SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27A benjaminian analysis of the narrative interview with teachers: resuming the experienceSchool physical education and homework activity system author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Apr 30, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36323 

Artigos

Escolas em tempo integral: características de uma escola agrícola de ensino fundamental

Escuelas de tiempo completo: características de una escuela agrícola de enseñanza primaria

Full-time schools: characteristics of an agricultural elementary school

1Pós-doutora em Desenvolvimento Curricular pela Universidade do Minho, Portugal (2018). Professora titular da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Curriculares, Docência e Tecnologias (GECDOTE).

2Mestre em Educação pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE) (2020). Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Curriculares, Docência e Tecnologias (GECDOTE).

3Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) (2013). Professora titular da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Curriculares, Docência e Tecnologias – GECDOTE.


Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar e discutir as características do currículo de uma escola em tempo integral da rede municipal de Joinville/SC. A pesquisa está ancorada em referencial teórico sobre políticas curriculares e educação integral. De abordagem qualitativa, este estudo de caso conta com análise documental, realização de entrevistas e aplicação de questionários. Os participantes são professores e gestores da escola. A análise de conteúdo permitiu identificar características particulares do currículo, como a oferta de habilitação em agropecuária para alunos do ensino fundamental, com uma organização curricular pautada numa base comum e base técnica.

Palavras-chave Educação Integral; Escola de Tempo Integral; Proposta Curricular

Resumen

El propósito de este artículo es presentar y discutir las características del plan de estudios de una escuela de tiempo completo en la red municipal de Joinville/SC. La investigación se sustenta en referencias teóricas sobre políticas curriculares y educación integral. Con un enfoque cualitativo, este estudio de caso incluye análisis de documentos, entrevistas y cuestionarios. Los participantes son maestros y administradores de la escuela. El análisis de contenido permitió identificar características particulares del currículo como la oferta de calificación en agricultura para estudiantes de primaria con una organización curricular basada en una base común y técnica.

Palabras clave Educación Integral; Escuela de Tiempo Completo; Propuesta Curricular

Abstract

The purpose of this article is to present and discuss the characteristics of the curriculum of a full-time school in the municipal system of Joinville/SC. The research is anchored in theoretical references on curricular policies and integral education. With a qualitative approach, this case study includes document analysis, interviews and questionnaires. Participants are the school's teachers and managers. The content analysis made it possible to identify particular characteristics of the curriculum such as the offer of qualification in agriculture for elementary school students with a curricular organization based on a common and technical basis.

Keywords Integral Education; Full-time School; Curricular Proposal

Introdução

A política educacional, que envolve também as políticas curriculares, tem se mostrado um campo de disputas, já que envolve um amplo conjunto de interesses de viés ideológico ou econômico, além dos educacionais e formativos. A construção de um projeto educacional é tarefa complexa, exigindo esforços de todos os agentes educacionais envolvidos na implementação das políticas educacionais vigentes. Quando consideramos as escolas em tempo integral, objeto desta pesquisa, tal desafio pode ser ainda maior, uma vez que não se trata apenas de estender o tempo em que os alunos permanecem na escola, mas também de oferecer oportunidades diferenciadas de formação.

As leituras e discussões sobre as políticas educacionais e curriculares permitem perceber que a escola, como espaço público e formal do aprendizado, figura como instituição capaz de reunir extratos da sociedade com diferentes características e interesses. Para Severino (2006), a escola também é um espaço de construção de cidadania, o lugar institucional no qual se concretiza um projeto educacional. Isso quer dizer que a escola é como espaço-tempo, uma instância social, servindo como base mediadora e articuladora de “projetos que têm a ver com o agir humano: de um lado o projeto político da sociedade e, de outro, os projetos pessoais dos sujeitos envolvidos na educação” (Severino, 2006, p. 212).

Para garantir o caráter público e democrático da educação, é fundamental que a construção do projeto educacional de cada escola esteja comprometida com os anseios da sociedade em geral, sem deixar de valorizar as especificidades locais, entendendo e dando voz aos atores educacionais diretamente ligados ao dia a dia escolar. Para Pacheco (2011), na construção de um projeto educacional, as decisões devem tomar como base as políticas educacionais, que derivam tanto do poder público quanto dos gestores, professores e outros profissionais que atuam nas escolas.

Ao problematizar a política educacional para a oferta de educação em tempo integral, vale relembrar a meta seis do Plano Nacional de Educação – PNE (Brasil, 2014): a oferta de educação em tempo integral em, pelo menos, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, para que se possa atender, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica. Essa meta fomentou políticas e ações de implantação de escolas em tempo integral em diferentes sistemas de ensino no país.

Na prática ainda são poucas as instituições de ensino que oferecem a educação em tempo integral. A ampliação dessa oferta demanda propostas curriculares diferenciadas, além de investimentos públicos para adequação da infraestrutura nas escolas, formação docente e outros. Dessa forma, seja pelo pouco tempo em que o tema tem sido considerado pelas secretarias de educação, seja pela complexidade conceitual e operacional do processo, a ampliação das escolas em tempo integral não se efetivou totalmente. Sobre tal temática surgem questionamentos como: Que currículo tem sido praticado nas escolas em que foram implementadas políticas de ensino em tempo integral? De que forma esses currículos contribuem para uma formação integral, para além do que já tem sido feito nas escolas em que a carga horária não foi ampliada? Conhecer e refletir, por meio da pesquisa, sobre o que ocorre nessas escolas é relevante para que se possam fomentar novas políticas e subsidiar as que estão em curso.

Considerando que a implementação de políticas educacionais se dá numa complexa dinâmica social, no presente artigo será utilizada a ideia de análise relacional, pela qual se compreende a educação como atividade social, que está relacionada à forma como a sociedade é organizada e, de alguma maneira, controlada (Apple, 2006). Isso significa que é necessário examinar “as relações entre o objeto em estudo e a sociedade como um todo – bem como os diferentes agentes que a compõem” (Gandin & Lima, 2016, p. 654).

