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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Apr 22, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36158 

Artigos

Uma análise benjaminiana da entrevista narrativa com professores: retomando a experiência

Un análisis benjaminiano de la entrevista narrativa con los profesores: reanudando la experiencia

A benjaminian analysis of the narrative interview with teachers: resuming the experience

1Mestre em linguística pela Universidade de Franca (2015). Doutorando em educação pela Universidade São Francisco e pela Universidad de Granada (Cotutela). Professor adjunto do Instituto Federal de São Paulo. Membro dos grupos de pesquisa ALTER-LEGE (USF) e TCTCLAE - Teoria Crítica e Teorias Críticas Latino-Americanas e Educação (CNPq/USF).

2Doutora em Educação pela Universidade São Francisco (USF) (2014). Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Educação da USF. Participa do grupo de pesquisa Relações de ensino e trabalho docente e é vice-líder do grupo ALTER-LEGE/USF.


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar, a partir da entrevista narrativa de dois professores da área de linguagens do Instituto Federal de São Paulo, como estes retomam o saber da experiência a partir da narração de suas histórias de vida, tanto no âmbito pessoal quanto profissional. Para isso, pautamo-nos na filosofia de Walter Benjamin sobre a experiência expropriada e utilizamos as considerações do método (auto)biográfico para produção dos dados. Nossas análises ressaltam que o ato de narrar possibilitou a eles a percepção de si e do outro no processo de constituição docente, bem como a significância dos saberes advindos da experiência.

Palavras-chave Educação; Narrativa; Saber da experiência; Constituição do sujeito professor

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar, a partir de la entrevista narrativa de dos profesores en el área de lenguajes del Instituto Federal de São Paulo, cómo retoman el saber de la experiencia a partir de la narración de sus historias de vida, tanto en el ámbito personal como profesional. Para ello, nos basamos en la filosofía de Walter Benjamin sobre la experiencia expropiada y utilizamos las consideraciones del método (auto)biográfico para la producción de datos. Nuestros análisis ponen de relieve que el acto de narrar les permitió percibirse a sí mismos y a los demás en el proceso de constitución docente, así como la importancia del conocimiento que se aparta de la experiencia.

Palabras clave Educación; Narrativa; Saber de experiencia; Constitución del sujeto profesor

Abstract

This article aims to analyze, from the narrative interview of two teachers in the area of languages of the Federal Institute of São Paulo, how they resume the knowledge of the experience from the narration of their life stories, both in the personal and professional spheres. For this, we based on Walter Benjamin's philosophy about the expropriated experience and used the considerations of the (auto)biographical method for data production. Our analyses highlight that the act of narrating allowed them to perceive themselves and others in the process of teacher constitution, as well as the significance of the knowledge departing from experience.

Keywords Education; Narrative; Experience knowledge; Constitution of the subject teacher

Considerações iniciais

Toda experiência humana pode ser narrada. Contar histórias é uma forma de comunicação e parece ser uma necessidade humana em diferentes lugares e fases da vida. É através da narrativa que as pessoas se lembram dos acontecimentos e ressignificam o vivido.

Todavia, conforme já dizia Benjamin (1993), nos últimos tempos, as experiências estão ficando incomunicáveis, uma vez que não nos colocamos mais à escuta do outro. Foi pensando nisso, que buscamos como base de dados a Entrevista Narrativa, que visa levar os entrevistados a narrarem suas memórias de forma livre e despropositada, o que garante uma rememoração de forma mais autêntica.

Com isso, entrevistamos dois docentes, que atuam no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, na disciplina de Língua Portuguesa e Redação com o objetivo de analisar como estes retomam o saber da experiência a partir da narração de suas histórias de vida, tanto no âmbito pessoal quanto profissional. Nesse sentido, a questão que norteou nosso estudo foi: como, a partir das experiências de vida e das conjunturas pessoais e profissionais esses sujeitos se constituíram como docentes e como a rememoração a partir da narrativa retoma o cerne dessa escolha?

Acreditamos que narrar a própria experiência de vida, desde os primeiros anos até a fase atual, permite aos entrevistados ressignificar as experiências, não somente no que tange ao seu papel docente, mas com uma propositura mais potente, a partir da perspectiva benjaminiana, que busca recriar as condições de perceber a si e a História. Além disso, a memória como “rememoração” está inscrita no pensamento de Benjamin (1993), caracterizando-a como uma lembrança singular, sendo uma memória distinta das demais que se mantém num espaço cíclico entre o passado e o presente, em que os acontecimentos podem ser revividos, sem que seja possível, porém, reconstitui-los fielmente, tal como se sucederam.

Pensando nisso, ao nos colocarmos na escuta destes professores, que resgatam suas memórias a partir da narrativa de suas experiências de vida, nos acercamos ainda mais das teses de Benjamin sobre a história, pois o filósofo sempre preferiu focá-la a partir da ótica dos oprimidos. Ora, o professor, alvo de tantos ataques e contradições, por vezes silenciado dentro de seu processo de constituição, seja por conta das perseguições em razão das instituições, seja por conta dos extenuantes serões aos quais são submetidos, seja por conta das péssimas condições de trabalho, tornou-se um sujeito histórico, muitas vezes condicionado ao papel de oprimido e que se mantém impossibilitado de narrar seu próprio percurso. Reforçamos, a partir disso, nossa preocupação, na pesquisa, em colocar-nos à escuta desse professor. Por isso, o espaço acadêmico pressupõe esse lugar legítimo para restaurar a voz docente, restituindo a sua história de vida, tanto nas marcas pessoais quanto profissionais, o direito à fala e o direito a participar ativamente da experiência que vive e que produz.

Por isso, confiamos que as entrevistas narrativas são importantes tanto para quem narra, quanto para quem lê, pois se mostra como forma de identificar, a partir das experiências de vida e das conjunturas pessoais e profissionais, como se constitui a identidade docente e como a rememoração retoma o cerne dessa escolha, o que se reflete nas atuações docentes.

