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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub July 02, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202135543 

Artigos

Escola sem Partido e as discussões de gênero e sexualidade: impactos curriculares

Escuela sin Partido y las discusiones de género y sexualidad: impactos curriculares

Unpolitical School and the discussions of gender and sexuality: curricular impacts

Marina Silveira Bonacazata Santos1 
http://orcid.org/orcid.org/0000-0003-4570-2164

Maria Carolina Miesse2 
http://orcid.org/0000-0002-9694-7009

Fabiana Aparecida de Carvalho3 
http://orcid.org/0000-0002-6746-4200

Leonardo Cordeiro de Queiroz4 
http://orcid.org/0000-0003-1608-3499

Vânia de Fátima Matias de Souza5 
http://orcid.org/0000-0003-4631-1245

1Mestranda em Educação para a Ciência e a Matemática pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Grupo de Pesquisa em Formação de Professora de Ciência e Matemática (ForPCiM).

2Mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Física Escolar (GEEFE/CNPq).

3Doutora em Educação para a Ciência e a Matemática pela Universidade Estadual de Maringá (2018), Professora Adjunta do Departamento de Biologia, Universidade Estadual de Maringá. Coordenadora do Grupo de Estudos das Pedagogias do Corpo e da Sexualidade (GEPECOS/UEM).

4Mestrando em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Educação Física e Políticas Educacionais (GEEFE-CNPq).

5Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2014). Professora Adjunta do Departamento de Educação Física da Universidade Estadual de Maringá. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Educação Física e Políticas Educacionais (GEEFE/CNPq).


Resumo

A investigação objetiva analisar o impacto do conservadorismo do Movimento Escola Sem Partido (MESP) na abordagem das temáticas de gênero e sexualidade dentro da política curricular da educação básica brasileira. Ancorada em análise documental, a pesquisa discute a conjuntura histórica e educacional e a conformação das ideologias do movimento nas políticas educacionais, em especial, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Assim, o texto discorre sobre a história do programa, bem como aborda o combate às questões de gênero pautado em uma postura conservadora e sua relação com a aprovação da BNCC.

Palavras-chave Sexualidade e Gênero; Neoconservadorismo; Escola sem Partido

Resumen

La investigación tiene como objetivo analizar el impacto del conservadurismo del Movimiento Escuela Sin Partido (MESP) en el tratamiento de las cuestiones de género y sexualidad dentro de la política curricular de la educación básica brasileña. Anclado en el análisis documental, discute la coyuntura histórica y educativa y la conformación de las ideologías del movimiento en las políticas educativas, especialmente en la Base Curricular Nacional Común (BNCC). Se señala la historia del programa, así como la lucha contra las cuestiones de género en una postura conservadora y su relación con la aprobación de la BNCC.

Palabras clave Sexualidad y Género; Neoconservador; Escuela sin Partido

Abstract

The research aims to analyze the impact of the conservatism of the Unpolitical School Movement (MESP) in addressing gender and sexuality issues within the curriculum policy of Brazilian basic education. Anchored in documental analysis, it discusses the historical and educational conjuncture and the shaping of the movement's ideologies in educational policies, especially in the National Common Curricular Base (BNCC). The history of the program, the fight against gender issues in a conservative posture and its relationship with the approval of the BNCC are pointed out.

Keywords Sexuality and Gender; Neoconservatism; Unpolitical School

Introdução

Desde 2010, os debates públicos conservadores, em prol de valores morais tradicionais ressurgidos de uma linha hegemônica do pensamento de direita advindo de fundações estadunidenses, ecoaram na sociedade brasileira, passando a divulgar e a promover grupos de intervenção nacionais e transnacionais (Mayer, 2016). Esse movimento ideológico se fortaleceu no país com a sinalização de indicadores, por exemplo, o fundamentalismo religioso que, após a década de 1990, exerceu uma considerável força política por meio de investimentos, sobretudo das igrejas neopentecostais, em prol da eleição de suas/seus pastoras/es (Machado, 2006).

O discurso acerca do anticomunismo é fortalecido, tornando-se "uma força decisiva nas lutas políticas do mundo contemporâneo, alimentado e estimulado pela dinâmica do inimigo que era sua razão de ser, o comunismo" (Motta, 2000, p. 5). Assim, ganha força uma ideologia marcada pela heterogeneidade do discurso relativo aos limites da liberdade de expressão, que resulta na limitação da liberdade de ensino (Freeman, 2002).

É perceptível a disseminação de uma ideologia hegemônica acerca da necessidade do apartidarismo na educação pública, subsidiada pela generalização de discursos sobre neutralidade política, ideológica e religiosa na formação das/os estudantes, sendo estas/es abraçadas/os por uma concepção de educação da ala conservadora, a fim de se propagar a hegemonia de um pensamento, pois só assim é possível disseminar uma (in)verdade.

Como afirma Gramsci (1999), é com a hegemonia que se tem a predominância de uma liderança moral e intelectual, do consenso; liderança moral, porque um grupo torna-se protagonista das demandas sociais de outros grupos. Para o autor, a supremacia de um grupo social sobre outro ocorre por intermédio da coerção e da dominação que se propaga na sociedade com a estratégia de policiamento e censura à escola via conteúdos educacionais e sob o discurso marcado pela controvérsia e ilegalidade da ausência (a)partidária.