Diante dessas considerações, a proposta do presente artigo é apresentar e discutir as características do currículo de uma escola da rede pública municipal da cidade de Joinville/SC, inserida numa política pública de tempo integral, a partir das percepções dos gestores e professores da instituição de ensino estudada. A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi realizada em uma escola que oferece o ensino fundamental, do 5º ano ao 9º ano do Ensino Fundamental, com habilitação em agropecuária. Por meio da análise documental, aplicação de questionários e entrevistas, foram considerados aspectos como a infraestrutura, o projeto político-pedagógico, o currículo e as práticas educativas dessa escola em tempo integral, com vistas à formação integral dos estudantes.

A organização do artigo apresenta referenciais teóricos a respeito das políticas curriculares, do currículo e do ensino em tempo integral; metodologia contemplando o lócus da pesquisa e os pressupostos e procedimentos metodológicos; apresentação e discussão dos resultados com as características do currículo da escola investigada.

Políticas educacionais e curriculares: educação integral em tempo integral

Levando em conta que o ensino integral e o ensino em tempo integral são temas recorrentes em políticas educacionais e curriculares, vale ressaltar que a escolha do que e como se ensina nas escolas de educação básica tem assumido cada vez mais relevância diante de transformações sociais, econômicas e culturais. A decisão do que deve ser ensinado, a definição do “conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido às gerações futuras, enquanto a história e a cultura de outros grupos mal veem a luz do dia” (Apple, 2011, pp. 52-53), está vinculada a alguns grupos hegemônicos que, de fato, detém o poder na sociedade.

Para Höfling (2001), o Estado deve assumir o papel de protagonista na construção das políticas educacionais, levando em consideração seus objetivos de atender às características e necessidades dos projetos societários, respeitando as condições para sua implementação. Segundo a autora,

[...] as políticas públicas são aqui compreendidas como as de responsabilidade do Estado – quanto à implementação e manutenção a partir de um processo de tomada de decisões que envolve órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da sociedade relacionados à política implementada. (Höfling, 2001, p. 31)

As políticas educacionais são políticas sociais que contemplam um conjunto de ações que definem padrões de proteção social implementados “pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais, visando a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico” (Höfling, 2001, p. 31). As políticas educacionais devem, portanto, preservar as relações sociais, minimizar as desigualdades e favorecer a equidade e justiça social.

As políticas curriculares são construídas num campo de disputas ideológicas e conflito de interesses. Perceber que o engajamento de pais, estudantes e professores é parte desse movimento é entender que decisões políticas, na prática, devem ser democraticamente discutidas. Entretanto a força dos discursos envolvidos na construção e implementação de políticas curriculares revela que sobre a educação atuam interesses políticos com forças desiguais, uma vez que a educação é “fortemente intersectada por opções políticas que obedecem a lógicas de poder muito díspares e que são a expressão de conflitos” (Pacheco, 2002, p. 22).

No contexto da prática, a implementação de uma política curricular deve contemplar os agentes locais, uma vez que a escola é um espaço público e, como instrumento do Estado, tem a capacidade de reunir todos esses agentes e viabilizar a construção de um projeto educativo que atenda aos anseios da sociedade, permitindo a concretização de um currículo alinhado com a realidade da comunidade para qual foi idealizado. Conforme Pacheco (2002, p. 8),

[...] considerar a política curricular como um espaço público de tomada de decisão significa então aceitar que a escola é um local para tomada de decisões e que estas não ficam circunscritas à administração, pois os professores, alunos e pais, entre outros, que actuam no contexto, são decisores políticos, embora nem sempre reconhecidos.

Historicamente o currículo se apresenta como ferramenta importante na dinâmica escolar, ao reunir os conteúdos a serem ensinados e quando fazê-los, embora seu conceito vá muito além de tal perspectiva. Mais que um conjunto de conteúdos ordenados por níveis de ensino, apresentados cada qual a seu tempo pelo ato de ensinar, o currículo deve ser resultado de uma construção coletiva, baseada em políticas públicas educacionais e curriculares, concebidas para atender aos desejos e às necessidades de uma sociedade. O currículo precisa ter um compromisso com a oportunidade da escolha. É preciso percebê-lo como algo em movimento. No entendimento de Sacristán (2013, p. 23),

[...] uma vez que admitimos que o currículo é uma construção onde se encontram diferentes respostas a opções possíveis, onde é preciso decidir entre as possibilidades que nos são apresentadas, esse currículo real é uma possibilidade entre outras alternativas. Aquilo que está vigente em determinado momento não deixa de ser um produto incerto, que poderia ter sido de outra maneira, e que pode ser diferente tanto hoje como no futuro. Não é algo neutro, universal e imóvel, mas um território controverso e mesmo conflituoso a respeito do qual se tomam decisões, são feitas opções e se age de acordo com orientações que não são as únicas possíveis.

Um currículo tem ao seu redor campos de várias ações, agentes e forças que atuam sobre ele e o determinam em diferentes aspectos (Sacristán, 2000). Construí-lo com a participação direta da comunidade escolar, em toda sua diversidade, permite que ela se perceba nesse processo.