Diante disso, estruturamos o presente artigo em cinco seções: a primeira foca nas ideias benjaminianas sobre a pobreza de experiência, contextualizando o estudo; a segunda parte se refere à discussão sobre as possíveis formas de experiência e sua importância para a análise das narrativas; a terceira apresenta a entrevista narrativa como opção metodológica no contexto da formação de professores e sua importância no resgate da experiência expropriada; a quarta apresenta a análise das entrevistas narrativas e seu diálogo com o aporte teórico; e a quinta, trata das considerações finais acerca do estudo.

A sobrevida na pobreza de experiência

Como um efervescente crítico da modernidade, Benjamin (1993) propôs em seu ensaio Experiência e Pobreza, a elaboração de um diagnóstico contundente sobre a incapacidade de intercambiar experiências do homem moderno. A partir desta ideia primeira, percebemos como o pensamento do frankfurtiano se adequa aos tempos atuais, nos levando a uma possibilidade de ajustamento diante da pobreza de experiência. Ainda mais incisivo, Agamben (2008, p. 21) declara que “o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência”, demonstrando novas formas da destruição da experiência.

De acordo com Benjamin (1993), as experiências sempre foram transmissíveis devido ao contato com as formas narrativas, tais como os provérbios, fábulas, epopeias e outros gêneros responsáveis por repassar histórias. Contudo, assistimos na modernidade, principalmente a partir da “geração de 1914 a 1918 (que) viveu uma das experiências mais monstruosas da História Universal” (Benjamin, 1993, p. 114), um suntuoso processo de silenciamento. Um dos eventos que eclodiram com a trágica experiência da guerra foi a perda da capacidade de elaborar e de transmitir tais narrativas, o que gerou uma impossibilidade de repassar ensinamentos morais, devido à interrupção no processo de troca de experiências.

Ademais, a incapacidade de comunicar as experiências advindas da Primeira Guerra Mundial deixou os sujeitos participantes desta ação desastrosa, num processo de mutismo, pois na experiência com a guerra não há vitoriosos: mesmo que o vencedor volte vivo, sua consciência estará morta. Assim, todos saíram derrotados de tais arroubos, pois com o uso da racionalidade calculista com intenções maléficas, ou seja, com a criação desmesurada de instrumentos de guerrilha, de armas de destruição em massa, os sujeitos se tornaram pobres de experiências comunicáveis.

Em contrapartida, temos também a dissolução dos valores familiares, pois, anteriormente, a transmissão de experiências dava-se pelo antigo modelo patriarcal, em que os mais velhos imprimiam suas experiências aos mais novos, delegando-lhes ditames e valores morais a partir da reflexão mediada pelas narrativas. Porém, com a desorientação e a falta de interesse dos mais jovens por estes processos de interação e de maturação, os sujeitos entraram em um processo de reificação, ou seja, delegaram às mercadorias produzidas em larga escala, novas formas de relacionamentos interpessoais. Com isso, vê-se praticamente diluída a possibilidade de experiências a partir de narrativas.

Inaugura-se, então, segundo Benjamin (1993), uma nova forma de miséria, que se sublima através de uma bipolaridade: por um lado a ciência que avança e a guerra que eclode; em outro contraste, o domínio da técnica da natureza e o cárcere do homem diante de suas próprias invenções. Diante disso, com a autonomização da técnica, prevê-se uma ameaça à autonomia do homem.

Nesse mesmo ínterim, o filósofo Agamben (2008) reflete sobre a destruição da experiência no homem contemporâneo, pois está cerceado pela vida cotidiana em grandes cidades, o que conduz para uma existência que não contém nada que seja ainda relevante para ser convertida em experiência. O ritmo desenfreado da informação, as horas perdidas nos tráfegos, as reuniões maçantes, os encontros infrutíferos nos elevadores e corredores de lojas de departamento; tudo condiciona para que o homem moderno volte para casa esgotado por um amontoado de eventos, contudo, nenhum deles oportunizou o saber da experiência, que, segundo Larrosa (2002, p. 21) “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas. Porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”.

Portanto, tais atuações cotidianas são desprovidas de significado, uma vez que são impotentemente protegidas pelo processo ineficaz da galvanização, metáfora de uma técnica que consiste em cobrir metal com outro, com o intuito de evitar sua oxidação, isto é, apenas disfarça de forma superficial o objeto oxidado, ou seja, “se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza” (Benjamin, 1993, p. 115).

O autor, assim, destaca sua observação logo ao final do ensaio: “Ficamos pobres. Fomos entregando, peça por peça, o patrimônio da humanidade” (Benjamin, 1993, p. 119). Em troca, recebemos a “moeda do atual”, que vale “um centésimo do seu valor”. Tal pobreza, diante do crescimento do nazifascismo e da guerra iminente, acaba por encerrar a esperança. Entretanto, o filósofo acaba por destacar a possibilidade do que chamou de barbárie positiva, que seria poder recomeçar, radicalmente, por um novo caminho, “com lucidez e capacidade de renúncia” (Benjamin, 1993, p. 119), sobrevivendo, assim, à própria cultura e reafirmando uma sobrevida na pobreza de experiência.

As formas possíveis da experiência e sua importância no processo narrativo

A partir dos estudos de Forster (2009), ressignificados pela leitura de Agamben (2008), analisaremos três formas de experiência. A primeira, denominada de “experiência do sentido comum”, resgata a imagem do ancião à beira de uma fogueira contando histórias. Assim, as formas narrativas se concentravam, antigamente, na figura de uma pessoa mais idosa que, munida de experiência e sabedoria, reunia a todos em sua volta para repassar através das palavras a sua memória do vivido. Da mesma forma que esta figura patriarcal do ancião estava transmitindo saberes aos mais novos, o processo também lhe sucedeu: aprendera com seu pai, avô, ou seja, lhe foi transmitido um saber que pertencia não apenas àquele grupo, mas à comunidade da qual fazia parte. Contudo, com tal ação narrativa, transmitida por fábulas e parábolas, não estava garantido que seus ensinamentos se universalizassem, com isso o limite desse tipo de experiência é revelado: a morte. “[...] la muerte como límite porque la muerte es lo insondable, lo no pronunciable de la experiencia” (Forster, 2009, p. 123).