Nesse contexto, surgiu no Brasil o Movimento Escola Sem Partido (MESP), incorporando uma parcela significativa da sociedade que profere uma concepção de educação conservadora, que engloba vigília, policiamento e censura aos conteúdos educacionais e ao posicionamento crítico das/os professoras/es. O MESP, fundado em 2004, configura-se como uma “[...] iniciativa conjunta de estudantes e mães/pais preocupadas/os com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior” (Escola sem partido, 2020).

Constituído esse cenário, a discussão apontada nesta pesquisa, caracterizada como bibliográfica e de caráter documental (Marconi & Lakatos, 2001), tem como objetivo analisar as implicações do discurso neoconservador contido no MESP, no que concerne à abordagem de temas relacionados ao gênero e à sexualidade na política curricular da educação básica brasileira, especialmente, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). As reflexões apresentadas subsidiam-se na leitura de documentos legais e institucionais (Projetos de Lei) e informações disponibilizadas nas redes pelo MESP, para que as interlocuções sejam possíveis e não impostas, como clamam as/os defensoras/es de uma pseudoação ideológica veiculada por uma educação reguladora e desconexa de atitudes comprometidas com a formação humana da sociedade.

A ideologia contrária aos estudos de gênero e a origem do MESP: a simbiose e a origem das indiferenças

O MESP foi fundado pelo advogado Miguel Nagib, ex-procurador do Estado de São Paulo, conforme destaca o texto intitulado: “Caso Sigma” que narra um episódio ocorrido em 2003 no Colégio Sigma (DF), tendo como protagonistas a filha de Nagib e seu professor de história (Escola sem partido, 2020). Na discussão posta em pauta nesse texto, pelo idealizador do MESP, o professor teria comparado Che Guevara, líder da Revolução Cubana, a São Francisco de Assis, um santo católico, nominando-o como grande figura transformadora da humanidade; porém, para Nagib, a comparação significou uma ofensa, cujo resultado foi uma carta-denúncia entregue ao docente e à direção, além de ser distribuída em frente à escola para mais de 300 pessoas frequentadoras do colégio.

A iniciativa não teve a repercussão esperada, pois a direção e as/os estudantes se mobilizaram em defesa do professor. Essa ação inicial resultou na congregação de famílias para se constituir um movimento contra uma suposta doutrinação ideológica nas escolas (Escola sem partido, 2020). Na sequência, o movimento foi apoiado por Olavo de Carvalho, defensor da ideia de uma guerra híbrida pela qual a esquerda avança e conquista a hegemonia cultural, doutrinando sujeitos no âmbito da sociedade civil (Furlan & Carvalho, 2020). Essa coligação agrega adeptas/os de crenças difusas e encabeçadas por grupos de direita e/ou extrema direita, no Brasil, ampliando a visibilidade das/os seguidoras/es do MESP.

Em 2014, conforme destacam Espinosa e Queiroz (2017), a onda conservadora fortalecida após as manifestações de 2013, que defendiam o afastamento da Presidenta Dilma Rousseff (2011/2016), favoreceu o crescimento do MESP, espalhando ideias pelo Brasil na forma de Projetos de Lei (PL), discursos políticos e discussões via redes sociais. No bojo da crise política polarizada na sociedade brasileira delineada nas manifestações decorrentes das reivindicações do “Passe Livre”, “Não vai ter copa”, “Fora PT”, o MESP e vários grupos políticos conservadores de oposição ao governo Dilma reforçaram o discurso de responsabilização de seu partido pela suposta doutrinação ‘comunista-homossexual’ (Moura, 2018, p. 91).

Esse fato, segundo Carvalho (2020), estabelece em sua discursividade um inimigo comunista. Enseja-se um propósito de manipulação da população para que os direitos sejam deslegitimados, por meio do esvaziamento dos ensinamentos das escolas; assim, os setores de extrema-direita atacaram a educação para as sexualidades, concebendo-a como uma conspiração comunista empenhada na destruição da família, na imposição de práticas sexuais anormais e no enfraquecimento da soberania nacional.

Com a vinculação do comunismo à homossexualidade, o movimento angariou muitas/os adeptas/os, especificamente, quando iniciou o combate a uma suposta “ideologia de gênero” (Espinosa & Queiroz, 2017; Carvalho, 2020; Furlan & Carvalho, 2020). Embora a educação para as sexualidades seja pautada nos documentos educacionais, a promoção de discussões generificadas caminha timidamente para ser adotada nas políticas educacionais brasileiras (Marafon & Souza, 2018) e enfrenta cenários de resistência e também de lutas para sua implementação [1] .

A abertura às discussões de gênero e sexualidade na escola foi “[...] uma pequena conquista, forçada pelos movimentos sociais e outros coletivos” (Marafon & Souza, 2018, p. 79). Entretanto, a regulação da temática sofre idas e vindas e, no cenário político atual, em virtude da representatividade de políticos conservadores e fundamentalistas religiosos, as políticas públicas educacionais de combate à violência e à desigualdade de gênero vêm se indeterminando nas escolas públicas brasileiras.

