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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub 08-Abr-2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36668 

Artigos

Professores de educação física como experts adaptativos e a busca da inovação

Profesores de educación física como expertos adaptativos y la búsqueda de la innovación

Physical education teachers as adaptive experts and the search for innovation

1Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Montreal (2017). Professor na Escola Muncipal Madre Marta Cerutti e no Instito Federal de Mato Grosso. Membro dos grupos de pesquisa Corpo, Educação e Cultura (UFMT), Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Física no Ensino Médio Profissionalizante (GEPEFEP/IFMT) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Física, Formação Profissional e Campo de Trabalho (NEPEF/UNESP).

2Especialista em Pedagogia do Esporte Escolar pela Universidade Católica Rainha da Paz (2013), mestrando no Mestrado Profissional Educação Física em Rede Nacional (PROEF). Professor na Escola Municipal Maria Ambrósio Pommot e na Escola Estadual José Leite de Moraes.

3Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal de Mato Grosso (2001). Professor no Centro Educacional Paulo Freire e na Escola Municipal Dona Maria Artemir Pires.

4Especialista em Educação Física Escolar pelo Instituto Várzeagrandense de Educação. Professor na Escola Municipal Rural Hebert de Souza.

5Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (2007). Professor associado III da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Mato Grosso. Professor do programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT e do Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Física Escolar e Práticas Pedagógicas.


Resumo

Este estudo tem como objetivo descrever e analisar as trajetórias de formação e as práticas pedagógicas declaradas de professores de educação física que buscam inovar em suas aulas. Este é um estudo multicasos e biográfico, realizado por meio de entrevistas semiestruturadas. Dentre os resultados, pode-se destacar as seguintes inovações nas aulas: diversificação de conteúdos e estratégias metodológicas, a inserção de badminton e a criação de turmas de treinamento, a utilização de videogame e a criação de uma sala de jogos na escola. Ao longo de suas trajetórias profissionais, estes docentes buscaram expandir seus conhecimentos e competências, agindo como experts adaptativos.

Palavras-chave Educação física; Professores; Formação de professores; Prática pedagógica; Inovação

Resumen

Este estudio tiene como objetivo describir y analysar las trayectorias formativas y las prácticas pedagógicas declaradas de los maestros de Educación Física que buscan innovar en sus classes. Este es un estudio de casos múltiples y biográfico, realizado a través de entrevistas semiestructuradas. Destacan las innovaciones en clases: diversificación de contenidos y estrategias metodológicas, la inserción del bádminton y la creación de clases de entrenamiento, el uso de videojuegos y la creación de una sala de juegos en la escuela. A lo largo de sus trayectorias profesionales, estos docentes buscaron ampliar sus conocimientos y habilidades, actuando como expertos adaptativos.

Palabras clave Educación Física; Profesores; Formación docente; Práctica pedagógica; Innovación

Abstract

This study aims to describe and analyze the teacher education trajectories and the declared pedagogical practices of Physical Education teachers that seek to innovate in their classes. This is a multi-case and biographical study, carried out semi-structured interviews. Among the results, the following innovations in the classroom can be highlighted: diversification of content and methodological strategies, the insertion of badminton and training classes, the use of video games and the creation of a games room at the school. Throughout their professional trajectories, these teachers sought to expand their knowledge and skills, acting as adaptive experts.

Keywords PE; Teachers; Teacher Education; Pedagogical practice; Innovation

Introdução

Na década de 1980 no Brasil, o “movimento renovador” da educação física incentivou inovações nas práticas pedagógicas, buscando romper com a tradição da área, que se caracterizava pela hegemonia do esporte de rendimento e da aptidão física (Almeida, 2017). No entanto, havia poucos registros sobre o impacto deste movimento nas aulas de educação física, mas na última década surgiram pesquisas que documentaram as mudanças nas práticas, sendo que algumas delas foram identificadas como inovadoras na área (Silva et al., 2019; Maldonado et al., 2018; Silva & Bracht, 2012; Carlan et al., 2012; Faria et al., 2012; Fensterseifer & Silva, 2011).

Mas o que seria uma prática inovadora nas aulas de educação física? Almeida (2017) sintetiza resultados sobre as práticas inovadoras no âmbito da educação física a partir de: uma relação diversificada com a cultura, quanto mais ampla a formação do professor, mais ele mobiliza recursos para ensinar; uma prática intencional e problematizadora, com o professor atuando como um intelectual/intérprete/tradutor das teorias pedagógicas; atribuição de um sentido crítico ao conhecimento e o reconhecimento da dimensão ético-política da profissão; considerar a escola como espaço formativo e colaborativo para a formação continuada, bem como de uma postura reflexiva.

E ainda, a compreensão da educação física como uma disciplina que possui um saber específico, que necessita da mediação pedagógica do professor para transformá-la em conteúdo escolar; a introdução de novos conteúdos e de formas de avaliação que envolvam os alunos nesse processo; a disposição em enfrentar os desafios e dificuldades do cotidiano para conduzir sua intervenção pedagógica; uma relação inclusiva e dialógica com os alunos; um ensino que extrapola os estereótipos de movimento, ampliando a cultura dos alunos; a reinvenção dos espaços e tempos escolares, favorecendo à transmissão de conhecimentos; a diversificação de estratégias metodológicas para levar à apropriação, reelaboração e produção cultural (Almeida, 2017).