Podemos acentuar também que as narrativas revelam aquilo que acontece a um sujeito, sendo convertida em matéria linguística. Em nossa sociedade contemporânea, como já apontamos, acontecem muitas situações desde o momento em que despertamos até o momento em que vamos dormir. Podemos tomar como exemplo ilustrativo a fotografia como forma de registrar o que sucede. Uma criança em tenra idade tem mais fotografias de si do que todos os seres humanos do Século XIX inteiro. Tal excesso de técnicas e de afazeres demonstra que estamos abarrotados de situações que não nos permite expor em palavras aquilo que vivemos. Assim, “estamos sobreexcedidos, porque nuestra experiencia no ha sido expropiada” (Forster, 2009, p. 124). Seria necessária uma forma de transmissão dessas experiências, contudo, nossa linguagem não nos permite ultrapassar o excesso de informação que nos retira a fala. O mutismo é uma constante, provocado pela enxurrada de informação que nos afeta cotidianamente.

A segunda forma de experiência seria diretamente ligada à sensibilidade, ou seja, aos sentidos humanos, servindo como forma de conhecimento até o século XVII. O sensorialismo desata as sensações, permitindo a reconstrução da realidade. Assim, a questão epistêmica parte do ponto de vista individual, como conhecimento da natureza. Todavia, a partir da revolução científica da modernidade, a linguagem matemática da vida reduz a experiência sensível a um equívoco, se comparado às comprovações e formulações de leis científicas e imutáveis acerca da natureza. Galileu (1564-1642) estabeleceu aspectos que perduram até os dias de hoje, que é a abordagem empírica da ciência e a matematização da natureza. Com isso, buscava-se uma tentativa restrita de controlar a natureza, através da medição e da quantificação. Privilegiavam-se, então, as verdades científicas, ou seja, tudo aquilo que poderia ser experienciado e comprovado, renegando outras abordagens.

Temos, então, a terceira forma de experiência: o experimento. Assim surge a Idade Moderna, reiterando que, a partir da objetividade, chega-se à verdade, sendo esta inquestionável, por estar firmada na medição, na análise e na experimentação. Como forma de síntese do período, valemo-nos das inscrições da pesquisadora argentina Najmanovich (2001, p. 12): “Medievalismo à modernidade: 1) perspectiva do século XV; 2) matematização – medição e análise da modelização experimental; 3) revolução cartesiana – separação entre espírito e natureza, sujeito e objeto, corpo e mente”.

A partir do mito da modernidade centrado na racionalidade, temos a eliminação da subjetividade do sujeito, ou seja, as emoções, as paixões e a imaginação deviam ser dominadas como a natureza. O sujeito universo-relógio é ele próprio um autômato capaz de objetivar um posto de trabalho na linha de produção. Por isso, Benjamin (1993) destacou que a busca por uma autêntica experiência foi dilacerada, pois “asumir ese pasaje de una experiencia narrativa, de una experiencia de los sentidos a la experiencia como experimento es hacer la historia de la alienación humana” (Forster, 2009, p. 127).

Portanto, carecemos buscar nossas marcas, traços e deidades que se perderam nesse amontoado de informações, de invenções e de tecnicismos que escarneiam nossa experiência tanto com a narrativa quanto com o mundo da sensação. Devemos buscar novas formas de utopia, reconciliando-nos com a rememoração, pois “sin volver a escuchar las narraciones olvidadas, sin auscultar lo no pronunciable del lenguaje, el destino cierto es la barbarie” (Forster, 2009, pp. 127-128).

Ora, se a experiência é aquilo que podemos transmitir através de um ato narrativo, ligando o pensamento à memória, traduzindo o indizível, recobrando na sucessão de eventos aquilo que passou por nós, tal como a narrativa, a fábula, o provérbio, com o tônus da gravidade oferecida pela idade ou pela posição que assumimos no ato de narrar, teremos, então, a retomada da experiência, cujo cerne está na própria história, na própria feitura da existência.

A narração, assim, retoma seu lugar na experiência, pois quando se resgata os saberes advindos da infância, recobra-se a distinção entre o saber tecnicista, o saber científico e o saber narrativo, que revela estados de alma, que restaura a singularidade. Com isso, reinstaura-se o sujeito da experiência, uma vez que, segundo Agamben (2008), o sujeito da ciência acabou por transferir a experiência para longe de si, convertendo-a na matematização da existência, condicionando-a à experimentação. Voltando-nos à palavra narrada, recuperamos o elo perdido com a potência da experiência, culminando num espaço de transformação da própria realidade.

Portanto, reiteramos a importância da entrevista narrativa, cuja fonte de dados se constrói a partir das histórias de vida. Assim, privilegia-se o particular, o lugar da fala, a persistência da memória, a singularidade da própria existência. Necessitamos recordar daquilo que vivemos, como forma de recuperar a experiência perdida. Narrar nossas histórias de vida, partindo de algum ponto ou princípio, é uma forma de solapar o esquecimento advindo com a modernidade, criando novas perspectivas que nos leve a recobrar a identidade perdida, a herança vivencial trazida por nossos antepassados, os projetos de vida (tanto os vividos quanto os abandonados ou esquecidos), as perspicácias do porvir. Assim, reflexivamente, poderemos nos conduzir rumo à experiência perdida, num retorno ao singular.

