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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub May 19, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36450 

Artigos

Dispositivos de accountability: efeitos sobre escolas públicas de ensino médio de Pernambuco

Dispositivos de accountability: efectos sobre escuelas públicas de enseñanza media de Pernambuco

Accountability mechanisms: effects on public high schools in Pernambuco

Camila Regina Rostirola1 
http://orcid.org/0000-0001-8280-8879

1Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2020). Professora da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Membro do grupo de pesquisa Educação, Políticas Públicas e Cidadania. Desenvolve pesquisas sobre políticas públicas, enfocando, principalmente, políticas de avaliação e responsabilização da educação básica.


Resumo

Este artigo teve por objetivo analisar os efeitos dos dispositivos de accountability (avaliação, prestação de contas e responsabilização) sobre escolas públicas de ensino médio pertencentes à rede estadual de Pernambuco. Como procedimentos metodológicos, foram utilizadas a análise documental e entrevistas semiestruturadas com professores que atuam no ensino médio. Os resultados da pesquisa demonstram que, no Estado de Pernambuco, os dispositivos de accountability têm acarretado efeitos como práticas de gaming, assim como cobrança e regulação via resultados das avaliações, indelevelmente, em relação ao trabalho docente.

Palavras-chave Política educacional; Dispositivos de accountability; Instituições de educação básica; Rede estadual de ensino de Pernambuco

Resumen

Este artículo tuvo por objetivo analizar los efectos de los dispositivos de accountability (evaluación, prestación de cuentas y responsabilización) sobre escuelas públicas de enseñanza media pertenecientes a la red estatal de Pernambuco. Como procedimientos metodológicos, fueron utilizados el análisis documental y entrevistas semiestructuradas con profesores que actúan en la enseñanza media. Los resultados de la investigación demuestran que, en el Estado de Pernambuco, los dispositivos de accountability han acarretado efectos como prácticas de gaming, así como cobro y regulación por los resultados de las evaluaciones, indeleblemente, en relación al trabajo docente.

Palabras clave Política educacional; Dispositivos de accountability; Instituciones de educación básica; Red estatal de enseñanza de Pernambuco

Abstract

This article aimed to analyze the effects of accountability mechanisms (evaluation, accountability, and responsibility) on public high schools belonging to the state network of Pernambuco. As methodological procedures, document analysis and semi-structured interviews with teachers who work in high school were used. The results of the research demonstrate that, in the State of Pernambuco, the accountability mechanisms have entailed effects such as gaming practices, as well as charging and regulation via evaluation results, indelibly, in relation to the teaching work.

Keywords Educational policy; Accountability mechanisms; Basic education institutions; State education network of Pernambuco

Introdução

As discussões em torno das políticas públicas de avaliação ganharam repercussão no campo educacional, especialmente a partir dos anos 1990. Inspiradas pelo advento do neoliberalismo, as transformações na gestão pública de muitos países culminaram na promoção de reformas estruturais nos modos de regular e controlar o setor educacional, abrindo espaço para o surgimento de políticas inspiradas em uma lógica de um quase-mercado.

No Brasil, foi com a criação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), no ano de 1990, que a temática da avaliação aos moldes de Standards ganhou espaço, assim como os empreendimentos em torno da insurgência do modelo de Estado Avaliador tornaram-se mais significativos.

Estudos desenvolvidos por educadores brasileiros sobre o tema das avaliações educacionais (Sousa & Arcas, 2010; Bonamino & Sousa, 2012; Oliveira, 2012; Schneider & Nardi, 2019, entre outros) têm posto em evidência a ascensão de novas e mais sofisticadas formas de regulação do Estado na condução das políticas educacionais, nomeadamente as destinadas à educação básica. Segundo destacam, essas novas formas tomam a responsabilização e a prestação de contas como vetores principais de regulação da educação básica por parte do Estado, tendo na Prova Brasil o mecanismo mais expressivo de aferição e controle da qualidade educacional.

Nesse cariz, a criação da Prova Brasil, em 2005, bem como a do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), no ano de 2007, pelo Ministério da Educação (MEC), marcam uma nova fase na era das avaliações educacionais no Brasil, especialmente por oferecerem subsídios para a implementação de políticas de responsabilização e prestação de contas.

Essas transformações nas políticas de avaliação, em âmbito brasileiro, favoreceram o surgimento de modelos de regulação por resultados e de implementação de dispositivos de accountability. Maroy (2011) menciona que o termo accountability vem sendo traduzido por responsabilização, imputação e prestação de contas, dado o contexto histórico e político de cada país. Já no campo da Ciência Política, remete à responsabilidade dos governos eleitos perante os seus eleitores e a sociedade de forma geral.

Apesar de, no campo educacional, os dispositivos de accountability datarem marcadamente da década de 1990, eles estão presentes nos discursos econômicos desde meados dos anos 1970. Segundo Afonso (2012, p. 472), o termo accountability pode ser concebido como uma forma “hierárquico-burocrática ou tecnocrática e gerencialista de prestação de contas que, pelo menos implicitamente, contém e dá ênfase a consequências ou imputações negativas e estigmatizantes, as quais, não raras vezes, consubstanciam formas autoritárias de responsabilização”.

No âmbito brasileiro, já é reconhecido que o termo não possui uma tradução precisa. Por essa via, acaba por ser utilizado conforme as necessidades de argumentação. De forma geral, para Afonso (2018), há uma concepção de accountability hegemônica que busca desvitalizar o debate, pois trata do conceito como se fosse autoexplicativo ou dotado de apenas um único significado.