Porém, tais características das práticas inovadoras não precisam estar presentes em sua totalidade, mas quando emergem, caracterizam uma tentativa de romper com uma concepção e prática de uma educação física ancorada numa perspectiva mais tradicional de ensino, num movimento de ruptura com a noção de “atividade”, evoluindo para uma concepção de disciplina curricular (Almeida, 2017; Silva & Bracht, 2012; Fensterseifer & Silva, 2011).

Vale notar que a mudança educacional, seja a inovação de um currículo ou da prática pedagógica, não é algo simples de ser realizado. Segundo Fullan (2001), mudar um currículo é considerado um empreendimento complexo em todo o mundo. Por sua vez, Perrenoud (1999) destaca que as mudanças de práticas pedagógicas não podem ser decretadas, mas é preciso que os professores passem por uma evolução das suas concepções, identidades, competências, organização do trabalho e gestos profissionais.

Cabe destacar que inovação pode ocorrer em muitos níveis, o professor, a escola, a rede de ensino, mas a sala de aula é o nível mais próximo do ensino e da aprendizagem. No entanto, a mudança educacional é multidimensional, mesmo se considerarmos o nível mais simples da inovação em uma sala de aula, existem pelo menos três dimensões na implementação de um novo programa ou política: 1) o uso de materiais novos ou revisados: materiais pedagógicos ou tecnologias curriculares; 2) o uso de novas abordagens de ensino: novas estratégias ou atividades de ensino; 3) alteração de crenças: premissas e teorias pedagógicas subjacentes aos novos programas ou políticas (Fullan, 2009).

É importante notar que a inovação na educação não é algo que ocorra de uma hora para outra, mas é antes um processo de acontecimentos (Messina, 2001), que requer investimento por parte dos sujeitos envolvidos em contextos específicos. Além disso, há várias formas de analisar as mudanças ou inovações na educação, pois este é um fenômeno complexo e multifacetado. Segundo Bracht et al. (2017 como citado em Almeida, 2017), para compreender as inovações é importante considerar as relações entre a cultura escolar e a cultura mais geral, entre a vida pessoal e profissional dos docentes, entre a história da educação física e a história da escola ou do sistema educacional.

Com base nestas considerações, levantam-se as seguintes questões de pesquisa: quais são as trajetórias de formação e as práticas pedagógicas dos professores de educação física que buscam inovar em suas aulas? Que tipo de inovações esses profissionais desenvolveram nas aulas e quais foram os percursos que levaram às inovações? Em decorrência destas questões, o objetivo desta pesquisa é descrever e analisar as trajetórias de formação e as práticas pedagógicas declaradas, de professores de educação física que buscam desenvolver inovações em suas aulas.

Neste trabalho, a busca da inovação nas aulas será entendida como um processo inacabado. Cada professor trilha caminhos diferentes em sua trajetória profissional, mesmo porque os docentes encontram-se em diferentes momentos da carreira e atuam em escolas diferentes. Investigar como eles constroem caminhos em busca da inovação em suas aulas é uma primeira etapa para compreender o processo de inovação curricular, uma vez que a aula é a unidade elementar mais concreta que estrutura a vida escolar e base do trabalho docente durante a interação pedagógica professor-alunos (Gal-Petitfaux, 2013). Embora a inovação de um componente curricular seja algo mais abrangente, nossa perspectiva de análise é mais restrita, focalizando as aulas de educação física.

Este estudo é relevante porque mesmo que tenham surgido pesquisas sobre esta temática no Brasil, as práticas inovadoras que emergem nas escolas parecem não obedecer a lógicas lineares e são motivadas por razões que muitas vezes escapam aos olhos dos pesquisadores (Silva & Bracht, 2012), daí a necessidade de continuar pesquisando o tema.

Quadro teórico-metodológico

A inovação necessita da introdução de algo novo, resulta de uma combinação de fatores conhecidos ou da introdução de um novo fator numa situação existente. Significa modificar ou reorganizar as formas de trabalho como respostas a mudanças no aluno e no seu contexto de ensino, através de métodos mais adequados. A inovação pertence ao próprio professor, que está no centro da atividade educativa, pois diante das situações de ensino complexas, incertas e instáveis, os professores sempre fazem uso da criatividade para resolver problemas nas salas de aula (Gil, 1999; Woods, 1995). Além disso, a criatividade pode ser planejada e produto de uma experimentação ou pode ser inesperada (Woods, 1995).

Partimos do pressuposto de que os professores com práticas inovadoras agem como “experts adaptativos”. Segundo Hatano e Oura (2003) os experts adaptativos são mais propensos a alterar suas competências e expandir continuamente seus conhecimentos, em amplitude e profundidade. Essa reestruturação de competências pode reduzir a eficiência a curto prazo, mas a longo prazo pode torná-las mais flexíveis. Esse processo pode ser acompanhado da percepção de que as práticas precisam ser alteradas.

Segundo Schwartz et al. (2005) a inovação e a eficiência são dimensões importantes da aprendizagem por toda a vida e da expertise adaptativa. A eficiência reflete a capacidade do professor de utilizar uma técnica numa sala de aula de forma eficiente ou sua habilidade de desenvolver novas estratégias para alunos que não estão tendo sucesso. Já a inovação faz o professor ir além das rotinas existentes, exige que ele repense ideias, práticas e valores a fim de mudar o que está fazendo.

