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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub 28-Jul-2021

https://doi.org/10.26512/lc27202137018 

Artigos

Gêneros orais e letramento crítico em livro didático de ciências da natureza

Géneros orales y alfabetización crítica en un libro de texto de ciencias naturales

Oral genres and critical literacy in a textbook on Natural Sciences

Érica Yamauchi Torres1 
http://orcid.org/0000-0002-8080-0133

Sílvio Ribeiro da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-8705-4356

1Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (2020). Orientadora Educacional do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás. Membro do grupo de pesquisa Lupa.

2Doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Professor titular da Universidade Federal de Jataí.


Resumo

Este estudo objetiva analisar duas propostas de produção de gêneros orais em uma coleção de livros didáticos de Ciências da Natureza, com base em Bakhtin (2019) e Schneuwly e Dolz (2011). Observou-se o favorecimento para o letramento crítico sob a ótica de Freire (2019), Street (2014) e Soares (2009). Justificamos a investigação do livro didático e apontamos a relevância de pesquisas sobre os gêneros orais e suas vinculações com o letramento crítico. É uma análise de conteúdo documental com enfoque quanti-qualitativo e interpretativista. Os dados mostram a ocorrência de um baixo percentual destas propostas, contudo o estudo sinaliza a contribuição para o letramento crítico do estudante.

Palavras-chave Livro didático; Gêneros orais; Letramento crítico

Resumen

Este estudio tiene como objetivo analizar dos propuestas para la producción de géneros orales, en una colección de libros de texto de ciencias naturales, con base en Bakhtin (2019) y Schneuwly y Dolz (2011). El favorecer de la alfabetización crítica se observó desde la perspectiva de Freire (2019), Street (2014) y Soares (2009). Justificamos la investigación del libro de texto y señalamos la relevancia de la investigación sobre los géneros orales y sus vínculos con la alfabetización crítica. Es un análisis de contenido documental con enfoque cuantitativo-cualitativo e interpretativo. Los datos muestran la ocurrencia de un bajo porcentaje de estas propuestas, sin embargo, el estudio indica el aporte a la alfabetización crítica del estudiante.

Palabras clave Libro de texto; Géneros orales; Alfabetización crítica

Abstract

This study aims to analysis two proposal of oral genre production, from a collection of Nature Science textbook, supported in Bakhtin (2019) and Schneuwly and Dolz (2011). We noted the possibilities of favouring to the critical literacy of student, from the perspective of Freire (2019), Street (2014) and Soares (2009). We justify the investigation of textbook and we showed the relevance of research about the oral genres and their links with the critical literacy. It is a document content analysis with focus quanti-qualitative and interpretive. The data conclude the occurrence of a limited percentage of these proposals; however, the study indicates the contribution to the critical literacy of student.

Keywords Textbook; Oral genre; Critical literacy

Introdução

O livro didático (LD) é um recurso identificado como pertencente à comunidade escolar. Assim, “o livro didático é, em primeiro lugar, o portador dos saberes escolares, um dos componentes explícitos da cultura escolar” (Munakata, 2016, p. 123). Deste modo, trata-se de um material que deve atentar ao processo de ensino-aprendizagem, ou ao que precisaria ser ensinado qualitativamente, de forma específica, em cada etapa da escolarização. Dessa maneira, investigamos uma coleção didática de ciências da natureza (CN) dos anos iniciais do Ensino Fundamental, percebendo que nos primeiros anos escolares observa-se o interesse dos estudantes para aprender sobre os fenômenos naturais, o universo, a vida, as plantas e os animais.

A aquisição do LD é um direito constitucional brasileiro previsto no artigo 208 da Constituição Federal (Brasil, 1988), regulamentado pelo Decreto nº 91.542/85 (Brasil, 1985), o qual rege o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Fica estabelecida, em seu artigo 2º, a obrigatoriedade da avaliação periódica das coleções didáticas.

Sasseron e Carvalho (2014) apontam a conexão entre ensino de CN com a produção oral do estudante. Afirmam que este ensino pode contribuir “para a construção de argumentos, sobretudo o trabalho com dados, evidências e variáveis para a construção de justificativas” (Sasseron & Carvalho, 2014, p. 393). Elas observaram as interações orais presentes no ambiente da sala de aula, principalmente em relação à maneira como a argumentação é fomentada durante as aulas de CN.

Outras pesquisadoras como Scarpa e Trivelato (2012) defendem também a relação existente entre a linguagem científica, típica das aulas de CN, e as propostas de produção oral relacionadas à argumentação. Isso corrobora o entendimento de que ensino de CN não deve se ater apenas ao estudo dos fenômenos naturais, mas a um ensino que explore também o aspecto argumentativo provocado durante as discussões dos conteúdos estudados.

Outro aspecto pertinente é que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2018) traz nas suas orientações para o ensino das CN elementos sobre a produção de gêneros orais (GOs). Como exemplo podemos citar a oportunização de momentos em que os estudantes produzam relatos orais, apresentem dados e resultados de investigações e ainda que possam participar de discussões de caráter científico com a comunidade em geral. Além disso, também ponderamos acerca do letramento crítico (LC) estar presente ou não na BNCC (Brasil, 2018).

