para a vida do mar” (Brasil, 1855); já o artigo 9º enfatiza que “poderão ser admitidos os que tendo menos de 10 annos de idade se acharem com suficiente desenvolvimento physico para começar o aprendizado” (Brasil, 1855), ampliando assim a faixa etária dos menores para admissão na Companhia.

Conforme o Decreto (Brasil, 1855), as normas de instrução ali desenvolvidas apresentavam um currículo diversificado, envolvendo conteúdo de natureza militar, náutica e propedêutica:

Art. 15º. A instrucção militar dos aprendizes Marinheiros começará por aprenderem a entrar em fórma, perfilar, volver á direita a á esquerda, marchar a passo ordinário e dobrado, &c., até a escola de pelotão, o manejo de armas brancas, a nomenclatura da palamenta, carreta e peças de artilharia, e o uso que tem cada hum destes instrumentos.

Art. 16º. A instrucção nautica consistirá em aprenderem os misteres relativos á arte de Marinheiro, como fazer pinhas, costuras, alças, nós, &c., coser panno, entralhar, &c., e, finalmente, aparelhar, e desaparelhar um Navio.

Art. 17º. Os menores aprenderão também a ler, escrever, contar, riscar mapas, e a Doutrina Christã, servindo-lhes de Mestre o Capello do Arsenal, ou hum Official Marinheiro, que tiver as habilidades necessárias (Brasil, 1855).

É importante ressaltar que em nenhum momento o regulamento menciona restrição à admissão de escravizados, negros, pretos etc. Pelo contrário, enfatizava apenas a condição física como critério de acesso à instituição.

Uma das edições do jornal O Liberal do Pará (Educação dos Orfãos, 1888) anunciou que, para auxiliar a inserção escolar desses novos civis-libertos, o Capitão Tenente José Antônio de Oliveira Freitas remeteu um ofício solicitando que se enviassem ex-ingênuos de 14 a 16 anos de idade à Escola de Aprendizes Marinheiros, que se constituía em um tipo de internato para a formação dos menores; ali receberiam instrução elementar e profissional. Essa proposta ocorria desde 1832, quando o Juiz de órfãos Cordeiro de Castro enviava à Marinha os menores desvalidos e órfãos para serem devidamente educados.

No ano de 1890, o Capitão Tenente Emilio M. Ferreira Campello enunciou no jornal A Republica um discurso sobre a disseminação da cultura e dos princípios do novo regime republicano por meio da instrução. Esse discurso foi direcionado aos tutores e responsáveis de órfãos ou famílias desprovidas de recursos financeiros para o sustento e educação de seus filhos, na qual poderiam encaminhar os menores à corporação de oficiais de Marinha; estes seriam “educados todos numa escola de regimes severos, puros e nobres”, “pela educação moral que adquirem no seio da corporação” (Campello, 1890, p. 3). Segundo a mesma nota do jornal, o estabelecimento estaria garantindo que as crianças desprotegidas teriam protetores, cuidados, educação física, moral e profissional, instrução primária e disciplina.

Uma outra experiência importante se deu com a fundação da Associação Filantrópica de Emancipação de Escravos, em 17 de setembro de 1869, a qual, segundo Salles (2005), foi a primeira sociedade estável no Pará. De iniciativa do austríaco Carlos Seidl, pretendia “libertar os escravos por ‘meios pacíficos e úteis aos escravos e aos senhores’, sem prejuízo do direito de propriedade” (Salles, 2005, p. 342). Sua importância era tanta que a publicação do jornal Diário de Belém [7] , no dia 21 de julho de 1869, apresentava um esboço para sua instalação sob o título “Algumas bases para a fundação de uma Associação Filantrópica de emancipação de escravos”:

1.º O fim da sociedade é alforriar o maior numero de escravos de ambos os sexos e de qualquer idade, que fôr possível, e delles fazer cidadãos uteis, dando-lhes instrucção religiosa, moral e a indispensável litteraria.[...] 7.º A associação libertará escravos menores de 8 annos só com a condição de haver uma pessoa que se responsabilise por escripto á dar-lhe sustento e educação até que a sociedade possa tratar d’isso. havendo os meios ou estabilidade necessários. [...] 8.º Estabelecer-se-hão aulas nocturnas e nos domingos para se ensinar aos libertos doutrina christã, moral, lêr escrever e contar (Seidl, 1869, p. 1)