Esta pesquisa caracteriza-se por ser qualitativa, descritiva e um estudo multi-casos (Yin, 2015), baseado em entrevistas biográficas sobre as trajetórias de formação e sobre as práticas pedagógicas declaradas (Altet, 2017) dos docentes. Os participantes deste estudo foram três professores de educação física, que atuam em escolas públicas de ensino fundamental, no Estado de Mato Grosso, Brasil. A investigação educacional qualitativa busca ouvir o que o professor tem a dizer, a respeitar e a tratar as informações que o professor introduz nas narrativas (Goodson, 1995). Para Moita (1995), a abordagem biográfica permite compreender as interações que foram acontecendo entre as diversas dimensões da vida, o modo como a pessoa mobiliza seus conhecimentos, valores, energias, como dá forma à sua identidade dentro dos contextos em que trabalha, ou seja, como a pessoa e o profissional se transforma.

A escolha dos professores colaboradores foi pela sua representação tipológica. Esses docentes têm o hábito de postar fotos e vídeos de suas aulas numa rede social. Chamou-nos a atenção as atividades desenvolvidas e caráter inovador no âmbito da educação física. Os professores colaboradores foram o Bruno, o Joami e o Renato. Na época da coleta de dados, Bruno tinha 34 anos de idade e 9 anos de experiência no ensino. Ele trabalhava em duas escolas públicas, uma municipal e outra estadual. Joami tinha 48 anos e 18 anos de experiência no ensino e trabalhava em duas escolas públicas municipais. Renato tinha 37 anos de idade, 11 anos de experiência e trabalhava em uma escola municipal rural.

Em nossa perspectiva, consideramos os participantes da pesquisa, tanto colaboradores quanto coautores efetivos deste estudo, pois segundo Gauthier et al. (2013) há uma necessidade de os pesquisadores trabalharem em colaboração com os professores, vistos não como sujeitos ou objetos de pesquisa, mas como colaboradores ou, melhor ainda, como co-elaboradores da pesquisa sobre seus próprios saberes profissionais. Esta perspectiva metodológica foi adotada neste trabalho, pois consideramos importante “escutar” os professores com práticas consideradas inovadoras ou exitosas (Fensterseifer & Silva, 2011).

Em relação aos procedimentos metodológicos, primeiramente foi apresentada a proposta da pesquisa e os professores assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, concordando também que seus nomes fossem divulgados[1]. Depois, utilizamos um roteiro de entrevista semiestruturada sobre a trajetória de formação e atuação dos professores, abordando também suas práticas declaradas, ou seja, o que os professores dizem fazer, é o discurso dos professores sobre sua própria atividade em aula. Ao “declarar” sua prática, o professor conscientiza-se da/ sobre sua atividade profissional (Altet, 2017).

As entrevistas ocorreram entre os meses de outubro e dezembro de 2019 e foram realizadas pessoalmente ou através de vídeo-chamadas e gravadas em áudio, com a duração média de 1h30. Depois, foi realizada a transcrição e em seguida os professores participantes e co-autores fizeram a leitura do texto para validar as informações. Em seguida, consultamos os diretores ou coordenadores das escolas sobre o trabalho dos professores. Esse procedimento visou dar uma maior credibilidade à pesquisa, ouvindo outros atores que trabalham junto e supervisionam o trabalho dos professores nas escolas. O entendimento que tivemos é que o trabalho desses professores tem se mostrado significativo no contexto escolar.

No que tange ao trabalho analítico, foi utilizada a análise temática continuada (Paillé & Muchielli 2012), ou seja, num primeiro momento analisamos o corpus (transcrições das entrevistas) para constituir uma lista temática a partir das categorias conceituais oriundas do quadro teórico; depois, essa lista de categorias foi aplicada ao conjunto do corpus, mas com a possibilidade de que novos temas (categorias emergentes) fossem acrescentados durante a análise.

A seguir serão apresentados os três casos dos professores de educação física que buscam implementar inovações em suas aulas.

O caso do professor Bruno: diversificação de conteúdos e de estratégias didáticas

Bruno começou a trabalhar na rede pública em 2011, lecionando em duas escolas municipais. Em 2012 pediu transferência para completar sua carga horária somente em uma escola e atuou lá até o final de 2013. O professor narrou que não sentiu muitas dificuldades nos primeiros anos de docência, mas teve uma turma difícil. Estes anos também serviram para identificar a faixa etária que ele mais gostava de trabalhar, com as turmas do Ensino Fundamental 2. Depois, entre 2014 e 2018 ele trabalhou na Secretaria Municipal de Educação, retornando para outra escola municipal em 2019, ano que assumiu também aulas em uma escola estadual, depois de passar no concurso público.

Sobre as práticas declaradas, Bruno relatou que nas suas aulas de educação física ele tem abordado alguns esportes diferentes do convencional/ tradicional/ cultural brasileiro, como: futebol americano, beisebol, voleibol sentado, goalball e o hóquei em quadra. Este último, conseguiu fazer somente na escola do estado, com ajuda de alguns estagiários da universidade. Ele aborda conhecimentos teóricos, faz provas com seus alunos e gosta de utilizar filmes para trabalhar os conteúdos da Educação Física relacionando-os com questões sociais, como por exemplo bullying, preconceito racial ou de gênero.