Apresentada essa relação, propusemo-nos à análise de duas propostas de produção de GOs no livro didático de ciências da natureza (LDCN) dos anos iniciais do Ensino Fundamental, refletindo sobre as possibilidades de favorecimento para o LC do estudante.

Organizamos este artigo a partir desta seção introdutória. Subsequentemente, apresentamos nosso embasamento sobre GOs e letramento/LC. A próxima seção é a metodológica. Há a apresentação da coleção Buriti Mais Ciências (BMC), a qual foi objeto dessa pesquisa. Na sequência, divulgamos os dados analisados, compartilhando duas atividades, interpretadas qualitativamente por meio do nosso referencial teórico. O texto é concluído pelas considerações finais, nas quais resgatamos os objetivos apontados no início do artigo, destacando o que a coleção oferece sobre a produção de GOs e as possibilidades de favorecimento para a criticidade através do LC do estudante.

Gêneros do discurso e os orais

Iniciamos o debate teórico acerca dos GOs mencionando as considerações de Mikhail Bakhtin sobre os gêneros do discurso, pois concordamos com o autor e defendemos que a linguagem se concretiza por meio das interações verbais. Desta forma, referenciamos o enunciado como a unidade básica comunicativa do discurso. Assim, a partir de cada enunciado há um acontecimento ou um evento singular da comunicação. O gênero do discurso segue um padrão de enunciado no qual são estabelecidos o conteúdo temático, o estilo e a maneira como se dá a construção composicional. Tudo isso indica que a caracterização de enunciado ultrapassa a dimensão linguística e alcança uma situação social, adentrando no conceito de esferas/campos e nas múltiplas atividades humanas.

Bakhtin (2019) define que as interações sociais se dão por meio de gêneros do discurso, sejam orais ou escritos, e se precisássemos criá-los originalmente durante o ato da comunicação, seria praticamente impossível. Ele define que:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos […]. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo seu estilo da linguagem, ou seja, pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional[…]. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (Bakhtin, 2019, p. 11)

Assim como Bakhtin (2019), Rojo e Barbosa (2015) também consideram a vinculação entre os enunciados e os gêneros. Defendem que a nossa fala, seja formal ou cotidiana, está sempre vinculada a um gênero do discurso. Assim, o gênero permeia as nossas interações verbais cotidianas, sendo utilizado por nós de modo imperceptível. A presença do gênero do discurso na esfera escolar está em diversas situações: durante uma saudação, ao realizarmos a chamada da lista de estudantes, ao debatermos, ao produzirmos um texto escrito. Em geral, quando utilizamos e dominamos um determinado gênero, provavelmente conseguiremos nomeá-lo.

Bakhtin (2019) afirma que o gênero do discurso ocorre unicamente por meio de enunciados concretos, realizados por sujeitos participantes do discurso. A dinâmica é organizada pela alternância dos sujeitos falantes. O locutor (falante) fala/escreve o seu enunciado e, ao finalizá-lo, transfere a palavra para o seu interlocutor (o outro), o qual produz outro enunciado ou apenas silencia. O filósofo russo há pouco mencionado também defende que é impossível a neutralidade do enunciado. Para ele, é produzida uma “relação valorativa do falante com o objeto do discurso” (Bakhtin, 2019, p. 47). Esta improvável neutralidade seria dada pela escolha dos recursos linguísticos utilizados pelo locutor falante, além do aspecto valorativo das emoções envoltas na situação comunicativa.

Para mencionar os GOs, trazemos a definição de oralidade desenvolvida por Schneuwly e Dolz (2011), pesquisadores de Genebra. São referenciados no Brasil em questões da oralidade e conceituam o termo oral a todos os elementos pertencentes à língua falada. Como exemplo, citamos desde os debates acadêmicos e até mesmo as situações espontâneas de falas.

Corroboramos os teóricos genebrinos, os quais em suas pesquisas sobre a oralidade, atestam a falta de intencionalidade objetiva em seu ensino. Eles afirmam que o processo de ensino e aprendizagem do oral é eventual. Por outro lado, a BNCC (Brasil, 2018) considera que a oralidade é prioridade em seus eixos de ensino, permeando a língua materna e também as outras áreas do conhecimento. Tudo isso devido ao processo de letramento que também perpassa as CN.

De modo que o ensino do oral saia da eventualidade, Dolz et al. (2011) sugerem definições claras acerca das características do que deve ser ensinado. Dentre estas estão a produção corporal e a oralidade, e a vinculação entre o oral e a escrita observando as formas como interagem em detrimento das situações e dos objetivos comunicacionais vivenciados. Assim:

Para uma didática em que se coloca a questão do desenvolvimento da expressão oral, o essencial não é caracterizar o oral em geral e trabalhar exclusivamente os aspectos de superfície da fala, mas, antes, conhecer diversas práticas orais de linguagem que serão exploradas na escola e uma caracterização das especificidades linguísticas e dos saberes práticos nelas implicados. (Dolz et al., 2011, p. 140)

Esses autores ponderam que a eventualidade encontrada no oral remete a um ensino desordenado. O ideal seria analisá-lo funcionalmente durante a interação criada nas produções orais. Eles afirmam que a oralidade também está presente na gestualidade, ou seja, nos aspectos não linguísticos, no comportamento corporal, nas pausas que damos durante as falas enquanto respiramos, na cadência das falas e nas roupas que usamos. Schneuwly e Dolz (2011) defendem que os estudantes só ultrapassam o oral espontâneo quando a escola entende que esta também é sua responsabilidade. Para tanto, faz-se necessário que as produções orais cotidianas extrapolem os gêneros primários, os advindos do contexto social dos estudantes e que não possuem uma intencionalidade educacional, para que alcancem os gêneros secundários, ou seja, aqueles conhecidos por formais públicos devido à regulação externa institucional.