A política de accountability educacional, no cenário econômico atual, tem sido permeada pelas ideologias neoliberal e neoconservadora, além de ser enclausurada em um único significado, ou seja, em uma concepção hegemônica. Apesar do seu surgimento estar associado à democracia, na prática está muito longe dessa acepção, além de se tornar alvo de interesses de partidos políticos e diferentes instituições governamentais e mercadológicas que, sob o falso discurso da exigência democrática, difundem modelos altamente regulatórios, centralizados e enviesados e associam accountability precipuamente com avaliação e responsabilização. Afonso (2012) também aponta a necessidade de repensar a accountability de uma forma diferente da disseminada pelo pensamento dominante, ou seja, uma “concepção de accountability mais ampla, fundamentada e complexa do ponto de vista teórico-metodológico, político e axiológico” (Afonso, 2010, p. 157).

Nesse viés, o autor propõe a ideia de uma accountability democraticamente avançada[1], ou seja, um processo que integra a avaliação, prestação de contas e responsabilização, “mas dentro de articulações congruentes que se referenciem ou sustentem em valores essenciais, como a transparência, o direito à informação, a participação e a cidadania” (Afonso, 2010, p. 157).

Apesar de sua raiz marcadamente econômica, com o passar dos anos, face à migração de políticas educacionais e edificação do sistema neoliberal nas formas de governação dos Estados Nacionais, os pressupostos de accountability educacional foram propagados em diversos países. Nessa conjuntura, estados e municípios brasileiros também estão, paulatinamente, empreendendo esforços para, além de participar das avaliações vinculadas à esfera nacional ou até mesmo internacional, instituir os seus próprios dispositivos de accountability.

Em Pernambuco, a implementação de dispositivos de accountability está associada ao processo de reforma educacional iniciado no ano de 2007, na gestão do Governador Eduardo Campos (2007-2011). Com a justificativa de crescimento econômico e de melhoria nos indicadores educacionais, haja vista que os escores divulgados na primeira edição do IDEB ranqueiam a rede como uma das piores do País nos ensinos fundamental e médio, o Estado inicia um modelo de reforma centrado em preceitos gerenciais e calcado em políticas de responsabilização educacional.

Assim posto, este artigo tem por objetivo analisar os efeitos dos dispositivos de accountability (avaliação, prestação de contas e responsabilização) sobre escolas públicas de ensino médio pertencentes à rede estadual de Pernambuco. Como procedimentos metodológicos, utilizam-se a análise documental e a análise de entrevistas semiestruturadas com professores que atuam no ensino médio. O estudo está organizado de forma a, inicialmente, compreender o modus operandi dos dispositivos de accountability implementados no Estado de Pernambuco, e, em um segundo momento, analisar os efeitos advindos da sua implementação sobre escolas públicas de ensino médio.

Dispositivos de accountability no Estado de Pernambuco

A implementação de dispositivos de avaliação, prestação de contas e responsabilização (accountability) na educação intensifica-se no Estado de Pernambuco, marcadamente, no ano de 2007, com a implantação do Programa Modernização da Gestão Pública. Trata-se de uma iniciativa do governo Campos para tornar a administração pública mais eficaz e com ênfase em um modelo de gestão por resultados.

Estamos implantando um Modelo de Gestão que tem foco em resultados e que na área da Educação significa o meio mais eficaz para alcançarmos melhores indicadores sociais, diminuindo as taxas de repetência e evasão escolar, de analfabetismo, e, sobretudo, proporcionando uma educação de qualidade às crianças e jovens pernambucanos, onde todos tenham o direito de aprender e de evoluir. (Pernambuco, 2007, p. 3)

Tendo em vista a necessidade de adequação ao novo modelo de gestão por resultados, a Secretaria de Educação adotou, a partir do ano de 2007, a implementação de política de accountability, termo traduzido nos documentos como responsabilização na educação, que “[...] tem como premissa o atendimento das demandas da sociedade com qualidade social, a transparência na gestão e o controle social da ação do governo” (Pernambuco, 2012, p. 6).

A política de accountability desenvolvida por este Estado compreende quatro condições implementadas simultaneamente na rede estadual de ensino: “I) objetivos educacionais e metas claras por escola; II) sistema próprio de avaliação; III) sistema de incentivos para as escolas que alcançam as metas estabelecidas; e IV) sistema de monitoramento de indicadores de processos e de resultados” (Pernambuco, 2012, p. 23).

No que compete aos objetivos e metas, na rede estadual de Pernambuco as metas são estabelecidas por escola e desagregadas por nível de ensino. São baseadas no Índice de Desenvolvimento da Educação de Pernambuco (Idepe), que é composto pelas médias de proficiência em língua portuguesa e matemática, aferidas pelo Sistema de Avaliação da Educação de Pernambuco (Saepe) e pelas taxas de aprovação medidas pelo censo escolar.

O cálculo do Idepe, a exemplo do Ideb, leva em conta a média do desempenho dos alunos na avaliação do Saepe nas disciplinas de língua portuguesa e matemática e as taxas de aprovação em cada uma das séries da Educação Básica, dados esses obtidos a partir do Censo Escolar. Seu cálculo é obtido a partir da multiplicação da nota média do Saepe na escola pelas taxas médias de aprovação no ciclo avaliado.