Um exemplo desse contexto é a extinção do Programa Brasil sem Homofobia [2] (Brasil, 2004). Em 2011, apoiadoras/es do MESP, bem como certas facções católicas e neopentecostais ocupantes de cadeiras no Congresso Nacional e influentes em alguns grupos sociais, oprimiram com intensidade o programa, argumentando que o material produzido pelo Escola sem Homofobia seria uma propaganda LGBT+ ou uma espécie de “kit gay” responsável por converter estudantes em homossexuais e por transformar o estudo do gênero em um laboratório de perversão nas escolas (César & Cunha, 2016; Furlan & Carvalho, 2020). Tal posição levou Dilma Rousseff a vetá-lo, fato que angariou adeptos contrários a uma suposta “ideologia de gênero”.

Conforme elucidam Furlan e Carvalho (2020), o termo “ideologia de gênero” é fantasioso e não corresponde aos estudos de gênero advindos das teorizações feministas, do campo da militância LGBT+ e das mulheres, bem como da luta pelos direitos humanos. Trata-se de uma expressão surgida no seio da Igreja Católica Romana, nos anos de 1990, para combater o avanço das pautas sobre direitos sexuais e as agendas mundiais de combate à violência contra mulheres e minorias sexuais. Após a emissão de diversos documentos canônicos, o tema foi adotado por algumas igrejas neopentecostais e evangélicas e por políticas/os representantes desses setores.

Em 2014, o MESP aproveitou-se das pressões na votação do Plano Nacional de Educação, dos Planos Estaduais e Municipais e da exclusão das metas referentes ao combate à desigualdade de gênero na redação de tais documentos (Penna, 2015; Carvalho, 2020). Após longos debates, muitas casas legislativas no país decidiram excluir o termo gênero dos planos por acreditarem que esse é um debate danoso à infância e à juventude.

Esse conservadorismo encorpa em “ideologia de gênero”, a partir de manifestações como ‘Marcha das famílias contra o comunismo’, ‘as/os militares novamente no poder’ e a “[...] ‘Bancada BBB’ – Bala, Bíblia e Boi -, ou seja, parlamentares ligadas/os à indústria de armas, militares, religiões e interesses econômicos, com pouco ou nenhum comprometimento com as pautas sociais, inclusive a educação pública de qualidade” (Reis, 2016, p. 118). Nessa concepção descompromissada com as pautas sociais e com a educação, o MESP dissemina a defesa contra a doutrinação marxista e a “ideologia de gênero”, tentando traduzir suas ideias na apresentação de PL, em âmbito municipal, estadual e federal, objetivando institucionalizar-se legalmente como um sistema educacional de patrulha escolar.

Em 2014, o deputado pastor Erivelton Santana (Patriota-BA), ligado à Assembleia de Deus e à Frente Parlamentar Evangélica, apresentou na Câmara dos Deputados um projeto exigindo o respeito às convicções religiosas familiares dentro da escola (PL n. 7.180/2014) (Brasil, 2014). Em 2015, o deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) protocolou projeto semelhante (PL n. 867/2015) (Brasil, 2015) e, desde então, diversos PL’s [3] foram apresentados no Congresso por pessoas como o senador Magno Malta, pastor evangélico, e a deputada Bia Kicis, cunhada de Miguel Nagib e representante de sistemas particulares de ensino. Os PL’s mais recentes encontram-se apensados a outras proposições mais antigas que versam sobre a inclusão do MESP na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Brasil, 1996).

O MESP apresenta argumentos advindos de sua interpretação do Decreto n. 678/1992 (Brasil, 1992), encobrindo seu viés ideológico com o argumento de que as/os mães/pais escolham a educação religiosa e moral de suas/seus filhas/os, de acordo com as próprias convicções. Propositalmente, a interpretação do MESP oculta partes do documento e representa uma leitura enviesada, no que tange à posição da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabelece o direito à promoção do pleno desenvolvimento, com respeito à liberdade e à diversidade (Carvalho, 2020).

Percebe-se que a questão da doutrinação ideológica se destaca nos PL’s como um desequilíbrio do jogo político, da moralidade e da família; assim, esses projetos de lei amparam-se na crença religiosa para fomentar discussões acerca do gênero e da sexualidade. Os dois PL’s mais recentes, protocolados em fevereiro de 2019, pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) e pelo deputado Pastor Eurico (PATRIOTAS-PE), apontam para a perseguição às liberdades de expressão e de ensino, pois tentam assegurar às/aos estudantes o direito de gravar as aulas (Brasil, 2019a), de modo a garantir que a educação não desenvolva práticas de ensino que “[...] tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual” (Brasil, 2019b).

Conforme apontam Furlan e Carvalho (2020), o MESP contribuiu para a instauração de pânico moral e político no imaginário da população brasileira, ao classificar as questões de gênero como uma ameaça à nação e aos valores tradicionais. Mesmo com a emissão de notas técnicas pelo Ministério Público e declarações de inconstitucionalidade julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os PL’s não param de ser protocolados nas esferas estadual e municipal, de forma que as discursividades reacionárias dominam o imaginário popular.

Constantemente se reinventando como movimento reativo, o MESP intenta esvaziar a formação cidadã, projetando desigualdades estruturantes para as/os estudantes que se diferem das sexualidades e dos padrões normativos de gênero.

O combate à “ideologia de gênero”: desvelando o conservadorismo da proposta

Conforme discutido anteriormente, o MESP tem promovido a ideia de que a discussão de gênero é nefasta para as/os estudantes. Mas, o que seria, afinal, essa temida “ideologia de gênero” a ser varrida da educação básica brasileira?