A construção do currículo só culminará num processo de identificação comunitária se as políticas curriculares se fundamentarem numa matriz que não ignore a existência de uma realidade que se constrói na diversidade e permitirem que o campo curricular seja um espaço de permanente participação e deliberação da comunidade. (Morgado, 2018, p. 73)

Defendemos uma concepção de currículo que contemple a participação de estudantes, professores, gestores e demais atores, criando condições para que o conhecimento do cotidiano possa, aliado ao conhecimento científico e historicamente construído, integrar a construção de um projeto educacional identificado com a comunidade onde está inserido. Severino (2006) nos traz a ideia de que cabe à educação contribuir para uma humanidade renovada, construída com investimento social em forças emancipatórias, que valorizam ações coletivas, num procedimento de denúncia, de desmascaramento e de superação. Ela deve ser prática e política, mediando o universo do trabalho, da vida social e da cultura, o que, em última instância, corresponde à vida individual, à vida em sociedade e à vida no trabalho.

Nesse sentido, ao trazer um histórico sobre as políticas de educação no Brasil, Dutra e Moll (2018) enfatizam a educação integral como direito de todas as pessoas e como possibilidade para superar a crise educacional em nosso país. Os pesquisadores trazem a necessidade de reestruturar o tempo escolar e o currículo na educação básica como aspecto fundamental nesse processo, pois somente assim pode ser possível “enfrentar a lógica que coloca os conteúdos e disciplinas no centro do processo educacional e não o sujeito” (Dutra & Moll, 2018, p. 825).

Aliadas a uma proposta de formação integral, as políticas educacionais atuais também trazem a necessidade do ensino em tempo integral, conforme previsto no PNE (Brasil, 2014), entendido como ampliação dos tempos de aprendizagem. De acordo com o PNE, o ensino em tempo integral exige práticas curriculares diferenciadas, que permitam a participação dos alunos em projetos socioculturais e em ações educativas integradas. Conforme o PNE, a mera ampliação da jornada escolar não constitui condição para a educação integral. Nesse sentido, não há uma relação direta entre a educação integral e o ensino em tempo integral.

Mesmo com avanços nas políticas educacionais para a educação integral, conforme Dutra e Moll (2018), em 2016, com os encaminhamentos dados à construção da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, vinculados à uma lógica mercantil, na qual as questões econômicas são colocadas à frente das questões sociais, a construção de uma educação integral de caráter público e de qualidade fica ameaçada. “A disputa de projetos de sociedade por trás dessas mudanças interfere diretamente na visão de escola que vivenciamos, devemos afirmar a diversificação das atividades oferecidas para proporcionarmos aos alunos o desenvolvimento de suas múltiplas capacidades” (Dutra & Moll, 2018, p. 825).

Diante disso, não podemos deixar de lembrar que é necessária uma reflexão sobre as concepções de educação integral nas políticas educacionais e nas propostas oriundas dessas políticas, para compreender como elas podem afetar a vida das crianças e dos adolescentes (Cavaliere, 2007). Com base em suas pesquisas, a autora ressalta que é possível destacar, pelo menos, quatro concepções de escola em tempo integral no território brasileiro. Em todas elas, em menor ou maior intensidade, há a preocupação com o papel da escola e, sobretudo, com a utilização do tempo dedicado às atividades nesses estabelecimentos escolares.

De acordo com Cavaliere (2007, p. 1028), a concepção predominante de escolas em tempo integral é a assistencialista, uma vez que:

[...] vê a escola de tempo integral como uma escola para os desprivilegiados, que deve suprir deficiências gerais da formação dos alunos; uma escola que substitui a família e onde o mais relevante não é o conhecimento e sim a ocupação do tempo e a socialização primária. Com frequência, utiliza-se o termo “atendimento”. A escola não é o lugar do saber, do aprendizado, da cultura, mas um lugar onde as crianças das classes populares serão “atendidas” de forma semelhante aos “doentes”.

A percepção dessa concepção assistencialista como visão das escolas dedicadas ao ensino em tempo integral nos parece bastante evidente (ou frequente) na sociedade brasileira. A escola passa a ser compreendida como um espaço destinado ao atendimento dos alunos, sobretudo daqueles estudantes oriundos das classes sociais menos privilegiadas, suprindo necessidades como alimentação e cuidados de lazer. Há um desprestígio do ato de educar nessa escola, com uma desvalorização do espaço do conhecimento.

Uma segunda visão é a autoritária, na qual as escolas dedicadas ao ensino em tempo integral são um tipo de instituição de prevenção ao crime (Cavaliere, 2007). Nessa perspectiva, a escola assume o papel de “guardar” os alunos em um ambiente hipoteticamente mais seguro que as ruas. Vê-se aí uma perspectiva muito alinhada à insegurança, fruto da violência e do descuidado a que as pessoas estão submetidas. A valorização das rotinas como solução para tais dificuldades passa a caracterizar essa dimensão da escola de tempo integral. Percebe-se ainda uma relação do compromisso com rotinas rígidas e a menção precoce à formação para o trabalho, já nos anos dedicados ao ensino fundamental.

Para Cavaliere (2007), uma terceira concepção é a de que a escola de tempo integral tem a capacidade de assumir uma formação emancipatória dos alunos, numa concepção democrática. De acordo com essa percepção, o aumento da permanência dos estudantes nas escolas está diretamente ligado ao desempenho deles em relação aos saberes escolares. Cavaliere (2007, p. 1029) escreve:

[...] o tempo integral seria um meio a proporcionar uma educação mais efetiva do ponto de vista cultural, com o aprofundamento dos conhecimentos, do espírito crítico e das vivências democráticas. A permanência por mais tempo na escola garantiria melhor desempenho em relação aos saberes escolares, os quais seriam ferramentas para a emancipação.

Para a autora, de acordo com essa concepção, o aumento do tempo de permanência dos alunos nas escolas de tempo integral pode ser considerado uma possibilidade de privilegiar o aprofundamento de saberes escolares, assim como de aumentar as possibilidades de interação entre todos os agentes educacionais, fato que amplificaria as chances de desenvolver o espírito crítico e as vivências democráticas.