Assim como o Ideb, o Idepe é uma taxa de troca, pois:

Escolas que selecionam fortemente os melhores alunos, deixando de lado os que tropeçam no caminho, não possuirão um IDEPE extremamente alto. Se, por um lado, a escola poderá ter melhores notas no Saepe, por outro ela perderá pontos devido à baixa taxa de aprovação. (Pernambuco, 2008a, p. 3)

Em se tratando do sistema próprio de avaliação, o Estado possui o Saepe. Sua primeira avaliação foi realizada no ano de 2000, e, entre os anos de 2000 e 2005, foram realizadas três edições dessa avaliação. É interessante salientar que, a partir do ano de 2008, a aplicação das avaliações passou a ser anual.

De forma geral, o sistema de avaliação do Estado segue o modelo nacional e limita-se ao domínio de competências e habilidades em áreas específicas do conhecimento. Destarte, o Saepe, além de disponibilizar as informações sobre o nível de rendimento dos alunos, é considerado “uma prestação de contas, em que o governo informa à comunidade escolar, pais e sociedade civil os resultados de suas escolas e as políticas públicas educacionais implementadas para melhorar a qualidade do ensino” (Pernambuco, 2012, p. 24).

Como terceira condição da Política de Responsabilização, no ano de 2008, o Estado de Pernambuco instituiu, por via da Lei n° 13.486 (Pernambuco, 2008b), o Bônus de Desempenho Educacional (BDE). Na ocasião, tratava-se de uma política inovadora, pois poucos eram os estados brasileiros que adotavam tais programas de incentivos salariais. Esse Bônus corresponde a uma premiação por resultados concedida aos servidores em função do desempenho no processo educacional.

O BDE é coletivo, mas os servidores só terão direito a ele se atingirem a metade da meta. O cálculo da meta global da escola é feito a partir da média das metas para língua portuguesa e matemática. Nesse viés, “uma escola que não atingiu a meta em uma disciplina e série poderá ter direito ao bônus se o alcance da meta em outras disciplinas e séries for expressivo” (Pernambuco, 2012, p. 25). Tem periodicidade anual, e o valor pago equivale, no máximo, ao valor de vencimento inicial da Classe I, Faixa A, da primeira matriz referente à grade da carreira do servidor beneficiado, ou seja, o valor do bônus corresponde a uma folha de pagamento de um mês de funcionários lotados na escola. Logo, se todas as escolas atingirem suas metas, o valor deste será de um salário mensal. Em contrapartida, se poucas escolas lograrem suas metas, o valor pago será maior.

O bônus, segundo Pernambuco (2012), objetiva incentivar a permanência do professor e demais servidores na mesma instituição, assim como melhorar a qualidade de ensino. Ele é devido às escolas estaduais que alcançam a partir de 50% das metas pactuadas no Termo de Compromisso. É pago aos servidores até o final do semestre subsequente ao da publicação do resultado da avaliação de desempenho.

No Estado, a ideia que caracteriza um sistema de responsabilização se volta para a prerrogativa de que, à medida que a qualidade fosse mensurada por indicadores, as escolas e professores seriam cobrados pelos resultados e, nessa perspectiva, melhorariam esses resultados.

Nessa via:

A responsabilização assume uma forte conotação negativa e culposa em termos discursivos e de representação social, e é congruente com a obsessão managerialista (ou gestionária) direcionada para impor determinados procedimentos e práticas que visam resultados visíveis e mensuráveis, sem preocupação com a politicidade dos objetivos, a complexidade dos processos organizacionais e a subjetividade dos atores. (Afonso, 2012, p. 480)

A política de responsabilização, de forma geral, contempla informações sobre o Termo de Compromisso, o BDE, o Idepe e o Saepe, ou seja, está centrada, precipuamente, nos pilares da avaliação e responsabilização.

No entanto, é interessante mencionar que o pilar da prestação de contas também está presente na política de responsabilização, na medida em que foca a participação, a autocobrança dos docentes pelos escores educacionais e a publicização dos resultados nos painéis de gestão que podem ser visualizados em todas as unidades educacionais mantidas pelo poder público estadual. Assim, “o governo informa à comunidade escolar, pais e sociedade civil sobre os resultados das escolas e as políticas públicas educacionais implementadas para melhorar a qualidade do ensino” (Pernambuco, 2012, p. 24).

Assim, o modus operandi dos dispositivos de accountability assume uma forte tendência gerencialista, pois estes foram pensados buscando uma suposta modernização da gestão pública a partir da premissa de torná-la mais eficiente e eficaz no que tange às políticas públicas.

Efeitos dos dispositivos de accountability sobre escolas públicas de ensino médio

Tendo em vista o objetivo de analisar efeitos[2] advindos da implementação de dispositivos de accountability foram realizadas 19 entrevistas com professores que atuam no ensino médio em quatro escolas pertencentes à rede estadual de Pernambuco. Em razão de que muitos professores demonstravam preocupação com represálias, os nomes foram mantidos no anonimato.

Como metodologia de interpretação e exposição da análise dos dados, fez-se uso da análise de conteúdo, a qual se aplica a qualquer texto, escrito ou oral, e objetiva compreender criticamente o sentido das comunicações por meio de um conjunto de técnicas que variam da decomposição do texto em unidades léxicas à classificação em categorias (Bardin, 2011).

Neste estudo, os esforços se concentram em analisar, precipuamente, dois efeitos advindos da implementação desses dispositivos, sendo eles: Gaming e Regulação e Cobrança por resultados.

Gaming

Um dos aspectos que estiveram presentes nas falas dos entrevistados, e que revelam efeitos dessa política, volta-se para a prática de gaming, ou seja, da adoção de estratégias, pelos agentes envolvidos, para alterar resultados com vistas à melhoria dos indicadores educacionais e/ou sua manutenção. O termo gaming:

Decorre do fato que as escolas podem adotar estratégias para alterar os resultados, mas que não mudam a qualidade do ensino ministrado como, por exemplo, treinar e motivar os estudantes para os testes ou excluir dos exames alunos de baixa proficiência. (Fernandes & Gremaud, 2009, p. 224)

Em se tratando do Estado de Pernambuco, os professores não relataram práticas de seleção dos melhores alunos para a realização dos testes, apenas aspectos relacionados à preparação e ao peso da aprovação/retenção na política de bonificação.