Por ideologia compreende-se “[...] o conjunto de ideias incutidas em nossa cabeça e que fundamentam nossos valores e motivam nossas atitudes” (Betto, 2016, p. 66). Essas ideias não surgem ao acaso, mas possuem como gênese contextos sociais, históricos e culturais, nos quais o sujeito se insere, uma vez que vive em meio a discursos, valores, tradições, posições familiares e religiosas, narrativas de comunicação e de cultura de massa.

Para Eagleton (1997), a ideologia envolve o agrupamento de ideias oriundas de classes sociais, as hierarquias que as controlam, a disseminação de ideias falsas ou não, a distorção de fatos e a prevalência de visões de mundo hegemônicas, um sistema de convencimento com finalidades de manutenção do status quo econômico, e questões relacionadas com a apreensão de ideias, na educação e na formação dos diferentes grupos culturais. Com o uso da palavra ideologia como argumento de autoridade, o MESP desconsidera a complexidade das definições e discussões, reduzindo-a a uma ideia impositiva das visões dos grupos críticos ou esquerdo-partidários contrários ao pensamento hegemônico, cuja finalidade, segundo o MESP, seria desconstruir a ordem.

A ideologia relaciona-se com o gênero, conforme os apoiadores do MESP. Entretanto, a vinculação da palavra ideologia à palavra gênero, bem como a criação da expressão “Ideologia de Gênero”, não é novidade do movimento. Essa vinculação foi efetivada pela Igreja Católica, nos anos 1990, a fim de combater o avanço dos direitos sexuais, a emancipação feminina e a militância LGBT+ em relação ao casamento homoafetivo.

Segundo Carvalho (2020) e Junqueira (2017), o Vaticano criticou a Conferência para as Mulheres de Pequim por compreender tal conferência como propagadora de uma agenda de gênero, cuja finalidade seria corromper setores públicos, escolas e a família. A catequização defensora da família conjugal, da complementariedade homem e mulher para a reprodução e para perpetuação dos valores tradicionais, mas também um sistema de vigília contrário à liberdade sexual, aos direitos reprodutivos e ao ativismo LGBT+ em prol da constituição de famílias não convencionais. Desde então, a Igreja tem insistido em distorcer as pautas de gênero da ONU e se posicionado de maneira reativa à educação para as sexualidades e ao gênero nas escolas e demais instâncias sociais.

Na América Latina, o cardeal argentino Jorge Scala foi um grande propagador das posições eclesiais quando publicou o livro “Ideologia de Gênero: o neototalitarismo e a morte da família”. Em entrevista, o líder religioso afirmou sua decisão de escrever o livro, pois:

[...] a ONU criou uma Agência do Gênero. Essa agência se dedica a controlar que todos os organismos e programas da ONU incluam o gênero. Por sua vez, a União Europeia e o Banco Mundial condicionam os empréstimos para o desenvolvimento dos países pobres, por cláusulas da difusão de Gênero. Finalmente, se incorporou o gênero no sistema educacional dos nossos países. Dado tudo isto, é necessário investigar o que é o gênero. (Siqueira, 2012, s.p.)

Em 2007, no Brasil, a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (Celam), realizada na cidade de Aparecida (SP), fortaleceu a posição da Igreja contra a “ideologia de gênero”, apresentando a seguinte orientação:

[...] entre os pressupostos que enfraquecem e menosprezam a vida familiar, encontramos a ideologia de gênero, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana. Isso tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família. (Celam, 2007, p. 45)

As argumentações derivadas do Documento de Aparecida sobre os riscos de reduzir as religiões a um sistema político e sobre o avanço das agendas de gênero na cristandade migraram da igreja católica para as igrejas neopentecostais e evangélicas que recorrem atualmente à “palavra de deus numa massiva investida contra os princípios laicos do Estado e contra a Ideologia de Gênero da esquerda” (Carvalho, 2020, p. 170).

Dada a representatividade religiosa nas casas parlamentares brasileiras, a repressão do gênero e das sexualidades cresceu e se espalhou na expressão difusa que une o conceito de ideologia – um argumento de convencimento de massa – ao conceito de gênero - um direito pessoal não compreendido pelas igrejas como uma categoria de emancipação. Essa concepção canônica deturpa e indetermina campos de estudos e da militância que se valem do gênero e das sexualidades para analisar as desigualdades sociais e as violências direcionadas às mulheres e à sociedade LGBT+.

O MESP apoderou-se da expressão “ideologia de gênero” como argumento de autoridade e estratégia de convencimento para empreender sua proposta de alteração da LDB, patrulhar e proibir a abordagem de conteúdos associados às questões de gênero e sexualidade no ambiente escolar, principalmente, após o processo de Impeachment da presidenta Dilma Rousseff, quando o movimento se intensificou, abarcando a “ideologia de gênero” em sua pauta de combate à doutrinação ideológica, em uma realidade de crescente avanço das pautas neoconservadoras [4] que:

[...] se expressa com uma violência discursiva surpreendente, exprimindo as formas mais arcaicas de preconceito e de opressão, manifestando-se em movimentos que se auto identificam como de direita ou de extrema direita e que se organizam em defesa da família, de Deus e pelo retorno do regime militar que governou o país, por meio de uma ditadura, durante 21 anos (1964-1985). (Oliveira, 2020, pp. 4-5)

Há uma violência discursiva para a imposição de uma sociedade desigual, preconceituosa e arraigada a instituições como a família e a igreja. Segundo Peroni e Lima (2020), esse processo vislumbra uma (con)formação para a cidadania corporativa, despolitizada, sem solidariedade, que contribui para a financeirização das relações e para o empreendimento das regras de mercado.