Por último, em uma concepção mais recente, temos uma visão de educação em tempo integral que não depende da organização de uma escola de horário integral e que se caracteriza como uma concepção multissetorial de educação integral. Considerando tal concepção, o ensino em tempo integral não precisa estar centralizado em uma instituição (Cavaliere, 2007). Nessa concepção de ensino de tempo integral multissetorial, “as estruturas de Estado, isoladamente, seriam incapazes de garantir uma educação para o mundo contemporâneo e a ação diversificada, de preferência de setores não-governamentais, é que poderia dar conta de uma educação de qualidade” (Cavaliere, 2007, p. 1029).

Diante da diversidade de concepções de educação integral e de escolas de tempo integral, reitera-se a relevância de investigar a implementação de políticas curriculares para escolas de tempo integral. A implementação do tempo integral ainda ocorre mediante ações isoladas, todavia é preciso conhecer e refletir sobre o que ocorre nessas escolas, para que se possa avaliar as políticas e ampliar o processo de implementação do ensino em tempo integral em nosso país. A seguir, exporemos o percurso metodológico que orientou a realização da presente pesquisa, apresentando o lócus, os participantes, assim como os instrumentos e o procedimento de análise de dados.

Percurso metodológico da pesquisa

O presente artigo é resultado de uma pesquisa, de abordagem qualitativa, que teve como lócus uma escola agrícola municipal, instituição pública de Educação Básica que oferece o ensino fundamental (6º ao 9º ano) em tempo integral na cidade de Joinville/SC.

Esta pesquisa constitui um estudo de caso, que para Yin (2001) corresponde a um estudo no qual se apresentam questões do tipo “como” e “por que”, uma vez que o foco da investigação dá-se sobre fenômenos contemporâneos, vinculados a algum contexto específico da vida real. No caso desta pesquisa, refere-se ao currículo de uma escola municipal de tempo integral em Joinville/SC. Para Lüdke e André (2014), os estudos de caso apresentam características gerais, entre elas a de que visam à descoberta, pois, mesmo que os investigadores partam de seus pressupostos teóricos, é importante que se mantenham atentos às possibilidades do surgimento de novos e importantes elementos durante todo o estudo, tanto na visita ao lócus da pesquisa quanto no contato com os participantes.

A escola investigada localiza-se na região rural do município e atende estudantes de todas as regiões da cidade. É uma escola de tempo integral que contava, no momento da pesquisa, com 350 alunos. Como a oferta de vagas é menor que a demanda, o ingresso dos estudantes é feito por meio de processo seletivo. Anualmente é lançado um edital de acesso, exclusivamente, para o 6º ano do Ensino Fundamental, sem opções de ingresso em outros anos.

O espaço físico da Escola Agrícola está inserido no perímetro da Fundação Municipal de Desenvolvimento Rural 25 de Julho[1], que possui uma área total de 304 mil metros quadrados. A escola ocupa uma área de 60 mil metros quadrados, divididos em unidades didáticas de práticas zootécnicas, práticas agrícolas, prédio escolar, áreas esportivas e de convivência, além de demais áreas como depósitos e afins (Joinville, 2019).

Os participantes da pesquisa foram dois gestores e 11 dos 20 professores da instituição que ministravam disciplinas da base comum, da base técnica (agropecuária) e de apoio pedagógico no momento da pesquisa e que se dispuseram a participar deste trabalho. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, atendendo às questões éticas da pesquisa.

Para a coleta de dados, foram considerados a análise documental do Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola; a entrevista semiestruturada, para a qual foi elaborado um roteiro específico; e o questionário, com perguntas fechadas e abertas. Os professores participaram da pesquisa respondendo aos questionários, encaminhados por meio da ferramenta eletrônica Google forms. Com os gestores foram feitas duas entrevistas, em momentos distintos da pesquisa, a primeira de modo presencial e a segunda de modo virtual, em função das restrições impostas pela pandemia pelo Covid-19. As entrevistas foram gravadas em áudio, com o consentimento dos envolvidos, e posteriormente transcritas e analisadas.

Os dados coletados foram considerados sob a ótica da análise de conteúdo. Como reforçam Lüdke e André (2014), essa análise passa por organizar todo o material coletado em partes, correlacionando e procurando reconhecer nele tendências e padrões significativos. Cabe destacar, todavia, que a análise está presente em muitos momentos da investigação, como apontam Lüdke e André (2014, p. 53) ao afirmarem que:

[...] desde o início do estudo, no entanto, nós fazemos uso de procedimentos analíticos quando procuramos verificar a pertinência das questões selecionadas frente às características específicas da situação estudada. Tomamos então várias decisões sobre áreas que necessitam de maior exploração, aspectos que devem ser enfatizados, outros que podem ser eliminados e novas direções a serem tomadas.

Dessa forma, num primeiro momento, fizeram-se leitura e releitura dos dados coletados com os instrumentos de pesquisa. Os resultados das entrevistas e dos questionários, articulados às informações oriundas da análise do PPP da escola, permitiram triangular os dados e identificar, conforme o objetivo deste estudo, as características do currículo da escola em tempo integral investigada. Dessa forma, com base no referencial teórico construído, foi possível refletir também sobre a política pública para escolas em tempo integral.

Características da escola de tempo integral

Com o objetivo de apresentar e discutir as características do currículo da escola em tempo integral, a análise foi organizada de modo a apresentar aspectos sobre a sua criação e implementação, infraestrutura, o currículo e as práticas curriculares. Para preservar a identidade dos participantes da pesquisa, os gestores serão nomeados como “Gestor 1” e “Gestor 2”; já os professores serão divididos em: Professor(a) da Base Comum (PBC), Professor(a) da Base Técnica (PBT) e Professor(a) de Apoio Pedagógico (PAP). Para diferenciar cada professor(a), vamos utilizar um número depois da sigla.