A prosódia também constitui o oral, conforme afirmam os estudiosos genebrinos. Para estes, ela é construída através dos fatos sonoros: a acentuação, a entonação e o ritmo. A acentuação é o destaque dado às sílabas das palavras. A entonação refere-se à altura e ao tônus da fala, somados à intensidade da voz e ao plano entoacional. Por fim, o ritmo vincula-se às pausas e à regularidade da cadência da fala.

Ainda nesse viés, os especialistas genebrinos acreditam que tanto o gênero oral (GO) quanto o gênero escrito são um “megainstrumento que fornece um suporte para a atividade, nas situações de comunicação, e uma referência para os aprendizes” (Schneuwly & Dolz, 2011, pp. 64-65). Ele pode ser empregado pelos interlocutores nas diversas situações de linguagem, cumprindo a função de atender às necessidades interacionais.

Do letramento ao LC – possíveis contribuições da teoria de Paulo Freire

Soares (2014) acredita que o letramento pode ser referenciado por uma multiplicidade de conceitos, a depender da perspectiva defendida, se: antropológica, psicológica, linguística ou pedagógica. Ela estuda o letramento sob o viés pedagógico e afirma que este foi inaugurado no processo da alfabetização, ou seja, no início do processo de ensino da leitura e da escrita. Para distinguir os conceitos de alfabetização e de letramento, Soares (2009) diz que o primeiro está relacionado ao domínio da técnica de ler e de escrever, ou seja, ao conhecimento do sistema de escrita alfabético. Já o último, além da alfabetização, vincula-se às práticas sociais que necessitam da leitura e da escrita.

Desta forma, entendemos que, para Soares (2009), o letramento ultrapassa a alfabetização. Assim, enquanto a atitude de alfabetizar objetiva a memorização e a reunião de letras, a formação de palavras e a construção de textos, o letramento é um movimento imerso no contexto social que atrela sentido ao uso ou à produção da leitura e da escrita. Transcorrido esse período inicial entre as relações e as distinções entre a ação de alfabetizar e a de letrar, o conceito de letramento permeou o campo do ensino da língua e da literatura. Desta maneira, a definição de letramento atinge hoje vários vieses, como o letramento matemático, o científico, o crítico, o escolar, o social, o visual, o digital, entre tantos outros.

A respeito de letramento, Kleiman (2005) aponta para a complexidade deste ao afirmar que a atitude de letrar supera o ensino da leitura proposto na escola, uma vez que busca alcançar a leitura de mundo. Assim, o letramento vai além do desenvolvimento de habilidades e de competências, percebendo questões sociais mais profundas.

Sobre LC, Baltar e Bezerra (2014, p. 143) defendem:

Que o arcabouço teórico freireano nos possibilita depreender aspectos originários das discussões acerca dos letramentos [em específico o letramento crítico] em especial à temática leitura, entusiasticamente discutida por esse autor, uma vez que em seus estudos Freire sempre demonstrou preocupação em relação à aprendizagem de leitura e escrita em contextos marginalizados, pautado na ênfase da educação para a diferença.

Sardinha (2018), assim como esses outros pesquisadores, atesta que Paulo Freire foi o pioneiro nos estudos do LC. Tudo isso devido à sua defesa para que as práticas de ler e de escrever estivessem fundamentadas às ações de libertação e à justiça social, sendo o professor o responsável por ver o aluno como um sujeito de sua história, portanto, um ser social e cultural.

Entretanto não foi Paulo Freire quem elaborou o termo LC; ele utilizava o termo alfabetização, designando-lhe uma relevância social extensa. Assim, é notável que a ausência da criação deste termo não lhe tira o mérito em sua originalidade ao:

Elaborar uma nova visão epistemológica, considerando a produção do conhecimento de forma dialógica, intersubjetiva, e dialeticamente aberta para o dinamismo da vida, para a diferença e para o inédito, além de inspirar profundas inovações na visão política e ética dos problemas que desafiam o mundo da educação atual, sendo, de fato, inspirador decisivo para os autores chave do campo dos estudos do letramento. (Baltar & Bezerra, 2014, p. 143)

Freire (2019) defende que a prática da liberdade é fruto de uma ação reflexiva e crítica, transcorrida por meio do diálogo, acredita haver uma relação dialética entre ler o contexto e ler as palavras almejada pela alfabetização. Freire e Macedo (1990, p. 12) consideravam que:

A alfabetização não pode ser reduzida ao mero lidar com letras e palavras, como uma esfera puramente mecânica. Precisamos ir além dessa compreensão rígida da alfabetização e começar a encará-la como a relação entre os educandos e o mundo, mediada pela prática transformadora desse mundo, que tem lugar precisamente no ambiente em que se movem os educandos.