Outra estratégia de ensino utilizada por ele são as aulas de campo. O professor Bruno relata que em 2019 começou abordando o Base 4 com os pés (um jogo pré-desportivo do beisebol), e em seguida introduziu o taco. Entrou em contato com a Federação Mato-grossense de Beisebol e conseguiu levar 50 alunos para uma aula de campo de beisebol. Lá, os alunos tiveram a oportunidade de conhecer um técnico do Japão que estava trabalhando aqui no Brasil e já falava bem português. Depois, esse técnico quis visitar a escola:

Ele falou: “Ah, eu quero ir lá conhecer a escola, fazer uma atividade com vocês!” E sexta-feira passada ele foi, a gente mostrou a nossa prática. Nós mostramos o Base 4 chutando a bola, depois com o taco de beisebol e ele jogou com as crianças. E aí depois ele veio trazer aspectos técnicos e táticos do beisebol oficial. Eu gosto dessas aulas de campo para as crianças vivenciarem o esporte, conhecer melhor o que a gente está estudando. As crianças adoraram [...]. (Bruno, 34 anos, professor)

Bruno relatou que essa experiência das aulas de campo trouxe dos seus primeiros anos de atuação profissional. Antes, seus alunos eram muito acostumados somente com o futebol. Ele se lembrou das aulas do seu professor do ensino fundamental, que abordou o tênis nas aulas de educação física e quis fazer o mesmo com seus alunos.

Para dar início a esta prática, começou com raquetes madeira, mas elas começaram a rachar. Daí teve a ideia de fazer uma campanha para arrecadar raquetes usadas pela Internet e nas escolinhas de tênis. Foi um sucesso, ele ganhou 40 raquetes, bolinhas, rede. Depois um amigo do tênis lhe falou: “Por que você não traz seus alunos aqui? Eu dou uma aula para eles!” Ele então fez essa primeira aula de campo com os alunos, que conheceram o espaço e tiveram contato com um professor de tênis. Bruno percebeu que os alunos gostaram muito e isso o motivou a adotar esta estratégia em suas aulas.

Constata-se aqui a utilização de uma solução criativa (Woods, 1995) para a falta de materiais apropriados, a criação de uma campanha de arrecadação de materiais, evidenciando sua capacidade de iniciativa e de resolução de problemas. Segundo Bransford et al. (2019), os experts adaptativos têm flexibilidade cognitiva quando avaliam problemas, observando várias interpretações e perspectivas possíveis de trabalho. Sua rede de contatos externos também influenciou a iniciativa da aula de campo.

Sempre há restrições em qualquer atividade profissional. No caso dos professores, há formas de aprender a ensinar criativamente dentro dessas restrições. De fato, ser criativo é ser original e apropriado (Bransford & Stein, 1993 como citados em Hammerness et al., 2019). Isto não quer dizer que os dirigentes educacionais não precisem investir em melhorias das escolas, dos materiais pedagógicos e dos contextos pedagógicos de uma maneira geral.

Em síntese, o professor Bruno diversifica conteúdos e estratégias de ensino, aborda conhecimentos teóricos em suas aulas, faz provas com os alunos, utiliza filmes para abordar conteúdos e os relaciona com discussões de temas sociais, realiza aulas de campo, faz campanha para arrecadar materiais esportivos. Esses resultados são corroborados por outras pesquisas que apontam como características das práticas inovadoras na educação física a diversificação de conteúdos e estratégias de ensino, a relação teoria-prática; a ampliação de modalidades esportivas para além das tradicionais, a relação com conhecimentos sociológicos (Silva & Bracht, 2012; Fensterseifer & Silva, 2011).

O caso do professor Joami: o badminton nas aulas e turmas de treinamento

Professor Joami lecionou em uma escola privada entre 2002 e 2008. Em 2003 e 2004 trabalhou numa escola municipal rural, depois conseguiu se transferir para uma escola urbana. Ficou um tempo afastado das escolas e retornou em 2013, sendo que trabalha atualmente em duas escolas municipais urbanas.

Ele relatou as dificuldades do início da carreira. Antes, trabalhava em uma academia com adultos e passou a trabalhar com adolescentes em escolas rurais, sem quadra coberta. Joami se sentia inseguro no início e disse que os alunos tinham resistência em relação as suas práticas, pois eles estavam habituados somente a jogar futsal. Aos poucos, foi conseguindo introduzir novos jogos como: rouba-bandeira, pegador de corrente, base 4, vôlei, handebol.

Depois ele conseguiu mais aulas em outra escola rural, sua turma mais numerosa tinha 12 alunos, tudo o que o professor propunha os alunos participavam. Mencionou também que aprendeu com os alunos um jogo chamado “sirumba”. Porém, no ano de 2004 a escola passou a receber alunos de um assentamento rural e suas turmas ficaram superlotadas. Os alunos começaram a pressioná-lo para jogar futsal. Ele conseguiu contornar a situação dividindo a quadra, de um lado os alunos jogavam futsal e do outro ele ministrava atividades dirigidas para o grupo que concordava em participar com ele. Depois ele conseguiu transferência para uma escola urbana.

No que tange a inovação pedagógica desenvolvida pelo Joami, ele introduziu o badminton nas aulas de Educação Física e formou equipes de treinamento. Ele conheceu este esporte quando foi participar de uma competição de voleibol escolar em Sinop-MT e viu um grupo de alunos jogando. Ele se empolgou e pediu o apoio do diretor da escola para desenvolver o badminton na escola, o diretor concordou.

Segundo o professor Joami, antes, nas aulas de educação física, ele ensinava basicamente as modalidades esportivas coletivas tradicionais nas escolas brasileiras, voleibol, handebol, basquetebol e futsal e, circuito de habilidades motoras, mas queria ir além. Assim, montou uma quadra e comprou um kit com quatro raquetes e uma rede de badminton. Os alunos gostaram muito e o professor percebeu que uma quadra não era suficiente. No final de 2013 o professor resolveu pintar mais duas quadras de badminton e comprar mais três kits.