No trecho acima, podemos observar os interesses da associação, seus objetivos, sua estrutura e os mecanismos utilizados para libertar os escravizados. No primeiro item, podemos destacar a questão da instrução dos escravizados. Outro aspecto interessante diz respeito ao fato de que a associação desempenhava um papel de integração social por meio da instrução, com aulas no turno da noite e realizadas aos domingos, sendo destinadas ao público recém-liberto. Hunley (1938) também reconhece seu pioneirismo, descrevendo com detalhes a associação fundada:

[...] a 17 de Setembro de 1869, por iniciativa do commerciante Carlos Seidl, estabelecido á rua Formosa (13 de maio) com officina de encardenação, e installada solemnemente a 27 de Março de 1870. Na data de instalação, fôram alforriadas as escravas Carolina, Guilhermina, Maria e Agostinha, dispendendo para isso a sociedade da quantia de rs. 1.750$000. Essa sociedade installou-se com 467 socios que contribuíam com 2$000 por trimestre. Posteriormente libertou mais cinco escravos, inclusive crianças, pela quantia de 830$000 (Hunley, 1938, p. 205)

O jornal O Liberal do Pará (Installação de sociedade, 1870) notifica sobre a reunião de instalação da Associação com vários membros e convidados. Apresenta ainda a estrutura desta, que era composta por uma diretoria com presidente, 1º e 2º secretários, 3 assessores e 1 tesoureiro, todos nomeados pelo conselho e só podendo se candidatar para os cargos sócios da sociedade. Também informa sobre práticas de abolição, ao entregar cartas de alforria para quatro agraciadas. Na reunião em questão, estavam presentes os senhores Dr. Kaulfus e Dr. Castello Branco, Dr. Samuel Mac-Dowell, como secretário, Dr. Lobato, como presidente, Conego Dr. Arcediago e o Conego Coelho, governador do bispado. Além disso, estavam presentes quatro negras e operários, mas esses nomes não são anunciados. Dessa forma, a Associação Filantrópica, além de promover a emancipação dos escravos, também garantia a instrução como forma de torná-los cidadãos úteis para a sociedade.

Em decorrência disso, identificamos uma terceira iniciativa em 1871, que foi a fundação da Escola Noturna para adultos escravos, que partiu da iniciativa da sociedade civil e filantrópica emancipadora e possuía um currículo que compreendia “as quatro operações de aritmética, ler e escrever, além dos ensinamentos de moral e religião” (Bezerra Neto, 2009, p. 243). Entretanto, para a matrícula dos escravizados, dispusera de alguns requisitos, como:

[...] “apresentação da licença por escrito do seu senhor”, conforme anúncio pelo Padre Felix Vicente Leão que, no Liberal do Pará, informava aberta a matrícula para Escola Noturna para Escravos no Colégio Santa Maria de Belém, anúncios publicados a cada início do ano ao longo do período de 1871 a 1874. Esta escola foi fundada em 23 de outubro de 1871 [...] logo depois que a Câmara Municipal de Belém fundou sua escola noturna, por proposta dos vereadores João Diogo Clemente Malcher (conservador) e Padre Felix Vicente Leão (liberal), instalada em 11 de setembro de 1871 (Bezerra Neto, 2009, p. 243).

A Escola Noturna para adultos escravos funcionava no Colégio particular Santa Maria de Belém – Travessa Chafariz do Bispo (atual Rua dos Mundurucus). Segundo o Almanach do Pará (1873), a direção do colégio particular era de responsabilidade do Padre Felix Leão, idealizador da escola noturna aos escravizados, e os professores Henrique João Cordeiro, Manuel da Fonseca Bernal e João José Nogueira lecionavam de forma gratuita na referida Escola.

O Almanach do Pará também menciona uma “aula noturna para adultos livres da sociedade propagadora da instrução popular” (Almanach do Pará, 1873, p. 103), que igualmente funcionava nas dependências do Colégio Santa Maria de Belém, das 7 às 9 horas da noite, desde 2 de outubro de 1871. As aulas ofertadas eram de leitura e escrita, aritmética, gramática portuguesa, geografia, história e explicações da constituição política do Império. O Almanach também informa que, em um mesmo espaço, funcionavam as aulas noturnas para adultos livres e para escravizados. Entretanto, o ensino era distinto e evidenciava um dualismo em sua oferta. Para os escravizados, eram ministradas aulas de ler, escrever e contar, enquanto para os adultos livres era ofertado um ensino primário de padrão superior, até com estudos sobre a constituição imperial, sob a batuta de renomados professores paraenses.