Ao serem questionados se esse sistema implantado influencia as aprovações dos educandos, os professores, na sua grande maioria, mencionam que sim.

Normalmente a gente fala da bonificação na hora da aprovação ou reprovação, quando tem um conselho aí a gente fala, não a gente não fala, é aquela coisa que todo mundo fica pensando, que tem o índice pra alcançar, uma meta pra alcançar, e o ideal seria 0 de reprovação, mas pelo menos que fique em torno de 10 por cento. (Professor 1)

É relevante salientar que o Idepe segue a mesma lógica de cálculo do Ideb; logo, trata-se de uma taxa de troca entre probabilidade de aprovação e proficiência dos estudantes, “[...] ou seja, o indicador torna claro o quanto se está disposto a perder na pontuação média do teste padronizado para se obter determinado aumento na taxa média de aprovação” (Fernandes, 2007, p. 8).

O que muitos profissionais e redes de ensino ainda não compreenderam é que a inflação dos escores de aprovação pode representar uma melhoria momentânea e paliativa dos indicadores. Destarte, se no ano seguinte não se pensar em estratégias que melhorem as proficiências em língua portuguesa e matemática, muito provavelmente haverá uma redução nos índices.

Eu vejo aqui como se a educação fosse uma máquina pra dizer tantos alunos foram aprovados, mas se colocar esse menino no mercado de trabalho ele vai continuar à margem da sociedade, ele não vai ter condição nenhuma, e aí a culpa é também nossa, dos profissionais da educação, de professores[...] A gente é cobrado que o número de reprovações seja tantos por cento, se for mais a gente já fica de prioritário [3]. Eu não estou aqui pra reprovar ninguém não, mas se o aluno não aprende, não desenvolve, não tem como estar passando esse aluno de qualquer forma, de qualquer jeito, mas isso acontece muito e aí tem vezes que eu já escuto brincadeira dizendo assim: olha que eu quero o meu bônus, porque se a gente reprovar também reflete no bônus. (Professor 2)

Outro aspecto que esteve presente na fala dos sujeitos entrevistados foi que estes acreditam que os indicadores são passíveis de manipulação, pois não compreendem a lógica usada para calcular as metas estipuladas para as escolas e, consequentemente, nem a lógica adotada para pagamento do bônus.

É como se eles achassem que não precisam explicar todas as fórmulas, os cálculos, mas é algo que nós aqui, enquanto educadores. Mas ora, a gente chega para o nosso educando e faz, explica, você vai ter essa nota, vai ser avaliado a partir disso, então a escola, se ela está sendo avaliada, é importante sim que quem faz parte saiba direitinho como são os critérios, como é esse cálculo e como é que ele tem que fazer, porque dessa forma eu acredito que a transparência seria realmente totalmente contemplada. (Professor 5)

Em contrapartida, mencionam ser necessário um sistema de avaliação da educação básica. No entanto, defendem que esse sistema não poderia ser da forma como está sendo operacionalizado em Pernambuco.

Veja, eu acredito que ela serve como um estímulo para os professores trabalharem os descritores em sala de aula, mas o problema é com os dados, eu acho que há manipulação dos dados, então acaba tendo alteração e nisso é que eu não concordo. Com a bonificação eu concordo, mas da maneira como ela é feita, ou seja, com a manipulação dos dados, eu não concordo. (Professor 6)

O Idepe, ele é o resultado de vários resultados, fecha a nota de Matemática, de Português, a presença do professor, o índice de reprovação da escola; por exemplo, em algumas escolas, não estou falando dessa escola, mas tem escola que pra querer agradar a sociedade acaba maquiando os resultados. Esse número. Então é bom por um lado, mas é falso por outro. (Professor 10)

Os professores enfatizam que os dados são maquiados, pois não compreendem as lógicas adotadas para o cálculo e como as escolas apresentam um salto tão significativo de um ano para outro, ou por que razão algumas possuem notas tão elevadas que já não conseguem mais superar seus próprios escores. Para uma professora de língua portuguesa, “[...] existem distorções, se você consultar e tiver acesso a essas informações, tem escolas que em anos são consideradas 0 em metas e, no ano seguinte, atingem 100% da meta da educação [...]” (Professor 6).

Também destacam que na hora de decidir pela aprovação ou retenção dos alunos, a bonificação prevalece. Não obstante, muitos professores demonstram a preocupação em aprovar os alunos sem que estes tenham condições para ingressar na série seguinte.