O movimento utiliza-se de apelos fascistas como estratégia de convencimento da grande maioria da população, a fim de tornar a escola básica brasileira atrelada aos interesses financeiros. Conforme aponta Lockmann (2020), o fascismo molar, disseminado pelas macropolíticas governamentais e de Estado, subsidia o fascismo molecular [5] das massas, das crenças e dos sistemas de representação, colocando em risco a democracia.

Nas opiniões de Oliveira (2020) e Carvalho (2020), o MESP e as políticas neoconservadoras promovem a indeterminação das escolas na formação da cidadania, ao se expressarem com estratégias amplas, tais como: campanhas educacionais, inversão de discursos e manipulação de explicações, disseminação de representações, promoção de canais ou dispositivos para denúncias, exposições de professores, incentivo à filmagem de aulas e atividades pedagógicas e naturalizações de comportamentos, atitudes e valores fóbicos responsáveis por gerar um senso comum e transformar o inaceitável e a falta de respeito em condutas éticas e aceitáveis, corroborando também as pedagogias fascistas em nível molar e molecular.

Mais recentemente, em abril de 2020, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da proibição dos debates sobre gênero e sexualidade nas escolas. A decisão foi tomada por unanimidade após o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 457, que questionou a constitucionalidade de (a) lei aprovada pelo município de Novo Gama (GO). Com essa lei (Novo Gama, 2015), o município proibia o debate sobre gênero e sexualidade, atrelando-o à doutrinação ideológica (Carta Capital, 2020).

A ação foi proposta pela Procuradoria Geral da República, em 2017, e abriu jurisprudência para se barrar leis já votadas e PL’s persecutórios aos estudos e debates de gênero, considerando-os inconstitucionais, especificamente, porque o STF entendeu que esse tipo de dispositivo viola o direito à igualdade, censura as atividades culturais, indetermina a laicidade do Estado, além de violar o direito à liberdade de se expressar, de aprender, de ensinar, de pesquisar e de divulgar o pensamento, a ciência, a arte e o saber.

Após outra posição do STF, em agosto de 2020, o fundador Miguel Nagib declarou seu desligamento do MESP e de canais de combate à doutrinação por ele articulados em reação ao julgamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade da Lei n. 7.800/2016, do Estado do Alagoas (Alagoas, 2016). A decisão do Supremo selou a jurisprudência para questionar e regular todas as matérias, PL´s e pautas relacionadas ao movimento que tramitam no país, tornando-as, portanto, inconstitucionais.

Apesar dessa pequena vitória, como pânico moral (Furlan & Carvalho, 2020; Junqueira, 2017) e investida fiscalizadora das liberdades escolares, o MESP se caracteriza como uma tática de controle e um discurso a rondar as escolas, justamente porque deslocou o pensamento restrito a grupos conservadores e religiosos para o imaginário das famílias e de algumas/alguns educadoras/es, convertendo-se em um programa que visa a universalizar a sexualidade bem-comportada e o gênero como sinônimo de sexo, compreendido sob o viés do determinismo da natureza e da biologia e como regimento do Estado. Além disso, o movimento continua sendo divulgado em redes sociais e reconfigura seu discurso para adequar-se às novas propostas de criminalização da educação para o corpo, a sexualidade e o gênero, em defesa do “homescholling”, como meta a ser cumprida na educação básica, e dos processos de militarização e disciplinamento das escolas. Destarte, é importante destacar que o MESP não está extinto.

Basta uma rápida pesquisa no site do MESP para se deparar com relatos de alunas/os, familiares ou seguidoras/es do programa invertendo a importância da educação para as sexualidades e o gênero e criticando atividades escolares motivadoras do respeito à diversidade e do combate às LGBTfobias (Escola sem partido, 2020) [6] . O movimento corrobora a discursividade fundamentalista de certas facções religiosas católicas e neopentecostais, ao equiparar a presença do gênero e da sexualidade a um experimento de modificação dos corpos e das subjetividades das/os estudantes.

Essas estratégias combatem veementemente a perspectiva de que a identidade de gênero é constructo social e subjetivo, além de reproduzir “a diferença sexual binária - homem versus mulher; com a hierarquia dessa divisão; com a dominação masculina; e com a crença de complementaridade sexual homem-mulher, compulsoriamente heterossexual” (Marafon & Souza, 2018, p. 76).

O que desejamos colocar em evidência, portanto, é a existência do propósito moralista de conservação de determinados valores que subsidiam os preconceitos existentes em nossa sociedade, isto é, o estabelecimento do machismo, dos sexismos e a culpabilização das pessoas que não se ajustam às normas e aos padrões hegemônicos de gênero e sexualidade e não se sentem representadas nessa sociedade. Além disso, essas estratégias funcionam como instrumentos de intimidação que podem promover alterações substantivas na cultura escolar e reduzir a função formativa das instituições de ensino, diminuindo a qualidade pedagógica, o desenvolvimento da autonomia, a capacidade de desenvolver o pensamento crítico, além de desconsiderar a escola pública como local de construção coletiva.