A criação e implementação da escola em tempo integral

Conforme os dados da contextualização histórica do PPP (Joinville, 2019) da instituição, a escola lócus desta pesquisa foi criada em 1989 por inciativa de gestores da Fundação Municipal 25 de Julho, entidade jurídica vinculada à Prefeitura Municipal de Joinville/SC e que buscava contribuir para o desenvolvimento rural do município, juntamente com a Secretaria de Educação e Cultura. A criação dessa instituição de ensino, já no formato de escola em tempo integral, tinha como objetivo ocupar uma lacuna que existia no atendimento a alunos de 5ª a 8ª série da área rural do município e região.

No período que antecedeu à criação da escola, a Fundação Municipal 25 de Julho possuía dois programas de incentivo para as crianças da área rural, destinados especialmente para filhos de agricultores. Um deles era o “Clube Agrícola Escolar”, direcionado a crianças que frequentavam a 3ª e 4ª série à época, o que hoje corresponde ao 4ª e 5º ano. O outro projeto, “Juventude Rural”, dirigia-se aos jovens a partir de 15 anos, com o objetivo de disseminar e desenvolver novas técnicas de cultivo junto às famílias rurais, além de oferecer opções de lazer aos jovens agricultores. De acordo com os dados da entrevista com Gestor 1 e Gestor 2, dentre as atividades dos programas Clube Agrícola Escolar e Juventude Rural, os gestores da época identificaram a oportunidade de então oferecer, na comunidade rural, uma escola em tempo integral que tivesse condições de atender, capacitar e manter esses alunos atuando no campo, contribuindo para a permanência das famílias de produtores rurais do município e região.

Conforme os estudos de Fiori (2002), a ideia de uma escola como entidade capaz de reunir estudantes em torno de assuntos agrícolas é bastante antiga. Com respeito aos Clubes Agrícolas, Fiori (2002, p. 235) destaca que, “no âmbito da escola, os Clubes Agrícolas receberam a responsabilidade de, mais de perto e atentamente, relacionarem-se com a ‘vocação agrícola do Brasil’ e com a questão do êxodo rural, que se tornará um problema de debate nacional.” O intuito era intervir no movimento de migração do interior do país para os centros consumidores, tornando a escola primária um espaço de atuação ruralista. Os Clubes Agrícolas Escolares tinham tal papel, sobretudo em escolas localizadas em áreas rurais.

Outro aspecto ressaltado por Fiori (2002) é a influência dos pensamentos de John Dewey nos Clubes Agrícolas Escolares. De acordo com as concepções desse pensador, o processo de aprendizagem está fortemente relacionado às ações práticas, atividades frequentemente realizadas por esses clubes, a exemplo da organização de festas com a comunidade, hortas escolares, venda de produtos agrícolas, trabalho no reflorestamento, entre outras atividades de caráter produtivo ou de socialização.

Com a análise dos dados foi possível perceber que o movimento dos clubes agrícolas, com características de atuação prática e envolvimento com as comunidades rurais, teve papel importante na história da escola lócus da pesquisa. Com base nos programas ofertados nos Clubes Agrícolas Escolares, a escola iniciou suas atividades em 1989. Num primeiro momento sob a administração da Fundação Municipal 25 de Julho, que ainda hoje é responsável pela área técnica do currículo, disponibilizando máquinas e equipamentos agrícolas, e da Secretaria de Educação e Cultura do município, responsável pela organização pedagógica e administrativa, merenda escolar e manutenção da escola. A partir de 2003 a administração passou a ser de responsabilidade apenas da Secretaria de Educação, mas a Fundação Municipal de Desenvolvimento Rural 25 de Julho continua prestando assistência técnica quando solicitada.

A infraestrutura da escola em tempo integral

De acordo com o PPP (Joinville, 2019) da instituição, hoje o currículo é organizado em dois núcleos principais: a base comum e a base técnica. Além disso, o documento aponta um conjunto de atividades de apoio pedagógico que estão inseridas no currículo não como disciplinas, mas como atividades extracurriculares. Integram a base comum as disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais, Ciências da Religião, Educação Física, Arte e Línguas Estrangeiras. A base técnica contempla as disciplinas Práticas Agrícolas, Práticas Zootécnicas, Práticas Industriais e Práticas de Gerenciamento Agrícola. Além dos núcleos de base comum e técnico, são oferecidas atividades pedagógicas de apoio aos estudantes, como o acompanhamento das tarefas e atividades de reforço escolar. A organização curricular na instituição é construída no sentido de oferecer aos alunos a pré-qualificação em agropecuária.

Para a implementação dessa organização curricular, é necessária uma infraestrutura diferenciada. Conforme o PPP da escola (Joinville, 2019), o prédio escolar possui uma área de 2.400 m., distribuídos em 12 salas de aula, uma sala dos professores, um laboratório de informática, uma biblioteca, banheiros para funcionários e banheiros para alunos, um amplo refeitório, cozinha regular e uma cozinha experimental, onde acontecem as aulas de práticas industriais. Há ainda a sala de atividades complementares e uma área esportiva, que inclui um pátio coberto, além dos espaços destinados à gestão e supervisão.

A área física da escola apresenta ainda um conjunto de unidades didáticas destinadas ao núcleo técnico, espaços nos quais são realizadas as práticas zootécnicas e agrícolas. As unidades de práticas zootécnicas atendem à cunicultura (criação de coelhos), coturnicultura (criação de codornas), aviários, bovinocultura, caprinocultura (criação de cabras), suinocultura (criação de suínos), piscicultura (criação de peixes), anacultura (criação de patos), aves ornamentais e domésticas, minhocário e meliponário (criação de abelhas sem ferrão). Dentre as unidades de práticas agrícolas têm-se a fruticultura, culturas anuais, horta, pastagens, mandala, temperos, viveiro de mudas, viveiro de floricultura e horto medicinal, ferramentaria e produção de caldo de cana (Joinville, 2019).