Fundada em 5 de abril de 1888, no salão de leitura do Grêmio Literário Português, a Liga Redentora da Província do Pará também tinha o objetivo de emancipar todos os escravizados paraenses, dando-se o prazo de menos de um ano, a começar pela capital, até a data de 13 de maio do mesmo ano, e 15 de agosto para a redenção de toda a Província.

A Liga atuava na promoção da liberdade dos escravos em caráter legal e promovia, em sua maioria, alforrias gratuitas. A diretoria da Liga era composta por Tito Franco D’Almeida (presidente), Dr. José Henriques Cordeiro de Castro (1º secretário) e Tenente Coronel João Gualberto da Costa Cunha (2º secretário), e conselho diretor composto por vários senhores da elite paraense.

O jornal O Liberal do Pará anunciou que a organização da Festa da Liberdade da Liga Redentora contaria com o patrocínio da Maçonaria Paraense – sujeito ativo neste processo (Noticiario, 1888). A celebração teve sessão comemorativa com as representações políticas, associações filantrópicas e os membros da Igreja Católica, além de uma procissão cívica pelas ruas da cidade (Ave Libertas! Viva o 13 de maio de 1888!, 1888). O Jornal Amazônia (Verissimo, 1888) confirmou que José Veríssimo Dias de Matos fez menção em seu discurso à inserção social dos ex-escravizados em um estabelecimento de educação, o Liceu de Artes e Ofícios 13 de Maio – em Belém, e que deveria ser coordenado pela Liga [8] . Além de José Veríssimo, estavam envolvidos nesse projeto de educação Teotônio de Brito, Lauro Sodré e Rodrigo Salles.

No noticiário do Jornal Diário de Notícias, encontramos uma nota de um anônimo, assinando com o pseudônimo Pedro Cunha, tratando sobre o reconhecimento da ideia do Liceu do Comendador Veríssimo, mas que a Maçonaria Paraense era a responsável pela realização e “creação do Lycêu” (Cunha, 1888, p. 2), assim como pela oferta da instrução à população negra na capital.

Após a proclamação da Lei Áurea, a Liga Redentora encerrou suas atividades sob o argumento de que suas finalidades foram alcançadas. Em seu lugar, surgiu o Clube 13 de Maio, responsável pela instrução dos “novos cidadãos da Lei 13 de maio”. Para esse fim, o Clube fundou a Escola de Artes e Ofícios 13 de Maio, com o objetivo de tornar os negros úteis a si e à sociedade paraense (Barata, 1973, p. 348). Segundo o Jornal das Novidades (Escola 13 de Maio, 1888), o Clube 13 de Maio foi responsável efetivo pela criação [9] e gestão da Escola noturna na capital paraense.

O Clube 13 de Maio anunciava os exames de admissão de novos alunos e a entrega da premiação dos alunos da Escola no dia 25 de novembro pela manhã (Annuncios, 1888). Neste anúncio, confirmava-se que a Escola funcionava no prédio da antiga Escola Prática, na rua São João. Podemos observar um esquema da Escola 13 de Maio na tabela abaixo:

Fonte: os autores.

Quadro 1 Síntese do fluxo de alunos da Escola 13 de Maio 

Percebemos que, em menos de um ano, ocorreu uma redução do número de matrículas na Escola 13 de Maio, de 150 para 83 alunos; e após um ano de funcionamento da Escola 13 de Maio, ocorreu a ampliação dos discentes; outrora destinada aos “novos cidadãos”, passa a atender à população em geral, tornando-se uma Escola de educação popular. Posteriormente, não constam notícias sobre a dissolução do Clube e da Escola 13 de Maio nos jornais da época.