Ao compreender os vieses do MESP, torna-se perceptível que estamos diante de um controle social/ideológico realizado com certas políticas coercitivas. Essas concepções são próprias do contexto de avanço do neoconservadorismo, atravessam as políticas educacionais e determinam a forma de ser da escola. Assim, o programa apregoa “a hierarquização da educação religiosa e moral frente à descaracterização dos conteúdos científicos, pedagógicos e afirmativos sobre tais temáticas sociais e sobre as alteridades e as diferenças” (Carvalho, 2020, p. 175). Essa hierarquização, segundo Carvalho (2020), coloca em risco a educação de qualidade, considerando que seu controle pedagógico, a partir de práticas de vigília, denúncia e aumento da interferência parental/privada na escola, vislumbra a imposição de uma verdade única e o apagamento do pluralismo de ideias e da liberdade de aprender, logo, configurando-se como ideológica.

Torna-se perceptível que estamos diante de um controle social advindo de certas políticas coercitivas. Conforme lembra Mészáros (2002, p. 1008), “programas e instrumentos de ação sociopolíticos verdadeiramente adequados só podem ser elaborados pela prática social crítica e autocrítica no curso do seu efetivo desenvolvimento”. Assim, privar a escola desse potencial é projetá-la para um futuro de desigualdades e proibições de seu papel socializador e formativo.

Gênero e sexualidade na BNCC: influência conservadora do MESP na definição dos rumos da política curricular brasileira

As questões de gênero e sexualidade consubstanciam a superação de preconceitos e de visões enviesadas por posições religiosas, políticas, fóbicas ou violentas. Na atual política brasileira, entretanto, ideários conservadores, alinhados a tendências fascistas, têm colocado em xeque discussões associadas à diversidade sexual e cultural na escola. Essa conjuntura acaba impactando, ainda que indiretamente, na composição de documentos educacionais e nas pressões para a reforma do sistema educacional.

Considerando a BNCC junto às proposições da reforma da educação, Macedo (2017) destaca que a entrada do MESP, no cenário da BNCC, delineou-se após a publicação da segunda versão, divulgada em 2016, com o fortalecimento das demandas conservadoras, acarretando controles e táticas de exclusão das diferenças nos propósitos educacionais.

O MESP atuou em duas frentes em relação às demandas desse documento. A primeira colocou em xeque a competência do Conselho Nacional de Educação (CNE) para sua aprovação, restringindo-o ao âmbito curricular e minando sua atuação em termos da inserção dos direitos humanos e civis na BNCC. A segunda frente diz respeito ao conteúdo da BNCC, no tocante aos objetivos de aprendizagem e de ensino, de modo que ampliou o caráter reativo de suas proposições ao defender: a) a transferência da educação para o espaço privado da família; b) o controle ideológico; c) o apagamento e a censura da diversidade nos currículos; d) o ocultamento das abordagens de gênero (Macedo, 2017). Diversas/os defensoras/es do MESP, desde 2016, passaram a ser interlocutoras/es acessados pelo MEC e endossados pelas bancadas religiosas quanto à defesa do ensino por competências e à politização da BNCC, empunhando a bandeira de uma revisão imediata do documento, que mal fora implantado, com a justificativa de que o Congresso teria condições de assegurar a pluralidade de ideias e a ordem técnica do ensino muito mais que o próprio Ministério e seus órgãos deliberativos [7] .

Destarte, o conservadorismo está presente na BNCC, principalmente, no tocante às temáticas de etnia, cor, gênero, sexualidade, pertencimento cultural, temas sociais controversos que dizem respeito às minorias sociais. Logo:

[...] esse conjunto de demandas conservadoras do ESP em relação ao conteúdo da BNCC é bastante pontual e aponta menos para o que deve fazer parte do currículo do que para o que deve ser excluído, para que a escola possa atender a todos. As exclusões citadas explicitamente se referem a demandas político-partidárias, raciais, de gênero e de sexualidade. O potencial dessas exclusões para deslocar as articulações sobre a BNCC é preocupante, na medida em que elas focam diretamente demandas de grupos minoritários — de raça, gênero e sexualidade — que, ainda timidamente, têm conquistado algum espaço. (Macedo, 2017, p. 517)

A versão final do documento impõe-se como normatizadora da educação brasileira, ao delinear um currículo comum para as escolas nas diferentes unidades federativas, além disso, baseia-se na organização do conhecimento por competências conceituais e procedimentais, habilidades sócio-cognitivas e emocionais e na aquisição de atitudes e valores para a vida social e para a inserção no mercado de trabalho.

Ao realizar uma busca com as palavras-chaves “Gênero”, “Sexualidade” e “Sexual” na última versão da BNCC (Brasil, 2018), pode-se perceber que a acepção de gênero, no sentido de análise ou compreensão das desigualdades sociais e como ferramenta para se combater as violências sexistas e homofóbicas, não se presentifica como ocorre nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) que visam à compreensão das identidades de gênero e da corporeidade, tampouco como na Escola sem Homofobia e sua proposta de respeito e aceitação das diferenças sexuais. Temas relacionados a esses contextos foram retirados do texto final sob a alegação do MEC e do CNE de que o gênero é objeto de controvérsias sociais e de debates confusos que tumultuam os currículos escolares.