Ao serem questionados sobre a infraestrutura geral da escola, necessária para a implementação e execução do projeto educativo da instituição, para os sete professores (100%) que atuam na base comum, a infraestrutura é adequada ou suficiente. No entanto, para os quatro professores que atuam na base técnica, dois (50%) consideram a infraestrutura adequada ou suficiente e os outros dois (50%) a consideram como insuficiente ou inadequada. Na entrevista os gestores reiteraram a necessidade de melhorias na infraestrutura para a base técnica, contextualizando a realidade em que a instituição está inserida, como se pode observar na seguinte fala:

[...] quando você tem um colégio agrícola de ensino médio, quando se formam os técnicos agrícolas, os espaços são muito maiores. Pela legislação existe uma distância mínima entre um animal e outro pra que não passe doença um para o outro. E aqui nós não temos esse espaço com essa distância tão grande, então acaba acumulando meio que tudo junto os projetos. Mas a gente mostra aos alunos que não é o ideal. Ideal seria espaçamentos bem maiores, só que o nosso espaço é limitado e a gente faz, se adapta ao nosso espaço. (Gestor 1, 54 anos, diretor)

Atribui-se esse resultado às particularidades e necessidades específicas das disciplinas da área técnica, o que vem ao encontro de uma das principais dificuldades de um modelo de ensino em tempo integral. Segundo Cavaliere (2009), em escolas em tempo integral que oferecem uma formação diferenciada, há a necessidade de mais equipamentos e/ou espaços que atendam às especificidades da atuação de professores com formação técnica. As condições de infraestrutura das instituições de ensino são fundamentais para a implementação de um projeto educacional de tempo integral.

Cavaliere (2009) observou que as escolas dedicadas ao ensino em tempo integral no Brasil têm sido organizadas de diferentes maneiras. A autora as colocou em duas vertentes:

[...] uma que tende a investir em mudanças no interior das unidades escolares, de forma que possam oferecer condições compatíveis com a presença dos alunos e professores em turno integral, e outra que tende a articular instituições e projetos da sociedade que ofereçam atividades aos alunos no turno alternativo às aulas, não necessariamente no espaço escolar, mas, preferencialmente, fora dele. (Cavaliere, 2009, p. 52)

De acordo com os dados da pesquisa, a escola investigada não se alinha às duas vertentes mencionadas por Cavaliere (2009), já que não tem caráter assistencialista e também não proporciona atividades de caráter complementar que sejam desvinculadas do projeto educativo ou realizadas externamente à escola. Os dados obtidos indicam que a formação integral proporcionada pela escola integra uma formação geral a uma formação específica, no caso a formação do técnico agrícola.

O currículo e as práticas na escola agrícola em tempo integral

Conforme o PPP (Joinville, 2019), o currículo da escola em questão conta com uma base comum, contemplando disciplinas obrigatórias, e base técnica, com disciplinas voltadas para o ensino agrícola. Há também um componente denominado atividade pedagógica, um momento em que o aluno terá à sua disposição um profissional habilitado (pedagogo) para auxiliar na execução e organização de tarefas, trabalhos, pesquisas e reforço escolar.

Na tabela 1 pode-se verificar a organização curricular da base comum, com as disciplinas, anos e número de aulas semanais.

Tabela 1 Organização curricular da base comum na Escola Agrícola Municipal Carlos Heins Funke 

Disciplina/Séries/Número de aulas semanais 6º ano 7º ano 8º ano 9º ano
Português 5 5 5 5
Matemática 5 5 5 5
Ciências 3 3 3 3
Educação Física 3 3 3 3
Geografia 3 2 3 2
História 2 3 2 3
Inglês 2 2 2 2
Alemão 2 2 2 2
Arte 1 1 1 1
Ensino Religioso 1 1 1 1
Total 27 27 27 27

Fonte: Projeto Político-Pedagógico (Joinville, 2019).

A tabela 2 apresenta a mesma relação de disciplinas por séries e número de aulas semanais, conforme o PPP da instituição.

Tabela 2 Organização curricular da base técnica na Escola Agrícola de Joinville/SC 

Disciplina/Séries/Número de aulas semanais 6º ano 7º ano 8º ano 9º ano
Práticas Agrícolas 4 4 4 4
Práticas Zootécnicas 4 4 4 4
Práticas Industriais 3 3 - -
Práticas de Gerenciamento Agrícola - - 3 3
Total 11 11 11 11

Fonte: Projeto Político-Pedagógico (Joinville, 2019).

Diante da organização curricular apresentada nas tabelas 1 e 2, vale ressaltar que, além dos professores da base técnica, dá-se suporte às atividades de ensino um técnico agrícola. O professor da base técnica é o profissional habilitado em Licenciatura em Ciências Agrárias que procura ensinar os conhecimentos teóricos e práticos do ensino agrícola, da industrialização caseira e da administração da propriedade rural aos educandos. É dele a responsabilidade de planejar o trabalho docente. O técnico agrícola é o profissional habilitado em Técnico Agrícola ou Agropecuária que colabora para o desenvolvimento do ensino agrícola aos estudantes. Cabe ao técnico agrícola acompanhar e assessorar as atividades propostas pelos professores das ciências agrárias.