Na década de 60, esta concepção indica que a educação deve estar em prol da liberdade às pessoas injustiçadas socialmente, se desvencilhando do ensino mecânico e se assemelhando à perspectiva de LC desenvolvido no Brasil. Nessa abordagem, a bandeira libertária freireana defende que a leitura e a escrita superam o domínio decodificador das palavras. “Nesse sentido, tornar um sujeito consciente é muito mais que alfabetizá-lo e vai muito além de moldá-lo decodificador de um sistema alfabético” (Baltar & Bezerra, 2014, p. 143).

Há ainda outras autoras que também relacionaram o entendimento de alfabetização de Paulo Freire com a perspectiva de letramento numa visão crítica e adepta do diálogo. Sustentam que esta alfabetização é uma ação política, fundamentada na reflexão-ação. Assim, a metodologia freirena ultrapassa a simples leitura, por exemplo, da frase: Eva viu a uva. Neste processo, além da leitura, é primordial saber quem é Eva, quem produziu a uva, quem lucrou com esta produção, ou seja, refletir e buscar respostas de modo crítico e dialético. Sobre isto afirmam que “buscamos articular o pensamento freireano sobre a alfabetização com a teoria do letramento […] Freire deu grande contribuição aos estudos do letramento como uma prática social de modo que se torna importante para o avanço da pesquisa em educação” (Macedo et al., 2020, p. 143).

Portanto compreende-se que a palavra crítica “carrega conotações ideológicas e políticas, demarcando o território teórico no qual o autor se assentou, desmitificando o caráter necessariamente neutro de determinadas posturas intelectuais” (Baltar & Bezerra, 2014, p. 143).

Por meio da criticidade, conjectura-se que o estudante perceba e avalie visões historicamente silenciadas, criticando as relações de hegemonia de poder e as condições rígidas impostas a determinadas populações. Deste modo, esse conceito pode ser compreendido “como um exercício de questionamentos das práticas discursivas e como o reconhecimento da relação entre cultura, poder e dominação com vistas à justiça social, igualdade, emancipação e empoderamento” (Duboc, 2016, p. 61). Analisamos a possibilidade de conexões relacionadas à educação libertadora de Freire (2019) com o letramento proposto por Soares (2009) em sua versão forte e o letramento identificado por Street (2014) em seu modelo ideológico. Freire (2019) acreditava que a educação libertadora se fundamentava no saber como uma alavanca para a transformação, de modo que os saberes estudados na escola estivessem atrelados às vivências e aos interesses dos estudantes. Soares (2009) defende que a versão forte de letramento é vinculada ao aspecto analítico e às necessidades sociais da utilização da leitura e da escrita, de modo que o estudante consiga ser mais crítico às demandas da edificação da sua identidade como cidadão. Street (2014) define que as práticas de letramento se relacionam aos aspectos de poder presentes na sociedade, somadas às práticas culturais e suas relações com a leitura e a escrita no meio em que o estudante convive.

LC e suas previsões na BNCC

A BNCC (Brasil, 2018) é um referencial que busca subsidiar a elaboração dos currículos escolares da educação básica pública e privada. Por meio deste, o governo defende que se coloque em prática os direitos de aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes. Assim, esse documento ratifica o Plano Nacional de Educação-PNE (Brasil, 2014a), adotando-se, exclusivamente à educação escolar, a definição do § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a Lei nº 9.394 (Brasil, 1996).

A BNCC (Brasil, 2018) não se considera um currículo [1] , mas sim um conjunto de normas que orientam a elaboração dos currículos escolares locais. Por meio destas, definem-se dez competências gerais, as quais devem ser garantidas aos estudantes durante o seu percurso na educação básica, incluindo o viés pedagógico, os direitos de aprendizagens relacionados aos conceitos e aos procedimentos, e o desenvolvimento de habilidades.

Lopes (2018) discorda e aponta outras considerações sobre a BNCC (Brasil, 2018), definindo que a qualidade da educação não está ligada apenas à homogeneização dos currículos, pois exclui outros componentes basilares para a educação, como a “valorização do comprometimento dos docentes com seu trabalho, a melhoria das condições de trabalho, o estudo e a infraestrutura nas escolas, a formação de quadros nas secretarias para trabalharem com e sobre o currículo” (Lopes, 2018, p. 27).

A partir das críticas apontadas por Lopes (2018) e Alves Filho (2017), sobretudo constatando a legalidade deste referencial como base para a elaboração de milhares de currículos escolares, fizemos uma busca na BNCC (Brasil, 2018) e analisamos que não houve nenhuma referência ao termo LC. Concluímos que o texto não desconsidera totalmente as questões do LC. Deduzimos que está presente em outras palavras, como: criticamente, crítica e criticidade, permeadas em diversos componentes curriculares e em centenas de ocorrências. Em relação ao termo letramento, ele foi encontrado nas seguintes formas: letramento, letramento científico, letramento matemático e multiletramentos.