Outro aspecto peculiar referente à escolarização de negros no Pará diz respeito à presença de negros do Caribe em Belém, chamados de barbadianos [10] . Lima (2006) discute os contextos e as situações nos quais os sinais de identificação dos barbadianos, como idioma e porte físico, eram observados para marcar distinções entre os demais negros, distinção em função dos símbolos de prestígio e de estigma das identidades inglesa, brasileira e barbadiana. A autora também menciona Robert Clyde Skeete [11] e Tomaz Busby, dois professores barbadianos que lecionavam inglês nas escolas públicas e privadas. O domínio por parte desses negros barbadianos favoreceu sua aquisição de empregos e facilitou sua ascensão social e financeira. Com base em relatos e memórias, a autora também informa a existência de uma escola [12] pertencente à professora Iulie, barbadiana que alfabetizava os filhos de estrangeiros, em especial os próprios barbadianos.

Nas famílias com escassos recursos financeiros, as mães de origem barbadiana aprendiam com dificuldade o português para ensinar aos seus filhos os dois idiomas no ambiente familiar. Por outro lado, algumas famílias que detinham maiores recursos econômicos enviavam seus filhos para estudar no exterior, especialmente em Londres, ou os inseriam nas escolas particulares ou públicas. Os negros barbadianos forjaram estratégias peculiares para sua inserção escolar de modo que viessem a desfrutar da possibilidade de ascensão social, política e financeira.

Além dos indícios de escolarização da população negra mencionados, outras iniciativas foram criadas por particulares e, de modo mais pontual, como comunicava o jornal Diário de Notícias sobre o deputado Hygino Amanajás, que informou à Presidência que havia criado “uma escola mista para ingênuos [13] , filhos das escravas da propriedade de sua mãe” (Cardoso, 1882, p. 3); afirmava que a escola não utilizou recursos do Governo e que funcionava na casa de sua mãe, Dona Victoria Caripuna, na Vila de Abaetê.

Outra experiência foi a da diretora Anna Thereza de Abreu, do Colégio Santa Luzia, que acolheu duas meninas de 8 a 12 anos de idade, “filhas de mulheres redimidas” (Castro, 1888, p. 2), para receber educação. A senhora Candida Joaquina Abreu manifestou interesse em educar [14] “uma das meninas da Lei Áurea” (Barata, 1888, p. 2), solicitando ao Dr. Cordeiro de Castro, curador geral e juiz dos órfãos, autorização para fazê-lo. O jornal Liberal do Pará (Diário de Belém, 1888) traz as denúncias feitas pelo jornal Diário de Belém sobre os problemas de inserção social do liberto, como oportunismo de aproveitadores da situação dos menores livres visando a obter a tutela indevida para servir-se do trabalho dos libertos, oferecendo educação e proteção disfarçada de caridade.

Em termos de experiências de cunho religioso, mas não menos importantes, houve a construção por “homens de cor”, em 1682, da “primeira egreja do Rosario da Campina” (Belém, 1915, p. 94), depois conhecida como a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Talvez essa tenha sido uma das primeiras iniciativas dos negros em termos da consolidação de sua coletividade, com a construção da igreja, naquela época ainda edificada em taipa. Na década de 1720, foi reformada por negros escravizados a partir de um projeto do arquiteto italiano Antonio Landi. Outra iniciativa foi a organização da Irmandade do Glorioso São Benedito no município de Bragança, no ano de 1798, que se constituiu como uma importante iniciativa de resistência e de preservação cultural por parte de seus agentes fundadores, no âmbito de um contexto de associativismo e de sustentação mútua que envolvia aspectos de natureza religiosa, mas também social (Silva, 2006).

Nos séculos XVIII e XIX, ser cidadão era sinônimo de liberdade e ter acesso à educação era exclusividade de pessoas livres e saudáveis. A educação era instrumento de dominação e controle, o que afastava ainda mais a possibilidade de os negros serem escolarizados e ascenderem socialmente, principalmente pela ausência de cidadania. Essa ausência de escolarização fazia parte de um projeto político de discriminação pelas elites, submetendo os negros à ordem social vigente. Isso se dava porque um jovem negro saber ler e escrever se constituía em uma ação tática de reação e resistência à hegemonia.