Com relação ao desenvolvimento das atividades educativas, há uma valorização do desenvolvimento de projetos na escola, como se pode perceber pelo planejamento pedagógico (Joinville, 2019) e nos relatos dos professores e gestores, que parecem apontar tal estratégia como relevante na articulação curricular de teoria e prática. O desenvolvimento de projetos de ensino é comum na maioria das escolas, mas neste estudo de caso, considerando o currículo e a infraestrutura da instituição, podemos inferir que os projetos desenvolvidos nos diferentes espaços da escola e os que envolvem a agricultura e o trato com animais são relevantes para a formação integral dos estudantes. Nesse sentido, a ampliação do tempo de permanência do aluno na escola contribui para o desenvolvimento desses projetos e para a educação integral dos alunos, possibilitando uma formação que contemple, com mais intensidade, as questões ambientais.

Numa questão aberta, os professores manifestaram-se em relação ao papel dos projetos na articulação e integração de saberes. As respostas sugerem um entendimento de que há ampliação das possibilidades de aquisição do conhecimento por meio de projetos, conforme aponta PAP1 (47 anos, professor), quando descreve: “Trabalhar com projetos amplia e favorece o conhecimento. Além de dar aberturas para novos temas”. Ou como afirma PBT2 (53 anos, professor): “Amplificando as áreas de conhecimento e proporcionando interesse pela pesquisa”.

Essa percepção corrobora com o que diz Morgado (2000), ao lembrar que os projetos no campo da educação surgem carregados de intencionalidades que expressam opiniões, pontos de vista e perspectivas do fenômeno educativo. Perceber no desenvolvimento dos projetos uma possibilidade de aproximação com a aquisição do conhecimento é compreender que é possível uma ampliação das oportunidades de concretização desses saberes. Além disso, por meio dos projetos é possível um processo de ensino e aprendizagem contextualizado, contemplando a realidade dos alunos e das comunidades nas quais estão inseridos, e os temas trabalhados na escola ganham sentidos e significados próprios.

Vale lembrar que as práticas curriculares estão vinculadas a um projeto educativo, como afirmam Rocha e Hypolito (2020, p. 6):

Ao se embasar um projeto que organiza as atividades e o trabalho da escola, para o ato de instruir, ensinar, formar, educar, são definidas funções para a instituição escolar, que determinam uma função para o exercício da atividade docente. A função assumida para a escola (ou pela escola) e para o docente está diretamente relacionada com o projeto de escola pensado.

É o projeto de escola que possibilita vivenciar experiências integradas, como as que ocorrem na escola investigada e que são percebidas como uma forma comum e habitual de aprimoramento dos conhecimentos. Experimentar na prática os conhecimentos adquiridos na escola parece permitir uma reflexão que contribui para uma aprendizagem significativa, como se verifica na resposta de PBT4 (45 anos, professor): “O educando pode vivenciar na prática o que aprende. Através de suas ações e experimentação prática, necessita resolver problemas reais que os levam a refletir e utilizar como um todo o conhecimento aprendido, para obter êxito em suas ações”.

Identificar as possibilidades de articulação dos conteúdos curriculares por meio do desenvolvimento de projetos é reconhecer sua relevância, como sinaliza Leite (2012, p. 89):

[...] o reconhecimento da importância de projetos que promovam articulações com o local é também realçado pelos educadores que, elegendo como objetivo a configuração e a vivência de um currículo que positivamente responda à multiculturalidade, propõem processos que ultrapassem os limites estruturais dos espaços físicos da instituição escolar e permitam a construção de um conhecimento contextualizado.

Os professores também foram questionados sobre de que forma o currículo dessa escola contribui para a formação integral. Para PBC4 (43 anos, professor), currículo desenvolve “autonomia, desenvolvimento de habilidades de ser e conviver”; para PBC5 (45 anos, professor), “o aluno tem uma imersão cultural, que se for positiva irá ajudar na sua formação”. Nesse sentido, a ampliação do tempo de permanência na escola colabora para o fortalecimento das relações entre os alunos e a cultura local. Cavaliere (2010) lembra que a origem da educação integral no país, independentemente das correntes políticas, sempre teve uma concepção de uma educação escolar aumentada em seus compromissos sociais e culturais.

Outra perspectiva é trazida por PBC2 (56 anos, professor), quando responde ao questionamento sobre em que aspectos a ampliação do tempo de permanência na escola contribui para a educação integral, com a seguinte afirmação: “Com os recursos utilizados na escola, pois muitos não têm esses recursos em casa”. Essa fala aponta para a perspectiva assistencialista, frequentemente presente nas percepções a respeito do ensino em tempo integral. O aumento de oferta de atividades nas escolas dedicadas ao ensino em tempo integral não pode atribuir a ela essa característica assistencialista.

Identificar características tão particulares no currículo da escola estudada faz-nos questionar a urgência na construção e reavaliação das políticas educacionais voltadas às escolas de tempo integral, identificadas com questões globais, mas também com questões locais, contemplando as necessidades da comunidade na qual a escola está inserida. Porém Gandin e Lima (2016), pautados nos estudos de Michael Apple, alertam que nesse processo há sempre uma intencionalidade na construção das políticas, com diferentes grupos que lutam para que determinadas ideias se tornem hegemônicas, a exemplo da educação integral e educação em tempo integral.

Considerações finais

Entre as particularidades percebidas nas características da escola estudada, seu histórico, com o surgimento a partir da iniciativa de uma fundação municipal de apoio a agricultores da região onde a instituição está ainda localizada, ganha importância primeira. Com o objetivo de preencher uma lacuna entre dois importantes projetos de incentivo à manutenção dos filhos dos agricultores no campo, surge a escola municipal agrícola em tempo integral, com ampliação do tempo de permanência no ambiente escolar, procurando oferecer a formação no ensino básico com qualificação em agropecuária. Um currículo incomum quando comparado ao da maioria das escolas dedicadas ao ensino em tempo integral no Ensino Fundamental.