Aí eu pensei: “O que eu vou fazer? Pera aí, já sei! Como a gente tem duas aulas geminadas, uma aula eu fazia um alongamento, um aquecimento, um jogo e na segunda aula eu montava as quadras de badminton”. Eu invertia as traves, colocava as traves do futsal nas laterais, os meninos jogam futsal ou mini handebol, os outros jogavam badminton ou basquete. (Joami, 48 anos, professor)

Para um expert adaptativo escolher o que abandonar e o que manter ou modificar no ensino é uma grande parte do que significa ser aprendiz por toda a vida. Para este tipo de profissional, descobrir a necessidade de mudar não é visto como um fracasso, mas como um sucesso e um aspecto inevitável e contínuo da busca pelo ensino eficaz (Hammerness et al., 2019).

Segundo Joami, o badminton começou a conquistar os alunos da escola e ele começou a pesquisar para adquirir mais conhecimento. As redes sociais o ajudaram muito nessa sua busca. Nesse período, conheceu o presidente da Federação Sergipana de Badminton que lhe deu muitas dicas, inclusive para que Joami acessasse o site da Badminton World Federation (BWF) e também o da Confederação Brasileira de Badminton (CBBD), descobrindo a realização de um curso de badminton em Natal, em maio de 2014. Para lá o professor Joami partiu e declarou que:

Quando eu voltei, eu vi que eu estava no caminho correto, porém fazendo algumas coisas num processo um pouco mais acelerado. Então eu melhorei a minha forma de apresentar o badminton para os alunos e aí a aceitação dos alunos foi ainda maior. Nós chegamos a ter momento que até os professores da escola iam na quadra jogar. [...] (Joami, 48 anos, professor)

Os estudos sobre o desenvolvimento de professores dentro de comunidades de aprendizagem enfatizam a importância de conhecimentos que ocorrem tanto nos contextos de ensino como em contextos profissionais (Hammerness et al., 2019). Assim, pode-se dizer que Joami passou a participar de uma comunidade de aprendizagem ou de prática, mesmo que de maneira informal. Nessas comunidades professores aprendem juntos e oferecem suporte à aprendizagem e à solução de problemas, sendo úteis para o desenvolvimento da expertise adaptativa dos professores (Darling-Hammond et al., 2019).

Em 2015, Joami foi convidado para ser o técnico da seleção mato-grossense de badminton e foi participar dos Jogos Escolares da Juventude em Londrina. Lá, recebeu um convite do Comitê Olímpico Brasileiro para participar gratuitamente de um curso de badminton. Neste curso, teve aulas com um técnico espanhol e disse que voltou de lá com outra mentalidade. Além disso, participa de um grupo no WhatsApp para trocar ideias e experiências com outros professores que trabalham com badminton e também tem um aplicativo de badminton no seu celular, que faz parte do programa “Schuttle Time”, o tempo da peteca.

Vale notar que a troca de experiências profissionais é uma prática comum para Joami. Ele tem contato direto com o presidente da CBBD, com os técnicos da seleção brasileira e com uma professora da Universidade Federal de Mato Grosso, especialista em esportes de raquetes. Além disso, já organizou com ela duas formações continuadas para professores de badminton em Mato Grosso e foi convidado para ministrar uma parte desse curso.

O professor Joami teve que adaptar espaços e equipamentos para desenvolver o badminton na escola. Os postes para armar as redes foram feitos de roda de caminhão e cano, e colocaram rodinhas de carrinho de supermercado para deslocar os postes, quando fosse necessário. Em uma das escolas que trabalha, ele amarra cordas no alambrado das laterais e arma as redes, sendo que os postes são canos de PVC. A participação dos alunos foi fundamental para estimulá-lo a continuar sua busca pela inovação. Ele e os seus alunos pintaram as marcações da quadra. O diretor à época era professor de educação física e apoiou a iniciativa. Joami destaca que a verba do programa Mais Educação ajudou adquirir raquetes de boa qualidade que duraram cerca de cinco anos. Ademais, a Confederação Brasileira de Badminton (CBBD) doou 20 raquetes para o professor.

Em relação aos resultados do seu trabalho, Joami disse que desde 2014 a sua escola tem atletas de badminton participando dos Jogos da Juventude no âmbito nacional. Isso deu credibilidade para o seu trabalho. Seus alunos/atletas já venceram competições em âmbito regional, estadual e têm participado de competições nacionais. Ademais, entre 2014 à 2019, o professor Joami só não foi técnico da seleção mato-grossense de badminton nos Jogos da Juventude em 2016, porque naquele ano classificou apenas uma de suas atletas. No entanto, entende que quando trabalha com treinamento é importante “aliar o máximo possível o ser humano com o atleta”. Mais do que os resultados em competições, Joami considera que:

[...] eu acho que este é o aspecto mais importante, de nós marcarmos o território junto a esses caras. Deles falarem: “Ele foi meu professor e eu me lembro muito bem dele, no que ele me ajudou! Eu não vou falar no que ele me ensinou, mas no que ele me ajudou!” Eu acho que ele vai ser um ser humano um pouco melhor e isso é importante! (Joami, 48 anos, professor)

Percebe-se que Joami compreende que o treinamento esportivo não tem como finalidade apenas a formação técnica dos atletas, mas vai muito além e compreende a formação humana. O professor Joami também narrou a importância da reflexão e a busca de melhoria do seu trabalho:

E hoje eu sinto uma necessidade tremenda de melhorar a cada dia, de aprender a cada dia, para eu poder passar isso para meus alunos. Então é uma preocupação constante minha de fazer o feedback para ver o que eu errei no treino hoje. Eu treino assim, então o que eu preciso melhorar nesse treino para a próximo? Eu consegui atender a dificuldade do meu jogador? Não consegui. Porque aí eu pergunto para eles: “Você conseguiu fazer? Ficou bem explicado? O que você acha que pode fazer diferente”? (Joami, 48 anos, professor)

Como vimos anteriormente, decidir o que abandonar e o que manter ou modificar no ensino é uma grande parte do que significa ser aprendiz por toda a vida é um expert adaptativo (Hammerness et al., 2019). Além disso, segundo Fullan (2009), a participação em workshops e cursos representa apenas 30% da aprendizagem profissional, os outros 70% diz respeito ao aperfeiçoamento contínuo e coletivo do seu trabalho, desenvolvendo hábitos de aprendizagem dia após dia.