Entretanto ponderamos que a total ausência do termo LC pode ter vinculações às origens deste com os estudos de Paulo Freire. O pesquisador Da Silva (2020) afirma que a atual direção do Ministério da Educação confronta alguns propósitos da educação, por exemplo, tentando criar trincheiras com os que admiram os estudos deste renomado teórico, afirmando que:

Virou uma espécie de cruzada, em pouco tempo na direção da pasta, [o então atual ministro da educação] declarou guerra às universidades, guerra aos professores, guerra aos alunos, como se tivesse sido encarregado pelo próprio Messias (e de fato o foi) para limpar a terra santa dos hereges e impuros adoradores de Paulo Freire, os comunistas que se instalaram em todas as instâncias do sistema educacional brasileiro. (Da Silva, 2020, s.p.)

Desse modo, avaliando estes tempos desafiadores no campo educacional, consideramos ser pertinente o apontamento desta tentativa de apagamento ou ocultação à relevância teórica de Paulo Freire em um documento de referência nacional da magnitude da BNCC (Brasil, 2018). Fazer essas constatações, trata-se também de um exercício de LC, ou seja, analisamos os dados por meio destas pistas, realizando inferências reflexivas dentro do que consideramos ser ideologicamente possível.

Metodologia

Adotamos a metodologia de investigação científica de análise documental, reconhecendo-a como uma técnica qualitativa relevante, indicada por Ludke e André (1986). Flick (2009) considera que, ao analisar um determinado documento, deve-se focar primordialmente no contexto, na função e na utilização deste em detrimento do foco único no conteúdo documental. Ou seja, ao escolhermos a coleção a ser analisada, refletimos sobre alguns destes pontos. Dessa forma, definimos pesquisar uma coleção de LDCN, a qual foi eleita para ser utilizada no triênio 2019-2021 em instituições públicas escolares, compreendendo um número expressivo de cinco municípios localizados na Microrregião Região Sudoeste do estado de Goiás [2] , nas escolas tanto da cidade quanto do campo.

Assim, desenvolvemos uma abordagem quanti-qualitativa interpretativista, buscando propiciar uma visão ampla do objeto investigado, sugeridos por Souza e Kerbauy (2017, p. 40) como:

Uma abordagem que possibilite mais elementos para descortinar as múltiplas facetas do fenômeno investigado, atendendo aos anseios da pesquisa. Caracteriza-se como um movimento científico, que se opõe à histórica dicotômica quantitativa-qualitativa.

Em relação ao aspecto quantitativo, contabilizamos a frequência com que apareceram o trabalho com os GOs. Levantamos o total de 211 propostas de produção destes gêneros nos 5 volumes analisados. Geramos um grande acervo de dados nas etapas da contabilização e da evidenciação das categorias. Avaliamos os enunciados que instigassem o estudante a ultrapassar a simples decodificação do enunciado, seguindo a teoria de Freire (2019), Street (2014) e Soares (2009).

De modo qualitativo, analisamos se o direcionamento para a produção de GO permitiria o aspecto crítico, o questionamento às ideologias, além da superação de elementos linguísticos. Para tanto, desenvolvemos a análise de conteúdo de Bardin (2016), a qual preocupa-se com os significados e com os significantes, de modo a reinterpretar os enunciados. Outro aspecto considerado foi o interpretativista proposto pelo paradigma indiciário de Ginzburg (1989). Utilizamo-nos deste paradigma, desenvolvendo um processo heurístico, julgando elementos que estivessem favorecendo ou não o LC do estudante, de modo a observarmos as singularidades sem relevância explícita, em oposição às características mais perceptíveis.

Corpus da pesquisa

Em relação ao corpus analisado, fundamentados no Guia PNLD (Brasil, 2019), reputamos que a coleção BMC (Yamamoto, 2017a, 2017b, 2017c, 2017d, 2017e) apresenta imagens expressivas, relacionadas ao tema abordado em todas as unidades de abertura. Oportuniza aos estudantes a possibilidade de estudar o conteúdo de forma prática e lúdica, levando-os a procedimentos como: a investigação, o debate, a leitura e a realização de experiências.

A coleção BMC divide-se em 5 volumes, e estes são subdivididos em capítulos. Para o Guia PNLD (Brasil, 2019), esta coleção traz boas situações de aprendizagem e busca promover a interação e a valorização do conhecimento. Há, assim, a estimulação no campo das ideias, a produção oral e escrita, contribuindo para o desempenho e o avanço global dos estudantes.

Análise dos dados

Iniciamos a investigação dos dados com uma proposta extraída de Yamamoto (2017a, pp. 98-99), Unidade IV, chamada Os materiais ao seu redor, presente no Capítulo 3, com o título Obtenção dos materiais. O objetivo desse capítulo é saber sobre a origem de certos materiais. Também apresenta alguns conceitos vinculados ao consumismo e à produção excessiva de lixo. O exemplo investigado encontra-se na seção O mundo que queremos.