Metodologia

Para a realização dessa pesquisa, utilizamos a entrevista narrativa para nos colocarmos à escuta de dois professores, denominados aqui de Joaquim e Carolina[2], que atuam no ensino básico, técnico e tecnológico (EBTT) da área de linguagens do Instituto Federal de São Paulo.

O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)[3] é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), especializada na oferta de Educação Profissional e Tecnológica (EPT). Ainda que vinculado ao MEC, o IFSP detém autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar. O IFSP representa o maior órgão da Rede Federal, contando com 37 campus ativos e mais de 62 mil estudantes matriculados, conforme dados disponibilizados pela Plataforma Nilo Peçanha (Brasil, 2020).

As entrevistas iniciaram-se com uma pergunta ampla, que serviu de base para todo o início e desenvolvimento da construção narrativa: “Conte-me sobre a sua trajetória escolar, desde os estudos iniciais”. Em ambos os casos, as narrativas assumiram plena autonomia, sendo repassada sem que fossem necessárias outras perguntas.

A entrevista de Joaquim teve a duração de 2 horas, 1 minuto e 20 segundos; foi realizada no dia 31 de maio de 2019 em um dos campus[4] do Instituto Federal de São Paulo. A entrevista de Carolina teve duração de 52 minutos e 28 segundos, sendo realizada no dia 27 de março de 2019, também em um dos campus do Instituto Federal de São Paulo.

Ao término das entrevistas, as narrações foram minuciosamente transcritas, respeitando as marcações linguísticas e entoações, como forma de valorar e ressignificar as palavras, tornando-as autênticas e erigidas numa cadeia enunciativa irrepetível.

Posteriormente, as transcrições foram enviadas aos professores, por e-mail, em arquivo digital, para que fossem lidas e, caso necessário, fossem realizadas alterações que poderiam ser de qualquer ordem: desde apagar algum pronunciamento, até transcrever novas informações.

Cabe ressaltar que como a (auto)biografia tende a se constituir como um instrumento de pesquisa que propicia a reflexão sobre elementos fundantes da vida, nesse artigo procuramos enfocar nossa atenção nos elementos da vida discente, desde a infância - os primeiros anos da educação escolar - bem como na trajetória profissional docente, a partir de suas biografias educativas, reforçando seu caráter dialógico e, diante disso, buscar a significação dos processos de vida e da profissão, ambos situados numa perspectiva intercultural. Por isso, empreender análise sobre histórias de vida, “permite colocar em evidência a pluralidade, a fragilidade e a mobilidade de nossas identidades ao longo da vida” (Josso, 2007, p. 415).

Para análise, levamos em consideração que, conforme expõe Larrosa (2011), a experiência não se constitui como mera atividade cognitiva, mas se revela dentro de cada perspectiva do sujeito, ou seja, se duas pessoas passarem por uma situação em comum, ambas terão impressões diferentes do mesmo acontecimento, ou seja, terão diferentes experiências. Nesse ínterim, o saber da experiência, advindo desse aspecto de vivência, colabora para o seu caráter único e genuíno, sendo assim, uma biografia individual apresenta características globais da situação histórica “datada e vivida”, como assegura Ferrarotti (2010, p. 33).

Portanto, a reflexão mobilizada pelo ato de narrar transcende a mera experiência conjectural, pois enquanto o narrador enuncia a sua experiência, acaba por ressignificá-la. Desta forma, “los relatos y registros autobiográficos permiten conocerse más a sí mismo, conocer más a los otros, otros que nos miran, nos reflejan y nos subjetivan” (Aguirre & Porta, 2019, p. 13).

Assim, acreditamos que a entrevista narrativa com profissionais na área da educação, a partir da dinâmica dos relatos de vida e do percurso educativo, configuraria um método dialógico que revelaria diferentes formas de perceber e de resgatar a experiência perdida, ou seja, revela marcas de constituição e da própria experiência como formadoras da consciência, uma vez que:

[...] os dados biográficos resultam de uma tomada de consciência, de uma espécie de maturação relacional que permite voltar à infância ou à adolescência. Esforçando-se por selecionar no seu passado educativo o que lhe parece ter sido formador na sua vida, o sujeito do relato biográfico põe em evidência uma dupla dinâmica: a do seu percurso de vida e a dos significados que lhe atribui; nunca se limita a fazer um simples balanço contabilístico de acontecimentos ou de determinados momentos. (Dominicé, 2010, p. 88)

É nesse sentido que a entrevista narrativa possibilita identificar traços para a compreensão da experiência de professores sobre si, sobre os outros e sobre a prática docente, sendo tais atributos reveladores da singularidade, reforçando que o essencial da formação reside no processo, ou seja, na jornada. Portanto,

[...] esse trabalho de reflexão a partir da narrativa da formação de si (pensando, sensibilizando-se, imaginando, emocionando-se, apreciando, amando) permite estabelecer a medida das mutações sociais e culturais nas vidas singulares e relacioná-las com a evolução dos contextos de vida profissional e social. As subjetividades exprimidas são confrontadas à sua frequente inadequação a uma compreensão liberadora de criatividade em nossos contextos em mutação. O trabalho sobre essa subjetividade singular e plural torna-se uma das prioridades da formação em geral e do trabalho de narração das histórias de vida em particular. (Josso, 2007, p. 414)

Acreditamos, portanto, que conforme Benjamin (1993), por meio da narrativa o sujeito procura dar sentido às ações, emoções e pensamentos sobre o vivido. Desta forma, os relatos orais acabam por se mostrar como as melhores narrativas, assegurando a difusão de experiências formativas, intercambiando entre o individual e o social Assim, a seguir, apresentamos as análises sobre as experiências vividas pelos depoentes, colaboradores dessa pesquisa.