Em síntese, Joami introduziu o badminton nas aulas de educação física e criou turmas de treinamento na escola. Ele relata que houve bastante interesse de seus alunos pela modalidade esportiva e todo um investimento do professor para ir além dos conteúdos e estratégias que utilizava. Diante disso, investiu na compra e arrecadação de materiais pedagógicos, na infraestrutura e equipamentos para a quadra de badminton e adaptou as estratégias didáticas, os espaços e equipamentos utilizados. Buscou ainda novos conhecimentos em comunidades de aprendizagens informais, valoriza a contribuição do esporte para formação humana e busca refletir sobre como melhorar sua prática.

Estudos anteriores sobre as práticas inovadoras na educação física também identificaram algumas destas características entre os professores pesquisados: a importância da formação continuada (ou comunidades de aprendizagem), o esporte pautado e comprometido com a formação humana, o planejamento e re-avaliação deste (Carlan et al., 2012) que no caso de Joami, se dava por meio da reflexão sobre a prática e a criação de oficinas e turmas de treinamento esportivo. A esse respeito, uma pesquisa constatou que as oficinas de esporte ou de dança na escola podem contribuir para melhorar o ambiente escolar (Soares et al., 2013).

O caso do professor Renato: o uso de jogos eletrônicos e criação da sala de jogos

O professor Renato não tem cargo efetivo e a cada ano depende do processo seletivo para conseguir aulas. Em 2012 e 2013 ele atuou numa escola municipal rural, que denominaremos aqui de escola rural 1. Em 2014 atuou em quatro escolas estaduais diferentes. Entre 2015 e 2017 trabalhou em outra escola municipal rural, que denominaremos escola rural 2. Em 2018 trabalhou em uma escola estadual e em 2019 voltou a trabalhar na escola municipal rural 2. Ele disse que não sofre discriminação pela sua situação de contrato, porém, considera muito difícil o início de cada ano, quando ele fica sem salário até conseguir as aulas, mas aprendeu a se organizar para este período.

Ele relata que sua experiência na escola rural 1 foi excelente, pois é uma escola bem peculiar, as famílias são presentes e as crianças são muito educadas. Apesar das turmas serem lotadas, no momento das aulas ele ficava impressionado. “Eu fiquei pasmo! Nossa, eu nunca imaginei isso! Realmente você conseguia ensinar, você produzia, você chegava e ensinava as crianças e elas conseguiam absorver. Lá é muito bom para ensinar!” (Renato, 37 anos, professor)

Em 2017 ele pensou em abandonar a profissão, pois tinha algumas turmas muito difíceis. “Ah, eu não quero mais! Eu vivia muito pressionado, eu estava bem desgastado fisicamente e mentalmente, eu não conseguia mais criar nada. Foi difícil de encerrar o ano” (Renato, 37 anos, professor). Porém, Renato assistiu a um vídeo no YouTube sobre síndrome de burnout ou síndrome do esgotamento profissional. Aí, ele entendeu que:

Em 2017 eu já tinha “queimado” tudo, que eu vinha de três anos seguidos de um ritmo muito alto, tentando fazer o máximo, sem material nenhum. Eu sempre comprei material do meu próprio bolso. Eu entendi que eu tinha me desgastado psicologicamente. (Renato, 38 anos, professor)

Segundo Esteve (1995), a massificação do ensino e o aumento de responsabilidade dos docentes não foram acompanhados de uma melhoria dos recursos materiais e das condições de trabalho, o que pode levar ao mal estar docente. Sendo que hoje, o ensino de qualidade é mais fruto do empenho e voluntarismo dos professores do que consequência de condições de trabalho adequadas às dificuldades e às múltiplas tarefas que o professor realiza na escola.

Renato contou que durante a prática de um hobby durante as férias ele “soltou a sua válvula de pressão” e começou a compreender alguns fatos. Quando voltou ao trabalho, conseguiu criar as coisas, conversar mais, a dominar mais e ficou melhor. Os outros espaços da vida, como o familiar e o social, podem ser um “limite”, um “contributo” ou um “acessório” em relação a vida profissional. Estes podem ainda ter um caráter dominante em algumas etapas da vida ou um caráter equilibrante, pode ser um recurso e ter um lugar central na vida e vir até mesmo a ser seu “motor” (Moita, 1995). Além disso, nos casos dos professores que buscam inovações, o enriquecimento propiciado pela vida cultural (poesias, músicas, literatura, teatro, fotografia) é um fator diferenciador para pensar em elaborações metodológicas distintas da cultura tradicional da educação física (Faria et al., 2010).