Justificamos a escolha dessas duas propostas atendendo aos seguintes critérios: a) que estivessem em diferentes volumes de LD; a saber, elas estão, respectivamente, nos volumes do 1º e do 5º ano; b) que utilizassem o recurso de algum elemento linguístico relevante; c) que tratassem de temas de estudos pertinentes não somente para as CN, mas que assumissem uma certa relação dialógica com outros componentes curriculares. A partir desses critérios, observamos se essas propostas de produção de GOs poderiam contribuir para o LC do estudante, permitindo expressar oralmente sua perspectiva pessoal de maneira crítica, por meio da produção de gêneros do discurso orais.

Elencamos a questão 4, do segundo item para ser analisada, encontrada em Yamamoto (2017a, pp. 98-99). A questão analisada tem como objetivo a conscientização dos estudantes sobre o acúmulo excessivo de brinquedos. Busca-se refletir acerca da produção excessiva do lixo, propondo que o professor leve aos estudantes alguns questionamentos sobre como destinam os seus brinquedos considerados velhos ou inoportunos para suas atuais brincadeiras.

O início da questão em Yamamoto (2017a, p. 98) traz o texto intitulado Meu brinquedo, seu brinquedo!. Em torno do texto a coleção apresenta ilustrações de inúmeros brinquedos. O intuito é abordar a problemática acarretada ao meio ambiente pelo uso excessivo do plástico. Uma das propostas é que os estudantes doem ou troquem seus brinquedos, dando a eles uma nova utilização, de modo a contribuír para a diminuição do lixo, ao invés de descartá-los. Ainda na sequência, em Yamamoto (2017a, p. 98), são apresentadas duas questões, de leitura e de escrita, na seção Compreenda a leitura, e outra de produção de um texto oral.

Em seguida, Yamamoto (2017a, p. 99) traz uma proposta chamada Faça a sua parte. Para iniciar, o LDCN apresenta um texto instrucional que questiona a possibilidade de o estudante propor e participar de uma feira relacionada à troca de brinquedos. O texto auxilia os estudantes com algumas etapas de planejamento: 1) Separar os brinquedos sem utilidade; 2) Construir regras do funcionamento da feira com o auxílio do professor; 3) Determinar a data e a maneira que os brinquedos deverão ser expostos. O LD ilustra uma feira de trocas em ambiente escolar. Nesta, há uma professora na companhia de 6 estudantes, dentre estes, uma com deficiência física, outro com comprometimento visual (usando óculos) e estudantes representando diversidades étnicas. Há ainda um texto complementar que busca orientar o professor sobre o tema abordado. Ele fomenta os possíveis benefícios transcorridos a partir da feira de troca, tais como a ludicidade, as relações de trocas criadas entre os diversos participantes, a abordagem dos aspectos sobre o consumismo, e ainda a possibilidade da realização destas feiras em diversos locais que não apenas a escola. Para concluir, há a questão 4 a ser investigada. Nela, existem dois itens, os quais são propostas produções orais.

Consideramos o tema trabalhado muito relevante. Tratar das ações de produção excessiva do lixo e do consumismo envolvem, dentre tantos elementos, o descarte do plástico (relacionado aos brinquedos) e a relação direta das nossas ações com as consequências para a natureza. Acreditamos que esta abordagem torna possível a aprendizagem por meio das interações e da socialização dos significados presentes na rotina dos estudantes. A respeito dessa temática, Nascimento e Barbosa-Lima (2006, p. 2) afirmam que:

Ensinar ciências para crianças é dar-lhes a oportunidade de melhor compreender o mundo em que vivem. De ajudar a pensar de maneira lógica e sistemática sobre os eventos do cotidiano e a resolverem problemas práticos, desenvolvendo a capacidade de adaptação às mudanças de um mundo que está sempre evoluindo científica e tecnologicamente.

Apesar da industrialização ter contribuído para o aumento significativo da produtividade, trouxe também a intensificação da produção de lixo. Assim, emergiram consequências ambientais avassaladoras, como o aquecimento global, e por outro lado, o fortalecimento da economia liberal e o consumismo alienador. Giraldi e Adjuto (2019) destacam, lamentavelmente, que o World Wide Fund For Nature (WWF) ou Fundo Mundial para a Natureza considera o Brasil como o 4º país maior produtor de lixo. Nessa lista de maiores poluidores do mundo, perdemos apenas para os Estados Unidos, a China e a Índia. Ademais, pesquisas comprovam que a produção média de lixo por pessoa fica entre 800 gramas a 1 kg de lixo/dia. Ao refletirmos sobre todos esses números, analisamos que o LDCN foi muito assertivo ao propor o estudo desse tema, principalmente pelo aspecto da ludicidade presente na atividade da feira de troca. A partir desta, observamos a busca por conscientizar os estudantes sobre a relevância ambiental e social do consumo consciente e crítico. A BNCC (Brasil, 2018), entre as competências específicas das CN, indica que o estudante deve proceder de forma pessoal e coletiva, de modo que a área das Ciências lhe proporcione subsídios de consciência e de ações positivas em relação às questões socioambientais e sustentáveis.