É muito subjetivo, é muito de pessoa para pessoa, no meu caso eu acho que não influencia nada não. Agora vê bem, em regra geral as pessoas vão querer passar os alunos, vão querer atrapalhar o sistema. [...] Tem aluno que vai passar porque ele tem um conhecimento, porque ele produziu, agora vai ter gente que vai querer, como a gente fala, maquiar isso ai, querer ficar aprovando aluno pra ganhar bônus. Isso eu acho errado, porque as pessoas podem ter inversão de valores de querer fazer uma coisa pra conseguir outra. Não é saudável. (Professor 1)

Acerca da aprovação, é salutar mencionar que:

O sentido de modificar os resultados não se restringe às provas, mas aos dados do fluxo escolar, no sentido da aprovação dos alunos. Nesse caso, a aprovação automática, para que as reprovações não repercutam nos índices e acabem por refletir no recebimento do bônus. (Melo, 2015, p. 117)

A realização de inúmeros simulados que culminam em treinos excessivos e a indústria da aprovação são também algumas estratégias utilizadas para a melhoria dos indicadores educacionais. Cabe mencionar que à medida que o sistema de responsabilização implementado envolve altos impactos, as fraudes tendem a aumentar e ser mais frequentes. Sob a forte pressão e o medo das consequências de não se alcançarem os resultados pactuados, os sistemas de ensino e, consequentemente, as escolas, preferem encontrar estratégias e meios ilícitos para inflar os seus escores, mas não pagar o preço pelos baixos resultados.

No Estado, as análises das entrevistas evidenciam, a despeito da preparação para os testes, que:

A gente tem muito aqui de trabalhar visando o Saepe, porque são metas que tem que bater, o governo tá dando uma meta tal, então todo mundo tem que correr pra alcançar aquele número, a meta, aí a gente tenta trabalhar as questões, os conteúdos que vão ser cobrados nesse Saepe, às vezes a gente até não consegue dar todo o conteúdo que seria daquela série, não dá tempo de vivenciar tudo aquilo, mas a gente tenta fazer o máximo que vai vim no Saepe. (Professor 2)

Faz-se relevante salientar que desde o início do ano, os profissionais são avisados do dia da avaliação em larga escala.

Na verdade, quando o ano começa, que a gente tem aquela reunião inicial, a gente já inicia o ano visando às provas externas, ou seja, a gente prepara o aluno pra essas provas externas, Saepe, prova do Enem e Prova Brasil, ou seja, trabalha em sala preparando os alunos para essas provas. (Professor 4)

Perante essas menções, “é urgente que coloquemos em dúvida, junto aos pais e formuladores de políticas, a afirmação de que nota alta em português e matemática é sinônimo de boa educação” (Freitas, 2011, p. 79). A questão que ora se apresenta é se de fato os bons resultados são reflexos de uma educação de qualidade ou se refletem estratégias de inflação de escores educacionais.

A preparação para os testes não se trata de uma iniciativa apenas das escolas pernambucanas, mas proposta e chancelada pelo próprio sistema de educação, uma vez que parte do Estado a formulação e aplicação de simulados ao longo do ano letivo, com vistas a melhoria dos resultados educacionais.

Umas das principais consequências dessa prática é que os estudantes aprendem estratégias para se sair bem nos testes. Nesse viés, Ravitch (2011) frisa que o que, de fato, interessa para o estado são os resultados dos testes, ou seja, os adultos colocam seus interesses em receber o crédito pela melhoria acima dos interesses dos estudantes, que deveriam ser o objetivo primordial da educação.

Outro efeito indesejado é o estreitamento curricular, pois a definição do currículo está intrinsecamente relacionada com as disciplinas que são avaliadas pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) e, consequentemente, pelas avaliações nacionais e subnacionais, uma vez que tendem a repetir os padrões impostos.

Cabe mencionar que alguns estados têm incluído em suas avaliações as ciências naturais e/ou da natureza. No entanto, a fragmentação e o estreitamento curricular ainda persistem, pois mesmo que os documentos oficiais mencionem a necessidade na formação integral dos alunos, na prática o foco tem sido as disciplinas avaliadas e, consequentemente, as matrizes de referências das avaliações estandardizadas.

No que tange ao estreitamento curricular, as análises das entrevistas evidenciam que no Estado de Pernambuco os docentes acreditam que, além de uma maior valorização das disciplinas de língua portuguesa e matemática, há uma cobrança demasiada.

Eu vejo que tem mais cobrança por conta disso, mas aqui o pessoal é tranquilo quanto a isso, só eu acho que deveria ter outras disciplinas também, a gente questiona muito isso, porque só português e matemática, sobrecarga pra cima da gente, tudo a gente tem mais trabalho, além da cobrança, e mais trabalho. Amanhã mesmo vai ter uma avaliação, quem resolve tudo, corrige tudo, eles mandam pra gente resolver, para os professores de Português e Matemática. [...] as outras disciplinas ainda não conseguem andar na mesma linha. (Professor 7)

O mesmo professor destaca ainda que “a gente sabe que em todo trabalho tem aqueles que se esforçam mais e os que se esforçam menos, mas na escola os índices só sobem por conta de Português e Matemática [...]” (Professor 7). Apesar de os sujeitos entrevistados mencionarem a importância das demais disciplinas, fica nas entrelinhas que o peso sobre o trabalho envolvendo os descritores e, consequentemente, as notas das avaliações, recai nos ombros dos professores de língua portuguesa e matemática.

Além de disciplinas, outra tendência é o estreitamento dos conteúdos, haja vista que os resultados das avaliações dependem dos bons indicadores da escola. Nesse cariz, é normal que se ensinem apenas as competências e habilidades que são contempladas nos testes, uma vez que no contexto neoliberal e de reforma empresarial na educação, os indicadores são tradutores de qualidade.

A padronização curricular é uma das tendências dos reformadores empresariais da educação. Em Pernambuco, a padronização e o estreitamento curricular ficam evidenciados na análise de conteúdo realizada por via da transcrição das entrevistas. “A gente segue um roteiro, a gente recebe um roteiro da Secretaria, e eu acho que 80, 90 que vai cair lá na prova está tudo ali naquele roteiro pra gente trabalhar com eles” (Professor 2).