As entrevistas narrativas como forma de resgatar o saber da experiência

Quando Benjamin (1992), ao retomar suas memórias a faz partir da perspectiva infantil, ou seja, revive o mundo e a si a partir de seus olhos de criança, nos demonstra muito mais que um mero aspecto pessoal da infância, ao contrário, busca resgatar uma memória mais ampla, a qual transcende a experiência puramente individual para amalgamar as marcas de uma experiência histórica. Com isso, nos relatos que aqui apresentamos, podemos afirmar a máxima benjaminiana, que prediz que o narrador “sabe dar conselhos” (Benjamin, 1993, p. 221). Ademais, em nossa perspectiva, essa criança interior, surgida no ato de narrar, acaba por aconselhar aquele que narra, ou seja, sugestiona e ressignifica o próprio narrador sobre o seu percurso de vida.

Além disso, a entrevista narrativa abre a possibilidade de registrar algo vivo, em sua irrepetibilidade, ou seja, tais exposições narrativas dialogicamente orquestradas assumem que os agentes participantes da pesquisa:

Tornam as relações ontológicas eu-para-mim, eu-para-o-outro e o outro-para-mim arquitetonicamente unificadas por meio do seu ato responsável, ou o ato ético que só pode ocorrer quando o outro deixa de ser meu objetivo para ser um sujeito, um outro com quem me importo. (Prado et al., 2015, p. 68, grifos do autor)

Iniciaremos as análises das entrevistas narrativas a partir da perspectiva infante dos relatos dos docentes, buscando na rememoração de suas trajetórias, marcas significativas que conclamem as ressignificações na atual percepção de si como sujeito docente. Reiteramos o caráter aberto e natural com que as entrevistas transcorreram, sendo que ambos os professores narraram livremente suas histórias, pois, por ser uma entrevista de natureza aberta, manifestaram suas livres expressões.

Comecemos com o professor Joaquim que, por volta dos cinco anos de idade, teve o seu primeiro contato com a escola. Foi um período bastante difícil, pois diagnosticaram a sua mãe com um tumor. Devido às dificuldades com o tratamento, resolveram matriculá-lo em uma escola infantil. Embora vivesse momentos difíceis, a escola surgiu para amenizar tal situação, pois durante as atividades, brincadeiras e aprendizagem, conseguia esquecer que sua família passava por uma situação muito delicada. O gosto pelo processo de aprendizagem, principalmente no campo das linguagens, já ficava evidente, conforme suas palavras recuperadas da memória infantil:

E colocaram a gente na escolinha, foi assim que eu tive meu primeiro contato com escola. E foi um contato tão gostoso, tão legal que ajudou a amenizar o desespero do momento [...] e eu tava aprendendo as letras, né, eu olhava livro, eu achava legal, achava interessante, eu era aquela criança que voltava da escola e tinha tarefa pra fazer, eu queria fazer logo depois; queria continuar o que tava fazendo na escola, né. (Joaquim, professor EBTT)

Nas malhas da memória infante de Joaquim, podemos perceber sutilmente sua predileção pelo mundo das letras, pois, ao demonstrar que sabia ler e escrever, ganhou, além de prêmios, palavras afetuosas e reconhecimento.

Ela tava ensinando alguma coisa, e aí ela percebeu que eu já tava conseguindo ler... e ler relativamente bem, né? E tava me destacando ali por causa disso. E aí ela me chamou na hora do intervalo e me conduziu até a diretoria. E aí eu li um pedacinho de texto, lá; a diretora deu parabéns e tudo, e depois teve uma cerimônia de entrega de prêmios por desempenho e eu ganhei uma lembrancinha por causa disso e eu fiquei me achando... o cara. Então eu estou aqui e já sei ler. Olha que vitória, né? E fez toda a diferença na vida mesmo saber ler, né? (Joaquim, professor EBTT)

Ao continuar seu processo narrativo, percebemos que o entrevistado ressignifica a sua história de vida, ao declarar que a experiência narrativa o ajudou a perceber o porquê de ter escolhido o caminho como professor. Vejamos:

Fazia tempo que eu não pensava nisso. Foi legal, está sendo bom viver essa sua proposta aqui, de revisitar essa história [...] que engraçado, né? E aí, revisitando esses momentos, agora eu tô enxergando algumas marcas de porquê eu fui pra esse caminho, né. Eu gostava de mexer com as palavras, ali, desde pequeno. (Joaquim, professor EBTT)

Quando Joaquim narra o seu comportamento para com as lições de casa, com toda a cautela e preocupação em realizá-las assim que chegava da escola, mesmo diante da TV ligada ou os chamados da mãe, notam-se os indícios de que o aluno, atento e dedicado, tornar-se-ia um professor com as mesmas características. Para Benjamin (2002), “a criança quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se ladrão ou guarda” (Benjamin, 2002, p. 93). Ou seja, a criança não apenas “se fantasia” durante o ato de brincar, ela busca participar ativamente das atividades humanas, buscando nos jogos e brincadeiras formas sutis de reprodução do social, como um espelhamento que o conduzirá a gerar um possível papel no universo dos adultos. À guisa da reprodução e da semelhança, vai construindo possíveis papéis sociais que, no caso do Joaquim, será o de professor.

Ao retomar a sua história, passa a representar a criança benjaminiana, que participa ativamente de seu momento e do ambiente ao qual vive. Embora seja um relato de eventos passados, podemos ressignificá-lo como parte da existência no momento atual, pois está intrinsicamente ligado ao sujeito histórico que narra. Nos relatos e redescobertas, percebe quem foi a professora que mais o marcou, sugestão vital para a sua carreira como professor de Inglês.