O professor Renato narrou ainda que no início do ano escolar 2019 se lembrou da experiência vivida em 2017 e pensou em “desacelerar”, ainda mais trabalhando 40 horas semanais. Ele narrou, ainda:

Eu vou conversar com o coordenador, com as pessoas que me conhecem bem e vou pedir uma avaliação deles sobre o meu trabalho para eu ter um feedback. Porque eu acho que eu não pisei tanto no acelerador e foi o ano que eu produzi mais. Apesar de estar muito mais tempo aqui na escola, eu acho que foi um ano bem produtivo e que eu não desgastei tanto. Eu avaliando isso, mas eu quero ver a opinião de quem está de fora disso, se está tendo outra visão de mim. (Renato, 37 anos, professor)

Ele narrou também que um de seus hobbies é fotografia. Porém, nem sempre é fácil se enquadrar em outros meios profissionais e suprir suas necessidades financeiras. Por este motivo ele não abandonou a docência, mas também pelo envolvimento, carinho e reconhecimento dos seus alunos. Apesar das dificuldades, o professor Renato tem aproveitado as oportunidades de aprendizado que a profissão lhe proporciona. Para isso, ele busca observar e aprender com seus colegas de trabalho:

O que não pode é parar de observar os outros: “Poxa, aquele cara tá fazendo tal coisa que eu acho que é legal”! Eu me espelho muito nas pessoas, no comportamento dos professores. No começo, quando eu comecei trabalhar aqui, na hora do meu planejamento, eu largava das minhas coisas e entrava na sala de aula e sentava para observar o comportamento daquele professor, porque eu o admirava de mais! A sua capacidade de dominar a sala, de controle dos alunos, de fazer... então eu parava para tentar traçar, montar o meu perfil [...]. (Renato, 37 anos, professor)

Segundo Hammerness et al. (2019), uma característica importante da expertise adaptativa é a capacidade de aprender e ter habilidade e vontade de trabalhar com os outros para avaliar o próprio desempenho. Quando necessário, procurar novas respostas tanto na sala de aula, quanto na escola de um modo geral. Assim, trabalhar em equipes em que uns aprendem uns com os outros é extremamente importante. Nesses contextos colaborativos, os professores agradecem ao invés de refutar esse feedback.

Em relação as inovações desenvolvidas nas aulas do Renato, destacamos o uso de jogos eletrônicos e a criação de uma sala de jogos. Sobre o videogame ele contou que já tinha visto essas ideias na Internet, mas nunca tinha implementado.

E esse ano, quando eu fui fazer o planejamento anual, eu olhei na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tinha jogos eletrônicos. Eu pensei: “Puxa vida, o que eu vou ensinar de jogos eletrônicos? Eu vou falar de jogos eletrônicos? Qual é a graça disso? Jogo eletrônico é vivenciar, é jogar! Eu não vou colocar as crianças sentadas, com um controle na mão vendo a tela. Pô, o que tem a ver com a Educação Física?” Já lembrei do sensor knectic do X-Box”. Eu pensei: “Ah, legal! Jogo eletrônico e Educação Física associados, eu vou ter movimento e ter jogo. (Renato, 37 anos, professor)

A partir de então, realizou orçamentos, falou com sua esposa e comprou um videogame num site de venda de produtos usados. Ele não deixa o videogame na escola, mas quando planeja uma aula, leva, instala e utiliza o dia todo. Além disso, joga com seu filho na sua casa. Renato contou que o videogame supriu uma necessidade dele com o ensino da dança:

Eu não tenho facilidade com dança, nunca tive. E o game eu coloco zumba e é muito bacana! Dá até briga para dançar essa zumba. [...]. Então se a gente não consegue fazer de uma forma tem que ser de outra. (Renato, 37 anos, professor)

Já a ideia da sala de jogos surgiu com a inauguração do prédio novo da escola, o prédio antigo não foi demolido e havia uma sala vazia, sem utilização. Ele propôs a ideia da sala de jogos para a equipe gestora, que ficou reticente.

Eles ficaram meio assim. [...] mas eu não fiquei esperando, eu fui e comecei a mostrar alguns jogos, como o hóquei de mesa, o aparelho de escalada, inclusive o videogame. E eu fui trazendo para a escola e mostrando qual era a diferença que isso fazia, o quanto eles [alunos] gostavam disso. E eu consegui a sala de jogos por causa disso aí, eu já vim trabalhando antes. Eu não fiquei esperando me dar [...]. Eu fui trazendo antes e convencendo. (Renato, 37 anos, professor)

Renato revelou que quando precisa de materiais pedagógicos constrói ou compra, pois ele sabe que na escola é burocrático para conseguir materiais. Sua impaciência e jeito acelerado de ser, faz com que vá atrás e agilize o que ele precisa para trabalhar, numa atitude proativa.

Eu comprei corda naval, uso para cabo de guerra, uso para uma infinidade de coisas. Alguns materiais aqui da sala de jogos eu fui nas fábricas de móveis planejados, onde eles descartavam restos de materiais e fui separando algumas coisas que eu achei legal. E eu consegui construir esses jogos, como o hóquei de mesa, a parede do desafio, o fliperama, o pebolim. Então assim, eu guardo parafusos, eu tenho ferramentas lá em casa e eu vou montando. Então, material ou é de reciclagem ou eu compro mesmo. (Renato, 37 anos, professor)

Constata-se aqui a utilização de uma solução criativa (Woods, 1995) para a falta de materiais, a construção de materiais pedagógicos de maneira artesanal. Isso coloca em evidência a capacidade do professor Renato de improviso e de transferência de conhecimento de uma área (mecânica, marcenaria) para outra (o ensino). Segundo Bransford et al. (2019), os experts adaptativos têm flexibilidade cognitiva quando avaliam problemas e outros tipos de caso em sua área, a partir de muitos pontos de vista conceituais, observando várias interpretações e perspectivas possíveis de trabalho.