Analisamos que, ideologicamente, a coleção BMC instigou a mudança de perspectiva dos estudantes. A conscientização acerca das questões do consumismo de brinquedos era o objetivo da proposta analisada. A feira de troca poderia ser uma alternativa benéfica para a diminuição da produção excessiva de lixo, favorecendo a preservação do meio ambiente e a sustentabilidade por meio de ação lúdica e coletiva. Sobre o fator ideológico, Bakhtin e Volochínov (2014) afirmam que a linguagem é um evento socioideológico; desta forma, a ideologia é social, surge das interações entre os interlocutores. Para estes teóricos, “toda palavra é ideológica e toda utilização da língua está ligada à evolução ideológica” (Bakhtin & Volochínov, 2014, p. 121).

Julgamos que a proposta, nesse viés ideológico, auxilia o planejamento e a participação em uma atividade interativa, buscando reflexões e novas visões de consciência. Assim, consideramos que o LDCN favorece ao estudante o desenvolvimento de um olhar qualitativo acerca da sua responsabilidade com o meio ambiente.

Apontamos também como um enfoque favorável a presença da diversidade dos estudantes em sala de aula, além da diversidade de brinquedos. Assinalamos que houve a aproximação do estudante com o seu contexto de vida por meio da utilização dos recursos multissemióticos, por exemplo, a ilustração da sala de aula, dos brinquedos, dos colegas de turma e da professora. Sobre o benefício desses recursos multissemióticos em relação ao ambiente escolar, apontamos o que Lajolo (1993) diz, ou seja, que o uso da linguagem não verbal pode elaborar uma certa semelhança entre as ilustrações construídas pelo LD com as ilustrações criadas pelo próprio estudante.

Consideramos restrito o percentual de propostas semelhantes a esta analisada. O resultado foi o equivalente a 1,8% das 211 propostas observadas nos 5 volumes presentes na coleção. Julgamos insuficiente o aspecto quantitativo oferecido pela coleção BMC.

Contudo observamos que a proposta analisada traz contribuições relacionadas à criticidade a partir da produção de um GO, proporcionando ao estudante evidenciar sua visão pessoal. Esses aspectos observados favorecem o LC fundamentado no Brasil pelos estudos freireanos, os quais buscam fomentar uma postura crítico-reflexiva no estudante, possibilidade que inferimos ter potencialidade de ocorrer por meio da proposta analisada.

A segunda proposta ilustrativa encontra-se no LDCN do 5º Ano em Yamamoto (2017e, p. 155), Unidade III, nominada O céu e a noite, capítulo 4, intitulado Instrumentos de observação do céu. Neste capítulo, busca-se apreender sobre os movimentos do Sol, da Terra, das estrelas, e alguns aparelhos utilizados para a observação do céu. O exemplo aparece na seção O mundo que queremos.

Na análise, refletimos se a atividade aborda a superação de elementos linguísticos a fim de que o estudante extrapole a simples decodificação de sinais explicitados no texto, favorecendo o desenvolvimento de um locutor crítico por meio da produção de um GO.

Escolhemos o primeiro item da questão número 2 para ser estudada. Esta foi a única proposta de todos os 5 volumes da coleção BMC que apresentou este atributo sobre a superação de elementos linguísticos.

A atividade escolhida encontra-se em Yamamoto (2017e, pp. 154-155). O objetivo é o de refletir e debater sobre a discriminação e o preconceito contra a mulher, propondo maneiras de combatê-lo. Além disso, fazer o estudante conhecer histórias de mulheres que deram relevantes contribuições para a Astronomia, desmistificando esse tipo de pensamento. O LD propõe que o professor interaja com a turma, questionando o que compreendem sobre o preconceito, se já perceberam atitudes preconceituosas, se consideram que ele existe, e caso exista, como rejeitá-lo e defrontá-lo.

Nas orientações didáticas especificas encontradas em Yamamoto (2017e, p. 154), decorre um encaminhamento especial para o desenvolvimento do domínio da linguagem, objetivando a oralidade. Já nas orientações didáticas gerais, observamos a condução do professor para a leitura do texto As mulheres na Astronomia. Na sequência, surgem 3 imagens de mulheres evidenciadas mundialmente na área da Astronomia. Em Yamamoto (2017e, p. 155), o LD apresenta ainda a imagem de Beatriz Barbuy, uma renomada astrofísica brasileira. Há também a questão 1 Compreenda a leitura, na qual o estudante deve responder o que apreendeu sobre o texto. Por último, a questão 2 é subdividida em 4 itens, sendo que refletimos sobre o primeiro deles. Consideramos que o LDCN traz uma proposta de produção do GO caracterizada como uma conversa grupal.

Por meio da leitura do texto As mulheres na Astronomia encontrado em Yamamoto (2017e, p. 154), analisamos a desvantagem percentual profissional de cientistas mulheres em relação aos homens. Além disso, o texto mostrou o preconceito de que a área das Ciências não é empreendimento para o campo feminino.