E essa professora, ela dava aula de inglês, né, e foi ela que fez o primeiro comentário, percebendo que eu conseguia fazer as coisas que ela pedia de forma rápida e relativamente bem feita; ela me chamou um dia no cantinho e falou: “nossa, você tem facilidade pra isso, né? Toma aqui, tem esse papelzinho aqui, com algumas coisas a mais, vai fazendo aí e vê o que se acha”. E ela me estimulou bastante. E ela deu aula pra mim só na 5ª série, depois eu tive outros professores que passaram aí com a disciplina de inglês, mas a Dona Olga me marcou. Ela, eu sentia que ela tinha um amor verdadeiro pelo serviço que ela tava fazendo ali naquela 5ª série. Ela encantava... e foi assim, a minha carreira como professor começou no inglês e eu lembro com carinho dela porque ela foi uma referência, uma professora que marcou, né? (Joaquim, professor EBTT)

Em sua obra Rua de sentido único, Benjamin (1992) descreve algo bastante peculiar: a importância de se “perder” pelas ruas de uma grande cidade. “Não conhecer bem os percursos de uma cidade não tem muito que se lhe diga. Perder-se, no entanto, numa cidade, tal como é possível acontecer num bosque, requer instrução” (Benjamin, 1992, p. 115). Com tal alusão, podemos fazer uma analogia com a rememoração no ato de narrar a própria história. Ao se embrenhar em si, o narrador se perde diante de tantas imagens e sugestões, tal como uma criança caminhando pelas infindas ruas de uma grande cidade. Contudo, esse ato de “se perder”, ao invés de trazer medo e frustração, revela-se como uma metáfora do narrador adentrando em suas memórias, sonhos e recordações. Podemos associar tal situação como uma passagem para a vida adulta, pois adquirindo experiência no caminhar por entre as ruas da cidade, esta criança estaria pronta para ingressar na história.

Por isso, no caso do Joaquim, sendo um aluno que, desde criança, mostrou-se aplicado e regendo seus estudos de forma séria e contundente, ao ingressar no ensino médio, por conta de uma inesperada mudança de cidade, passa a estudar em uma escola estadual. Assim, ao ter o contato pela primeira vez com a escola pública, no Estado de Minas Gerais, aproximou-se de uma educação diferente da qual estava habituado, a qual identificou como “fraca”. Vejamos em suas palavras:

Mas foi muito ruim estudar naquela escola, foi terrível. [...] E o que mais me incomodava era tirar notas excelentes sem o mínimo esforço. E eu percebi: isso aqui não tá certo, isso aqui vai me dar prejuízo [...] e ali eu tava num lugar onde não tinha disciplina nenhuma, todo mundo levantava e saía a hora que queria, professor nem cumprimentava a gente, isso quando tinha professor, né, e eu tava cansado daquilo e não aguentaria mais um ano naquele lugar. (Joaquim, professor EBTT)

A experiência com a escola pública, no início do ensino médio, foi suficiente para levá-lo a conceber a imagem da escola particular como sendo mais estruturada e capaz de fornecer a seriedade e representatividade necessárias para o seu pleno desenvolvimento. Em suas palavras: “Então, eu queria ser professor de escola particular. Coloquei essa meta. Aí eu fui fazer letras” (Joaquim, professor EBTT). Assim, ao formar-se professor de letras (português e inglês), sua meta era seguir o oposto de sua experiência negativa. Dessa forma, ao tornar-se professor em escola particular, acabou por encontrar nessa experiência, novas perspectivas que ressignificaram sua visão sobre se tornar professor:

E pra ser professor nessas escolas, não basta ser professor, não basta saber o conteúdo, você tem que ser carismático, tem que ser... era ainda a época da aula show, você tem que ser um cara bacana, que os alunos se divertem com você, eu gostava disso, eu tinha uma certa, é... era isso que eu enxergava que era a educação, né, então, eu entrei nessa dança, eu tocava o violão, sempre levava o violão pra escola, puxava uma música com algum conteúdo, cantava, mexia, nossa... era uma alegria, era muito legal. Mas aí eu perdi esses empregos aí, e aí eu tinha lá, ganhava dois mil reais, que na época era bastante dinheiro e, de repente, eu estava com 500. (Joaquim, professor EBTT)

Nesse amontoado de ruas que é a nossa memória, reviver tais ditames o levou a ressignificar seu percurso, pois assumiu que trabalhar em um mercado tão instável não traria algo que ele muito almejava: a segurança da estabilidade. Além de estar à mercê da perda de aulas entre os semestres letivos, a previsibilidade encontrada nos livros dos sistemas de ensino da rede particular, levaram-no a perceber que algo estava errado, pois não havia desafios em sua prática docente. “Então eu ia dar aula de inglês no Anglo, eu sabia que no canto inferior direito da página 78 tinha uma frase que era, que eu usava como, era a deixa de uma piada. Tinha até a piada pronta” (Joaquim, professor EBTT). Por isso, no transcorrer da narrativa, Joaquim pôde acercar-se mais de suas experiências, implicando que “começou a ficar pequeno, num dava, tava muito amarrado” (Joaquim, professor EBTT).

Ao final da entrevista narrativa, agindo reflexivamente acerca de sua prática, conjecturou que, a partir de seu ingresso no Instituto Federal de São Paulo, passou a viver uma nova experiência docente, no que tange na compreensão de como funciona o ensino na rede federal, que tem como base a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, bem como em criar estratégicas para preparar o próprio material de ensino, a partir do diálogo com as diversas categorias organizacionais do campus[5], além de lidar com o apoio do serviço sociopedagógico, pois, em grande parte, lida-se com um público que se mostra mais carente.