Considerações finais

A partir das nossas leituras e análises, é possível inferir que a escolarização ofertada na segunda metade do século XIX era excludente, pois restringia a matrícula e a frequência em escolas públicas às pessoas livres e brancas. Da mesma forma, as ações do Governo em relação à escolarização foram insuficientes no que tange ao acesso à rede escolar. No entanto, foi possível identificar a presença de negros nas iniciativas particulares, de natureza assistencialista e filantrópica, por meio da criação de escolas ou liceus, principalmente no período noturno, para adultos negros escravizados e libertos, além do recebimento de ingênuos em algumas instituições. Porém, não identificamos nos relatórios dos presidentes da província alguma ideia ou ação referente à concepção e execução de uma política efetiva de escolarização dos negros, razão por que preponderou a invisibilidade dessa população nos projetos educacionais oficiais.

Ficou claro que o Governo se eximiu de sua responsabilidade, incentivando iniciativas de particulares ou, em alguns poucos casos, subsidiando-as com recursos financeiros. Por outro lado, também ficou evidenciado que as poucas instituições que ofertavam o ensino profissional e o ensino das primeiras letras se limitavam a ministrar o ensino da leitura, da escrita e de noções de aritmética, e que seu fim estratégico era a preparação de cidadãos aptos para o mundo do trabalho. Tratava-se do chamado “derramar das luzes”, que auxiliaria o desenvolvimento da nação, corroborando o discurso de que a educação da população negra serviria para torná-la útil à nação, livrando-a do vício, da vagabundagem e da criminalidade, sempre por meio do trabalho.

Quanto aos envolvidos no processo de educação para a população negra paraense, na segunda metade do século XIX, estes pensaram e desenvolveram seus projetos de forma descontínua, pois muitas ações não chegaram a alcançar três anos de existência; por outro lado, apresentavam baixa frequência e interesse por parte dos alunos, indicando que, para as elites, a instrução básica ofertada para a população negra se caracterizava pela intenção de posicionar o negro no “seu lugar”, um lugar inferior. Tudo isso estava articulado com o intento da “domesticação”, do controle do pensar e do agir, buscando ajustar o negro conforme o desejo das elites, em um mundo que ao mesmo tempo o invisibilizava e o negava como cidadão e sujeito de direitos.

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[1]Ingênuo – filho de mãe escrava, mas que nasceu livre, inocente.

[2]A tutela dos ingênuos ficava com o senhor de sua mãe ou à disposição do Estado. O Estado, por sua vez, repassava para as associações e aos estabelecimentos autorizados, o que se aplicava, também, na ausência do anterior, para as casas de expostos e pessoas designadas pelos juízes de órfãos para cuidar dos menores livres.

[3]Este foi constituído a partir do método desenvolvido pelo crítico de arte italiano Giovanni Morelli (Ginzburg, 1989), que permite diferenciar a obra original de uma réplica, ou atribuí-la à sua verdadeira autoria. O paradigma indiciário é baseado na experiência e observação, conhecimento empírico.

[4]Código de Posturas eram leis e normas municipais de regularização de diversos aspectos da vida urbana, desde a higienização de espaços públicos, controle de alimentos vendidos à população até na interferência da moralidade do povo: (Sarges, 2010).

[5]Eugenismo foi um movimento que pretendia implantar e justificar práticas sociais de controle da população; no Brasil, o movimento se desenvolveu ao longo do século XIX, com discursos de adequação dos indivíduos a uma ideia de identidade nacional e influenciou práticas de higiene e educação para até meados de 1940 (Sousa & Araújo, 2016).

[6]Estados unidos, França e Inglaterra.

[7]Diário de Belém: Folha Política, Noticioso e Commercial (PA), de circulação diária, atuou entre os anos 1868 a 1889.

[8]A proposta de Veríssimo era de que a Liga Redentora se encarregasse da instrução destes cidadãos e da organização do Liceu.

[9]Criação no dia 11 de junho de 1888, em um prédio no Largo da Sé.

[10]O termo barbadiano é uma categoria que não indica simplesmente uma origem ou nacionalidade, mas foi empregado como uma designação de identificação para os negros estrangeiros (Lima, 2006, p. 14).

[11]Lecionava na Escola Paes de Carvalho e no Colégio Moderno (Lima, 2006, p. 39).

[12]Não é mencionado o nome da escola; a autora (Lima, 2006) afirma que era ministrado o ensino preferencialmente em inglês, além do português.

[13]Termo referente aos nascidos livres ou filho de escravo nascido livre.

[14]Educação para a formação doméstica - dona de família, com os cuidados do vestir e o sustento.

Recebido: 23 de Novembro de 2020; Aceito: 05 de Março de 2021

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