Nesse cenário, os saberes mais valorizados estão diretamente relacionados às competências e habilidades mensuradas nas avaliações em larga escala que, por sua vez, não passam de matérias-primas exigidas e vinculadas pelo sistema capitalista, objetivando a manutenção de seu status quo. Para Freitas (2018, p. 81), essas características são típicas dos reformadores empresarias da educação e “se articulam a uma engenharia de ‘alinhamento’ (bases/ensino/avaliação/responsabilização), eliminando a diversidade e deixando pouco espaço para a escola ou para o magistério criar [...]”, além do esquecimento das especificidades que são particulares de cada instituição educacional.

De forma geral, percebe-se que, no Estado de Pernambuco, as práticas de gaming estão relacionadas, principalmente, à tendência à aprovação dos educandos e, também, à preparação para as avaliações do Saepe. Não ficaram evidentes indícios de retirada de alunos da sala e/ou quaisquer outras práticas.

Acredita-se que estas não sejam intencionais, mas oriundas de um contexto de baixa valorização profissional, baixos salários e o medo de ser culpado pelos baixos resultados de sua instituição escolar, ou seja, da pressão advinda do não cumprimento das metas, seja por parte do sistema, seja pelos próprios pares e da sociedade civil.

Regulação e cobrança pelos resultados

A regulação[4], via resultados dos indicadores educacionais, tem sido uma das principais prerrogativas advindas dos reformadores empresariais. No Estado de Pernambuco, os professores foram indagados a respeito da existência ou não de cobrança atrelada à implementação de dispositivos de accountability.

A concepção da escola aos moldes das empresas privadas tem trazido à tona a discussão acerca da escola eficaz. Para Laval (2004), impera a lógica de fazer mais com menos. Assim, se não há recursos suficientes para a melhoria da qualidade da educação em decorrência da redução desejada das despesas da esfera pública, o esforço deve estar voltado para um modelo de gestão mais racional.

Para auxiliar na gestão racional, Laval (2004, p. 188) menciona que existem dispositivos complementares como: “a definição de objetivos claros, a coleta de informações, a comparação internacional dos dados, as avaliações e o controle das mudanças[...]”. Em suma, a partir da incorporação do modelo gerencial, a escola “deveria passar, como na indústria, das técnicas de produção de massa a formas de organização fundamentadas no caminho da qualidade” (Laval, 2004, p. 188).

Nessa via, as influências do modelo gerencial na escola permitem a regulação e o controle da gestão dos conteúdos, das relações pedagógicas e, principalmente, do trabalho docente. No Estado de Pernambuco, a análise de conteúdo das entrevistas evidenciou que a palavra cobrança foi bastante mencionada na fala dos professores, os quais acreditam que tanto o Saepe quanto o sistema de bonificação implementado reforçam a cobrança por resultados e, consequentemente, para com o trabalho do professor.

Dos 19 profissionais entrevistados, 12, o que representa um porcentual de 63%, afirmaram sentirem-se mais cobrados em razão da implementação desses dispositivos. Os termos mais incidentes nessa categoria foram cobrança, pressão e cobrados por resultados.

A respeito dessa cobrança, uma professora de Língua Inglesa menciona que uma das partes mais estressantes é justamente o trabalho de acompanhamento, que deve ser realizado com os alunos que não estão acompanhando, ou seja, quando os alunos apresentam baixo desempenho, todos os professores são convidados a trabalhar com os descritores que são avaliados pelo Saepe.

A pressão é muito grande, então eu sei que quando você está aqui é porque o nome de Pernambuco está, a bandeira ela está fazendo, trazendo interesses de outros grupos, mas uma coisa é certa, os professores, eles são comprometidos, mas a cobrança por resultados não é justa, como também às vezes até a própria demanda, porque o programa aqui é excelente, os projetos excelentes, nós temos ideias boas, mas o que acontece de fato é que o professor é sobrecarregado [...] (Professor 19)

Na senda desse debate, é possível observar o fato de o Estado, na visão da entrevistada, ter boas propostas para a educação, “mas a condição, ela vem depois, e enquanto ela não vem são os professores que têm que dar uma solução” (Professor 19). Um aspecto interessante a ser observado nessa fala volta-se para o fato de que quando as condições não chegam, cabe ao professor encontrar uma solução, ou seja, é o docente quem está inserido na sala de aula, atuando diretamente com os alunos, e, consequentemente, o responsável pela efetivação do processo de ensino-aprendizagem e/ou da melhoria dos escores educacionais. Trata-se de um governo que cobra resultados, mas na maioria das vezes não proporciona condições de trabalho.

As análises das entrevistas evidenciam que a cobrança pelos resultados das avaliações e do BDE recaem, marcadamente, sobre os professores. No entanto, muitas vezes o próprio aluno não vê sentido em frequentar a escola, as famílias não são participativas, a sociedade do consumo e dos vícios é mais atrativa, e as condições adequadas de trabalho e de insumos não são suficientes para garantir uma educação de qualidade social. Portanto, os professores são os únicos responsáveis – e/ou seria melhor utilizar o termo culpados – pelo insucesso escolar de seus alunos.

Para um professor de Matemática:

Existem alunos que vêm para a escola para estudar e alunos que não vêm para estudar, como a gente tem casos aqui de alunos que dizem que só vêm porque a mãe manda, porque não gostam de estudar, aí você não pode fazer nada, porque ele já está dizendo que não gosta de estudar. (Professor 3)

No entanto, nessa conjuntura, é sobre o professor que incide a responsabilidade pela melhoria dos indicadores e pela superação dos problemas encontrados na sala de aula, sem levar em consideração as dimensões intra e extraescolares que incidem diretamente no conceito de qualidade.