É uma coisa, realmente, estranho; parece, hoje, eu posso dizer que, hoje eu sou professor. Hoje eu sou capaz de observar a ementa de uma disciplina e desenvolver um plano de curso, depois planificar todas as aulas, com todas as atividades que eu acho que são coerentes praquilo ali, fazer ajustes com as outras turmas, desenvolver metodologias de avaliação, respeitando as individualidades dos alunos, as formas de aprendizado, as inteligências múltiplas e tudo mais, conseguiu enxergar essas coisas e olhar o que eu aprendi aqui. (Joaquim, professor EBTT)

Quando o entrevistado sugere os termos “estranho”, “parece” e “hoje”, percebemos que a significação surgida através da narrativa, retoma o elemento perdido com a experiência, pois conclamando aquilo que fez com aquilo que faz, tornou-se possível abrir, no instante do presente, as marcas que o constitui. Ladeando pelas veredas de caminhos que se bifurcam, na grande cidade da memória, conseguiu perder-se com maestria, encontrando parte da experiência perdida, levando-a à altivez da percepção presente. Por isso, citaremos novamente a fala do Joaquim: “[...] revisitando esses momentos, agora eu tô enxergando algumas marcas de porquê eu fui pra esse caminho” (Joaquim, professor EBTT). Com a análise do advérbio de tempo “agora”, percebemos a eficiência dialógica da entrevista narrativa que, por meio da revisitação do vivido, consegue significar o percurso de vida, trazendo a experiência perdida de Benjamin, contrapondo-se à expropriação da mesma. Por isso mesmo, “parece existir em todas as formas de vida humana uma necessidade de contar; contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana e, independentemente do desempenho da linguagem estratificada, é uma capacidade universal” (Jovchelovitch & Bauer, 2012, p. 91).

Portanto, em sua atual condição como professor, atuando no magistério federal, pôde ressignificar seu conceito como professor, além disso, procurou rever seus posicionamentos sobre a própria educação, através dos estudos na pós-graduação stricto sensu. Para o pretenso doutorado, revela que já possui preocupações que considera mais profundas, e que possam, efetivamente, contribuir para a rede de conhecimento que já existe, buscando preencher uma lacuna com algo que possa servir para a sociedade, pois percebe que, como agente público, deve se responsabilizar por devolver à sociedade parte do investimento que recebe.

Carolina, também atuante no Instituto Federal de São Paulo como docente de língua portuguesa, tendo nascido em uma família humilde e laboriosa, vivendo no interior de São Paulo, passou por muitas dificuldades até conseguir se soerguer socialmente graças aos estudos. Logo ao início de sua narrativa, percebemos explicitamente a sua paixão por lecionar, pois, desde criança, a afeição pelo ambiente escolar se manifestou, pelo fato de dar aula para as suas bonecas, conforme suas palavras: “E eu abracei essa profissão de dar aula porque sempre foi a minha paixão desde criança, eu dava aula para as minhas bonecas, punha as minhas bonecas sentadas, dava aula; sempre tive paixão pelo ambiente escolar” (Carolina, professora EBTT).

Assim que atingiu a adolescência, já amadureceu seu gosto pela docência, pois dava aulas particulares de todas as matérias, como forma de melhorar a situação financeira de sua família. Assim, percebemos um lampejo da profissão docente eclodindo antes mesmo da formação superior, haja vista os resgates da memória na construção de sua identidade. Com o dinheiro que ganhava com as aulas, ajudava a pagar um curso de língua inglesa, que ela tanto sonhava em fazer. Assim, podemos destacar: “eu era muito caxias, muito estudiosa. Era muito dedicada. Então, eu só estudava, apesar de meus pais serem muito pobres” (Carolina, professora EBTT).

Ao se casar, aos 19 anos, permitiu-se ficar em casa, em virtude de a situação financeira do marido ser estável. Ainda assim, terminou a faculdade de letras e começou a dar aulas de inglês em uma escola de idiomas. Durante 8 anos permaneceu em casa, o que permitia que se dedicasse exclusivamente aos dois filhos, que nasceram nesse período. Após muitas atribulações, que culminou em um difícil processo de divórcio, teve que recomeçar sua carreira como professora, para criar seus filhos. Embora tenha construído uma carreira dentro da faculdade particular da cidade, no curso de letras, começou a perceber que o curso estava cada vez menos concorrido, o que levou a triste probabilidade de que o curso acabaria. Nisso, resolveu iniciar uma busca por concursos públicos, com o intuito de promover sua estabilidade. Com muito estudo e esforço, ingressou na rede federal.

Ah, eu gosto muito de trabalhar aqui, porque eu percebo que o nível socioeconômico deles é bem assim, é... como é que eu falo... é bem baixo, um nível socioeconômico que através da educação eles podem mudar a vida deles, então isso me estimula muito a dar boas aulas, sabe... Eu nunca vim aqui sem preparar as aulas. (Carolina, professora EBTT)

Percebemos que, nas palavras de Carolina, a preocupação com a didática, com a eficácia das aulas, está ligada à percepção da condição dos alunos que, provenientes de escolas públicas (em sua grande maioria), não detém de poder econômico que invista em suas formações. Tal argúcia, ligada à sua trajetória pessoal e, atualmente, como mãe, que sempre lutou pela educação e a seriedade dos filhos para com os estudos, acabou por delegar aos seus alunos o mesmo esforço para com a formação acadêmica, bem como a reiteração de que, apenas pela educação, é possível reescrever a sua história.