No LDCN do 5º ano, em Yamamoto (2017e, p.155), é retomado o termo coisa de mulher, na seção Vamos fazer. Assim, no primeiro item da questão 2, questiona-se ao estudante o sentido do termo. Também se interroga acerca da determinação social da mulher para atuar em alguma profissão específica. Verificamos que é neste ponto que a coleção BMC favorece a superação de elementos linguísticos. Destarte, observamos que a presença das aspas no termo coisa de mulher é o elemento linguístico a que mencionamos. A utilização das aspas pode gerar no estudante a oportunidade de superar a simples decodificação de um indicativo gráfico, de modo a contribuir com o letramento de um locutor crítico. Assim, acreditamos que, além da superação do elemento linguístico aspas, julgamos também que a escolha do GO conversa grupal enobrece as diversas capacidades de argumentação dos estudantes.

Gostaríamos de chamar atenção também para o fato de que o uso das aspas no texto apresentado tem a função de marcar a expressividade do locutor. Sabe-se que a expressividade depende da esfera da comunicação verbal na qual determinado gênero vai circular. Isso significa que o locutor precisa considerar o local onde o texto circulará, sem se esquecer dos interlocutores habitantes dessa esfera. O autor russo afirma que “a relação valorativa com o objeto do discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais” (Bakhtin, 2003, p. 308). Assim, o uso das aspas no texto foi usado além de um simples recurso linguístico, apresentando uma finalidade expressiva. Por isso, acreditamos que a atividade com o GO pode despertar a atenção do aluno para o lado crítico do tema discutido a partir do uso das aspas presentes no texto de apoio.

Realizadas essas considerações, elencamos, contudo, um elemento negativo. Isto é evidenciado na baixíssima ocorrência quantitativa desse tipo de proposta encontrada na coleção. Encontramos o valor percentual quase insignificante, de 0,47% das 211 propostas observadas na coleção. Concluímos que a coleção BMC desmereceu quantitativamente o trabalho relevante por meio da superação dos elementos linguísticos.

À vista disto, ponderamos que a análise dessa atividade sobre o GO conversa grupal pode sim favorecer a superação de elementos linguísticos e contribuir para a formação de um estudante crítico, ultrapassando a simples decodificação de um indicativo gráfico explícito, beneficiando o LC.

Considerações finais

Nesse artigo, analisamos duas propostas de produção de GOs constituintes de uma coleção LDCN dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Julgamos se a abordagem com os GOs pode ser favorável ao LC do estudante.

De modo sumário, a coleção trouxe poucas propostas de produções de GOs. Refletimos que o LC teria espaço para ser desenvolvido em todos os 5 volumes analisados. O aspecto do favorecimento à criticidade e à superação de elementos linguísticos pode ser excelente oportunidade para que desperte no estudante o incentivo ao respeito à diversidade, à justiça social, à igualdade e a importância do professor em ampliar a percepção do estudante sobre questões culturais e sociais, para além da instituição escolar, por meio das práticas de letramento.

Indicamos que a coleção BMC explora poucas possibilidades de o estudante utilizar-se do ensino de CN para a elaboração de argumentos, reflexões e justificativas, por meio da produção de GOs. Desta forma, consideramos que esse material didático se eximiu de abordar questões relacionadas à hegemonia dos poderes permeadas na sociedade, incentivando o estudante a refletir e a criticar sobre o seu contexto, de modo a resistir como um sujeito social e revolucionário, da maneira como defende Freire (2019).

Sugerimos que sejam desenvolvidas pesquisas análogas a esta, mas que analisem outros componentes curriculares e seus respectivos materiais didáticos, tais como o LD de História, de Geografia, de Matemática, entre outros, de modo que poderiam ser investigadas as possíveis propostas com os GOs e suas relações com o LC do estudante, tendo em vista principalmente o número expressivo de estudantes brasileiros que recebem ou que deveriam recebê-los anualmente e as contribuições positivas que este tipo de estudo pode repercutir para a qualificação desses materiais.

Na análise qualitativa dos dois exemplos ilustrativos, verificamos que as propostas exploraram fatos do contexto. Entendemos que houve um acometimento crítico de forma que os conceitos estudados estivessem incorporados e trabalhados a contento. Os temas estudados estavam ligados à produção de lixo excessiva e ao preconceito contra a mulher. A partir desses dois exemplos específicos, a coleção BMC favoreceu-se de uma relação dialética conectando fatos do contexto social dos estudantes e o ensino sistematizado das CN. Desta maneira, acreditamos que, se fosse apresentado um número mais expressivo de propostas de produção de GOs equivalente a estas, o LDCN estaria oportunizando ao estudante uma educação que desafiasse o que Freire (2019, p. 105) aponta como a “domesticação […] um ato de transferência de conhecimento”, favorecendo de forma efetiva o LC do estudante.

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[1]Alves Filho (2017) critica que a Base é uma proposta tradicional dos currículos organizados por objetivos, desconsiderando que as questões culturais são legitimadas coletivamente aos estudantes e aos educadores, quando atribuem propósito ao processo educacional. Tudo isto poderia ser uma tentativa governamental conservadora e ameaçadora da autonomia dos professores.

[2]Esta microrregião é composta no seu total por 18 municípios. Constitui a área de 56.111,874 km² e possui cerca de 446.583 habitantes, na Região Centro-Oeste do Brasil, estado de Goiás (Brasil, 2014b).

Recebido: 23 de Março de 2021; Aceito: 22 de Julho de 2021

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