A sexualidade é mencionada na Área de Ciências da Natureza, especificamente, dentro do conteúdo de Ciências para o 8º Ano do Ensino fundamental:

[...] nos anos finais, são abordados também temas relacionados à reprodução e à sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância social nessa faixa etária, assim como são relevantes, também, o conhecimento das condições de saúde, saneamento básico, da qualidade do ar e das condições nutricionais da população brasileira. Pretende-se que os estudantes, ao terminarem o Ensino Fundamental, estejam aptos a compreender a organização e o funcionamento de seu corpo, assim como interpretar as modificações físicas e emocionais que acompanham a adolescência e a reconhecer o impacto que elas podem ter na autoestima e na segurança do seu próprio corpo. É também fundamental que tenham condições de assumir o protagonismo na escolha de posicionamentos que representem autocuidado com seu corpo e respeito com o corpo do outro, na perspectiva do cuidado integral à saúde física, mental, sexual e reprodutiva. (Brasil, 2018, p. 327)

O quadro a seguir (Quadro 1) apresenta as principais habilidades e competências previstas para o Ensino Fundamental.

Fonte: Brasil (2018, p. 349).

Quadro 1 Sexualidade na grade curricular 8º Ano EF / BNCC. 

Embora a BNCC vincule a sexualidade às dimensões afetivas e sociais, a leitura dos textos aponta para a redução da questão da sexualidade a uma dimensão biológica, além de ter como foco a adolescência como fase reprodutiva e a priorização de aspectos anatômicos, fisiológicos, hormonais e da reprodução humana, ou seja, trata-se de um documento pautado na perspectiva da genitalidade. Para Santos e Carvalho (2019), essa estratégia é capciosa, pois abre precedentes para a potencialização dos entendimentos normativos das vivências afetivo-sexuais e para a biologização da diversidade, o que pode corroborar a perspectiva heterossexual como a sexualidade normativa e bem-comportada.

Outro aspecto que chama atenção é o cunho médico higienista das proposições, pois o enfoque está centrado nas DSTs sem a sugestão de discussões relacionadas às questões sociais, às estratégias de prevenção e de investimentos em campanhas, à evolução dos quadros de tratamento e do papel da militância LGBT+ no avanço de conhecimentos, direitos e lutas para se minimizar os impactos das doenças. Ou seja, a sexualidade é capturada quase que exclusivamente na tríade “corpo-sexualidade-doença”.

Na BNCC do ensino médio, esse aspecto biologizado fica mais evidente com a ocultação dos conteúdos condizentes com o debate sobre sexualidade na Unidade Vida, Terra e Cosmos. Nenhuma sugestão é indicada para o trabalho específico com os temas sexualidade e gênero (Quadro 2).

Fonte: Brasil (2018, p. 537-539).

Quadro 2 Ocultamento da temática sexualidade no Ensino Médio 

A ausência de menção direta ao termo sexualidade caracteriza a BNCC como um documento direcionado a questões de saúde pública, descartando, no entanto, aspectos culturais, sociais, políticos, históricos e psicológicos associados à percepção da sexualidade. Embora se preconizem alguns aspectos éticos, o apagamento semântico da sexualidade, segundo algumas/alguns pesquisadoras/es (Leão & Ribeiro, 2012; Furlan & Carvalho, 2020; Carvalho, 2020), não viabiliza as discussões e os questionamentos a respeito das estruturas sociais, dos machismos e sexismos, da invisibilidade da diversidade sexual, das lutas das mulheres, da violência sexual, da questão relacional do gênero e da própria disputa de diversos setores sociais em torno desses debates.

Mesmo com a sinalização da busca por competências e habilidades contrárias à discriminação de qualquer grupo humano, o preconceito é tratado genericamente na BNCC e isso acaba por contribuir para discussões rasas nos espaços escolares, com as estruturas das desigualdades e das exclusões e para afastar uma cultura de paz e respeito dos espaços educacionais.

Vale novamente enfatizar que o veto ao Programa Brasil sem Homofobia e a exclusão das referências ao gênero e à sexualidade na BNCC receberam apoio do MESP, justamente porque o movimento apregoa que tais assuntos violam os princípios familiares. Em contrapartida, segundo Picchetti e Seffner (2017, p. 735):

[...] ao contrário do que muito se diz hoje em dia, interromper a naturalidade da enunciação da norma não configura atitude de ‘fazer a cabeça ’ das e dos jovens, e muito menos se configura como doutrinação ou abuso de autoridade docente sobre as e os discentes [...] Essa é a educação que desejamos, e que pode formar sujeitos que se indaguem sobre a norma, tendo condições de produzir, com liberdade, os modos como vão repetir com diferença.

Trata-se, antes de qualquer outra colocação, de um argumento que reduz a formação plena e a escolarização a uma perspectiva técnica, na qual qualquer tipo de discussão para além dos conteúdos básicos torna-se uma doutrinação esquerdista. A defesa do argumento de que a educação cabe à família e que a BNCC deve se dobrar aos interesses religiosos evidencia um tenso campo de imposição de saberes e discursos hegemônicos sobre a sexualidade e sobre o gênero, os quais esvaziam a escola de seus sentidos formativos.