As análises atentam para a diferença de percepção dos professores do núcleo comum e dos professores das áreas técnicas sobre aspectos importantes, como a infraestrutura da escola, o que nos parece ser um fator limitante à expansão desse modelo de ensino. Em escolas em tempo integral que oportunizam uma formação diferenciada, como a apresentada neste estudo, existe a necessidade de mais equipamentos e/ou espaços que atendam às especificidades da atuação de professores com formação técnica, como já apontava Cavaliere (2009).

No que se refere ao aumento do tempo de permanência dos estudantes na escola, a percepção de que tal modelo de escola tem o compromisso de assumir um papel de instituição solucionadora dos problemas sociais é muito presente; mesmo em uma escola que se propõe à formação da qualificação em agropecuária, com conteúdos curriculares da base técnica, a concepção assistencialista ainda pode ser observada. Sabe-se que, independentemente das concepções, a estruturação de um currículo para um projeto educacional de tempo integral deve contemplar atividades diferenciadas, que no caso da escola aqui investigada são os projetos integrados, vinculados a um currículo organizado numa base comum e técnica, vivenciados em espaços incomuns em outras escolas. O uso desses espaços só é possível porque a escola está localizada na área rural e há uma parceria entre diferentes secretarias municipais.

Com este estudo de caso é possível perceber que as políticas públicas e curriculares podem fomentar a construção de currículos diferenciados, voltados para escolas de tempo integral, sem reproduzir o modelo da escola convencional, apenas acrescido de tempos desordenados e sem articulação. Essa construção precisa ser resultado de um movimento coletivo, pensado para atender aos desejos e às necessidades da comunidade em que a escola está inserida. Compreender que o comprometimento de todos os agentes educacionais é parte desse movimento significa entender que as decisões políticas, na prática, devem ser compartilhadas de maneira democrática e atenta às particularidades locais.

Referências

Apple, M. W. (2006). Ideologia e currículo. Artmed. [ Links ]

Apple, M. W. (2011). Repensando ideologia e currículo. Em A. F. Moreira, & T. Tadeu (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade (pp. 49-69). Cortez. [ Links ]

Brasil. (2014). Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014 (Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências). http://pne.mec.gov.br/18-planos-subnacionais-de-educacao/543-plano-nacional-de-educacao-lei-n-13-005-2014Links ]

Cavaliere, A. M. (2007). Tempo de escola e qualidade na educação pública. Educação & Sociedade, 28(100), 1015-1035. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300018Links ]

Cavaliere, A. M. (2009). Escolas de tempo integral versus alunos em tempo integral. Em aberto, 21(80), 51-63. http://rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/2418/2157Links ]

Cavaliere, A. M. (2010). Anísio Teixeira e a educação integral. Paidéia, 20(46), 249-259. http://doi.org/10.1590/S0103-863X2010000200012Links ]

Dutra, T., & Moll, J. (2018). A educação integral no Brasil: uma análise histórico-sociológica. Prática Docente, v.3 (2), 813-829. http://doi.org/10.23926/RPD.2526-2149.2018.v3.n2.p813-829.id234Links ]

Fiori, N. A. (2002). Clube agrícola em Santa Catarina: ruralismo e nacionalismo na escola. Revista Perspectiva, 20 (n. Especial), 231-260. https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/10286/9559Links ]

Gandin, L. A., & Lima, I. G. D. (2016). A perspectiva de Michael Apple para os estudos das políticas educacionais. Educação e Pesquisa, 42(3), 651-664. http://doi.org/10.1590/S1517-9702201609143447Links ]

Höfling, E. D. (2001). Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos CEDES, 21(55), 30-41. http://doi.org/10.1590/S0101-32622001000300003Links ]

Joinville. (2019). Projeto Político-Pedagógico da Escola Municipal Agrícola Carlos Heins Funke.Secretaria de Educação. [ Links ]

Leite, C. (2012). A articulação curricular como sentido orientador dos projetos curriculares. Educação Unisinos, 16(1), 87-92. http://www.revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/edu.2012.161.09Links ]

Lüdke, M., & André, M. (2014). Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. Editora Pedagógica e Universitária. [ Links ]

Morgado, J. C. (2000). A (des)construção da autonomia curricular. Edições Asa. [ Links ]

Morgado, J. C. (2018). Políticas, contextos e currículo: desafios para o século XXI. Em J. C. Morgado, J. Souza, A. F. Moreira, & A. Vieira (Orgs.). Currículo, formação e internacionalização: desafios contemporâneos (pp. 72-83). CIED. [ Links ]

Pacheco, J. A. (2002). Políticas curriculares. Porto Editora. [ Links ]

Pacheco, J. A. (2011). Currículo e gestão escolar no contexto das políticas educacionais. RBPAE, v. 27(3), 361-588. https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/26410/15402Links ]

Rocha, D. R., & Hypolito, Á. L. M. (2020). Disputas pela escola pública: contribuições históricas para pensar o trabalho docente. Linhas Críticas, 26, 1-15. https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.31908Links ]

Sacristán, J. G. (2000). Currículo: uma reflexão sobre a prática. Artmed. [ Links ]

Sacristán, J. G. (2013). Saberes e incertezas sobre o currículo. Penso. [ Links ]

Severino, A. J. (2006) Fundamentos ético-políticos da educação no Brasil de hoje. Em J. C. F. Lima, & L. M. W. Neves (Orgs.). Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo (pp. 289-320). Fiocruz. [ Links ]

Yin, R. K. (2001). Estudo de caso: planejamento e métodos. Bookman. [ Links ]

[1]Entidade jurídica de direito público, vinculada à prefeitura municipal, que contribui para o desenvolvimento rural sustentável do município e região. Desde sua criação, em julho de 1966, coordena e realiza atividades de ensino e capacitação agrícola, assistência técnica, extensão e prestação de serviços, fomento e abastecimento.

Recebido: 02 de Fevereiro de 2021; Aceito: 22 de Abril de 2021

Creative Commons License Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.