Os professores destacam, também, que a pressão e a cobrança são ainda maiores quando se trabalha nas turmas avaliadas, pois dos seus resultados depende a classificação da escola no ranking do Estado.

Muito maior, muito maior, principalmente quando a gente tem séries terminais. No meu caso, que são nonos e terceiros, a pressão é enorme, porque os alunos vão fazer a prova que vai definir como que fica a escola no ranking do Estado, na prova do SAEPE a pressão é grande. A pressão começa lá de cima, eles pressionam a escola e a escola pressiona a gente, não é nada que você não possa fazer não, mas tem que ficar mais atento, trabalhar mais com texto, você tem que corrigir os textos com eles pra mostrar coisas que eles não conseguem enxergar no texto, coisas que eles não conseguem entender e fazer. (Professor 1)

Os dispositivos de accountability operam como mecanismos a serviço da regulação por resultados. Nessa via, acredita-se que o Estado faz uso de instrumentos de regulação verticalizados e de microrregulações, haja vista que as falas dos sujeitos entrevistados remetem às cobranças advindas da Secretaria Estadual de Educação para com a gerência, desta para com a escola e da escola para com os professores, e também entre os próprios professores.

A cobrança por resultados e, consequentemente, a pressão aumentam nos anos avaliados e para os profissionais de língua portuguesa e matemática, pois no caso destes a pressão advém, também, dos próprios colegas de trabalho. “Nós, os professores de Português e Matemática, somos acompanhados de perto, muito de perto, pra cada assunto que estamos trabalhando. O controle interno é um sistema, o Siepe, esse sistema força a gente a dar 100% dos conteúdos” (Professor 8).

Outro professor menciona, ainda, que:

A cobrança é muito grande, é uma sobrecarga. O foco principal, os holofotes estão sempre ligados em nossa direção, porque eles tentam dar o resultado do plano de educação deles, mas é especificamente Matemática e Português, eles esquecem os outros contextos que são importantíssimos. (Professor 17)

Uma questão que é fato e fica em evidência é esse regime de cobrança vivenciado pelos profissionais: um vigia o outro, pois qualquer ação pode colocar em risco o pagamento do bônus educacional. Trata-se da busca por culpados e de uma das lógicas dos reformadores empresariais da educação.

Um discurso ambíguo que responsabiliza o professor pela má qualidade da educação e, simultaneamente, lhe confia a ‘missão’ de produzir sua boa qualidade somada às novas formas de gestão e organização da escola tem repercussões sobre a identidade profissional do professor: culpado pelo fracasso e simultaneamente responsável pelo sucesso do aluno. (Shiroma & Evangelista, 2011, p. 143)

Aqui cabe problematizar se os professores do Estado de Pernambuco estão sendo responsabilizados pelos resultados educacionais e/ou culpabilizados, uma vez que a implementação de dispositivos de responsabilização exclusivamente para com as escolas e seus professores culmina em uma política de culpabilização.

É como se a gente fosse culpado, porque a gente dá o suor e aí o resultado não é esperado e aí a gente é chamado a atenção ‘professora, seus alunos não estão aprendendo, vocês são incompetentes’, a gerência chama, aí pra ninguém ir pra gerência e ser chamado de incompetente acham melhor passar todo mundo e deixar tudo quieto. (Professor 9)

Para melhor compreender essa diferenciação entre responsabilização e culpa, Arendt (2004, pp. 213-214) destaca que “há uma responsabilidade por coisas que não fizemos; podemos ser considerados responsáveis por elas. Mas não há um ser ou considerar-se culpado por coisas que aconteceram sem que se tenha participado ativamente delas”. Ainda, acrescenta que: “A culpa, ao contrário da responsabilidade, sempre seleciona, é estritamente pessoal. Refere-se a um ato, não a intenções ou potencialidades” (Arendt, 2004, p.214).

Sintetizando, a culpa é estritamente pessoal, e a responsabilização possui um caráter coletivo, em que cada um, por fazer parte de um grupo, assume as suas responsabilidades.

Corroborando essas definições, é assim que os dispositivos de accountability têm operado, ou seja, fazendo com que os profissionais se sintam culpados e passíveis de serem julgados pelos resultados de seus alunos.

Eu me sinto culpada todos os dias, quando vem uma prova externa você tenta fazer de tudo e se não saiu do jeito que você pensava, né, porque quando a gente trabalha, leva tanto material concreto pra sala, fica tentando fazer da melhor forma pra ver se desperta, pra ver se menino levanta, vamos estudar, e aí esse sentimento de culpa eu tenho toda hora, diariamente. (Professor 2)

A implementação de dispositivos de responsabilização atrelados a incentivos financeiros pode reconfigurar a lógica do que ensinar e aprender no interior das instituições educativas, assim como a própria subjetividade da profissão docente, pois interfere na forma como esses profissionais se relacionam com os seus pares e alunos.

É importante salientar que a regulação exercida, tomando por base os dispositivos de accountability implementados, não incide apenas sobre a escola e o professor, mas também remete ao currículo, ou, mais especificamente, ao que se ensina no interior das escolas. Nesse lume, ninguém está a salvo dos olhos dos agentes da regulação, principalmente no que diz respeito às funções da educação na contemporaneidade.