Porque eles têm uma história de vida bem complicada, bem difícil... e escuto às vezes um falar que... tem uma aluna nossa aqui que fala que não tem assistido aulas porque não teve a assistência estudantil ainda, não recebeu... e isso me toca demais. Bastante. Às vezes eu vejo também a marmita que eles trazem, e eu vejo a comida que eles comem, e eu falo meu Deus, olha que situação que eles vivem... E eu vivi isso no passado, mas eu acho que, não sei se eu esqueci, mas agora eu estou muito mais sensível a isso, né, de ver como a... que a boa formação que a gente pode oferecer a eles pode mudar essa história de vida da família deles, né? [...] E eu acredito que, eu sou um exemplo, a minha família é um exemplo, que só através da educação que a gente consegue, né, galgar patamares maiores. Economicamente, profissionalmente, né... e se sentir realizado. E eu falo muito pra eles isso, olha, eu não vou deixar nenhum legado, o único legado que eu vou deixar para os meus filhos, o mais importante, é a formação que eu dei pra eles... que foi muito sacrifício, mas valeu a pena. Então, eu gostaria que todos eles aqui tivessem essa oportunidade que meus filhos tiveram também... Que façam uma graduação e que tenham realização pessoal, profissional, então é por isso que eu espero, é por isso que eu estou aqui, no Instituto, eu não parei de trabalhar... (Carolina, professora EBTT)

Com isso, percebemos a preocupação com o ato de lecionar, tal como o narrador na “experiência e o sentido comum”, descrito por Forster (2009), que pretende transmitir uma experiência em um sentido muito mais vivencial. O saber se promulga como algo que “remite a la vida, a la particularidad de una existencia, a la posibilidad de volver narrativa a una determinada vida” (Forster, 2009, p. 122).

Ora, acumular os saberes ao longo da vida, permite que, ao voltar os olhos para a memória, para a experiência da descoberta, se encontre as marcas de constituição, bem como as motivações pessoais que, refletidas no outro que as recebe, demonstra explicitamente a nossa vontade de potência. Tais narrativas, mesmo que um mero fragmento de observação, de proclamação de um passado (não tão distante), desata formas de compreensão de si que revelam conexões, possibilidades, devires, revelando que a voz individual traz consigo um sentido único, porém, também com um sentido coletivo, pois os saberes se transmitem, se dividem, se aperfeiçoam, no contato com o outro.

Considerações finais

Volvendo ao pensamento benjaminiano, percebemos que através da narrativa de si, há uma tácita possibilidade de o sujeito ressignificar, reconstruir sua identidade no caos do mundo moderno. A possibilidade de reconstrução dos saberes advindos da experiência, mesmo em uma sociedade cuja pobreza de experiência se mostra extensa, se mostra necessária, como forma de resgatar o saber advindo da experiência, sendo este intercambiável entre os sujeitos. A narração, circunscrita em relatos repletos de singularidade, permite que toda a experiência possa ser ressignificada e devolvida à sociedade, buscando uma integração entre a experiência individual e a experiência coletiva.

Tais narrativas, por manifestarem os acontecimentos da vida cotidiana, por vezes banais e sem a pretensão de revelar grandes acontecimentos, destacam o que há de mais singular em nossa condição humana: tornam visíveis as situações da vida, que se constroem na esfera do coletivo, fazendo ressurgir as experiências do cotidiano.

Diante disso, percebemos que, nas falas dos nossos entrevistados, a profissão docente se legitima no ato de transmitir seus saberes para os alunos, e que tal ação possui um sentido de compartilhamento, cujo compromisso consiste em partilhar não apenas conteúdos, mas a experiência, tal como o fizera a narrativa tradicional. Dessa forma, espera-se que o ouvinte possa usufruir daquilo que escuta, evocando uma das funções vitais da potência narrativa, que é a comunhão de saberes, realizado através da transmissão de experiência que se encontra na singularidade do sujeito e na consciência coletiva de várias gerações. Os saberes, ao serem repassados através das gerações, assumem o seu caráter de patrimônio comum a uma determinada época e grupo. “É assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro” (Benjamin, 1993, p. 63).

Como o pensamento benjaminiano está ligado aos processos narrativos, nosso trabalho pretende revelar como a potência narrativa está ligada à fala dos professores, alicerçada pela rememoração que, ao ser trazida ao campo da consciência, leva o sujeito narrador a ressignificar não apenas a sua prática docente, mas as intenções que o levaram a assumir determinadas posturas éticas com a profissão. Rememorar as vivências reconstrói as marcas perdidas do tempo histórico, fazendo ecoar fatos da vida pessoal e coletiva, que podem ser utilizados como uma profícua fonte de dados em pesquisas, como reinterpretação da prática docente.

Sendo compreensões parciais da vida humana, intentamos ressignificar tais marcas, para promover o que a potência narrativa busca: um intercâmbio de ideias, um diálogo sem fim, transmitido e ouvido, trazendo contribuições para a formação identitária do professor, passando do saber individual para o coletivo. Embora Benjamin tenha um olhar melancólico para o saber da experiência no mundo moderno, esperamos despertar uma centelha de apreço pelo ato de narrar, coadunando com novas narrações e novos espaços de leitura e de escuta, primando pela identidade do sujeito professor.

Colocar-se à escuta dos professores no espaço acadêmico, privilegiando a voz dos professores em processo narrativo, assegura que novas formas de perpetuar tais vozes aconteça, possibilitando que novas subjetividades possam ser reveladas, devolvendo à experiência empobrecida na modernidade, a chance de ouvir não apenas o relato do outro, mas que este evoque a voz perdida em si mesmo, construindo num processo dialógico, um diálogo que penetre aquele que lê, pois ao ler as histórias de vida de outros sujeitos-professor, fazemos o mesmo com a nossa história, as reconstruímos sob a luz do agora, trazendo um pouco de clareza às contradições que vivemos no fazer docente.

Referências

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[1]Omitimos o campus de atuação dos professores, como forma de preservar suas identidades.

[2]Como forma de preservar a identidade de ambos, adotamos os pseudônimos Joaquim, em homenagem a Joaquim Maria Machado de Assis (escritor brasileiro) e Carolina, em homenagem a Carolina Augusta Xavier de Novaes Machado de Assis (esposa de Machado).

[3]Para mais informações, acessar: https://www.ifsp.edu.br/institucional

[4]O campus foi omitido como forma de preservar a identidade dos professores entrevistados.

[5]Mais informações sobre a estrutura organizacional do IFSP: https://www.ifsp.edu.br/institucional

Recebido: 21 de Janeiro de 2021; Aceito: 16 de Abril de 2021

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