Sobre a estratégia que ele utiliza para organizar a sala de jogos e os alunos, o professor trabalha com os alunos livres, ele não organiza grupos por estações de jogos, mas os alunos podem circular à vontade e escolher os jogos de sua preferência, e que joguem pelo prazer de jogar. O professor Renato é quem circula pelos jogos, orientando, incentivando e coordenando os alunos, mas quando está em uma estação sempre fica de olho nas outras estações de jogos.

A ideia dos jogos eletrônicos (videogame) surgiu quando Renato foi fazer o plano anual e viu as prescrições da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em relação a este objeto de conhecimento, mas também através de suas pesquisas na Internet. No entanto, sua atitude inquieta e proativa, bem como sua criatividade e curiosidade o levaram a experimentação dessas ideias. Ora, as características do ensino criativo compreendem a imaginação, “a capacidade de tomar o lugar do outro e de ensaiar potenciais interações antes do acontecimento. Este processo é acompanhado por adaptabilidade, flexibilidade e uma prontidão e facilidade para a improvisação e experimentação” (Woods, 1995, p. 132).

Em síntese, Renato relatou que teve experiências positivas e negativas na sua trajetória, sendo que até pensou em abandonar a profissão, por entender que estava com esgotamento profissional, resolvendo “desacelerar”. O professor também procura trabalhar em colaboração com seus colegas de escola, pedindo para observar professores que ele admira e solicitando feedbacks sobre o seu trabalho. No que tange a sua busca pela inovação, o professor Renato utiliza os exergames (jogos eletrônicos de movimento corporal) em suas aulas, compra materiais, confecciona jogos artesanalmente, conseguiu uma sala na escola que foi transformada num espaço exclusivo para as aulas de educação física, a sala de jogos.

Os estudos sobre as práticas inovadoras na educação física também revelaram que a reinvenção dos espaços e tempos escolares, a colaboração entre os pares e a diversificação de metodologias são características de uma prática inovadora (Almeida, 2017). Os professores inovadores se mobilizam numa busca de reconhecimento dentro do contexto escolar, tanto para fazer com que a disciplina seja reconhecida com componente curricular quanto para legitimar sua especificidade em relação aos outros componentes do currículo escolar (Faria et al., 2010; 2012).

Considerações finais

Esta pesquisa examinou as trajetórias de formação e as práticas pedagógicas declaradas de três professores de educação física que buscam inovar em suas aulas, cada um com sua trajetória, singularidade e práticas pedagógicas, desenvolvidas em contextos escolares específicos. O desejo de inovar nas aulas surgiu da vontade de diversificar os conteúdos e estratégias metodológicas, indo além do ensino do futebol ou dos esportes coletivos tradicionalmente ensinados nas aulas de educação física.

Os três professores tiveram um percurso formativo e profissional diversificado, vivenciando momentos difíceis e outros mais tranquilos na docência. Diante das dificuldades do cotidiano (falta de materiais, infraestrutura inadequada, carga de trabalho elevada, trabalhar como contratado, dúvida sobre a carreira, burnout), buscaram soluções criativas e mobilizaram habilidades profissionais para desenvolverem suas aulas. Assim, eles conseguiram implementar as seguintes inovações: disposição em enfrentar as dificuldades do cotidiano, diversificação de conteúdos e estratégias metodológicas, reorganização dos espaços e tempos, atribuição de um sentido sociológico ao conhecimento, ampliação das experiências da cultura corporal dos alunos, postura reflexiva, colaboração com os pares e a busca de formação continuada. Em alguns momentos, suas práticas parecem indicar um estilo de ensino mais diretivo, e em outras menos, mas isso não quer dizer que tais práticas não tenham intencionalidade pedagógica.

Os professores estabeleceram parcerias, na escola ou fora dela, para buscar inovar nas suas aulas, seja estabelecendo parcerias e redes de apoio para a realização das aulas de campo e para arrecadar materiais esportivos, seja se engajando em comunidades de aprendizagem e de prática na busca de novos conhecimentos, que funcionam como uma formação continuada informal, seja buscando apoio dentro da escola para a sua formação a partir da observação dos pares e feedbacks sobre o seu trabalho. Entendemos que a superação das barreiras ou restrições do contexto escolar na busca da inovação por esses professores contribui para que eles não caminhem na direção do desinvestimento pedagógico.

Um dos limites do nosso estudo é o fato de não termos acompanhado as aulas dos professores in loco, bem como não termos realizado perguntas mais específicas a respeito do trabalho pedagógico, tais como: se realizam uma prática pedagógica problematizadora, dialógica e inclusiva na interação pedagógica com os alunos; se reconhecem a dimensão ético-política da profissão e como ela se manifesta em seu trabalho; como organizam seu trabalho curricular ao longo do ano letivo.

De acordo com os resultados apresentados, os professores estão agindo como experts adaptativos, pois buscam alterar suas competências e expandir continuamente seus conhecimentos e habilidades relacionadas ao ensino. Que tais experiências sejam cada vez mais compreendidas, divulgadas e fomentadas. Sabemos que as condições de trabalho dos docentes precisam ser melhoradas. Porém, nada dispensa as habilidades dos professores como um fator importante para a aprendizagem dos alunos, bem como sua inventividade, compromisso, coragem e ousadia para continuar aprendendo por toda a vida profissional.

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[1]Esta pesquisa não passou por comitê de ética de pesquisa, mas os pesquisadores respeitaram as exigências da pesquisa com seres humanos.

Recebido: 25 de Fevereiro de 2021; Aceito: 31 de Março de 2021

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