O Estado pressiona muito, e a direção, por sua vez, pressiona o professor, então assim traz essa pressão que eu acho desnecessária, eu acho, sabe. Você trabalhar assim em cima de resultados, tudo bem, eu acho que é valido para o planejamento, pra gente buscar determinado resultado, ok, é válido, mas quando isso não acontece, a escola é penalizada, a gente fica como sendo uma escola prioritária, a gente não tem autonomia muitas vezes pra fazer determinadas coisa porque o Estado não permite, entende, aí fica como se estivesse alguém de olho em tudo o que você faz e diz. Não perde a autonomia abertamente, mas a gente acaba ficando muito vigiado, porque, por exemplo, dentro do Estado tem 200 escolas e 10 são prioritárias, ou seja, 190 tiveram resultados positivos, o Estado não se importa muito porque ela conseguiu chegar a esse resultado sozinha, mas aquelas 10, cada escola tem uma pessoa específica pra olhar, fazer relatório. (Professor 8)

É interessante observar, na fala desse profissional, como os olhares se voltam para as escolas prioritárias. Estas são acompanhadas mais de perto pelo Estado de Pernambuco, uma vez que não alcançaram as metas estabelecidas. Percebe-se, nas conversas com os entrevistados, um certo medo em se tornar uma escola prioritária.

Quando estamos sendo escola prioritária, que é o caso de agora, os professores falam assim: Ave Maria, eu não aguento mais. Porque a pressão é muito voltada só aqui, pra poder alavancar, subir, e aí a gente fica sendo olhado, nada se pode fazer, tudo é regido bem na rédea mesmo. Esse ano estavam comentando quantos por cento caiu, eu nem fico muito ligada. (Professor 2)

Um aspecto interessante a ser observado nessa categoria de análise foi que a cobrança, segundo os profissionais, parte do que eles chamam de sistema, mas também entre os próprios profissionais, marcadamente, na hora de decidir pela aprovação ou não dos alunos, ou seja, é vertical e horizontal.

De forma geral, a implementação de dispositivos de accountability remete à discussão de que o Estado abarca as organizações da sociedade civil e que estas, por sua vez, buscam ampliar as estruturas de dominação, ou seja, vislumbra-se a construção da hegemonia pela fração burguesa e o Estado como instituição central na busca pelo consenso, seja por via de força coercitiva ou de meios institucionais.

A esse respeito, cabe destacar as atualizações ocorridas no conceito de sociedade civil, dadas as modificações sociais, econômicas e políticas vislumbradas no transcorrer dos anos, principalmente, segundo Casimiro (2018, p. 27), as relacionadas à “desarticulação de movimentos sociais e trabalhistas [...] e à naturalização de um novo significado de ator social – através da atuação dos aparelhos privados de hegemonia e dos meios midiáticos”.

É a partir dessa nova organicidade da sociedade civil que as políticas de avaliação, prestação de contas e responsabilização ganham proeminência, indelevelmente por traduzirem a demanda de arranjos institucionais coordenados por grandes empresas e corporações financeiras, ou seja, do bloco de poder que exerce influência sobre o estado capitalista.

Considerações Finais

No Estado de Pernambuco, a implementação de dispositivos de accountability acompanha o movimento histórico internacional e nacional que se inicia com a proposta de reformulação do modelo de administração pública em voga e adentra o âmbito educacional sob a justificativa de melhoria dos indicadores educacionais e das mazelas que afligem a educação.

Pernambuco, além de participar das iniciativas das avaliações nacionais, traçou estratégias locais que operam por via de sua própria política de avaliação, prestação de contas e responsabilização. Cabe mencionar que a operacionalização da regulação educacional pode ser vislumbrada no estabelecimento de metas a serem cumpridas pelas instituições educacionais, bem como pelo pagamento de bonificações atreladas aos resultados educacionais.

Nesse viés, o modus operandi dessa política está pautado na instituição de um sistema próprio de avaliação e de um indicador sintético, denominados, respectivamente, Saepe e Idepe; na pactuação de um conjunto de metas anuais para as instituições de ensino; e no pagamento de bonificações aos profissionais que lograram as metas propostas. Além desses elementos, faz-se relevante mencionar o painel de gestão, que deve ser fixado em local visível em todas as escolas estaduais. Trata-se de um instrumento de prestação de contas para com a sociedade em geral.

De forma geral, foi possível identificar que os dispositivos de accountability têm acarretado inúmeros efeitos, indelevelmente, em relação ao trabalho docente, uma vez que sob o discurso de melhoria dos indicadores, professores são cobrados e até culpabilizados pelos resultados dos escores educacionais.

Acredita-se que, da forma como os dispositivos de accountability vêm sendo operacionalizados no Estado de Pernambuco, remetem a um modelo hierárquico, que consubstancia uma ideia de responsabilização que, por sua vez, muito mais se parece com um sistema de culpabilização, além de conceber a accountability, precipuamente, sob um viés gerencialista e neoconservador.

O Estado está muito aquém de coadunar com um modelo de accountability democraticamente avançado que de fato integre as dimensões da avaliação, da prestação de contas e da responsabilização, ou seja, um modelo que se consubstancie em valores democráticos que envolvam a cidadania, o direito à informação, a participação, o empowerment e a prestação de contas.

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[1]Neste artigo, será esta a concepção de accountability que norteará as análises empreendidas.

[2]A utilização do termo efeitos provém da necessidade de compreender que a política não possui apenas resultados, mas, sim, efeitos. Nessa via “as políticas deveriam ser analisadas em termos do seu impacto e das interações com desigualdades existentes” (Mainardes, 2006, p. 55).

[3]São denominadas de prioritárias as escolas que não alcançaram as metas estabelecidas pelo Estado.

[4]O termo regulação aqui é tratado como sinônimo de controle.

Recebido: 10 de Fevereiro de 2021; Aceito: 22 de Abril de 2021

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