Considerações finais

Ao destacarmos as proposições do MESP, verificamos as determinações presentes em sua proposta e nas questões políticas e sociais que o intersectam. O programa ganhou força em um momento histórico e político diferenciado, no Brasil, e no qual se alinharam mudanças que retomam os ideários conservadores na imposição de vieses ideológicos reativos às minorias e à diversidade sexual.

Consideramos a educação um ato político e, nesse sentido, acreditamos ser imprescindível analisar as forças que atravessam as propostas de mudança educacional e curricular na educação brasileira. No contexto discutido, neste artigo, é imprescindível observar que a educação em âmbito nacional tem sido um espaço de disputa e de imposição de verdades não neutras, mas, sim, vinculadas a interesses difusos de movimentos articulados a uma perspectiva de relativização dos direitos e da cidadania. Tais posturas não promovem a redução das desigualdades, das injustiças e dos preconceitos sociais estruturadores da sociedade brasileira.

Em prol de preceitos religiosos, de grupos políticos e sociais neoconservadores, o MESP tem feito uso de dispositivos e ferramentas distintas para o convencimento da população e para banir o pensamento crítico das propostas educacionais. Trata-se de uma distorção da realidade e da complexidade da escola na formação integral das/os sujeitos, com a finalidade de controlar, vigiar e punir, especialmente, as/os educadoras/es e os conteúdos vinculados às temáticas de gênero e sexualidade, entre outros não citados aqui.

Vinculando-se à proposição canônica de uma “ideologia de gênero” esquerdista, o MESP visa reproduzir o status quo vigente: o aspecto biologizado e teológico das concepções sobre gênero e sexualidade a sustentar, por efeito, a ideia de uma conduta heteronormativa e bem-comportada para as relações afetivas. Além disso, abre caminhos para a intervenção privada das famílias no espaço coletivo e social das instituições de ensino.

Embora as temáticas estejam amparadas por documentos educacionais, no tocante à reforma do ensino, a BNCC, com o incentivo de grupos conservadores e do próprio MESP, minimizou os indicativos curriculares e pedagógicos que possibilitam a criação de uma cultura de respeito e compreensão do gênero e da sexualidade como dimensões humanas, relacionais, históricas, sociais, psíquicas e subjetivas. Esse apagamento efetivado na BNCC respalda o viés médico-higienista acerca da compreensão das corporeidades e das sexualidades, atrelando-se ao determinismo biológico adotado por grupos religiosos, para fins reguladores. Logo, a BNCC descaracteriza o plano dos direitos humanos e sociais, ao negar essa perspectiva na escola e ao balizar os conteúdos da educação básica pelo viés técnico e conteudista.

O discurso do MESP, juntamente com o neoconservadorismo do combate a uma suposta “ideologia de gênero”, adentra o imaginário de famílias e estudantes, impingindo dificuldades na efetivação de uma formação escolar plural, cidadã, crítica e libertadora dos preconceitos estruturantes. Embora não tenha se fixado como legislação, por entendimento de instâncias como o STF, o MESP acaba constelando um efeito de lei na valoração de um ensino moralizante, universalizado e reprodutor das injustiças sociais.

Caso o MESP venha a ser aprovado e se houver jurisprudência para sua constituição legal, a educação brasileira sofrerá os impactos das concepções reativas e conservadoras sobre temas sociais importantes que minimizam os apagamentos das diversidades sexual e cultural. Nesse aspecto, evidenciar os perigos do MESP é lutar pela permanência da democracia nas escolas e na sociedade.

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[1]Tanto a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988) quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Brasil, 1996) não trazem a palavra gênero em seus textos, no entanto, garantem amplamente as liberdades individuais e o respeito a qualquer cidadão independente de etnia, cor, pertencimento cultural, sexo ou orientação sexual.

[2]Lançado em parceria entre o Ministério da Saúde, a Secretaria de Direitos Humanos e com o Ministério da Educação (MEC), o Brasil sem Homofobia visava ao combate à violência e à discriminação contra LGBT+ e à efetivação da cidadania homossexual, lesbiana e bissexual, garantindo o direito à educação livre de preconceitos (Brasil, 2004).

[3]Segundo o Movimento Professores contra o ESP, foram protocolados 14 PL do ESP em âmbito federal, 25 no estadual e 124 no municipal. Informações: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1AbaBXuKECclTMMYcvHcRphfrK9E

[4]O termo neoconservadorismo ganhou espaço após a Segunda Guerra e relaciona-se a grupos políticos e culturais que perfazem a nova direita desde a década de 1960 (Oliveira, 2020).

[5]Fascismo como fenômeno de massa, molecular, que estende seus tentáculos pela teia social (Gallo, 2009). Trata-se de uma espécie de virtualidade dos microfascismos do cotidiano materializados em diferentes instâncias sociais e em cada um de nós.

[6]Para não ferir direitos autorais, suprimimos os destaques retirados do Site do MESP. Sugerimos às pessoas leitoras o acesso à aba “Depoimentos”, disponível no endereço: http://www.escolasempartido.org para a verificação do deslocamento de circunstâncias e fatos escolares fora de seu contexto de origem, como a reiteração de posições cristalizadas e preconceituosas. (Error 3: El enlace externo http://www.escolasempartido.org debe ser una URL) (Error 4: La URL http://www.escolasempartido.org no esta bien escrita)

Recebido: 11 de Dezembro de 2020; Aceito: 28 de Junho de 2021

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